DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
RECONHECIMENTO DE DÍVIDA
ÓNUS DA PROVA
INTERESSE EM AGIR
FACTOS-INDICES
Sumário

I- O reconhecimento de dívida previsto no art.º 458.º do C. Civil cria tão só a presunção de existência duma relação negocial, não constituindo a fonte autónoma duma obrigação, pelo que o credor apenas fica dispensado do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não de a alegar.
II- Baseando-se o crédito invocado pela requerente da acção de insolvência numa confissão de dívida da requerida para com aquela, não fica a mesma dispensada de alegar a fonte que dá origem ao crédito/obrigação.
III- Não obstante na escritura junta com a petição inicial da insolvência apenas constar que a dívida invocada tem origem na “transmissão de direitos e valores relacionadas com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à identificada sociedade” e na petição inicial a requerente nada mais alegar no que a tal concerne, tendo já anteriormente sido instaurada execução contra a requerida com base na mesma escritura e esta ali nada tendo invocado no que concerne à ineptidão do requerimento executivo, mas, antes pelo contrário, deduzido oposição alegando a simulação do negócio subjacente, oposição essa que foi julgada improcedente, não pode neste processo posterior a requerida vir invocar a ineptidão com esse fundamento.
IV- A afirmação do interesse em agir como verdadeiro pressuposto processual visa assegurar que o direito de acção seja efectivamente exercido para tutela do direito correspondente.
V- O processo de insolvência trata-se de um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
VI- O interesse acautelado na acção da insolvência é o do interesse da globalidade dos credores, pelo que, tendo a requerente invocado que é credora da requerida e que esta se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações, alegando os respectivos factos, tem que se concluir pela improcedência da excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir alegada pela requerida.
VII- A lei não exige para o decretamento da insolvência que o montante em dívida ou as circunstâncias do incumprimento revelem a impossibilidade definitiva e em absoluto de o devedor satisfazer a totalidade das suas obrigações, mas tão só que os factos indiciadores revelem a impossibilidade de satisfação dessas obrigações pontualmente.
VIII- O facto-índice previsto na alínea b) do nº 1 do art.º 20º do CIRE - falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – tem-se por verificado quando a falta de pagamento, ainda que apenas de algumas obrigações ou mesmo de uma só, tenha lugar em circunstâncias, ou seja, acompanhada de actos, que permitam inferir a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
IX- Para impedir a declaração de insolvência, o devedor deverá demonstrar que não se verificam quaisquer dos “factos índice” referidos no aludido art.º 20º, nº1, ou que, não obstante a ocorrência de tais factos, não se verifica, no caso concreto, a situação de insolvência.
X- Tendo-se por verificados o aludido “facto índice” e nada tendo ficado demonstrado no sentido que a devedora tenha capacidade para satisfazer as suas obrigações, não poderá a insolvência deixar de ser declarada.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I- Relatório
M…, residente na …, intentou acção declarativa com processo especial requerendo a declaração de insolvência de C…, Lda, com sede …
Fundamentou a sua pretensão no facto de ser credora da Requerida, juntamente com os demais Exequentes no Processo Executivo n.º …, pendente no Juízo de Execução de …, – Comarca de …, para cobrança da quantia exequenda de €2.570.894,21 (capital de €1.494.563,10, acrescido de juros vencidos desde 31-03-2011 até à data de 29-03-2023), por incumprimento da Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, outorgada a 01.02.2008. O imóvel sobre o qual incide a hipoteca e penhorado na referida execução, foi adjudicado pelo valor de 1.300.000,00€ e não havendo outros bens na titularidade da requerida, tal montante é insuficiente para ressarcimento dos credores.
Concluiu que a Requerida se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações, em situação de insolvência, que enquadra nas alíneas a), b) e d), do n.º 1, do 20.º, do CIRE.
Juntou documentos.
A requerida deduziu oposição, na qual declarou que aceita a matéria alegada pela requerente nos artigos identificados no artigo 109.º da oposição, impugnou  os demais factos alegados e, além de invocar a ineptidão da petição inicial, excepcionou a falta de interesse em agir da requerente, por entender que estando em curso uma acção executiva, onde se mostram já graduados os credores da executada, a requerente não obterá qualquer vantagem na execução universal que justifique o prosseguimento da acção de insolvência, pelo que conclui pela absolvição da instância.
