PER
INSOLVÊNCIA
CESSÃO DE CRÉDITOS
PEDIDO
PRESUNÇÃO
Sumário

I- A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, assim se substituindo o credor originário, podendo a notificação de tal cessão ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação para a ação onde o novo credor (cessionário) pede a insolvência dos devedores.
II- Ao credor, requerente da insolvência, incumbe então alegar e provar qualquer dos factos-índices da insolvência previstos no n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, tal como decorre do consagrado no art.º 23.º n.º 1 do mesmo código.
III- Incumprido o plano de recuperação homologado por sentença transitada em julgado, e feita a interpelação prevista no art.º 218.º n.º 1 al. a) do CIRE, nada impede que, vencida a dívida, recuperando os créditos a sua situação originária, e verificadas as demais exigências previstas no n.º 1 al. b) do art.º 20 do CIRE, a credora possa requerer em novo processo a insolvência dos devedores, desde logo com fundamento nesse facto-índice.
IV- Uma vez presumida a situação de insolvência dos devedores, recairá então sobre os mesmos o ónus de ilidirem tal presunção.
V- A esta não obsta o facto de alegarem ter património imobiliário na sua esfera jurídica, pois que, incumbindo aos devedores o ónus de demonstrar a sua solvência, essa alegação não é suficiente. Mesmo que possam até ser titulares de um ativo superior ao passivo, tal não constitui pressuposto legal daquela solvabilidade, se, por ausência de liquidez imediata, mantém a impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
ARES LUSITANI – STC, S.A., intentou a presente ação com processo especial, requerendo a declaração de insolvência de J… e S… todos com demais sinais nos autos.
Alegou para tanto, e em síntese, que no dia 7 de junho de 2019, por escritura pública, celebrou com o Novo Banco, S.A., que sucedeu na titularidade dos créditos do Banco Espírito Santo, S.A., um acordo nos termos do qual aquele lhe cedeu os créditos que detinha sobre os requeridos e respetivas garantias, constituídas por hipotecas voluntárias sobre os únicos imóveis propriedade dos requeridos. Mais alegou que os requeridos incumpriram os contratos de mútuos que haviam celebrado, com vista a aquisição e realização de obras nos aludidos imóveis, frações C e I, e compromissos financeiros assumidos, e que correu termos processo especial de revitalização, no qual foi aprovado e homologado plano de pagamentos, igualmente incumprido pelos requeridos desde 2015. Que os requeridos detêm apenas o direito de propriedade sobre os imóveis identificados, cujo valor se revela manifestamente insuficiente para fazer face, per si, ao valor de todo o passivo que lhes é conhecido, e que se encontram assim impossibilitados de cumprir com as suas obrigações vencidas, devendo, como tal, ser declarados insolventes.

Os requeridos foram regularmente citados, tendo apresentado oposição no prazo legal, onde, em suma, alegaram que desconhecem a credora, que nunca foram informados ou notificados de qualquer contrato de cessão de créditos, padecendo assim a requerente de legitimidade ativa para os presentes autos; que no âmbito do PER que correu termos, tirando os credores garantido (BES/NB) e privilegiado (Autoridade tributária), todos os demais credores que reclamaram créditos aos devedores têm estado a ser pagos, sobrepondo-se assim o plano aos créditos garantidos por hipotecas. Mais alegaram que foi sua intenção alienar um dos imóveis que possuem como forma de liquidar a dívida ao Novo Banco, mas que sempre alertaram tal entidade bancária para as discrepâncias existentes quanto aos valores em dívida, mesmo antes da aprovação do plano. Aprovado este, uma nova dificuldade surgiu, pois que nunca foi abatida ao valor em dívida, o montante de €20.000,00, que foi exigido e pago pelos devedores para o voto favorável do Novo Banco, que, não obstante inúmeras interpelações, nunca regularizou, como era sua obrigação, o montante global em dívida dos devedores, ficando após a aprovação do plano numa situação que não sabiam nem podiam saber quanto tinham que cumprir. Que em maio de 2019, sabendo o montante pelo qual a dívida tinha sido adquirida, formalizam uma proposta à Hipoges (entidade que lhes foi dito adquirira todos os créditos que detinham sobre o Novo Banco) para liquidação da totalidade da dívida comprada, por €520.000,00, pelo valor de €540.000,00, o que nunca foi aceite, em face do intuito lucrativo que a requerente da insolvência tem. Assim, terminam a alegar que não se verifica o disposto no art.º 3.º, ou em qualquer das alíneas do art.º 20.º do CIRE, que não podem ser considerados insolventes e que caso se considere a credora como parte legítima nos autos, e que os devedores incumpriram qualquer dos deveres que para com ela tinham, que a mesma seja condenada a aceitar o pagamento prestacional acordado com o anterior credor e homologado por sentença proferida em 13/01/2015, no âmbito do processo 710/14.5TJLSB, corrigindo e acertando o valor em dívida, atentos os montantes já pagos e liquidados pelos devedores.

Em requerimento de 10/07/2021, a requerente veio aos autos informar que a HipoGes (HIPOGESIBERIA), lhe presta serviços, fazendo a gestão dos créditos em causa, não sendo a titular dos mesmos, que pertencem à requerente.

Foi realizada audiência de discussão e julgamento, no início da qual se proferiu despacho saneador e se fixaram os temas da prova.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, após o que foi proferida sentença, onde foi declarada a insolvência dos requeridos.

