JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
DEVER DE RESPEITO
DEVER DE URBANIDADE
Sumário

I. A justa causa do despedimento depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) um de natureza subjectiva, traduzido num comportamento culposo do trabalhador; (ii) outro, de natureza objectiva, que se traduz na gravidade do comportamento do trabalhador e suas consequências; (iii) um outro, também de natureza objectiva, que consiste na impossibilidade de subsistência, face a esse comportamento, da relação de trabalho.
II. Viola gravemente os deveres de respeito e de urbanidade, o trabalhador que, através de dois emails que envia ao administrador da sua entidade empregadora, o apelida de escroque, o acusa de roubar e inverte a natureza do poder de direcção.
III. A conduta do trabalhador, pela sua gravidade, lesão da honra e da consideração do administrador da recorrente e possibilidade de impactar na organização da empresa, tornou impossível a manutenção do contrato de trabalho por ter por efeito a amputação do elo essencial que permite a sua subsistência, a saber, a confiança, justificando-se, assim, o seu despedimento com fundamento em justa causa.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No dia 25 de Outubro de 2018, no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo do Trabalho do Funchal, intentou AA acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra “XX, S.A.” pedindo fosse declarada a ilicitude ou a irregularidade do seu despedimento, com as legais consequências.
2. Realizada a audiência de partes, frustrou-se a conciliação, tendo a entidade empregadora sido notificada para apresentar o articulado motivador do despedimento e o procedimento disciplinar.
3. A entidade empregadora apresentou o articulado motivador do despedimento e juntou o procedimento disciplinar.
Alegou, no referido articulado, em síntese, que: (i) o trabalhador violou os deveres a que estava adstrito por força da cláusula 9.ª, CCT celebrado entre a Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo e o Sindicato Nacional da Actividade Turística (regime de trabalho efectivo e regime de trabalho eventual), publicado no BTE n.º 25 (I Série), de 8 de Abril de 1984, com as alterações publicadas no BTE de 8/4/84 e com as alterações publicadas no BTE n.º 39 (I Série) de 22 de Outubro de 1996; (ii) o trabalhador enviou ao seu superior hierárquico dois emails cujo é ofensivo da sua honra e consideração; (iii) os factos imputados ao trabalhador, pela sua gravidade e consequências, são suficientes para tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
4. O trabalhador apresentou a sua contestação, tendo alegado, em síntese, que: (i) o despedimento é ilícito por invalidade do procedimento disciplinar; (ii) os factos imputados não consentem a aplicação da sanção disciplinar mais gravosa, a saber, o despedimento; (iii) ao longo da execução do contrato de trabalho sempre apresentou um registo livre de reclamações e de procedimentos disciplinares, não violando qualquer dos deveres a que se encontrava adstrito.
5. A entidade empregadora apresentou resposta à contestação do trabalhador, pugnando pela improcedência da matéria de excepção invocada.
6. Foi proferido despacho saneador no qual se seleccionaram o objecto do litígio e os temas da prova.
7. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando-se a ilicitude do despedimento do trabalhador. Em consequência, foi a entidade empregadora condenada no pagamento das retribuições devidas desde 25 de Outubro de 2018 (30 dias antes da propositura da acção), incluindo férias e subsídios de Férias e de Natal, com as deduções a que aludem as alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 390.º do Código do Trabalho. Mais foi decidido ter o trabalhador direito aos subsídios de férias e de Natal e
proporcionais, nos termos dos artigos 237.º a 239.º, 245.º, n.º 1, alínea b), e ns. 3 e 4, 258.º, 263.º n.º 2, alínea b), e 264.º, do Código do Trabalho. Mais se determinou, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 391.º do Código do Trabalho em fixar-se em 35 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade o quantum indemnizatório a pagar pela entidade empregadora ao trabalhador.
8. Inconformada, a entidade empregadora interpôs recurso para esta Relação.
9. Por Acórdão prolatado aos 27 de Abril de 2022 foi anulada a sentença de 1.ª instância e determinado que fosse proferida nova sentença.
10. Foi proferida nova sentença cujo dispositivo coincide com o enunciado em 7..
11. A entidade empregadora, inconformada com a sentença da 1.ª instância, interpôs recurso, rematando a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:
i. A sentença apelada padece de erro de julgamento decorrente de errónea qualificação jurídica dos factos dados como provados.
ii. Existe justa causa de despedimento, quando um trabalhador, em emails dirigidos ao Administrador da entidade patronal que têm por objeto assuntos relativos à relação de trabalho, profere as seguintes expressões:
- Se vc fosse […] menos arrogante‖
- quem vc pensa que é????? Meu dono???‖
- Esta empresa foi eu quem criou”
- um escroque que vc é!
- o dinheiro que vc roubou [a esta empresa]…
- Se vc fosse homem […]”
- vc deve ter medo de ser novamente agarrado pelo pescoço.
iii. Desde logo, a al. i) do n.º 2 do art. 351.º do CT tipifica como justa causa de despedimento o comportamento do trabalhador que, no âmbito da empresa, pratica injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhador da empresa [ou] elemento dos corpos sociais.
iv. Mais a mais, tais expressões demonstram à saciedade a sua absoluta indisponibilidade para aceitar integrar uma organização empresarial hierarquizada sob a direcção do seu então superior hierárquico e a obstinada objeção do trabalhador em aceitar aquele que é um elemento essencial e fundamental da relação de trabalho subordinado — a subordinação —, revelando, assim a impossibilidade prática de subsistência da relação laboral.
v. Não se pode albergar qualquer dúvida de que a conduta do apelado violou os deveres de urbanidade e respeito, sem qualquer justificação para tal comportamento, tornando irremediavelmente comprometida a relação entre o trabalhador e o seu superior hierárquico, com inevitáveis prejuízos para a estrutura organizacional da empresa, circunstância que, também por esta via, redunda na impossibilidade prática de subsistência da relação laboral em resultado da quebra irreparável da relação de confiança e do dever de lealdade, determinando mesmo, no espírito do empregador, uma dúvida irreversível sobre a idoneidade da conduta futura do trabalhador.
vi. Não é também despicienda — nem, ao contrário do que fez a sentença apelada, pode ser relativizada — a verdadeira e própria ameaça física que o apelado dirigiu ao Administrador da apelante e que está contida na expressão ―vc deve ter medo de ser novamente agarrado pelo pescoço: a simples ameaça de violência é suficiente para colocar em crise a necessidade imperiosa de tranquilidade e segurança no local de trabalho, tornando-se potencialmente lesiva do bem-estar físico e psíquico não só dos alvos concretos dessas ameaças, como de todos quantos com eles convivem no local de trabalho e introduzindo na prestação laboral de todos um factor de enorme perturbação e distracção que é, só por si, suscetível de ter graves consequências na produtividade e na prestação laboral do conjunto dos trabalhadores e no próprio desempenho da gestão da organização laboral.