Acrescentou que o seu passivo é inferior ao activo, uma vez que o crédito, no valor de €5.719.557,69, reclamado por “S…, Lda.” no processo de execução nº …, não se mostra ainda reconhecido e foi reclamado a título cautelar e provisório. Diz que este crédito só se vencerá se e quando cessar a vigência do contrato de locação de estabelecimento comercial celebrado entre a S… e a requerida e não estando judicialmente reconhecido é irrelevante para aferir da insolvência da requerida. Invocou igualmente que o valor do seu activo – avaliação do edificado em €3.278.500,00, no balanço de 2023 - é superior ao passivo, afastando a situação de insolvência, nos termos do artigo 3º, nºs 2 e 3, e das diversas alíneas do artigo 20.º, todos do CIRE.
Juntou documentos, incluindo a lista dos cinco maiores credores.
A requerente apresentou resposta – ref: 48429196, de 27.03.2024, pronunciando-se quanto à matéria de excepção.
Foi designada data para a audiência final, que, por despacho de 06/05/2024, foi desconvocada, com fundamento no facto de os autos reunirem os elementos necessários à prolação da decisão final.
Foi julgada improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial e foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida.
*
Inconformada esta apresentou o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se reproduzem:
I. O presente recurso tem por objecto a sentença de 23/05/2024, que declarou a insolvência da ora RECORRENTE.
II. Não pode a RECORRENTE conformar-se com a sentença recorrida, porquanto a mesma padece de evidentes vícios processuais, além de assentar em erros de apreciação,
quer quanto aos factos provados, quer a respeito do Direito aplicável.
F.1) Da nulidade da sentença
III. O dever de fundamentação das sentenças, especificamente previsto no artigo 607º nº 4 do CPC (ex vi do artigo 17º do CIRE), impõe que o Tribunal proceda a uma apreciação crítica das provas constantes dos autos e que exprima essa apreciação de modo a que se torne perceptível para os destinatários da decisão, permitindo-lhes, além do mais, exercer o contraditório de modo informado e esclarecido.
IV. A motivação da matéria de facto assenta pelo Tribunal a quo resumiu-se a dizer que a mesma "teve em consideração as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados e os documentos juntos, que são prova bastante".
V. Dela perpassa que o Tribunal a quo não procedeu a um exame crítico das provas ao fixar os factos provados, em contravenção ao artigo 607º nº 7 do CPC (ex vi artigo 17º do CIRE),
VI. Incumprindo, desse modo, o dever de fundamentação da decisão sobre matéria de facto recorrida – falta que a Lei comina com a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1, alínea b), do CPC (aplicável ex vi do artigo 17º do CIRE) – a qual se requer, desde já seja declarada.
VII. Caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese e sem conceder, sempre se considere o seguinte:
VIII. O facto provado nº 6 serve, essencialmente, de suporte ao reconhecimento do crédito invocado pela RECORRIDA o que, por sua vez, determinou a legitimidade desta ao abrigo do artigo 20º do CIRE.
IX. Impunha-se, à luz do artigo 607º nº 3 do CPC, que o enunciado desse facto provado na sentença cumprisse os predicados gerais de concretização e individualização,
com indicação de tempo, local e modo, de tal modo a que o mesmo descrevesse um "pedaço de vida" apreensível pelos destinatários da decisão, permitindo a estes representar qual a é, afinal, o título constitutivo do crédito invocado pela RECORRIDA.
X. Verifica-se, contudo, que o enunciado do facto provado nº 6 mais não é do que uma alusão vaga à "transmissão de direitos e valores relacionados com as cessões de participações sociais na sociedade".
XI. Esse enunciado não identifica os putativos direitos e valores que terão sido transmitidos, qual a modalidade de transmissão, quais as partes outorgantes da mesma, qual a relação desses direitos e valores com as cessões de participações sociais nessa sociedade – entenda-se: da ora RECORRENTE – e, sobretudo: não identifica minimamente por que razão essa alegada transmissão de direitos e valores implicou a constituição de um crédito da RECORRIDA sobre a RECORRENTE.