Inconformados, interpuseram o presente recurso, que finalizaram com as seguintes conclusões que aqui se reproduzem:
«a) Os autos fundamentam-se no não pagamento pelos recorrentes de créditos que a recorrida alegadamente terá adquirido.
b) O ponto 3 dos factos dados como provados, nunca o poderia ser, porquanto os meios de prova onde o tribunal fundamenta a sua convicção não são fidedignos. Desde logo o DOC. 1 junto com a PI nada prova, tal como o tribunal a quo reconheceu, julgou e considerou inúmeras vezes, ordenando a supressão da ilegitimidade. Também a confirmação do teor da PI feita pelo Novo Banco a fs. 255, de 09.05.2023, não merece credibilidade, porque a PI NUNCA lhe foi notificada – uma declaração que confirma algo que é desconhecido não poderá ser considerada como meio de prova.
c) Atenta a ausência de credibilidade em que o tribunal a quo, sustentou o dar como provado o ponto 3, impõe-se a correção, devendo ser dado como não provado que a recorrida tenha sucedido ao Novo Banco no crédito que tinha para com os recorrentes, considerando-se a mesma como parte ilegítima nos autos, absolvendo-se estes da instância.
d) O facto 16 dos factos dados como provados não o podia ser, - Que o Novo Banco tenha remetido cartas a 18.4.2016 e 15.09.2017, para a morada dos recorrentes, interpelando-os para regularizarem as prestações nos termos do PER, no total de €107.584,04 e €135.175,64 – fls. 161 e 163 dos autos.
e) O facto 16 dos factos dados como provados nunca pode dar como provado que o Novo Banco Interpelou os recorrentes para cumprirem o PER, porquanto, a 18.04.2016, a prestação global do PER seria de €3.740,36, não de €6.724,00, como teria que ser, atenta a data da aprovação do PER e a data da carta - o mesmo na carta de 15.09.2017.
f) A dar-se como provado o envio das missivas de fls. 161 e 163 dos autos, unicamente das mesmas se poderá extrair que o Novo Banco teria tentado interpelar os recorrentes, para cumprir o pagamento de créditos anteriores, ignorando o PER aprovado.
g) Como tal, sempre terá que ter como não provado, qualquer interpelação do Novo Banco aos recorrentes, para cumprimento do PER, com as devidas e legais consequências.
h) O ponto 32 dos factos dados como provados, não o pode ser, tendo que considerar-se como não provado a comunicação da cessão dos créditos entre Novo Banco e recorrida, aos recorrentes, para os devidos efeitos e legais consequências.
i) Na ref. Citius 33870868, existem 3 missivas. Nas missivas de 14.04.2020, uma dirigida a cada um dos recorrentes, na morada “esqueceu-se” a recorrida de colocar número de porta e andar, numa rua com milhares de apartamentos, tornando evidente a impossibilidade de receção/envio da mesma. Também a missiva de 28.06.2019, nada prova atenta a ausência de comprovativo de depósito/receção, e mesmo que se desconsidera-se, unicamente visa um dos recorrentes, sendo ineficaz em relação ao outro.
 j) O facto a) dos não provados devia ser dado como provado, porquanto efetivamente, nunca o Novo Banco conseguiu liquidar e apresentar o montante exato em dívida. Não obstante as missivas não terem sido recebidas, tanto pela de 18.04.2016, como pela de 15.09.2017, se verifica que aquele nunca liquidou o PER, pois os valores em tais missivas não são com o mesmo compatíveis, refletindo prestações de €6.724,00 /mês, ao invés das €3.740,36 aprovadas nos termos do PER. Como tal, deverá ser tido como provado que o Novo Banco, nunca conseguiu liquidar o PER, tornando-o exigível aos recorrentes. Os €107.584,04, exigidos na missiva, a dividir pelas 16 prestações vencidas desde a aprovação do PER, daria a prestação mensal de €6.724,00, ao invés dos €3.740,36 constantes do PER aprovado.
k) Atenta a figura 1 junta com a oposição – articulado 23, onde se evidencia que o responsável do Novo Banco exige para voto favorável “entrega no montante de €20.000,00 – a efetuar até ao dia antes da votação”, sempre teria que se considerar o facto b) dos não provados, como provado, que o novo banco exigiu €20.000,00 para fazer aprovar o PER dos recorrentes.
l) Com a correção dos factos provados e não provados, terá que:
- l.1) considerar-se provada a exceção de ilegitimidade ativa dos recorridos, absolvendo-se os recorrentes da instância;
- l.2) ser considerada provada a ausência de comunicação de cessão da posição contratual entre Novo Banco/Ares Lusitanni, tornando-a ineficaz perante os recorrentes;
- l.3) Ser considerada provada a ausência de liquidez da dívida dos recorrentes junto do credor hipotecário, originando a impossibilidade de pagamento;
- l.4) ser considerada provada a ausência de contabilização do pagamento da prestação de €20.000,00 por parte dos recorrentes ao Novo Banco, fazendo padecer de credibilidade todo e qualquer pagamento solicitado.
m) Impõem-se a correção da decisão a quo, por assentar em factos tidos como provados que não o podiam ser, bem como dar como não provados outros, que deviam ser tidos como provados, atentas as provas produzidas e existentes nos autos, nomeadamente documental.
n) A sentença recorrida, é nula, porquanto pronuncia-se sobre factos diferentes da causa de pedir, julgando factos que não estariam em discussão e condenando os recorrentes com base em factos que não se defenderam, impondo-se a sua revogação.
o) Os recorridos peticionam a insolvência dos recorrentes, configurando a relação material controvertida, em contratos de crédito incumpridos, ignorando totalmente a existência de um PER, bem como no incumprimento generalizados de obrigações vencidas.
p) Os recorrentes provaram a celebração e aprovação de um PER, posterior aos contratos cujo incumprimento os recorridos invocavam, fazendo padecer de fundamento a factualidade peticionada.
q) O tribunal a quo, viola disposição legal imperativa, ao condenar os recorrentes, com base no incumprimento de um PER, quando o pedido dos recorridos assentava no incumprimento de contratos de crédito prévios ao PER.
r) A existência do PER justifica o não cumprimento dos contratos de crédito cujo incumprimento é peticionado.
s) O tribunal a quo, ao julgar e suportar a condenação num pedido, sustentado numa relação material controvertida não carreada pelo A., diferente daquela que foi dada hipótese aos visados, ignora os mais elementares direitos de defesa e de respeito pelo princípio do contraditório.
t) A sentença proferida a quo, é nula nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 675.º do CPC, bem como inconstitucional, o que se arguir e requer expressamente, ao não permitir a defesa dos recorrentes, sobre os factos que fundamentam a condenação, atenta a total discrepância dos mesmos com os elencados pelo A. na PI que tiveram oportunidade de contestar.
u) Para que existisse incumprimento do PER aprovado, a obrigação do mesmo teria que ser certa, exigível e exigida. In casu, a decisão cuja revogação impera, tem por base o incumprimento por parte dos recorrentes das prestações a que se encontravam obrigados no âmbito do PER.
v) O artigo 781.º do CC não consagra um vencimento automático das prestações ainda não vencidas, apenas admite a possibilidade de o credor exigir o seu pagamento imediato, deixando o devedor de beneficiar do prazo concedido, assentando numa relação de confiança entre partes.
w) In casu, nem o Novo Banco, nem a recorrida, interpelaram os recorrentes para cumprir qualquer prestação, no âmbito do PER, como nunca os interpelaram para efeito de vencimento automático das prestações, nos termos e para efeitos do artigo 781º do CC, tornando inexigível o pagamento automático de todas.
x) Sob pena de violação do disposto nos artigos 781.º, e 813.º a 816.º, do CC, terá que ser revogada a sentença em análise, substituindo-se por uma que consagre que nunca a recorrida comunicou aos recorrentes que tinha o plano de pagamento como incumprido, nos termos e para efeitos do 781.º do Código Civil, como nunca permitiu aos recorrentes o cumprimento das prestações, sendo aquela quem se encontra em mora, perante estes.
y) Atentos os factos provados, nomeadamente 33, 20, 22, 21, 36, torna-se evidente que os recorrentes têm património suficiente para fazer face a todo o passivo reconhecido, bem como dispõem de fonte de rendimento fixa, cumprem com todas as suas obrigações, sempre procuraram cumprir com todas as suas obrigações, não estando em falta com o cumprimento de qualquer obrigação, não têm dividas tributárias em incumprimento, nem rendas ou locações em atraso, não se verificando assim os pressupostos legais de que dependeria o decretar da insolvência dos recorrentes, impõem-se a revogação de tal decisão.
z) Não se verificam o disposto no artigo 3.º, nem no 20.º do CIRE, não se podendo qualificar os recorrentes como insolventes.
aa) Não se pode fundamentar a insolvência de uma família, com base numa cessão/venda de créditos ineficaz, como elucidam as inúmeras tentativas de contacto feitas pelos devedores, junto do credor Novo Banco, daquele que lhe disseram ter adquirido o crédito, Hipogest, quando 4 dias antes da citação para os autos, se encontravam a analisar proposta de pagamento integral quando o requerente, nunca citou, notificou, informou, nem sequer por mail, sms, ou qualquer outra forma que os devedores lhe deviam €0,01 (um cêntimo).
Termos em que, deverá o recurso merecer provimento, com a revogação da sentença recorrida, ordenando-se a prolação de sentença que reconheça a ilegitimidade ativa da recorrida, ou a solvência dos devedores, fixando-se o valor a liquidar, nos termos legais e do PER, à recorrida.

Em contra-alegações, a apelada pugnou pela improcedência do recurso, pronunciando-se sobre todas as questões no mesmo suscitadas e concluindo pela confirmação da sentença recorrida.

Foi admitido o recurso interposto e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:

(i)Apurar da invocada nulidade da sentença proferida (conclusões recursivas n) a t));
(ii)Apreciar a impugnação da matéria de facto (conclusões recursivas a) a k));
(iii)Apurar dos pressupostos para declaração da insolvência dos recorrentes (conclusões recursivas i), m) e u) a aa)).