vii. Não se pode aceitar que o mundo do trabalho possa ser palco de violência, nem mesmo sob a forma de ameaças ou meras alusões efabuladas: da mesma forma que não se pode aceitar que a entidade patronal dirija a um qualquer trabalhador ameaças de agressões, também não é aceitável que o trabalhador as dirija à sua entidade patronal ou ao seu superior hierárquico. Num e noutro caso não poderemos deixar de estar na presença de justa causa para a cessação do vínculo laboral, que não pode existir nem subsistir sob o espectro da violência gratuita, do medo e dos abusos físicos e psicológicos.
viii. A interpretação normativa que a sentença apelada adoptou, e com que aplicou, o art. 330.º, n.º 1, do CT, padece de inconstitucionalidade, na medida em que é lesiva do conteúdo essencial do direito fundamental ao bom nome e reputação, previsto no art. 26.º, n.º 1, da CRP.
Em suma,
ix. O despedimento do trabalhador, ora apelado, foi, por conseguinte, lícito, não sendo passível de qualquer censura jurídica.
x. A sentença apelada violou assim o disposto nos arts. 330.º, n.º 1, 351.º, n.º 1, n.º 2, al. i), e n.º 3, e 396.º, n.º 2, do CT.
Termos em que, e nos demais e direito, deve ser concedido provimento à presente apelação, revogando-se a sentença recorrida e, em sua substituição, declarar-se lícito o despedimento do apelado/autor.
12. O trabalhador apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso.
13. O recurso foi admitido por despacho datado de 14 de Maio de 2024.
14. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de não dever ser concedido provimento ao recurso.
15. Ouvidas as partes, nenhuma delas se pronunciou sobre este Parecer.
16. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II. Objecto do Recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho –, são as seguintes as questões suscitadas, a apreciar pela seguinte ordem, sem prejuízo da precedência lógica que entre elas intercede: (i) a existência – ou não – de justa causa para o despedimento do trabalhador; (ii) a inconstitucionalidade da interpretação acolhida pela sentença do tribunal a quo no que se refere ao art. 330.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
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III. Fundamentação de Facto
Os factos1 materiais relevantes para a decisão da causa – que não foram objecto de impugnação pelas partes – são os seguintes:
1. A ré XX, S.A. é uma pessoa colectiva com sede na ..., concelho do ..., com o número comum de pessoa colectiva e de matrícula
..., com o capital social integralmente subscrito e realizado em dinheiro 100.000,00 euros, representado por 20.000 acções, tituladas e nominativas, com o valor nominal de 5 euros cada uma, com os documentos de registo depositados na Conservatória do Registo Comercial/Automóvel do Funchal.
2. A Ré obriga-se com a assinatura do Administrador-Único, designado para o mandato de 2016 a 2019, BB, natural da freguesia ..., concelho do ..., casado, contribuinte número ..., titular do Cartão de Cidadão número ..., válido até ........2020, residente na ....
3. AA é trabalhador da XX, S.A., sociedade anónima, com sede na ..., desde o dia 02.02.2014, onde exerce as funções correspondentes à categoria profissional de Chefe de Serviço, auferindo um salário ilíquido de € 1.456,45.
4. As relações de trabalho entre a Ré e o Autor são reguladas pelo CCT (Contrato Colectivo de Trabalho entre a Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo e o Sindicato Nacional da Actividade Turística (regime de trabalho efectivo e regime de trabalho eventual), publicado no Boletim do Trabalho e Emprego Nº 25 (I Série) de 8/4/84 e com as alterações publicadas no B.T.E. Nº 39 (I Série) de 22/10/96.
5. Desde o dia 1 de Fevereiro de 2017 auferia um salário ilíquido de € 1.500,00.
6. O Autor beneficiava de um cartão refeição Pass Vita Electron com o número ..., válido até Maio de 2021, fornecido pela Ré, no valor mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros).
7. No CCT aplicável à relação laboral em causa encontra-se previsto o direito ao subsídio de refeição na cláusula 35.ª, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8. Durante todo o ano de 2014 e até 26 de Março de 2018 o Autor foi sócio da sociedade Ré por via da detenção de uma participação social com o valor nominal de € 10.000,00, correspondente a de 2000 acções com o valor nominal de € 5,00 cada uma, no capital social com o valor nominal de € 100.000,00.
9. O Autor antes de ser admitido como trabalhador a Ré, na qualidade de sócio da mesma, tinha atribuído o cartão de crédito do Banco RR e o veículo automóvel, ..., matrícula ..-OP-.. e de cartão ... que lhe permitia abastecer esse veículo, na altura dos factos, da propriedade da XX, S.A.
10. Por carta registada datada de 25 de Setembro de 2017, o senhor advogado do Réu, Dr. CC, solicitou ao Dr. BB, Administrador-único da Ré, que indicasse dia, hora e local para poderem reunir com vista a tratar da venda de acções da sociedade XX, S.A. das quais era titular o Autor.
11. Nessa carta constava ainda o seguinte. “Agradeço resposta tão breve quanto possível para este escritório (…). Caso não tenha resposta até ao final do presente mês entenderei que estou legitimado para outro tipo de procedimentos.
12. Na certidão comercial da ré constam os seguintes averbamentos:
«Menção Dep. ... UTC - RELATÓRIO DO ROC COM VISTA AO DOMÍNIO TOTAL Depósito do Relatório do Revisor Oficial de Contas, nos termos do n.º 2 do art. 490.º do CSC.
Requerente e Responsável pelo Registo, BB, Gerente/Administrador(a), Cartão de Cidadão n.º ...Morada: ..., Conservatória do Registo Comercial/Automóvel do Funchal O(A) Ajudante por delegação, DD, An. ... - Publicado em http://www.mj.gov.pt/publicacoes. Conservatória do Registo Comercial/Automóvel do Funchal O(A) Ajudante por delegação, DD.
Menção Dep ... UTC - AQUISIÇÃO DE ACÇÕES TENDENTE
AO DOMÍNIO TOTAL
Registo da aquisição potestativa e unilateral das 2000 acções do sócio AA, solteiro, contribuinte fiscal ..., natural da freguesia de ..., concelho do ..., titular do Cartão de Cidadão número ..., válido até 30.05.2021, residente na ..., mediante deliberação, avaliação, comunicação e pagamento da contrapartida de 19.000 €, nos termos do disposto no artigo 490.º do CSC.