XII. Conclui-se que o enunciado do facto provado nº 6 padece de uma insanável obscuridade, na medida em que não permite identificar o título constitutivo do direito invocado pela RECORRIDA,
XIII. Essa obscuridade é sancionada com a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do CPC (ex vi do artigo 17º do CIRE), o que se requer.
XIV. Admitindo, por mera cautela de patrocínio, que as questões antecedentes venham a improceder, sempre haveria que relevar os seguintes erros decisórios atinentes ao mérito da causa:
F.2) Da ineptidão do requerimento inicial
XV. Tendo a RECORRENTE invocado a ineptidão do requerimento inicial, em sede de oposição, o Tribunal a quo julgou essa questão improcedente, por entender que a
mesma já havia sido anteriormente apreciada e indeferida no âmbito do incidente de embargos de executado deduzido no processo de execução nº 3524/12.3YYLSB (cfr. factos provados nº 11 e nº 12).
XVI. Essa asserção do Tribunal a quo é demonstradamente errada: a questão invocada traduz uma excepção dilatória que encontra os seus fundamentos, unicamente, no requerimento inicial que deu origem aos presentes autos, pelo que não foi, nem poderia ter sido apreciada num outro processo judicial, fosse ele qual fosse.
XVII. A mera leitura do "acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que confirmou o prosseguimento da execução e a improcedência da oposição" (cfr. facto provado nº 12 e documento nº 5 junto ao requerimento inicial) demonstra que esta questão
não foi aí apreciada (e, repita-se, não poderia tê-lo sido).
XVIII. Pelo que o Tribunal a quo não poderia, licitamente, dispensar-se de apreciar esta questão, como fez … importando agora submetê-la à apreciação de V. Exas.
XIX. Assim, o documento nº 2 do requerimento inicial – uma escritura pública intitulada “confissão de dívida e hipoteca”, outorgada em 01/02/2008 – no qual a RECORRIDA procura alicerçar o seu alegado crédito sobre a RECORRENTE, configura uma declaração de reconhecimento de dívida, nos termos do artigo 458º do Código Civil.
XX. Esse documento não poderia traduzir uma declaração confessória extrajudicial nos termos do artigo 358º do Código Civil, uma vez que não faz uma alusão concreta aos factos constitutivos do alegado direito da RECORRIDA, mas apenas uma referência vaga, genérica, imprecisa, a uma “transmissão de direitos e valores” e a “cessões de participações sociais e empréstimos”.
XXI. Para usufruir da presunção estabelecida no artigo 458º do Código Civil, impunha-se à RECORRIDA o ónus de alegar, de modo individualizado, os factos concretos que consubstanciam a causa do seu invocado crédito – entendimento que é sufragado, pacificamente, pela jurisprudência.
XXII. Contudo, a RECORRIDA, ao alegar a causa do seu invocado crédito, referiu-se singelamente à “transmissão de quotas da sociedade Requerida”.
XXIII. A RECORRIDA incumpre, desse modo, o ónus de alegação e especificação da causa do seu alegado crédito, nos termos do artigo 458º do Código Civil, o que, além de impedir liminarmente que opere a presunção aí estabelecida, é processualmente cominado com a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil (ex vi artigo 17º do CIRE) – a qual deverá ser reconhecida por este douto Tribunal, com a consequente revogação da sentença recorrida.
F.3) Da falta de interesse em agir
XXIV. No articulado de oposição ao pedido de fls…, a ora RECORRENTE invocou a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir por banda da RECORRIDA.
XXV. Fê-lo enquanto que não dispondo a RECORRENTE de outro bem patrimonial diferente do edifício hipotecado e posteriormente penhorado pela RECORRIDA e outros, corolário manifesto a extrair dele é o de que uma hipotética procedência da acção de insolvência nunca poderia determinar para nenhum dos credores garantidos uma vantagem ou um interesse patrimonial, para mais ou para menos, para melhor ou para pior, diferente daquele que obteriam do produto da venda do bem no âmbito da acção executiva (atenta a ordem de graduação dos respectivos créditos).
XXVI. Por outro lado, a RECORRENTE não tem outros credores que não sejam os já Reconhecidos e graduados naquela execução.