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III-/ Fundamentação de facto:
Foram dados por provados na 1ª Instância os seguintes factos:
1. A requerente é uma sociedade comercial com sede na Avenida …, n.º …, ..º andar concelho de Lisboa.
2. Os requeridos, J…. e S…, são casados entre si, sem convenção antenupcial, e residem na Avenida …. Em Lisboa.
3. Por escritura pública, outorgada no dia 7 de Junho de 2019, o Novo Banco, S.A., que sucedeu na titularidade dos créditos do Banco Espírito Santo, S.A., declarou ceder, entre outros e pelo preço ajustado, à requerente, que declarou aceitar a cessão, os créditos que detinha sobre os requeridos e respetivas garantias a que se alude na petição inicial – documento junto com a petição inicial e resposta do Novo Banco, S.A. junta aos autos no dia 9 de Maio de 2023 (fls. 255), cujo teor se dá por reproduzido.
4. Por escritura pública outorgada no dia 13 de março de 2008, os requeridos, com residência na Avenida ….., Lisboa, confessaram dever ao Banco Espírito Santos, S.A. uma quantia no valor de €157.406,55, emprestada com vista à liquidação por estes de crédito que lhes foi concedido pela Caixa Económica Montepio Geral, S.A. para aquisição e realização de obras de beneficiação na fração autónoma designada pela letra C do prédio descrito da Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número …, sobre a qual, e para garantia do reembolso da quantia mutuada nos termos ajustados (escritura pública e respetivo documento complementar anexo cujo teor se dá por integralmente reproduzido), constituíram hipoteca voluntária inscrita pela Ap. 21 de 2008/03/11 (Ap.1566 de 2019/08/02).
5. Por escritura pública outorgada no dia 26 de junho de 2008, o Banco Espírito Santo, S.A. declarou emprestar aos requeridos, com residência na Avenida …., Lisboa, uma quantia no valor de €50.000, com vista a fazer face a compromissos financeiros assumidos anteriormente e à aquisição de equipamentos para a sua residência, que declararam receber e de que se confessaram devedores, obrigando-se a reembolsar a mesma nos termos ajustados e que resultam do mesmo instrumento e documento complementar anexo, cujo teor se dá por reproduzido, e para garantia de cuja satisfação efetiva foi pelo mesmo instrumento constituída hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pela letra C do prédio descrito da Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número …, inscrita pela Ap. 50 de 2008/08/07 (Ap.1567 de 2019/08/02).
6. Por escritura pública outorgada no dia 26 de junho de 2008, os requeridos, com residência na Avenida …. adquiriram a fração autónoma designada pela letra I, correspondente ao 5º andar direito do prédio urbano sito na Avenida …., Lisboa, descrito na Conservatória de registo Predial de Lisboa sob o n.º…, pelo preço de €225.000, quantia que, para o efeito, lhes foi emprestada pelo Banco Espírito Santo, S.A., obrigando-se a reembolsar a mesma nos termos e condições que do mesmo instrumento resultam (incluindo documento complementar anexo), cujo teor se dá por reproduzido), para garantia de cuja satisfação efetiva constituíram hipoteca voluntária sobre o mesmo imóvel – Ap. 25 de 2008/08/07 (Ap. 114 de 2020/04/29).
7. Por escritura pública outorgada no dia 26 de junho de 2008, os requeridos, com residência na Avenida …., Lisboa, declaram que ajustaram um empréstimo com o Banco Espírito Santos, S.A. nos termos do qual este lhes emprestou €100.000 de que se confessam devedores, com vista fazer face a compromissos financeiros assumidos anteriormente pelos requeridos e à aquisição de equipamento para a sua residência, que se obrigaram a reembolsar nos termos ajustados (escritura pública e respetivo documento complementar anexo cujo teor se dá por integralmente reproduzido), e para cuja satisfação efetiva foi pelo mesmo instrumento constituída hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pela letra I, correspondente ao 5º andar direito do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.º… - Ap. 28 de 2008/08/07 (Ap.115 de 2020/04/29).
8. Por escritura pública outorgada no dia 4 de Setembro de 2008, o Banco Espírito Santo, S.A. concedeu aos requeridos, com residência na Avenida ….., Lisboa, um empréstimo no valor de €57.631, com vista à realização de obras na fração designada pela letra I, correspondente ao 5º andar direito do prédio urbano descrito na Conservatória de registo Predial de Lisboa sob o n.º…, quantia que nessa data receberam e de que se confessaram devedores, obrigando-se ao seu reembolso nos termos ajustados e que desse instrumento e documento complementar anexo resultam (cujo teor se dá por reproduzido) - Ap. 23 de 2008/09/08 (Ap.116 de 2020/04/29).
9. Por escritura pública outorgada no dia 15 de junho de 2009, os requeridos, com residência na Avenida ….., confessaram dever ao Banco Espírito Santos, S.A. uma quantia no valor de €10.000, emprestada com vista a fazer face a compromissos financeiros assumidos anteriormente pelos requeridos, a reembolsar nos termos ajustados (escritura pública e respetivo documento complementar anexo cujo teor se dá por integralmente reproduzido), para garantia de cuja satisfação efetiva foi pelo mesmo instrumento constituída hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pela letra C do prédio descrito da Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número …., inscrita pela Ap. 105 de 2009/06/19 (Ap. 1568 de 2019/08/02).
10. Por escritura pública outorgada no dia 17 de dezembro de 2010, os requeridos, com residência na Avenida ….., Lisboa, declaram que o Banco Espírito Santos, S.A. lhes concedeu um empréstimo no valor de €30.000, com vista à reestruturação de crédito de que se confessam devedores perante o mesmo, e que se obrigam a reembolsar nos termos ajustados (escritura pública e respetivo documento complementar anexo cujo teor se dá por reproduzido), para cuja satisfação efetiva foi pelo mesmo instrumento constituída hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pela letra C do prédio descrito da Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número …, inscrita pela Ap. 4854 de 2010/12/17 (Ap. 1569 de 2019/08/02).
11. Correu termos no J-11 do juízo local cível desta comarca, autuado com o n.º …/14.5TJLSB, o processo especial de revitalização dos requeridos, com domicílio na Avenida ……, Lisboa, no âmbito do qual foi aprovado e homologado, por sentença de 16 de Janeiro de 2015, plano recuperação (fls. 35 (junta com a oposição) e fls. 117v e segs., junto com req. de 5 de maio de 2022), sendo reconhecido ao Banco Espírito Santo, S.A. um crédito garantido no valor total de €693.821,38 (€603.294,70 (capital)+€90.526,66 (juros)), cifrando-se a totalidade dos créditos reconhecidos em €922.402,29.
12. Nos termos do plano de recuperação referido no ponto 11, quanto aos créditos garantidos (5.2), em concreto, os créditos do Banco Espírito Santo, S.A., “a) Responsabilidades Vincendas – Pagamento integral, em 520 prestações, mantendo as condições existentes nos empréstimos. b) Responsabilidades Vencidas – entrega inicial de €20.000,00, sendo o remanescente liquidado em 48 prestações mensais, conforme anexos de fls. 133 a 161 (req. de 5 de maio de 2022), cujo teor se dá por reproduzido.
13. As responsabilidades vincendas, nos termos do plano referido no ponto 11, cifravam-se em dezembro de 2014 na quantia global de €581.360, a satisfazer nos termos dos mapas de fls. 133 a 160, cujo teor se dá por reproduzido, ou seja, em prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor global de €1.710,02 cada.
14. As responsabilidades vencidas, nos termos do plano referido no ponto 11 (fls. 161), cifravam-se em dezembro de 2014 em €117.456,38, a liquidar pela entrega de €20.000 e 48 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de €2.030,34 cada.