SUJEITO ACTIVO: YY, Lda., NIPC: ..., com sede na ....
Requerente e Responsável pelo Registo, EE, Advogado(a), Cédula Profissional n.º ... Morada: ...
O(A) Ajudante, FF
Menção Dep ... UTC - AQUISIÇÃO DE ACÇÕES TENDENTE
AO DOMÍNIO TOTAL
Número de acções adquiridas: 2000
Valor nominal de cada acção: € 5,00
Valor global das acções adquiridas: € 19.000,00
SUJEITO(S) ACTIVO(S): Nome/Firma:YY, Lda. NIF/NIPC: ...
Residência/Sede: ... ...,
aquisição potestativa e unilateral das 2000 acções do sócio AA, solteiro, contribuinte fiscal ..., natural da freguesia de ..., concelho do ..., titular do Cartão de Cidadão número ..., válido até 30.05.2021, residente na ..., mediante deliberação, avaliação, comunicação e pagamento da contrapartida de 19.000 €, nos termos do disposto no artigo 490.º do CSC.
***Retificado Dep ... ***
Requerente e Responsável pelo Registo, Conservatória do Registo Comercial do Porto, Entidade Pública, Entidade Pública n.º ..., Morada: ...
Conservatória do Registo Comercial Porto
O(A) Ajudante, GG
An....- Publicado em http://ww.mj.gov.pt/publicacoes
Conservatória do Registo Comercial Porto
O(A) Ajudante, GG
Menção Dep. ... 15:24:14 UTC – DELIBERAÇÃO DE MANUTENÇÃO DO DOMÍNIO TOTAL SOCIEDADE DOMINANTE: FIRMA YY, Lda. NIPC: ..., SEDE: ...
Data da deliberação: Em 2018/08/24
Requerente e Responsável pelo Registo, BB, Gerente/Administrador(a), Cartão de Cidadão n.º ...Morada: ...
O(A) Ajudante por delegação, HH
An....- Publicado em http://www.mj.gov.pt/publicacoes.
Conservatória do Registo Comercial/Automóvel do Funchal
O(A) Ajudante por delegação, HH».
13. No dia trinta de Março de 2018 foi tomada pelo Administrador-Único da Ré a decisão de instaurar processo disciplinar com vista ao despedimento por justa causa do Réu.
14. Para proceder à recolha da informação necessária e à instrução do processo disciplinar com vista ao despedimento do trabalhador foram nomeados pelo Administrador-Único da Ré a Dra. II e o Dr. EE.
15. A Instrutora nomeada no procedimento disciplinar proferiu, em 5 de Abril de 2018, despacho para proceder à recolha, nos servidores informáticos da sociedade detentora de 100% do capital social da Ré, e respectiva junção aos autos dos comprovativos dos emails trocados entre o Administrador-único da Ré e o ora Autor.
16. A mesma Instrutora, no dia 3 de Abril do ano 2018, autuou a Decisão de Instauração de Procedimento Disciplinar subscrita pelo Administrador-Único da sociedade, BB.
17. Em 3/4/2018 a instrutora desse processo juntou os documentos referidos na Decisão de Instauração de Procedimento Disciplinar, «print screen» com reprodução de mensagens electrónicas (iMessage) trocadas entre o trabalhador arguido e o administrador único da Entidade patronal num total de 3 páginas.
18. A de 5 de Abril de 2018 a mesma instrutora solicitou à Entidade Patronal que procedesse à recolha, nos servidores informáticos da sociedade detentora de 100% do capital social da XX, S.A., tendo juntado aos autos os comprovativos dos emails enviados pelo Administrador-Único, Dr. BB a partir do email ..., ao Trabalhador Arguido, no dia 24/03/2018 e os emails enviados pelo Trabalhador Arguido ao Administrador Único nos dias 24 e 28/03/2018.
19. Em 27/4/2018, a instrutora do processo juntou aos autos a declaração da entidade que presta serviços informáticos à sociedade detentora de 100% do capital social, ZZ, Lda., subscrita pelo seu funcionário JJ, três emails trocados entre o Trabalhador Arguido e o legal representante da Entidade patronal, a qual se dá por integralmente reproduzida.
20. A Nota de Culpa, composta por 11 páginas, foi datada de 30 de Abril de 2018.
21. AA publicou na sua página da rede social Facebook a imagem do cano de uma arma apontada a quem está a olhar para o ecrã e seguida por vários comentários de pessoas que pediam a AA que não fizesse nenhuma loucura.
22. Entre os comentários feitos a esta publicação, contam-se os seguintes: “Caro amigo espero que esteja tudo bem, mas se por acaso precisar de um ponta de lança eu estou livre para jogar na sua equipa (…)”; “Calma amigo, beijinhos”; “Calma aí melhores dias virão”.
23. Tal imagem estava acessível a todos os utilizadores que visitem a página de Facebook do Autor.
24. AA apresentou licença por doença a 28 de Março de 2018.
25. No dia 27/03/2018, às 17:28, o Administrador-Único da entidade patronal, Dr. BB, enviou do email que utiliza no desempenho das suas funções ao serviço da entidade patronal (...) para o email que o trabalhador AA utiliza no desempenho das suas funções para a entidade patronal (...), uma missiva com o seguinte conteúdo:
«Exmo. Senhor AA,
Acuso a recepção dos seguintes SMS que me enviou hoje de manhã:
“Você que é o dono disto tudo, fale com a pessoa que você tem pronto para desempenhar as minhas funções para estar no escritório hoje para passar as coisas.”
“Também se quiser posso passar no escritório apenas para deixar a baixa.”
“Venha cá para falarmos e reunirmos com os motoristas todos.”
(...)
“Não tenho pasta nenhuma a passar, vou lhe apenas dizer os barcos, grupos da WW, grupos da VV, grupos TT, grupos UU, alem de todos transfere e excursões regulares. Carros que ainda estão não oficina por causa de vc o ter mandado se meter numa aérea que não percebia.
Mas fale comigo, venha cá para resolvermos este assunto muito sério, eu estou
doente por sua causa!!!!!!!
Durante o mês de Abril, vai ser necessário a volta de 3/4 Autocarros por semana
para WW, tem uma semana que são 5.
Se acha que vai ser difícil ou acha que não vão conseguir diga que é para avisar.”
Torna-se claro dos seus SMS que irá apresentar licença por motivo de doença.
Em função disso - e como parece que não está impedido de sair de casa ordeno-lhe que transfira todo o trabalho que lhe está adstrito para o seu colega KK, incluído o mapa de serviços que está em “pipeline” nas próximas semanas, amanha de manha.