XXVII. O que vale dizer que o único interesse que a RECORRIDA protagoniza nesta acção de insolvência já está assegurado na acção executiva, sendo por tal sorte evidente que a verdadeira razão por que a RECORRIDA naquela se aventurou não foi determinada pela putativa incapacidade da RECORRENTE de solver as suas responsabilidades vencidas, mas sim apenas pelo facto de ainda não ter obtido a satisfação do crédito que reclamou na instância executiva.
XXVIII. Contrariando esta axiomática conclusão, verifica-se, contudo, que a sentença recorrida recusou dar guarida à invocada excepção.
XXIX. Para tanto invocando o argumento de que a RECORRIDA demonstrou o seu interesse em agir em sede insolvencial por ser credora da RECORRENTE por dívidas com mais de 15 anos sem êxito na cobrança do seu crédito na acção executiva, “no qual o único bem penhorado se mostrou insuficiente sequer para liquidar as custas” (sic).
XXX. Em apertada síntese, considere-se, pois, que o argumento circular de que o tribunal se serviu para indeferir a excepção foi o de que o simples facto de a RECORRIDA se arrogar credora da RECORRENTE só por si co-honesta o interesse em agir em sede insolvencial.
XXXI. Mas não é assim, na medida em que, citando Lebre de Freitas (cf. nota 6.  do rodapé da oposição de fls…), “a legitimidade conferida para o efeito a qualquer credor pelo artigo 20º nº 1 do CIRE não impede que a verificação da falta de pressuposto processual leve a julgar inadmissível a insolvência requerida pelo credor com garantia real sobre os bens do devedor que não demonstre ter especial interesse jurídico em a requerer”.
XXXII. O caso vertente constitui o perfeito paradigma deste douto ensinamento doutrinal: não obstante invocando legitimidade processual para accionar, a RECORRIDA carece na verdade, atentos os termos expostos, do interesse em agir que preencha positivamente a condição da acção indispensável para o prosseguimento da instância.
XXXIII. E, na ausência da qual, deverão V. Exa. revogar a sentença recorrida com fundamento em erro decisório a respeito do pressuposto processual relevante e substitui-la por outra que determine a absolvição da RECORRENTE da instância.
F.4) Impugnação da decisão sobre matéria de facto
XXXIV. A RECORRENTE alegou, em sede de oposição que o justo valor de mercado do seu património não é manifestamente inferior à globalidade do seu passivo, nos termos e para os efeitos do artigo 3º nº 3 do CIRE;
XXXV. O que comprovou mediante a apresentação de um relatório de avaliação do imóvel acima referido, pelo Sr. Eng. JFA... perito avaliador da Lista Oficial de Justiça, Perito Avaliador da Câmara Municipal de Lisboa (…) e da Câmara Municipal de Sintra (…) – que lhe atribuiu o valor de €3.278.500,00 com referência a Setembro de 2023 (cfr. documento n.º 4 junto à oposição e facto provado nº 27).
XXXVI. O Tribunal a quo desvalorizou, indevida e incompreensivelmente, o relatório de avaliação de Setembro de 2023.
XXXVII. O referido relatório traduz uma avaliação levada a cabo por um profissional independente e devidamente credenciado, tomando por base os critérios oficiais e comummente aceites de avaliação imobiliária, e teve em especial consideração a recente aprovação de licença de utilização para o referido imóvel (cfr. documento nº 1 aqui junto).
XXXVIII. Trata-se, por isso, do meio de prova mais idóneo para determinar o valor actualizado do imóvel da propriedade da RECORRENTE, acima referido.
XXXIX. Tomando por base a devida apreciação do relatório em questão, nos termos do artigo 389º do Código Civil, requer a V. Exa. seja aditado o seguinte facto à matéria assente:
XL. O bem imóvel descrito no facto provado nº 9 tem o valor de, pelo menos, €
3.278.500,00.
XLI. Atentas as razões e fundamentos invocados nos nºs 125 a 133 ut supra; bem como o teor do documento identificado no nº 132, deverá o facto considerado provado no
nº 22 do Capítulo III da douta sentença ser expurgado da matéria assente.