15. Até à data, em cumprimento do plano de recuperação homologado, os requeridos apenas entregaram ao Novo Banco, S.A. (BES) uma quantia no valor total de €20.000, correspondente à primeira prestação das responsabilidades vencidas.
16. Em conformidade, o Novo Banco, S.A. remeteu cartas, respetivamente datadas de 18 de abril de 2016 e de 15 de Setembro de 2017, endereçadas para a Av. …. Lisboa, aos requeridos, interpelando-os, “… nos termos e para os efeitos do disposto no art.218º, n.º1, a), do CIRE…”, para regularizarem, no prazo de 15 dias, as prestações, vencidas e não pagas, do plano de pagamentos homologado no âmbito do processo referido no ponto 11, no valor total, respetivamente, de €107.584,04 e de €135.175,64 – fls. 161v a 163, cujo teor se dá por reproduzido
17. Os requeridos são donos de dois imóveis, a saber, a fração autónoma designada pela letra C, correspondente ao 1º andar direito do prédio descrito da Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número …, sito na Avenida ……, Lisboa, e a fração autónoma designada pela letra I, correspondente ao 5º andar direito do prédio urbano, sito na Avenida ……, Lisboa, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.º…, com o valor patrimonial de 182.052,59 (avaliação de 2015), ambos onerados pelas hipotecas voluntárias supra referidos.
18. Sobre a fração C encontram-se, ainda, inscritas três penhoras, duas das quais para garantia da satisfação efetiva de créditos fiscais (Ap. 4804 de 2011/03/25 e Ap. 71 de 2016/12/23).
19. Sobre a fração I encontram-se, ainda, inscritas seis penhoras, cinco das quais para garantia da satisfação efetiva de créditos fiscais (Ap. 7062 de 2010/10/29, Ap. 4805 de 2011/03/25, Ap. 4086 de 2011/04/05, Ap. 5216 de 2011/04/15 e Ap. 68 de 2016/12/23).
20. O requerido é o único sócio e gerente da sociedade G... – I..., Unipessoal, Lda., pessoa coletiva, com o capital social de €5.000, que se dedica à permuta, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para o mesmo fim. Recuperação de imóveis. Arrendamento, exploração e gestão de bens imobiliários, próprios ou arrendados, incluindo o alojamento mobilado para turistas, alojamento local ou alojamento de curta duração. Atividades de restauração, exploração de estabelecimento de bebidas e similares, incluindo restauração em meios móveis e gelataria, comércio de vestuário, calçado, bijuteria e acessórios de moda, consultoria imobiliária, atividades de angariação, mediação, avaliação de imóveis e serviços de apoio administrativo prestados a empresas e outras entidades do setor imobiliário, consultoria para os negócios e a gestão – fls. 284/req. 31 de outubro de 2023, auferindo mensalmente quantia igual ao salário mínimo nacional.
21. No dia 29 de setembro de 2023 a conta de que a sociedade referida no ponto 20 é titular apresentava um saldo credor no valor de €228.793,56.
22. A requerida é professora por conta do Colégio …. em Lisboa, auferindo cerca de €1.647,35 mensais líquidos, a que acresce cerca de €300 mensais que recebe como contrapartida das explicações que leciona.
23. No ano de 2017 a requerida auferiu €23.656,30, ou seja, €16.892,9 líquidos, no ano de 2018 a requerida auferiu €27.424,15, ou seja, €19.271,25 líquidos, no ano de 2019 os requeridos auferiram €28.764,6, ou seja, €20.617,88 líquidos (€1.718,16/mês), no ano de 2020 os requeridos auferiram €36.502,79, ou seja, €26.797,79 líquidos (€2.233,15/mês), no ano de 2021 os requeridos auferiram €36.909,66, ou seja, €27.423,18 líquidos (€2.285,26/mês), e no ano de 2022 auferiram €35.895,47, ou seja, €26.878,27 líquidos (€2.239,85/mês).
24. Os requeridos devem à Autoridade Tributária uma quantia no valor de €32.561,76.
25. O requerido ajustou com a Autoridade Tributária pagamento em prestações de créditos, um no valor total de €11.459,04 e outro no valor de €422,24 – fls. 103 a 105 cujo teor se dá por reproduzido.
26. Aquando da aprovação do plano de recuperação a que se alude no ponto 11 EP…, o Banco Santander Totta, S.A., a Hefesto Stc, S.A. e a Prime Credit 3 S.A.R.L. detinham créditos de capital sobre os requeridos no valor total, respetivamente, de €30.000, de €22.283,16, de €22.215,42 e de €19.511,74.
27. Nos termos do plano referido no ponto 11 (5.1.1.), quanto aos créditos comuns detidos por instituições financeiras e demais credores, “a) Período de carência de 24 meses de capital e juros, iniciados após a homologação do plano de revitalização; b) Propõe-se o pagamento de 5% da dívida de capital em 360 prestações mensais, iguais e sucessivas; c) perdão de 95% do capital e dos juros vencidos e vincendos;”.
28. Nos termos do plano de recuperação referido no ponto 11 (5% de capital), os requeridos devem a EP… uma quantia no valor de €1.250,84, ao Banco Santander Totta, S.A. uma quantia no valor de €1.204,05, à Hefesto, STC, S.A. uma quantia no valor de €1,189,21 e à Prime Credit 3 s.r.a.l. uma quantia no valor de €1.000,47 – req. de 8 de setembro de 2021.
29. No dia 17 de maio de 2019, os requeridos dirigiram à requerente, através da Hipoges, representada por Pedro Arrozeiro, proposta de liquidação integral da dívida, entregando €540.000 no prazo de 120 dias – fls. 41 v, cujo teor se dá por reproduzido.
30. No dia 29 de Março de 2019, os requeridos prometeram vender, pelo preço de €360.000, livre de quaisquer ónus ou encargos, a fração autónoma designada pela letra C do prédio descrito da Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número 2452, correspondente ao primeiro andar direito do prédio sito na Avenida …, Lisboa, no prazo de 30 dias – fls. 42 e segs..
31. O acordo referido no ponto 30 ficou sem efeito.
32. Datada de 28 de junho de 2019, a requerente, através da Hipoges, enviou carta à requerida, endereçada para a Avenida …, Lisboa (junta por req. de 15 de outubro de 2022, cujo teor se dá por reproduzido), dando notícia da cessão dos créditos do Novo Banco, S.A. para a requerente.
33. A Operandus – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda. procedeu à avaliação dos imóveis referidos no ponto 17, indicando como valor de mercado da fração C €412.500 e da fração I €780.000/€865.000 – fls. 70 a 72 e fls. 203 e 204.
34. De 9 de Fevereiro de 2022 a 7 de abril de 2022 o requerido trocou com a requerente, através da Hipoges, emails no sentido de liquidar os seus créditos por acordo, sem êxito, já que as propostas apresentadas ficaram aquém das expectativas da requerente – fls. 166 a 170.
35. Os requeridos têm dois filhos que frequentam colégio, pagando cada um deles, em contrapartida, €600 mensais.
36. A Caixa Agrícola Online endereçou carta aos requeridos, informando que se encontrava condicionado e pré-aprovado o empréstimo solicitado de €800.000, dependente da avaliação dos imóveis a entregar em garantia e condicionado pela falta de exibição de extratos bancário (documento junto com req. de 5 de setembro de 2022, cujo teor se dá por reproduzido).
*
Factos não provados
Para além de meras conclusões e alegações de direito, não resulta demonstrada qualquer outra factualidade relevante para a apreciação do mérito da causa, nomeadamente que
a) o credor Novo Banco, S.A. nunca foi liquidado porquanto nunca conseguiu liquidar e apresentar o montante exato em dívida;
b) o Novo Banco, S.A. exigiu o pagamento de €20.000 para voto favorável ao PER nunca o abatendo ao passivo reclamado nem aos juros peticionados;
c) um gerente de conta/balcão informou os requeridos que todos os créditos que tinham perante o Novo Banco teriam sido alienados à Hipoges pelo montante aproximado de €520.000;
d) por cartas de 14 de abril de 2020 e 14 de abril de 2020 (docs. juntos com o req. de 15 de outubro de 2022 com morada incompleta), respetivamente requerida e requerido foram notificados da cessão;
e) não obstante a aprovação do plano de recuperação e respetiva homologação, faltava juntar lista de credores corrigida e plano de pagamento corrigido pelo Banco Espírito Santo, S.A..