Para tal deverá apresentar-se no escritório amanhã de manhã pelas 11:00, para reunir com os funcionários KK e LL e fazer um protocolo escrito da entrega dos serviços pendentes contendo todas as instruções e informações necessárias para que a operação da empresa continue a funcionar sem qualquer sobressalto, apesar da sua ausência futura por alegado motivo de doença.
Se algum serviço da empresa for prejudicado pelo seu comportamento ativo ou omissões seremos intransigentes na defesa dos interesses da empresa, pois tanto eu como o senhor sabemos o motivo porque vai meter licença.
Digo-lhe e repito, para que não tenha dúvidas, se alguma coisa vier a correr mal nos próximos tempos por facto que lhe seja imputável por ação ou omissão a empresa vai fazer tudo para se fazer ressarcir dos prejuízos.
Não brinque com coisas sérias pois todos sabemos por que motivo ficou doente de repente: não há coincidências. Repito a ordem para que fique clara: Deverá apresentar-se no escritório amanhã pelas 11:00, reunir com os funcionários KK e LL e entregar-lhes, todo o serviço pendente, com todas as informações e documentos necessários.
Mais deverão fazer um protocolo escrito de entrega dos serviços pendentes contendo todas as instruções e informações necessárias para que a operação da empresa continue a funcionar sem qualquer sobressalto, apesar da sua ausência futura por alegado motivo de doença.
Transmita tudo o que sabe é que é preciso para que a operação da empresa continue a correr com normalidade e sem quaisquer sobressaltos ou anomalias.
Por isso esforce-se por não se esquecer de nenhuma informação útil pois se faltarem informações necessárias não serei complacente.
Com os melhores cumprimentos, Cordialmente, Cumprimentos/Kind Rgds
BB”.
26. No dia 27/03/2018, às 18:10, o trabalhador AA enviou do email que utiliza no desempenho das suas funções para a entidade patronal ...) para o correio eletrónico ..., que é utilizado pelo Administrador-Único da XX, S.A., Dr. BB, uma missiva, com o seguinte conteúdo:
“Subject: Re: Passagem de serviços
ORDENO-LHE?????????
Mas vc pensa que estamos no tempo da escravatura???
Se vc fosse mais simpático e menos arrogante, podia até passar... e pergunte ao seu genro que eu mesmo de baixa tive o cuidado de assegurar o serviço do aeroporto e coordenar os serviços de amanhã, tive o cuidado de lhe ligar para não se esquecerem de passar na VV....
E vc vem com este discurso, quem vc pensa que é?????
Meu dono???
Esta empresa foi eu quem criou...tenho a minha vida dedicada a esta empresa e a um escroque que vc é (pelo menos é como lhe chamam) A única coisa que vc tem mais de mim nesta empresa é o dinheiro que vc roubou...
Mas como vc diz isto está a ser tratado em sede própria!!!!”
27. No dia 28/03/2018, às 12:01, AA remeteu do correio eletrónico ... para o correio eletrónico ... (do Administrador-Único da XX, S.A., Dr. BB), uma missiva onde dizia:
“Exmo Senhor BB!
Estive a pensar melhor, e se vc quiser a minha colaboração enquanto estiver incapacitado, ou seja, se quiser que eu passe no escritório a (hora que for possível, não a hora que vc estipulou) para informar ao seu genro os serviços que estão pendentes, você vai ter que me pedir de forma cordial, pois como mencionei em email anterior, não sou mais seu escravo e o tempo da ditadura acabou, jamais passarei sob ameaças como vc o fez no último email.
Se vc fosse homem e perante esta situação vinha cá, para ajudar a resolver tudo isto, e não deixar tudo a responsabilidade do seu genro. Mas se calhar percebo, vc deve ter medo de ser novamente agarrado pelo pescoço, como já é do conhecimento geral e como aconteceu a uns tempos atrás no aeroporto da madeira”.
28. No dia 3 de Abril de 2018 AA estava de baixa médica.
29. No artigo 32.º da Nota de Culpa ficou escrito: “No caso concreto os factos descritos, pela sua gravidade e consequências, são suficientes em abstracto para tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.”
30. Nada consta do registo disciplinar do Autor.
31. No dia 30/4/2018, foi deduzida Nota de Culpa contra o trabalhador.
32. A Ré remeteu ao Autor, por carta registada datada de 3 de Maio, a Nota de Culpa.
33. Em 24/5/2018 foi junta aos autos Resposta à nota de culpa entregue em mão no dia 21/05/2018, num total de 28 páginas.
34. Em 13 de Setembro de 2018 foi decidido pela Entidade Empregadora aplicar ao Trabalhador a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, sem o pagamento de qualquer indemnização ou compensação.
35. O relatório e a decisão final foram notificados ao Autor, por carta registada remetida dia 14.09.2018.
36. A Ré procedeu ao pagamento dos créditos laborais ao Autor nos termos constantes dos autos de processo disciplinar.
37. O Autor requereu a abertura de um inquérito judicial à sociedade Ré, em Fevereiro de 2018, o qual corre os seus termos sob o n.º 594/18.4T8FNC do J2 do Juízo de Comércio do Funchal do Tribunal de Comarca da Madeira.
38. O Autor intentou uma Acção Especial de Liquidação de Participações Sociais contra a sociedade comercial que corre os seus termos no J2, Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, sob o número de processo 2499/18.0T8FNC.
39. O Autor na Resposta à Nota de Culpa indicou testemunhas as quais foram ouvidas no dia 24.08.2018.
40. Em 7 de Fevereiro de 2018 a Ré tomou conhecimento da publicação no Facebook referida supra [vide nº 20)].
41. AA contactou pelo menos uma pessoa próxima do Dr. BB e disse-lhe que não tem nada a perder, que está desesperado e que vai matar o Dr. BB logo que este regressar à Madeira.
42. O destinatário desta mensagem transmitiu-a ao Dr. BB com algumas reservas por ter receio daquilo que AA possa fazer a si ou aos seus.
43. No dia 3 de Abril de 2018, AA, dirigindo-se à funcionária que estava sozinha, disse-lhe “Não vejas isto como uma ameaça, mas não te metas na minha vida”.
44. A relação entre o Autor e o Administrador-único da Ré, BB, sempre foi simultaneamente, profissional e pessoal.
45. O Autor teve vários problemas de cariz profissional, mas também pessoal, pelo que os seus amigos, sabendo da situação em que o Autor se encontrava, escreveram comentários de apoio, após a publicação referida em 38.º.
46. Os factos que motivaram o Autor a apresentar baixa médica por doença a 28.03.2018, foram os problemas de cariz pessoal e profissional, que levaram a que o mesmo tivesse sofrido uma doença.