F.5) Impugnação da decisão sobre matéria de direito
XLII. Os critérios de determinação da situação de insolvência de sociedades comerciais, previstos no artigo 3º nºs 1 e 2 do CIRE, postulam que se encontrará em situação de insolvência a sociedade comercial que esteja incapacitada de solver a generalidade das dívidas vencidas ou que tenha activos em valor manifestamente inferior ao montante somado do seu passivo,
XLIII. Com uma importante excepção: já não se considera insolvente a sociedade comercial cujo passivo não seja manifestamente superior aos seus activos, avaliados estes pelo seu justo valor de mercado (artigo 3º nº 3 do CIRE).
XLIV. Os factos dados como provados nos autos, com destaque para aquele cujo aditamento se requereu supra, demonstram que o passivo da Requerida não é manifestamente – isto é, expressivamente, significativamente – superior ao valor dos seus activos, devidamente avaliados.
XLV. Ao decidir em sentido contrário, a sentença recorrida incorreu num manifesto erro de julgamento, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que determine a improcedência da acção e a absolvição da Requerida do pedido – o que se requer.
Terminou peticionando que
i) seja declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos conjugados do disposto no artigo 607º nº 3 e nº 4 do CPC (ex vi artigo 17º do CIRE) e do artigo 615º nº 1, alínea b) e c), do CPC; ou, caso assim não se entenda,
ii) seja a RECORRENTE absolvida da instância com fundamento em ineptidão do requerimento inicial, nos termos do artigo 186º nº 1 e nº 2 alínea a) do CPC (ex vi do artigo 17º do CIRE), ou, subsidiariamente, por via da falta de interesse em agir por parte da RECORRIDA, ou, caso assim também não se entenda,
iii) seja a acção julgada improcedente e absolvida a RECORRENTE do pedido, com fundamento na demonstração de que os seus activos não são manifestamente inferiores ao passivo, nos termos do disposto no artigo 3º, nº 3, do CIRE.
*
A recorrida M… contra-alegou, CONCLUINDO que a sentença não enferma de nulidade, que o requerimento inicial não enferma de ineptidão, que não se verifica a excepção de falta de interesse em agir e que requerida, ora recorrente, se encontra, efectivamente, em situação de insolvência, razão pelas quais o recurso deve ser julgado improcedente e mantida a sentença recorrida.
*
O recurso foi admitido como apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo e no despacho que admitiu o recurso o Mmª Juiz pronunciou-se relativamente à nulidades invocadas em obediência ao disposto no art.º 617º, nº1, do C.P.Civil. 
*
Foram colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos.
*
II- Objecto do Recurso
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
i) da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto;
ii) da ineptidão da petição inicial;
iii) da falta de interesse em agir; 
iv) da modificabilidade da decisão de facto e se
v) se verificam, ou não, os pressupostos para a declaração de insolvência da apelante/requerida.
*
III - Fundamentação
A) Questão Prévia: Da admissibilidade dos documentos apresentados com as alegações
Com as alegações, requereu a apelante a junção de três documentos: 
- cópia de uma notícia publicada no jornal ECO em 27/05/2024, intitulada "Preços dos imóveis comerciais têm subida histórica de 5,5% em 2023";
- Alvará de licença de utilização relativa ao imóvel identificado nos autos do aquando da avaliação do imóvel em Maio de 2018, este ainda não estava dotado de licença de utilização, a qual só veio a ser concedida por despacho de 30/08/2022 do Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de Sintra. Diz que a certidão de tal alvará se encontra junta ao requerimento de 22/02/2023 apresentado no processo de execução nº 3524/12.3YYLSB, que “é do conhecimento destes autos por via da consulta/acompanhamento a esse processo, determinada por ofício de 06/05/20024, refª 435243434, mas que em qualquer dos casos se junta como documento nº 2 por mera facilidade de acesso)” e
- certidão da Conservatória do Registo Comercial relativa à sociedade S…, Lda.
Relativamente à junção de documentos na fase de recurso, resulta do disposto no art.º 651º do C.P.Civil, que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Por sua vez, prevê o referido artigo 425º do mesmo diploma que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Conforme se decidiu no Ac. Relação de Coimbra de 08.11.2014 (processo nº 628/13.9TBGRD.C1, relator: Teles Pereira), o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt:
“I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
II - Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.
III - Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.