***
IV-/ Do objeto do recurso:

(i) Da invocada nulidade (conclusões recursivas n) a t))
Principiamos por apreciar a invocada nulidade da sentença (pois que, ainda que não sendo essa a primeira das questões suscitadas pelos recorrentes, se nos afigura processualmente mais correto) por, na apreciação dos recorrentes, o tribunal  recorrido ter suportado a condenação numa causa de pedir baseada numa relação material controvertida diferente daquela que foi dada hipótese de resposta aos visados, ignorando assim os mais elementares direitos de defesa e contraditório, assim incorrendo a sentença proferida na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC (ainda que façam alusão ao art.º 675.º n.º 1 al. d), o que certamente farão por lapso).

Vejamos então.
Diz o citado preceito legal que a sentença é nula quando «…. d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Tal nulidade está diretamente relacionada com o consagrado no art.º 608.º n.º 2, do CPC, que obriga a que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuando aquelas que fiquem prejudicadas pela solução dada a outras, bem como as que imponham um conhecimento oficioso.
Para que exista uma nulidade na sentença, por omissão de pronúncia, a mesma terá então que decorrer do facto de existir uma questão que nela devia ter sido conhecida e não foi; ocorrendo excesso de pronúncia quando o juiz se ocupa de questões que as partes não suscitaram, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objeto do litígio.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/12/2012, no Proc. 469/11.8TJPRT.P1.S1, relatado pelo Exmo. Conselheiro João Bernardo, disponível em www.dgsi.pt, à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada.
Não podemos também olvidar que a não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.

Ora, aqui chegados e revertendo à situação dos autos, este tribunal entende que nenhuma razão existe aos recorrentes.
Com efeito, as nulidades de sentença, que encerram em si vícios decorrentes de uma deficiente estrutura da decisão, não se confundem com erros de julgamento, erros que, sendo de facto ou de direito, obrigam ao conhecimento do objeto do recurso, em termos da apreciação do seu mérito, não se subsumindo tal apreciação a uma situação de nulidade meramente formal da decisão.
No caso concreto, nenhuma questão foi apreciada pelo Tribunal sem que não tivesse sido suscitada pelas partes e/ou fosse de conhecimento oficioso, nomeadamente, e também, para além do incumprimento dos contratos de mútuos celebrados, o incumprimento do plano de recuperação, desde logo invocado pela requerente na sua petição inicial (art.º 75.º), a que os requeridos, em contestação, deram resposta, aduzindo as explicações que tiverem por convenientes quanto àquele alegado incumprimento, explicando que, tirando os credores garantido (BES/NB) e privilegiado (Autoridade tributária), pelas razões que ali invocam, todos os demais credores que reclamaram os seus créditos têm estado a ser pagos.
Não sofre assim a sentença recorrida da patologia invocada, pois que o tribunal a quo, a quem a lei atribuiu largos poderes para apurar das situações de insolvência que lhe importa resolver, à luz do art.º 11.º do CIRE, apreciou a factualidade alegada nos autos, que julgou provada e não provada, motivando a sua decisão, inexistindo assim qualquer vício formal que possa ser imputado à decisão proferida.
Improcede, pois, a nulidade invocada.
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(ii) Da impugnação da matéria de facto (conclusões recursivas a) a k))
Esta matéria vem regulada no art.º 640.º do CPC, preceito que, em anotação, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa (no CPC anotado, por, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 797) dizem que «Nos termos do n.º 1 al. b), recai sobre o apelante o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente: cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explicita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de informar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilidade dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente».
Em matéria de recursos, concretamente sobre a impugnação da matéria de facto, Abrantes Geraldes (na obra, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, págs. 165/166) explica ainda que no recurso «…. o recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente».

No caso de que aqui cuidamos, em sede de conclusões recursivas, defendem os recorrentes que o Tribunal a quo julgou incorretamente, como “Provados”, os factos 3, 16 e 32, e, como “Não Provados”, os factos a-) e b-).

Vejamos então.

Sob o facto n.º 3 foi dado por provado que «Por escritura pública, outorgada no dia 7 de Junho de 2019, o Novo Banco, S.A., que sucedeu na titularidade dos créditos do Banco Espírito Santo, S.A., declarou ceder, entre outros e pelo preço ajustado, à requerente, que declarou aceitar a cessão, os créditos que detinha sobre os requeridos e respetivas garantias a que se alude na petição inicial – documento junto com a petição inicial e resposta do Novo Banco, S.A. junta aos autos no dia 9 de Maio de 2023 (fls. 255), cujo teor se dá por reproduzido.».
Contra o assim decidido insurgem-se os recorrentes, dizendo que no contrato de cessão junto com a PI, em momento algum é feita referência aos recorrentes, ao seu património e aos seus créditos, pois que tal contrato remete para um documento complementar que não foi apresentado nos autos, o que, de resto, motivou o tribunal a notificar a requerida para tal junção, que não foi feita. Substituindo-se à mesma, alegam então, o tribunal recorrido acabou por notificar várias vezes a recorrida para fazer prova da sua legitimidade para a acção, prova essa que, ainda assim, não foi feita, sendo insuficiente para o efeito a resposta do Novo Banco, SA, junta a 09/05/2023, pois que a confirmação que nesse oficio é feita da cessão dos créditos não é fiável, uma vez que àquela entidade não foi notificada a petição inicial para que pudesse conhecer os créditos em causa e que confirmou.
Não têm razão.
Com efeito, e desde logo, conforme resulta da explicação de 15/10/2022, os empréstimos aludidos nos artigos 1.º a 40.º e 71.º a 73.º da petição inicial, cedidos à requerente por contrato de cessão de créditos outorgado em 07/06/2019, estão identificados nos documentos complementares à escritura por referência do contrato e do “Borrower ID (AA01743487)”, que, por razões de sigilo bancário e RGPD, não identificam o devedor principal pelo nome.
Não obstante, e ainda assim, para que dúvidas não subsistissem, na notificação expedida ao Novo Banco, em 05/12/2022, ordenada pelo tribunal a requerimento da recorrida, foi anexado o requerimento apresentado por aquela nos autos em 14/11/2022, de onde resulta a expressa identificação dos recorrentes com a alusão aos créditos reclamados, estando também juntas as certidões prediais com o averbamento da transmissão das hipotecas. Tendo acesso ao nome dos requeridos, facilmente o Novo Banco poderia verificar/atentar nos créditos que cedeu, não se vendo assim como se pode alegar que a confirmação pelo mesmo feita é falsa, nem vemos, de resto, que interesse teria o mesmo em tal confirmação.
A essa documentação atendeu então o tribunal recorrido para julgar provada a matéria inserta no aludido facto, e as notificações a que procedeu, para poder afirmar o mesmo, não extravasam, de forma alguma, os poderes que lhe são concedidos à luz do princípio do inquisitório dimanado do art.º 11.º do CIRE.
Mantém-se assim tal facto nos termos julgados provados.

Continuando.
Sob o facto n.º 16 foi dado por provado que «Em conformidade, o Novo Banco, S.A. remeteu cartas, respetivamente datadas de 18 de Abril de 2016 e de 15 de Setembro de 2017, endereçadas para a Av…. Lisboa, aos requeridos, interpelando-os, “… nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 218º, n.º 1, a), do CIRE…”, para regularizarem, no prazo de 15 dias, as prestações, vencidas e não pagas, do plano de pagamentos homologado no âmbito do processo referido no ponto 11, no valor total, respetivamente, de €107.584,04 e de €135.175,64 – fls. 161v a 163, cujo teor se dá por reproduzido».
 Da simples leitura de tal facto se retira que está apenas dado por provado o envio das aludidas cartas, e o teor das mesmas, nada se dizendo quanto ao seu efetivo recebimento, falecendo assim, e desde logo, a pretendida impugnação bem como as questões que com essa impugnação se pretendiam fazer ver (sendo a questão depois apreciada ao nível da fundamentação do direito).
Mantém-se assim tal facto nos termos julgados provados.

Finalmente, sob o facto n.º 32, foi dado por provado que «Datada de 28 de junho de 2019, a requerente, através da Hipoges, enviou carta à requerida, endereçada para a Avenida ….., Lisboa (junta por req. de 15 de outubro de 2022, cujo teor se dá por reproduzido), dando notícia da cessão dos créditos do Novo Banco, S.A. para a requerente».
Uma vez mais, verifica-se que o Tribunal a quo apenas deu como provado o envio da aludida carta, que reproduziu, à recorrente S…., e nada mais.
A questão do seu recebimento e das consequências a tanto inerentes, igualmente do ponto de vista da apreciação jurídica será tratada.
Mantém-se assim tal facto nos termos julgados provados.