47. Nas acções referidas supra, aquando da realização a audiência de discussão e julgamento nestes autos, não havia decisão final transitada em julgado.
48. Da queixa apresentada pelo Administrador da Ré em 5 de Abril de 2018 resultaram os autos de processo comum que correm seus termos no J3, Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, 735/18.1PBFUN, tendo sido deduzida acusação particular imputando ao Autor a prática do crime de injúrias, tendo o Ministério Público acompanhada a acusação particular.
49. À data da realização desta audiência de discussão e julgamento não havia decisão final transitada em julgado.
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IV. Fundamentação de Direito
Sendo estes os factos provados, cumpre agora enfrentar a primeira e essencial questão que se coloca nestes autos – cujo desfecho terá influência, por necessário, no conhecimento na questão da inconstitucionalidade da interpretação do normativo ínsito no art. 330.º, n.º 1, do Código do Trabalho – e que se traduz, ponderando aquele que é o âmbito do recurso interposto, na verificação, ou não, da justa causa de despedimento do trabalhador, sabendo-se, como de colhe do relatório que antecede, que a recorrente – empregadora – entende que a sentença procedeu a uma errónea apreciação dos factos à luz do direito aplicável quanto à justa causa de despedimento, devendo este ser considerado lícito.
1. A proibição dos despedimentos sem justa causa recebe expresso reconhecimento constitucional no artigo 53.º, da Lei Fundamental, subordinado à epígrafe «Segurança no emprego» e inserido no capítulo III («Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores»), do Título II («Direitos, liberdades e garantias») da Parte I («Direitos e deveres fundamentais»).
No plano infraconstitucional, estando em causa um despedimento efectuado em 14 de Setembro de 2018, há que atender à disciplina legal do despedimento por facto imputável ao trabalhador contida no Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, em vigor a partir de 17 de Fevereiro de 2009, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar adiante, sem menção da origem.
2. A sentença recorrida enunciou, de forma suficiente e fundamentada, os pressupostos que subjazem à aplicação da mais gravosa das sanções disciplinares – o despedimento –, enfatizando a por necessária projecção dos factos imputados ao trabalhador na economia da relação laboral e no contexto organizacional.
Importa, assim, neste conspecto, apenas realçar que a existência de justa causa do despedimento depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) um de natureza subjectiva, traduzido num comportamento culposo do trabalhador; (ii) e outros dois de natureza objectiva, que se traduzem na gravidade do comportamento e respectivas consequências danosas e na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho, ou seja, existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
A imputação culposa dos factos – que pode assumir-se dolosa ou meramente negligente – pressupõe a assunção, pelo trabalhador, de comportamento – activo ou omissivo – subsumível na violação de qualquer um dos deveres estruturantes da relação laboral.
Doutro passo, o comportamento do trabalhador terá que, pela sua natureza e pelas consequências que produz, impossibilitar a subsistência do contrato de trabalho, sendo que, em todo o caso, a ponderação a efectuar obedece a critérios de objectividade e razoabilidade, isto é, a gravidade do comportamento culposo do trabalhador deve ser aferida com segundo o entendimento de um pai de família, em termos concretos, relativamente à empresa, e não com base naquilo que a entidade empregadora subjectivamente entenda. A impossibilidade prática de subsistência da relação laboral verificar-se-á, assim, apenas e só se deixar de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade empregadora e o trabalhador, de tal modo que a subsistência do vínculo laboral represente uma exigência desproporcionada e injusta, mesmo defronte da necessidade de protecção do emprego, não sendo no caso concreto objectivamente possível aplicar à conduta do trabalhador outras sanções, na escala legal, menos graves que o despedimento.
No art. 351.º, n.º 2, estão enunciados, de forma exemplificativa, os comportamentos que, assumidos pelo trabalhador, são susceptíveis de integrar a noção de justa causa de despedimento. Todavia, a simples correspondência objectiva aos modelos de comportamentos prefigurados na lei não justifica, só por si, a ruptura do vínculo laboral, não se dispensando que a apreciação dos mesmos factos seja feita à luz das circunstâncias em que ocorreram, do nível cultural e social do infractor, do respectivo meio de trabalho, e de todas as demais circunstâncias susceptíveis de convencerem da impossibilidade de subsistência da relação de trabalho.
Por fim, exige-se o necessário nexo de causalidade entre a impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho e o comportamento do trabalhador e que se traduz na circunstância de aquela impossibilidade ter que derivar, por necessário, desse comportamento.
3. Tal como decorre da decisão disciplinar proferida pela recorrente, a sanção disciplinar aplicada – o despedimento sem indemnização ou compensação – alicerçou-se, fundamentalmente, na assunção, pelo trabalhador recorrido, de comportamentos integradores da violação dos deveres de respeito e urbanidade, comportamentos esses que, no seu ver, pela sua gravidade, integram a justa causa de despedimento à luz do disposto na alínea i) do n.º 2 do art. 351.º.
Entendeu, ainda, a recorrente, visto o instrumento de regulamentação colectiva aplicável à relação laboral havida entre as partes, que o comportamento do trabalhador recorrido se subsumia na violação dos deveres previstos nos ns. 5 e 7 da Cláusula 9.ª, do CCT enunciado no ponto 4., dos factos provados, a saber, os mesmos deveres de respeito e de urbanidade.
3.1. O art. 128.º, n.º 1, al. a), prescreve que «[s]em prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve: a) [r]espeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade».
O dever de respeito e de urbanidade é devido, numa primeira asserção, ao empregador e aos superiores hierárquicos do trabalhador, mas abarca, também, para além dos colegas de trabalho, ainda o conjunto de pessoas que entrem em relação com a empresa.
A multiplicidade de direcções em que este dever do trabalhador se concretiza decorre da componente organizacional do contrato de trabalho e da inserção do trabalhador numa estrutura que está para além da mera relação que se estabelece entre o trabalhador e o empregador, daí a sua extensão às pessoas que entrem em relação com a empresa e também, em determinadas situações, a contextos que vão para lá do tempo e do local de trabalho mas que, de forma relevante, a ele se estendem ou são susceptíveis de relevantemente o influenciar.
O dever de urbanidade e de respeito aponta, assim, genericamente, para a necessidade de observância das regras de conduta social adequadas, quer em matéria de tratamento, quer em matéria de apresentação pessoal e de conduta do trabalhador, carecendo este dever, por força desta da multiplicidade de dimensões em que se projecta, de concretização, caso a caso, em função do contexto empresarial em que ocorre a prestação de trabalho, e das pessoas envolvidas.