(…)”
Cumpre ainda referir que o disposto no nº 1 do artigo 651º não afasta o princípio geral relativo à junção de documentos: Só devem ser admitidos nos autos documentos para fazer prova de fundamentos da acção ou da defesa e não quaisquer outros irrelevantes para a boa decisão da causa.
O documento nº 1 não respeita concretamente ao imóvel identificado nos autos, mas ao preço dos “imóveis comerciais” em geral, pelo que não é apto a demonstrar, conforme invoca a requerida, que o valor comercial daquele seja actualmente superior ao que lhe foi atribuído aquando da perícia realizada no processo de execução nº …
No que respeita ao doc. nº 2, atenta a data de emissão ali aposta, não está demonstrado que não pudesse ter sido junto anteriormente e o mesmo se verifica relativamente à certidão da Conservatória do Registo Comercial.
Com efeito, excluída a situação de superveniência relativamente a estes dois documentos, também não se pode considerar que a junção dos documentos se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artigo 651º, nº 1, 2ª parte do CPC).
Os casos fundados no argumento da necessidade estão relacionados com a novidade ou a imprevisibilidade da decisão, com a eventualidade de a decisão ser “de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” – cfr Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 242.
Sobre esta hipótese, dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, comentando a norma do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Vol. I: “[a] jurisprudência tem entendido que a junção de documentos às alegações de recurso, de um documento potencialmente útil á causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”. E continuam: “[n]o que tange à parte final do n.º 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.
Pelo exposto, não admito a junção dos documentos apresentados pela recorrente.
Custas do incidente pela mesma, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.
*
B) Da invocada nulidade da sentença 
Sustentou a apelante que a motivação da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo resumiu-se a dizer que se "teve em consideração as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados e os documentos juntos, que são prova bastante" e que não foi efectuado um exame crítico das provas, tendo, assim, sido incumprido o dever de fundamentação da decisão sobre matéria de facto recorrida, que a lei comina com a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b), do CPC (aplicável ex vi do artigo 17º do CIRE).
Estabelece o nº 1 do citado art.º 615º que a sentença é nula quando:
“(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)”
A Lei impõe ao juiz que tome posição directa sobre a factualidade alegada, especificando os factos provados e não provados e também os fundamentos de direito em que estriba a decisão.
 Conforme se refere no Ac. do STJ de 04/07/19, relatora: Rosa Tching, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt, a nulidade prevista na citada alínea b) “Trata-se de um vício que corresponde à omissão de cumprimento do dever contido no art.º 205º, nº 1 da CRP que impende sobre o juiz de indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão.
E, tal como é jurisprudência pacífica - [2 - Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acs.. do STJ, de 10.5.1973, in, BMJ, n.º 228º, pág. 259 e de 15.3.1974, in, BMJ, n.º 235, pág. 152.], traduz-se na falta absoluta de motivação, quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e não na motivação deficiente, medíocre ou errada”.
Sustenta-se igualmente no Ac. do mesmo STJ de 06/07/17, relator: Nunes Ribeiro, disponível também in www.dgsi.pt:
“(…) é preciso esclarecer que só a falta absoluta de motivação constitui nulidade. A insuficiência ou mediocridade da motivação - como ensinava o Prof. ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado Vol. V, pág. 140, afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.
A nulidade apontada tem correspondência com o n.º 3 do art.º 607º do mesmo C. P. Civil que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes...»”.
Atento o que fica referido, é jurisprudência assente que só a falta absoluta de motivação – e não a sua imperfeição ou incompletude – constitui fundamento para a nulidade a que se refere o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
A decisão de facto encontra-se motivada, constando da mesma, para além do referido pela apelante, ou seja, para além do segmento onde se consignou: “Atenta as posições assumidas pelas partes nos articulados, a prova documental junta aos autos, julgo provados os seguintes factos”, a seguir a cada um dos factos para prova dos quais foram tidos em consideração o teor dos documentos, a identificação desses mesmos documentos, bem como a discriminação da factualidade para cuja prova foi considerado o acordo das partes.
No que concerne aos factos respeitantes ao processo de execução que corre termos no Juízo de Execução de … , sob o nº …, a Mmª Juíza a quo fez consignar no início da sentença que consultou electronicamente o processo em causa e nos pontos 28- e 29- encontram-se reproduzidos o balanço e a demonstração de resultados apresentados pela requerida em 15.12.2023 e que foram juntos com a oposição e cujo teor não foi impugnado pela requerente.