Entrando agora na apreciação da impugnação dirigida aos factos não provados, vemos que,  sob a al. a), foi dado por não provado que «O credor Novo Banco, S.A. nunca foi liquidado porquanto nunca conseguiu liquidar e apresentar o montante exato em dívida» e, sob a al. b) que «O Novo Banco, S.A. exigiu o pagamento de €20.000 para voto favorável ao PER nunca o abatendo ao passivo reclamado nem aos juros peticionados».
Insurgem-se os recorrentes, em suma, contra a factualidade assim dada por não provada argumentando que o Novo Banco nunca considerou o PER, limitando-se sempre a pedir os créditos como se nunca tivesse existido tal processo, devendo dar-se por provado que o Novo Banco exigiu €20.000 para fazer aprovar o plano de recuperação.
Numa primeira análise, relativamente ao facto a), não vislumbramos qualquer sentido na argumentação recursiva. Com efeito, do facto em causa, e da sua motivação, retira-se apenas que foi dado por não provado que não foi o facto de o Novo Banco não apresentar os valores corretos em dívida que originou e impediu os recorrentes de liquidar o crédito.
No que concerne ao facto b), alegam que sempre se teria de dar por provado que o Novo Banco exigiu €20.000,00 euros para aprovar o plano, ora, o que resulta do facto em causa é que não ficou provado que o Novo Banco não tivesse levado em consideração tal pagamento, pagamento esse que, de resto, está dado por provado no ponto 15 dos factos provados.
 Não vemos, pois, quaisquer razões para alterar os factos em causa, que se mantém nos exatos termos em que foram julgados, ou seja, não provados.

*

(ii) Do não preenchimento dos pressupostos dos quais depende a declaração de insolvência (pontos i), m) e u) a aa) das conclusões recursivas)
Ultrapassada a questão da impugnação da matéria de facto verificamos agora que entendeu a sentença recorrida que estava demonstrada a situação de insolvência dos requeridos, nos termos dos arts.º 3.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, als. b), e g) iv) do CIRE.
Em sede de recurso, defendem os recorrentes que assim não é, o que sustentam, em suma, na seguinte argumentação:
(i) em primeiro lugar, na correção dos factos provados e não provados, operada por força da impugnação da matéria de facto, que obrigaria:
(a) à ilegitimidade ativa da requerente com a consequente absolvição dos recorrentes;
(b) à ineficácia da cessão da posição contratual entre Novo Banco/Ares Lusitanni por força da sua não comunicação aos recorrentes e
(c) à impossibilidade de pagamento em face da ausência de liquidez da dívida e de contabilização do pagamento feito da prestação de €20.000,00 pelos recorrentes ao Novo Banco.
(ii) em segundo lugar, que nunca foram interpelados, quer pelo Novo Banco, quer pela recorrida, para cumprirem qualquer prestação no âmbito do PER, nem para o vencimento automático das prestações, nos termos e para efeitos do artigo 781º do CC, o que tornou assim inexigível o pagamento automático de todas, estando assim a recorrida em mora, em face do preceituado nos arts.º 813.º a 816.º, do CC;
(iii), por fim, que têm património suficiente para fazer face a todo o passivo reconhecido, bem como dispõem de fonte de rendimento fixa, e sempre procuraram cumprir com todas as suas obrigações, não estando em falta com o cumprimento de qualquer delas, não tendo dívidas tributárias em incumprimento, nem rendas ou locações em atraso, não se verificando assim os pressupostos legais de que dependeria o decretar da insolvência dos recorrentes.

Apreciando.

Analisando o primeiro acervo argumentativo dos recorrentes (i), verifica-se que centravam os mesmos a sua tese recursiva nas consequências jurídicas que adviriam para a economia do processo da procedência da impugnação feita à matéria de facto. Ora, improcedendo, como vimos, tal impugnação, desde logo falece a sua primeira base argumentativa, que sustentava o pedido final formulado em recurso, isto é, a da ilegitimidade da recorrente para o pedido feito nos autos (a).
Dada por provada a cessão de créditos, e legitimada assim a recorrida para pedir a insolvência dos recorrentes, no que importa à invocada ineficácia de tal cessão (b), por não terem alegadamente sido notificados da mesma, sempre diremos, que, tal como resulta, e bem, da sentença recorrida, facto que os recorrentes em nada objetaram «… se não antes, os requeridos tomaram conhecimento da cessão através da citação para os termos da presente, já que, a requerente invoca a qualidade de credora dos requeridos por força do acordo de cessão ajustado com o Novo Banco, S.A., que juntou com o requerimento inicial. Logo, pelo menos desde a citação dos requeridos, o acordo de cessão ajustado entre a requerente e o Novo Banco, S.A. produziu os respetivos efeitos quanto aos mesmos» (veja-se, acrescentamos nós, nesse sentido, o Acórdão do STJ de 07/09/2021, relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível na dgsi, onde se sumariou «I- A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjetiva que consiste na transferência do lado ativo da relação obrigacional. II – A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a ação executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa ação (…)».
Finalmente, e no que concerne à alegada impossibilidade de pagamento por ausência de liquidez da dívida e de contabilização do pagamento da prestação de €20.000,00 (c), não esqueçamos também, o que se consignou na sentença recorrida, contra o que, igualmente, os recorrentes não se insurgiram, e que aqui chamamos à atenção «Da realidade demonstrada resulta, como o confessam os requeridos, que, para além dos 20.000 correspondentes à primeira prestação das responsabilidades vencidas (fls. 161), não entregaram qualquer outra quantia em pagamento dos créditos da requerente, incumprindo, assim, desde Janeiro de 2015 o plano de recuperação aprovado e homologado por sentença no âmbito do processo referido no ponto 11 dos factos provado».
Como vemos, a sentença recorrida teve em atenção, e bem, que, para além da entrega daquele valor de €20.000,00, mais nada foi pago ao abrigo do PER, sendo que, na verdade, o que resulta dos autos, é que, feito esse pagamento, nada mais os recorrentes pagaram ao Novo Banco, pois que mais nenhuma prestação das consignadas no plano que foi aprovado foi liquidada. Veja-se que, nos termos do aludido plano de recuperação (ponto 5.2. Créditos Garantidos, alínea b), e anexo J: Plano de pagamentos Responsabilidade Vencidas BES), o pagamento de €20.000,00 deveria ser deduzido ao valor de €117.456,38 (Capital em Dívida), sendo depois pagas as prestações ali acordadas. Como as mesmas não foram liquidadas, o Novo Banco considerou que o plano foi incumprido, exigindo então aos requeridos o pagamento dos valores de capital e taxas de juros pelo incumprimento de cada uma das responsabilidades/contratos incumpridos. Dizem os recorrentes que o Novo Banco não deduziu aquele valor de €20.000,00 ao montante em dívida, explica a recorrida que pelo facto de terem incorrido em incumprimento, o plano ficou sem efeito, razão pela qual aquele valor foi imputado, não no capital em dívida, mas nos juros.
Ora, independentemente do procedimento adotado, ainda que o mesmo pudesse ser objeto de discussão, em termos de apurar efetivamente o valor em dívida, certo é que, e nisso dúvidas não existem, os recorrentes, para além daqueles €20.000,00, nada mais pagaram ao Novo Banco (veja-se a confissão exarada em ata de 01/06/2022, onde confessam que nenhuma das prestações do plano de pagamento dos créditos do Novo Banco que resultou do plano aprovado foi paga, à exceção, disse o recorrente, de uma prestação no valor de €20.000,00, vencida em Dezembro de 2014 e paga aquando da aprovação do mesmo), nos moldes em que se obrigaram fazer naquele plano, assim o incumprindo.