«Os limites do dever de respeito são os direitos de personalidade do trabalhador, destacando-se, pela sua possível interacção com este dever, o direito à liberdade de expressão na empresa, o direito à imagem e o direito à reserva da vida privada do trabalhador»2, sendo que, no que se refere ao primeiro – que se evidencia face ao realce que lhe foi emprestado na sentença recorrida – há que atentar que se trata de um direito expressamente previsto no art. 14.º e no art. 37.º, da CRP, mas que, como qualquer direito fundamental, não é de exercício ilimitado, sofrendo, pois, limitação ou compressão sempre que contenda com os direitos de personalidade de terceiros, maxime, do empregador, ou com o normal funcionamento da empresa3.
4. Tecido o enquadramento relevante, é tempo de enfrentar o concreto dos autos, salientando-se, como decorre das conclusões da alegação de recurso, que a recorrente abandonou já, enquanto fundamento da justa causa de despedimento do trabalhador, a factualidade associada a uma publicação que este efectuou na rede social Facebook, significando, assim, que restringe os fundamentos do acerto da decisão disciplinar que proferiu aos dois emails enviados pelo trabalhador recorrido ao administrador único da recorrente.
4.1. A sentença recorrida, sem prejuízo de reconhecer a ilicitude dos comportamentos do trabalhador – na medida em que violadores dos deveres de respeito e de urbanidade a que estava adstrito – concluiu pela desproporcionalidade da sanção aplicada, daí que haja reputado de ilícito despedimento.
A respeito e no que concerne à análise da factualidade provada e sua integração jurídica, considerou-se, na sentença recorrida, como segue:
«No que respeita às mensagens de email impõe-se, para a tomada de decisão, ponderar o quadro fáctico em que as mesmas foram escritas. Assim, antes de mais, atender-se-á às relações existentes entre o Autor e o Administrador, que eram, simultaneamente, profissionais e pessoais.
Os factos que sustentaram o processo disciplinar e o despedimento do Autor ocorreram nos dias 27 e 28 de Março de 2018. O Autor, durante todo o ano de 2014 e até 26 de Março de 2018, foi sócio da sociedade Ré por via da detenção de uma participação social com o valor nominal de € 10.000,00, correspondente a de 2000 acções com o valor nominal de € 5,00 cada uma, no capital social com o valor nominal de € 100.000,00.
Em 25 de Setembro de 2017 o Autor, através do seu advogado, manifestara junto do Administrador único da Ré a vontade de vender as acções da sociedade XX, S.A. das quais era titular.
Em 22 de Março de 2018 foi feito o registo da aquisição potestativa e unilateral das 2000 acções das quais o Autor era titular.
O Autor apresentou licença por doença a 28 de Março de 2018.
O email remetido ao Administrador único da Ré no dia 27 de Março é a resposta ao email que este lhe enviara. E, em rigor, da mensagem escrita pelo Autor, recortam-se com relevância todas as expressões a crítica individual dirigida ao próprio, sem eco noutros subordinados. As expressões usadas pelo Autor no email com relevo para aferir da justeza da decisão disciplinar são as seguintes:
“Se vc fosse mais simpático e menos arrogante…”; “tenho a minha vida dedicada a esta empresa e a um escroque que vc é (pelo menos é como lhe chamam) A única coisa que vc tem mais de mim nesta empresa é o dinheiro que vc roubou...; “Se vc fosse homem e perante esta situação vinha cá, para ajudar a resolver tudo isto…”; “vc deve ter medo de ser novamente agarrado pelo pescoço, como já é do conhecimento geral e como aconteceu a uns tempos atrás no aeroporto da madeira”.
Antes de mais, sublinhe-se que nem sempre a asserção de que um superior hierárquico tenha sido mal-educado ou prepotente será infracção disciplinar. No caso vertente há que reconhecer, no entanto, que se tratou, por parte do trabalhador, de comentários grosseiros e ofensivos que violaram efectivamente o dever de respeito e urbanidade e que assumem gravidade, no quadro da organização da empresa Ré. A conduta do Autor foi significativamente afrontosa, desrespeitosa e mesmo com laivos ameaçadores para com um administrador, pondo em causa a autoridade e honorabilidade deste e ferindo as regras de respeito e disciplina que, dentro de uma empresa, devem reger o comportamento dos trabalhadores em relação aos seus superiores hierárquicos.
Mas será o comportamento do trabalhador justa causa de despedimento?
(…)
Assim, é necessário atender, em primeiro lugar, ao circunstancialismo factual que precedeu ao envio das mensagem: a tentativa do Autor vender as acções da Ré de que era titular, a aquisição potestativa dessas acções pela sociedade YY, Lda. da qual é sócio e gerente o Administrador único da Ré, e a interposição pelo Autor do inquérito Processo: 5915/18.7T8FNC judicial à sociedade Ré e da acção Especial de Liquidação de Participações Sociais, e ainda à relação pessoal entre o Autor e o Administrador único da Ré, não sendo despicienda a importância das relações pessoais em empresas de pequena dimensão.
Relevante se mostra ainda o facto de o Autor ter reagido ao email recebido do administrador único cujo teor se afigura excessivo face à situação de debilidade física em que se encontrava o Autor.
Quanto ao grau de lesão dos interesses do empregador, não só não se provou qualquer dano patrimonial, como o dano da imagem terá sido muito reduzido, tanto mais que o Autor remeteu os emails apenas ao Administrador único da Ré. Mas, e sobretudo, tratando-se, como se tratava, de trabalhador da confiança do Administrador único da Ré (como resulta dos factos 3 a 6 conjugados com o facto de até à data da prática dos factos o Autor não registar qualquer infracção disciplinar.
Face ao exposto não parece que a sanção aplicada, o despedimento, seja proporcionada, como exige o nº 1 do artigo 330º do Código do Trabalho. Com efeito, não se deve esquecer que, atendendo à importância do direito ao trabalho e da tutela do posto de trabalho constitucionalmente consagrados, o despedimento disciplinar deve constituir uma ultima ratio, dispondo o empregador de sanções conservatórias para reagir face a infracções que sendo graves não põem, em rigor, em causa a possibilidade de subsistência da relação contratual.
O comportamento culposo do trabalhador apenas constitui justa causa de despedimento quando determine, por si só e pela sua gravidade, a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, o que sucederá sempre que a ruptura dessa relação seja irremediável, na medida em que nenhuma outra seja susceptível de sanar a crise contratual aberta com aquele comportamento.
Não é o caso dos autos.
Que o comportamento do Autor é culposo e grave em si mesmo e merecedor de censura, sem dúvida; que esse comportamento foi apto a merecer procedimento disciplinar, certamente. Mas que a sanção aplicável seja o despedimento sem indemnização merece o repúdio deste tribunal porquanto da prova carreada para os autos não resulta que a sanção aplicada seja proporcional e adequada. Logo não se pode concluir pela “inexistência ou inadequação prática de medida alternativa à extinção do vínculo”.