Assim, contrariamente ao invocado pela apelante, a decisão da matéria de facto encontra-se motivada e permite a apreensão dos meios de prova que foram tidos em consideração pelo tribunal a quo para a prova de cada um dos factos tidos como provados, sendo certo que não houve lugar à produção de prova testemunhal.
Sustentou ainda a mesma que o facto provado sob o nº 6 serve, essencialmente, de suporte ao reconhecimento do crédito invocado pela recorrida, o que, por sua vez, determinou a legitimidade desta ao abrigo do artigo 20º do CIRE, pelo que se impunha, à luz do disposto no artigo 607º, nº 3, do CPC, que o enunciado desse facto provado na sentença cumprisse os predicados gerais de concretização e individualização, com indicação de tempo, local e modo, de forma a permitir a apreensão do que é “afinal, o título constitutivo do crédito invocado pela recorrida”.
Diz que o enunciado não identifica os putativos direitos e valores que terão sido transmitidos, qual a modalidade de transmissão, quais as partes outorgantes da mesma, qual a relação desses direitos e valores com as cessões de participações sociais na sociedade ora recorrente, nem identifica por que razão essa alegada transmissão de direitos e valores implicou a constituição de um crédito da recorrida sobre a recorrente. Concluiu que o enunciado do facto provado nº 6 padece de uma insanável obscuridade, o que determina a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do CPC.
De acordo com o estabelecido nesta alínea do normativo supra citado que a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
No que respeita à ambiguidade ou obscuridade, como ensina Remédio Marques, in “Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 667, «a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos” e “a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença».
Também Antunes Varela e Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 693, adoptam uma posição idêntica, referindo que “o pedido de aclaração tem cabimento sempre que algum trecho essencial da sentença seja obscuro (por ser ininteligível o pensamento do julgador) ou ambíguo (por comportar dois ou mais sentidos distintos)”.
A nulidade com fundamento em ambiguidade ou obscuridade remete-nos para os casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto no aresto (obscuridade), determinando que os respectivos destinatários fiquem sem saber, inequivocamente, qual o resultado consignado na sentença.
Como já se disse, in casu constam da sentença os factos considerados provados e no que respeita à factualidade provada sob o ponto 6. refere-se ali a escritura de confissão de dívida e hipoteca celebrada em 1 de Fevereiro de 2008, documento esse junto com a petição inicial como doc. nº 2. A escritura está completamente identificada e saber se os termos da mesma permitem a individualização do crédito invocado pela requerente, ora apelada, trata-se de questão jurídica, que não se confunde com a nulidade da sentença por ambiguidade ou obscuridade.
As nulidades da sentença ou acórdão, taxativamente previstas no art.º 615º, nº1, do CPC, reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).
Improcede, pois, a invocada nulidade da sentença.
*
C) Da ineptidão da petição inicial
Sustentou a apelante que o documento - escritura pública intitulada “confissão de dívida e hipoteca”, outorgada em 01/02/2008 - com base no qual a requerente, ora apelada, alicerça o seu alegado crédito sobre a mesma configura uma declaração de reconhecimento de dívida. Diz que tal documento não poderá traduzir uma declaração confessória extrajudicial nos termos do artigo 358º do Código Civil, uma vez que não faz uma alusão concreta aos factos constitutivos do alegado direito da requerente/recorrida, mas apenas uma referência vaga, genérica, imprecisa a uma “transmissão de direitos e valores” e a “cessões de participações sociais e empréstimos”. Concluiu que a recorrida  incumpre o ónus de alegação e especificação da causa do seu alegado crédito, nos termos do artigo 458º do Código Civil, o que, além de impedir liminarmente que opere a presunção aí estabelecida, é processualmente cominado com a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil (ex vi artigo 17º do CIRE) – a qual deverá ser reconhecida por este Tribunal, com a consequente revogação da sentença recorrida.
A recorrida, na resposta ao recurso, invocou que a petição inicial não é inepta, como decidiu o tribunal a quo.