Na falência da argumentação assim aduzida, vemos que os recorrentes centram depois a sua frente de batalha (ii) no facto de, no seu entendimento, inexistir uma obrigação certa e exigível que tivesse sido por ambos incumprida, pois que nunca foram interpelados para cumprir qualquer prestação ou para o vencimento automático de todas elas, argumentando assim a mora da credora e sustentando que a sentença recorrida incorreu na violação dos arts. 781.º, e 813.º a 816.º, do CC.
Também aqui não têm razão.
Senão vejamos.
O convocado art.º 781.º do CC, estipula que «Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas», ditando o art.º 813.º do mesmo código que «O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos necessários ao cumprimento da obrigação».
Ora, no que se refere à interpelação, na sentença recorrida foi explicitado que «Nos termos do artigo 218.º, n.º 1, do CIRE, aplicável por força dos artigos 17ºF, n.º 13, e 222º-F, n.º 10, do CIRE, “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou perdão previstos no plano ficam sem efeito: a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios não for cumprida no prazo de 15 dias após a interpelação escrita do devedor; b) Quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.” Em conformidade, como demonstrado, o Novo Banco, S.A., perante o incumprimento, remeteu cartas, respetivamente datadas de 18 de Abril de 2016 e de 15 de Setembro de 2017, endereçadas para a Av. …. Lisboa, aos requeridos, interpelando-os, “… nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 218º, n.º 1, a), do CIRE…”, para regularizarem, no prazo de 15 dias, as prestações, vencidas e não pagas, do plano de pagamentos homologado no âmbito do processo referido no ponto 11 dos factos provados, no valor total, respetivamente, de €107.584,04 e de €135.175,64 – fls. 161v a 163, cujo teor se dá por reproduzido, docs. juntos com o requerimento de 5 de Maio de 2022.
Alegam os requeridos que não receberam nenhuma das referidas cartas, já que as mesmas não foram endereçadas para a sua morada oficial, porém, nem sequer alegam que comunicaram qualquer alteração de morada, já que, a mesma resulta como sendo a sua morada no último contrato de empréstimos ajustado (17 de Dezembro de 2010), como resulta do ponto 10 dos factos provados, bem como o seu domicílio à data do processo especial de revitalização que desencadearam (ponto 11 dos factos provados). Acresce, tal imóvel continua a pertencer aos requeridos, o que lhes permite receber a correspondência e aceder à mesma.
Nos termos do artigo 224º, n.º 1, do Código Civil, “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; …”, acrescentando o n.º2 a mesma disposição legal que “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”, ex vi artigo 295º do mesmo diploma legal. Assim sendo, mesmo que as referidas cartas não tenham sido recebidas, o que se imputa aos requeridos, as mesmas produziram os respetivos efeitos».

Concordamos integralmente com o assim argumentado na sentença recorrida, que em nada foi contrariado pelo recurso intentado.
Tendo o CIRE um regime próprio para os casos de que aqui cuidamos, a interpelação a fazer-se, a que alude a al. a) do n.º 1 do art.º 218.º do CIRE, foi efetuada. Tendo tal interpelação natureza recetícia, apelando ao consagrado nos arts.º 224.º e 342.º do CC, competia então à recorrida o ónus de alegação e prova da receção da interpelação ou da sua não receção, por culpa exclusiva dos destinatários, prova essa que foi feita nos autos, de onde resulta que, por cartas de 18/04/2016 e de 15/09/2017, os requeridos foram interpelados ao pagamento, cartas que, se não receberam, e como bem se argumenta na decisão em crise, com o correto enquadramento jurídico, apenas a eles se poderá imputar.
Assim se concluindo, como ali, que as referidas cartas produziram os efeitos que com elas se pretendiam alcançar.

Por outro lado, e no que concerne à alegada mora do credor, não foi alegado nos autos pelos recorrentes quanto a essa matéria, isto é, que o credor originário ou a recorrida tenham recusado qualquer prestação que tivessem oferecido nem foi demonstrado que os credores tivessem omitido quaisquer atos que obstaculizassem a qualquer pagamento.
Resultando com clareza do plano de recuperação que foi aprovado, os valores que os recorrentes tinham a pagar, como, de resto, resulta dos pontos 11 a 15 dos factos provados - que não mereceram qualquer impugnação pelos recorrentes - foram eles que, ao não os liquidarem, incorreram em mora (art.º 805.º n.º 2 a) do CC).
Cifrando-se o crédito reconhecido ao Novo Banco em €693.821,38, veja-se que, no plano acordado, foi ajustado o pagamento das responsabilidades vencidas, no valor total de €117.456,38, pela entrega inicial de €20.000 e o remanescente em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de €2.030,34 cada, sem juros, vencendo-se a primeira em janeiro de 2015 e a última em dezembro de 2018 e o pagamento das responsabilidades vincendas, em dezembro de 2014, no valor total de €581.360, ficando ajustado o seu pagamento integral, em 520 prestações mensais, iguais e sucessivas, mantendo as condições existentes nos empréstimos, vencendo-se a primeira em dezembro de 2014, no valor global de €1.710,02 cada.
Não obstante a clareza do assim acordado, certo é que, para além dos alegados €20.000,00 nada mais pagaram os recorrentes, não dando assim cumprimento ao plano aprovado, o que obrigou o Novo Banco a interpela-los ao pagamento.
A alegada divergência dos valores insertos nessa interpelação, que os recorrentes defendem estar errada, não permite simplesmente concluir, como pretendem, que a dívida não era certa e exigível. Estando os mesmos em mora, pois que em falta quanto ao cumprimento das obrigações decorrentes do plano de recuperação aprovado, com a interpelação escrita pela credora, cumpridos foram os tramites legais exigidos por lei; pois que os efeitos do incumprimento enunciados no art.º 218.º, n.º 1, al. a), do CIRE, aplicável no âmbito do PER, produzem-se desde que o credor interpele por escrito o devedor que se tenha constituído em mora, e este não pague a prestação em dívida, acrescida dos respetivos juros moratórios, no prazo de 15 dias a contar dessa interpelação. Com esse incumprimento e interpelação os créditos recuperam então a sua situação originária, pois só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes (cfr. neste sentido Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, p. 482 e o Ac. da RE de 11/04/2019, relatado Isabel Peixoto Imaginário, assim sumariado «O incumprimento do plano de recuperação homologado por sentença afere-se pela análise da conduta do devedor em face do concreto teor do referido plano; - os efeitos do incumprimento enunciados no n.º 1 al. a) do art.º 218.º n.º 1 do CIRE, aplicável no âmbito do PER, produzem-se desde que o credor interpele por escrito o devedor que se tenha constituído em mora e a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias a contar dessa interpelação; - a homologação, por sentença, do plano de recuperação, não retira a qualidade de título executivo a documento atinente a crédito considerado nesse plano; - verificando-se o incumprimento do plano de recuperação nos moldes previstos no art.º 218.º do CIRE, os créditos recuperam a sua situação originária, pois só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes; - não obstante seja homologado plano de recuperação, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes»).
Se as missivas enviadas contrariam o plano aprovado, se em nenhuma delas é contabilizado o montante de €20.000,00 pago e se o valor constante da interpelação não é o correto, como defendem os recorrentes nos autos, aos mesmos competia então, no seu devido tempo, ter diligenciado pela retificação que entendiam devida, podendo oferecer o pagamento do valor que consideravam correto ou fazer a sua consignação em depósito. Só assim, poderiam provocar a mora do credor, caso este não aceitasse o cumprimento. Não podem é pretender ter o melhor de dois mundos, incumprir o plano, dizer que não receberam as cartas de interpelação, sem que tivessem comunicado qualquer alteração de morada, e que não cumpriram pois que as aludidas cartas, fosse como fosse, tinham valores errados, o que os impediu de cumprir.
Acompanhamos, pois, a sentença recorrida quando concluiu que «Analisadas as responsabilidades assumidas pelos requeridos nos termos do plano de recuperação homologado, nomeadamente quanto ao credor Banco Espírito Santo, S.A. (prestações mensais no valor total de €3.740,36), e os respetivos rendimentos (pontos 22 e 23 dos factos provados), mesmo sem ponderar as despesas do agregado familiar (requeridos e dois filhos menores, nomeadamente o respetivo colégio, cerca de €1.200 mensais (ponto 35 dos factos provados)), fácil é concluir que os requeridos nunca conseguiriam cumprir o referido plano, o qual, para além do perdão de 95% dos créditos comuns, serviu apenas para continuarem a usufruir, como desde 2008, de dois imóveis a custo zero. (…) Isto posto, desde pelo menos 2017 que os requeridos não tinham rendimentos que lhes permitissem pagar a prestação mensal que resulta do plano de recuperação (€3.740,36), por isso mesmo nunca a pagaram».