Do exposto, terá que se concluir que a Ré não tinha justa causa para proceder ao despedimento do Autor, motivo pelo qual o despedimento promovido pela Ré terá que se considerar ilícito, em conformidade com o disposto no artigo 381º, alínea b) do Código do Trabalho».
3.3. No caso sub judice está em causa a conduta do trabalhador que, como se provou, enviou ao administrador da recorrente duas mensagens de correio electrónico, em dois dias distintos – 27 e 28 de Março de 2018 –, mensagens essas com o seguinte teor (conforme se colhe dos factos provados 26. e 27.):
- «“Subject: Re: Passagem de serviços
ORDENO-LHE?????????
Mas vc pensa que estamos no tempo da escravatura???
Se vc fosse mais simpático e menos arrogante, podia até passar... e pergunte ao seu genro que eu mesmo de baixa tive o cuidado de assegurar o serviço do aeroporto e coordenar os serviços de amanhã, tive o cuidado de lhe ligar para não se esquecerem de passar na VV....
E vc vem com este discurso, quem vc pensa que é?????
Meu dono???
Esta empresa foi eu quem criou...tenho a minha vida dedicada a esta empresa e a um escroque que vc é (pelo menos é como lhe chamam) A única coisa que vc tem mais de mim nesta empresa é o dinheiro que vc roubou...
Mas como vc diz isto está a ser tratado em sede própria!!!!”;»;
- “Exmo Senhor BB!
Estive a pensar melhor, e se vc quiser a minha colaboração enquanto estiver incapacitado, ou seja, se quiser que eu passe no escritório a (hora que for possível, não a hora que vc estipulou) para informar ao seu genro os serviços que estão pendentes, você vai ter que me pedir de forma cordial, pois como mencionei em email anterior, não sou mais seu escravo e o tempo da ditadura acabou, jamais passarei sob ameaças como vc o fez no último email.
Se vc fosse homem e perante esta situação vinha cá, para ajudar a resolver tudo isto, e não deixar tudo a responsabilidade do seu genro. Mas se calhar percebo, vc deve ter medo de ser novamente agarrado pelo pescoço, como já é do conhecimento geral e como aconteceu a uns tempos atrás no aeroporto da madeira”».
De salientar, face ao quadro fáctico provado, que ambas as mensagens de correio electrónico foram enviadas do endereço de email habitualmente usado pelo trabalhador ao serviço da recorrente para o endereço de email também habitualmente usado pelo administrador da recorrente, avultando assim, ao contrário do que refere o recorrido nas suas contra-alegações, evidente conexão entre o meio que o trabalhador elegeu para transmitir ao legal representante da recorrente o que transmitiu e os meios que lhe foram disponibilizados pela recorrente para o exercício das suas funções (o que tendencialmente exclui a natureza eminentemente privada ou pessoal que o recorrido empresta aos seus comportamentos).
A conduta do trabalhador em ambos os episódios ou em ambos os contextos temporais é disciplinarmente relevante por violadora do dever de urbanidade e respeito previsto no art. 128.º, n.º 1, al. a), e de deveres acessórios de conduta relacionados com a boa-fé na execução do contrato, como sejam o dever de colaboração (art.126.º e art. 762.º, do Código Civil).
Os factos, assim apurados nos sobreditos pontos 26. e 27., dos factos provados, são sobejamente suficientes para aferir da violação do dever de respeito e urbanidade no âmbito da relação de trabalho e para ponderar os reflexos do comportamento do trabalhador na relação de confiança subjacente ao vínculo laboral.
Uma vez demonstrado que o trabalhador apelidou o administrador da recorrente de escroque – o mesmo que aldabrão ou vigarista – , o acusou de roubar, insinuou ser o administrador da recorrente “um ditador”, aduz ter sido pelo administrador da recorrente tratado como um “escravo”, insinua que o administrador da recorrente é temeroso ou fraco [“se vc fosse homem e perante esta situação vinha cá, para ajudar a resolver tudo isto, e não deixar tudo a responsabilidade do seu genro (…)”], lhe endereça uma ameaça velada – que não pode deixar de ser interpretada com seriedade face ao que provado está sob os pontos 41. a 43. –, e, para além do mais, assume conduta desafiadora e que por completo inverte a natureza do poder hierárquico [“estive a pensar melhor, e se vc quiser a minha colaboração enquanto estiver incapacitado, ou seja, se quiser que eu passe no escritório a (hora que for possível, não a hora que vc estipulou) para informar ao seu genro os serviços que estão pendentes, você vai ter que me pedir de forma cordial, pois como mencionei em email anterior, não sou mais seu escravo e o tempo da ditadura acabou, jamais passarei sob ameaças como vc o fez no último email”], não há como não prefigurar a violação – grave e intensamente dolosa – dos apontados deveres, bem como não há como não concluir pela impossibilidade prática da manutenção da relação laboral.
Um trabalhador que endereça ao legal representante da sua empregadora as expressões que o trabalhador, no caso concreto, endereçou ao legal representante da recorrente, em duas mensagens de correio electrónico distintas, enviadas em dois dias distintos – lapso temporal que, ao invés do sucedido, deveria ter tido a virtualidade de amenizar a situação ao invés de a acicatar – inviabiliza, por completo, a possibilidade de manutenção da relação laboral por ter por efeito a amputação do elo essencial que permite a sua subsistência, a saber, a confiança.
A mensagem escrita, ao contrário da mensagem falada que, por via de regra, é mais espontânea e presta-se, de facto, a excessos mais difíceis de conter, traz a si associada uma maior reflexão e ponderação. Daí que, ainda que porventura o trabalhador tivesse ficado agastado com o email enviado pelo administrador da recorrente, no dia 26 de Março de 2018, nada justificava que, ainda que pouco tempo depois, se lhe dirigisse nos moldes expostos e muito menos que, no dia seguinte, subsistisse na mesma atitude injuriosa e desafiadora. Impor-se-ia reflexão, ponderação, ao invés do enveredar pelo desafio e pela assunção de um comportamento injurioso e inexplicável no contexto em presença. O email enviado ao trabalhador pelo administrador da recorrente, embora pouco amistoso e, concede-se, até revelador de alguma hostilidade, mais não foi senão a manifestação do poder de direcção que a lei atribui ao empregador, a par do anúncio – desnecessário, concede-se também – do exercício do poder disciplinar em caso de incumprimento, não sendo, por isso, idóneo a legitimar as respostas que o trabalhador, depois, enviou, na medida em que totalmente desfasadas do contexto da ordem que recebera, ordem essa que, diga-se, surge em momento temporal anterior à incapacidade do trabalhador que, conforme se colhe dos factos provados, terá sido apresentada no dia seguinte (facto provado sob o ponto 24.).