Ora, nos termos do art.º 3.º nº. 1 do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, permitindo a lei que se afirme essa situação de insolvência se se verificar a existência de qualquer dos factos-índices ou presuntivos tipificados nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE.
Carvalho Fernandes e João Labareda (no CIRE, 3ª Edição, Quid Juris, na pág. 200, ponto 12), ensinam, nesta matéria, que «(…) O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objetivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, fazer a demonstração efetiva de situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência (vd. art.º 3º, nº 1).
Caberá então ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice (cf. ac. da Relação de Évora de 25/10/2007, in CJ, 2007, IV, pág. 259).
Esta solução está, de resto, hoje claramente consagrada no nº 3 do art.º 30º».

Do regime legal assim convocado resulta então que a situação de insolvência deve decorrer da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, pelo que, para contrariar essa impossibilidade, na demonstração da sua solvência, tem o devedor que comprovar que, pelo contrário, tem liquidez, ou tem crédito, que lhe permite fazer face a esse incumprimento.

Ora, no caso dos autos, e como vimos, os recorrentes terminam o recurso interposto a pedir a revogação da sentença recorrida, pela solvência dos devedores.
Para tanto terminam a sua argumentação (iii) na alegação da sua solvabilidade, que afirmam resultar dos factos provados, nomeadamente dos elencados nos pontos 20, 21, 22, 33 e 36, de onde se retira, sustentam, que têm património suficiente para fazer face a todo o passivo reconhecido, bem como dispõem de fonte de rendimento fixa.
Não vemos que assim seja e que a existência desse património e os seus rendimentos afaste a situação de insolvência dos requeridos, atestando a sua solvabilidade.
Com efeito, e desde logo, o património que têm, e a que apelam para demonstrar a sua solvência, não lhes permitiu, ainda assim, cumprir as obrigações e responsabilidades vencidas, tanto mais que os dois imóveis de que são proprietários estão onerados com várias hipotecas e penhoras, como, de resto, resulta da factualidade apurada, não consubstanciado assim tal património imobiliário um ativo líquido que lhe tivesse permitido o cumprimento pontual das suas obrigações.
Acresce que, não lograram também os recorrentes demonstrar que têm financiamento imediato ao cumprimento, tanto mais que a pré-aprovação que juntaram aos autos, refletida no ponto 36 dos factos provados, está condicionada pelo valor dos imóveis e pela ausência de exibição de extratos bancários, a que acresce a oneração dos imóveis no âmbito de execuções fiscais.
Donde, a conclusão que se impõe é que, na verdade, os recorrentes não têm liquidez e os rendimentos que têm jamais lhes possibilitaria liquidar as responsabilidades que foram assumindo ao longo dos anos, todas elas sustentada em financiamentos bancários que serviram, como se  consignou na sentença recorrida, o que acompanhamos, para «… em rigor, suportar o estilo de vida a que se habituaram à custa do financiamento bancário e do endividamento, como o demonstra o volume das dívidas acumuladas até 2014, cuja diminuição (aparente) se deve ao perdão de 95% dos créditos comuns viabilizado pelo plano de recuperação aprovado com o voto favorável do maior credor (BES), o qual cedeu apenas no que concerne a juros remuneratórios sobre o valor correspondente às responsabilidades vencidas. Quase dez anos depois, e para além dos €20.000, nunca os requeridos pagaram qualquer prestação, mesmo as que, na falta de alegação, não se lhes ofereciam dúvidas, no valor mensal total de €1.710,02. Ao mesmo tempo, não se verifica da sua parte uma intenção séria no sentido da liquidação da sua dívida. Na verdade, tudo foi servindo de pretexto para não pagar, mesmo a ideia peregrina de que lhes assistia um direito a forçar a aquisição dos créditos adquiridos pela requerente e pelo valor que lhes parecesse justo, mas nunca consideraram ajustado entregar por um valor ajustado ao mercado, não necessariamente o que entendessem (“fazendo negócio”), um dos imóveis para amortizar a dívida. Mais, os requeridos apresentam, e de forma consistente, um discurso de vitimização perante o credor bancário a quem devem, sem nada pagar (para além dos €20.000 a que aludem exaustivamente, e que efetivamente foram contabilizados no plano de recuperação), há mais de dez anos, uma quantia de valor superior a seiscentos mil euros e à custa de quem têm a disponibilidade de dois imóveis, um dos quais habitam.  Por último, note-se, a sociedade de que o requerido é sócio gerente tem autonomia patrimonial, não podendo o seu património ser usado para liquidar as dívidas do sócio, sendo assim irrelevante neste contexto a respetiva conta bancária, tanto mais que se desconhece a sua saúde financeira».

Ora, a doutrina e a jurisprudência vêm, aliás, a afirmar que a “inexistência” de uma situação de insolvência não se faz alegando, nem mesmo provando, que o ativo é superior ao passivo, sendo o conceito de solvabilidade relevante o da liquidez para cumprimento pontual das obrigações vencidas, o que não corresponde necessariamente à existência de um património superior ao passivo.
Veja-se, desde logo, Catarina Serra (na obra “Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018” na pág. 58,) que nos diz que (…) A insolvência no sentido acima referido (impossibilidade de cumprir) não coincide necessariamente com – e por isso não significa – uma situação patrimonial líquida negativa (superioridade do passivo face ao ativo). Com efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado».
Também Carvalho Fernandes e João Labareda (na obra citada), ainda que a propósito das pessoas coletivas, mas com argumento válido para as singulares, afirmam que «.. pode a escrita revelar um ativo superior ao passivo e no entanto o devedor estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações por não dispor de meios líquidos para o efeito. Mas, por outro lado, pode o passivo ser superior e o devedor continuar a cumprir, porque, apesar das dificuldades, tem a possibilidade de recurso a instrumentos – nomeadamente o crédito ou outras formas de suprimento de capital – que lhe conferem meios de pagar».
Na jurisprudência, veja-se ainda, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01/06/2020, relatado por Barateiro Martins, onde se sumaria, em parte que «(…) 3- Pode haver situação líquida positiva e o requerido estar em situação de insolvência, se se verificar que a falta de crédito não lhe permite superar a carência de liquidez para cumprir as suas obrigações vencidas. 4- Como, no polo oposto, uma situação líquida negativa não implica a insolvência do devedor, se o recurso ao crédito lhe permitir cumprir pontualmente as suas obrigações. 5- Assim, a alegação/prova da “inexistência da situação de insolvência” (de que fala o art.º 30.º/3/in fine do CIRE), a cargo do requerido, não se faz alegando/provando que o ativo é superior ao passivo, mas sim alegando-se/provando-se que se tem acesso a crédito ou se detém liquidez suficientes para cumprir as obrigações vencidas» e também o acórdão desta Relação e secção, relatado por Amélia Rebelo, em que a aqui relatora foi adjunta, datado de 31/10/2023, onde igualmente em parte se sumariou «I - A verificação do facto índice de insolvência previsto pela al. b) do nº 1 do art.º 20º basta-se com uma situação de mora/atraso no cumprimento desde que, pelo montante do crédito, no conjunto do passivo do devedor ou de quaisquer outras circunstâncias, tal evidencie a impossibilidade de continuar a satisfazer os seus compromissos, sem que exija que tal situação se verifique com todas as obrigações assumidas/contraídas pelo devedor. (….)  V- Como tem vindo a ser sobejamente afirmado, a existência de ativo superior ao passivo não constitui pressuposto legal de solvabilidade nem sequer indício como tal legalmente previsto pois que, ainda que assim suceda, o devedor está insolvente se, por ausência de liquidez, estiver impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas».

Donde, e em conclusão, na linha do aqui exposto, não podemos deixar de confirmar o acerto do juízo de insolvência formado pela decisão recorrida, pelo menos no que concerne ao consagrado nos arts. 3.º n.º 1 e 20.º n.º 1 al. b) do CIRE, impondo-se assim a sua confirmação.

Improcede, pois, e em moldes gerais, o recurso intentado.

*

V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, mantendo assim a sentença recorrida.
As custas serão a cargo da massa insolvente e, na ausência ou insuficiência desta, serão da responsabilidade dos recorrentes que decaíram na sua pretensão.
Registe e notifique.

Lisboa, 01/10/2024
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes
Teresa de Jesus Henriques