É, no nosso ver, insusceptível de justificar as condutas do trabalhador o exercício do direito de liberdade de expressão ou de opinião, não apenas porque o contexto em presença sequer o reclamava, como, ainda que assim não fosse, sempre o mesmo teria que ceder face à extensão do seu exercício por banda do trabalhador que, no caso, mais não significou senão a injúria e a desonra sem qualquer justificação plausível ou atendível. Queremos com o exposto significar que ao trabalhador não foi solicitada qualquer opinião ou declaração sobre a sua empregadora, sequer a situação o reclamava, do mesmo passo que, ainda que assim fosse, essa opinião ou declaração, na medida em que injuriosa e atentatória da honra e da consideração do empregador, teria que, obviamente, ceder.
O trabalhador actuou, assim, visando ofender, desafiar e atemorizar o administrador da recorrente e seu superior hierárquico, assim procedendo com culpa grave.
Por outro lado, as condutas do trabalhador são aptas a repercutir-se no contexto empresarial e na dinâmica organizacional da recorrente, sendo indiferente, neste conspecto, a circunstância de os emails apenas terem sido enviados ao legal representante da recorrente e de não terem sido apurados prejuízos concretos emergentes decorrentes dos comportamentos do trabalhador. Na verdade, como há longo tempo salienta a jurisprudência, a diminuição da confiança resultante da violação de deveres laborais não está dependente da verificação de prejuízos, bastando a criação de uma situação apta a causar prejuízos4. No caso concreto, a par da lesão da honra da honra do responsável máximo da recorrente – cuja posição hierárquica é afectada –, há ainda a relevar a pelo trabalhador anunciada vontade de apenas aceder ao cumprimento de ordens se tanto lhe fosse “pedido”. Significa o exposto que o trabalhador, por via da sua conduta, lesou de facto a recorrente, por via da lesão da honra de quem a representa e dirige – que, inclusive, terá apresentado queixa contra o trabalhador (cfr., facto provado sob o ponto 48.) –, anunciando, ainda, a omissão de condutas com directa influência na organização do empregador.
Tendo presente que a averiguação da existência da impossibilidade prática da relação de trabalho ou da inexigibilidade da sua subsistência deve ser feita em concreto, à luz de todas as circunstâncias que no caso se mostrem relevantes, mediante o balanço dos interesses em presença, e pressupõe um juízo objectivo, segundo um critério de razoabilidade e normalidade, cremos, no caso sub judice, inexistir qualquer circunstância atendível e susceptível de diminuir o desvalor inerente aos apurados comportamentos do trabalhador, os quais são, em si, suficientes para conduzir a um juízo de inviabilidade da relação laboral.
Na sentença recorrida apelou-se, em ordem a justificar a desproporcionalidade da sanção aplicada e, por essa via, a possibilidade de manutenção do vínculo laboral, ao contexto societário da recorrente, às relações existentes entre o administrador da recorrente e o trabalhador – simultaneamente pessoais e profissionais – e ao quadro de debilidade do trabalhador. O contexto societário, pela forma como está vertido nos factos provados, evidencia, de facto, conflito, mas cujos protagonistas, pela posição em que actuam ou agem, não têm a posição jurídica pressuposta pela relação laboral, cumprindo salientar que o trabalhador denota conhecimento sobre uma e outra realidade quando relembra, num dos seus emails, que a resolução de outras questões sê-lo-á em sede própria. No que concerne às relações existentes entre o trabalhador e o legal representante da recorrente desconhece-se, por os factos provados o não reflectirem, em que medida uma ou outra ou ambas contribuíram para a conduta do trabalhador ou em que medida essas relações se projectaram no contexto em presença, facilitando-o ou não. O mesmo se diga relativamente ao quadro de debilidade do trabalhador, na justa medida em que também se desconhece se esse estado, admitindo-se ser anterior à certificação da sua incapacidade, influenciava a sua capacidade de decisão ou de conformação da sua conduta com os deveres que presidem ao vínculo laboral.
Assim sendo e perante a violação, por parte do trabalhador, de basilares princípios de urbanidade e respeito com os comportamentos graves e merecedores de elevada censura que adoptou, justifica-se que tenha deixado de subsistir entre as partes a relação de fidúcia que constitui o fundamento objectivo da subsistência do vínculo, impossível de repor não obstante a ausência de antecedentes disciplinares e da porventura até então existente relação de confiança entre as partes. Esta última, aliás, reclamaria conduta diversa, pois, como se sabe, quanto mais intensa a relação de confiança existente entre as partes maior é a dificuldade da reposição deste valor em casos cujos contornos o abalam de forma praticamente irreversível.
Em suma, e como decorre do exposto, o comportamento prosseguido pelo recorrido é grave e justifica plenamente, à luz dos critérios expostos, que a recorrente lhe tenha aplicado a sanção do despedimento, por se subsumir aquele no conceito de justa causa, tal como é enunciado no art. 351.º, n.º 1.
Procedem, assim, as alegações da recorrente, impondo-se a revogação da sentença e absolvição da recorrente dos pedidos5.
5. O segmento decisório que antecede determina fique prejudicado o conhecimento da questão relativa à inconstitucionalidade da interpretação conferida ao art. 330.º, n.º 1 (art. 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do disposto no art. 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil).
6. Porque ficou vencido no recurso, incumbe ao recorrido o pagamento das custas respectivas (art. 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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V. Decisão
Em face do exposto, julga-se procedente o recurso interposto e, revogando-se a sentença recorrida, absolve-se a recorrente dos pedidos.
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Custas pelo recorrido.
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Lisboa, 25 de Setembro de 2024
Susana Martins da Silveira
Alda Martins
Paula Doria C. Pott
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1. Cuja redacção coincide com a que lhes foi emprestada pela 1.ª instância, sendo deles expurgada a menção aos meios de prova em que assentam.↩︎
2. Cfr., Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 5.ª Edição, Almedina, 2014, págs. 446 e 445.↩︎
3. Cfr., Teresa Coelho Moreira, Direito do Trabalho, Relação Individual, 2.ª Edição, Almedina, 2023, págs. 165-169.↩︎
4. Vide os Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 2001.12.12 (Recurso n.º 4017/00) e de 2006.05.03 (Recurso n.º 3821/05), ambos da 4.ª Secção.↩︎
5. O pedido de declaração de ilicitude do despedimento e os que dele derivam.↩︎