Compulsada a petição inicial, verifica-se que a requerente alegou ali que a mesma “(e os seus co-Exequentes) e a Requerida celebraram, a 1 de Fevereiro de 2008, uma escritura de confissão de dívida e hipoteca, mediante a qual esta e os seus sócios, C… A…  e E…,  se confessaram solidariamente devedores àqueles de um valor de €1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil), decorrente da transmissão de quotas da sociedade Requerida – conforme Documento n.º 2, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais”
Invocou que o crédito se encontra garantido por hipoteca registada pela Ap. 31 de 20-02-2008 sob o prédio urbano descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de… sob o número … da freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da união das freguesias de … e que nos termos da referida escritura, os valores em dívida seriam liquidados até 31 de Março de 2011.
Diz que a requerida e os demais co-devedores apenas liquidaram os valores que indica, encontrando-se, assim, em dívida a título de capital €1.494.563,10 e que a mesma e os restantes credores instauraram uma execução contra a requerida, C… A… e E…, a qual corre termos junto do Juiz … do Juízo de Execução de … – Comarca de … , sob o número de processo … e onde peticionaram o pagamento da quantia total de €1.576.375,07, incluindo juros vencidos.
Foi ali deduzida oposição à execução pela requerida, a qual foi julgada improcedente.
A requerente não logrou obter qualquer ressarcimento do seu crédito e a Requerida não regista fluxo de caixa, nem compras ou vendas, não tem empregados, nem apresenta indícios suficientes de actividade comercial nas suas demonstrações financeiras.
O imóvel penhorado é o único bem da requerida e a sociedade comercial “I…, Unipessoal, Lda.”, Credora Habilitada, requereu que o mesmo lhe fosse adjudicado pelo preço de €1.300.000,00, o que foi deferido.
Invocou ainda que o crédito da Requerente e dos demais Exequentes perfaz, à data da instauração da acção, a quantia de €2.570.894,21 e que é manifesta a impossibilidade de a requerida ressarcir os seus credores dos montantes em dívida.
A requerida contestou, invocando, desde logo, a ineptidão da petição inicial, excepção que, após resposta por parte da requerente, foi julgada improcedente pelo tribunal a quo.
Um credor, relativamente a devedor que considere em situação de insolvência, pode requerer em tribunal que o mesmo seja declarado insolvente desde que se verifique algum dos factos indícios de insolvência previstos pelo art.º 20º, nº 1, do CIRE.
Mais prevê o art.º 25º, nº 1, do CIRE que: “Quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor”.
Conforme se refere no Ac. desta Relação de 06/09/2022, Acórdão esse proferido no Proc. nº 7673-21-9T8SNT-L1, relatora: Amélia Sofia Rebelo e subscrito pela ora relatora enquanto 1ª adjunta e ao que sabemos não publicado: 
«Da conjugação dos arts. 20º, nº 1 e 25º, nº 1 resulta que, sendo a qualidade de credor um dos requisitos da legitimidade para o pedido de declaração de insolvência, a lei exige que na petição o requerente a justifique com a alegação da causa constitutiva, natureza e montante do seu crédito (legitimação ad causam); sendo o objeto imediato do processo especial de insolvência a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência - no que se consubstancia o pedido que por ela é deduzido, que ao tribunal cumpre apreciar e decidir e que, cfr. arts. 64º e 65º do CPC e art.º 128º, nº 1, al. a) da LOSJ, determina a competência do juízo de comércio em razão da matéria[1] -, a qualidade de credor do requerente constitui tão só pressuposto do prosseguimento da ação e, a final, condição da procedência do pedido de insolvência, atinente, respetivamente, com a legitimidade processual e com a legitimidade material do requerente para o pedido que, de acordo com o princípio da auto suficiência do processo de insolvência, cumpre apreciar e verificar, mas já não decidir. Com efeito, apurando-se no julgamento da causa que os pressupostos dos créditos do requerente não se verificam ou não comprovam, falece também o requisito primeiro para a decretação da insolvência, com a consequente absolvição do devedor do pedido[2] (e já não da instância). Mas, na situação inversa, concluindo-se pela existência de parte ou da totalidade do crédito invocado, nesta fase do processo não cumpre declarar judicialmente a sua existência[3], mas apenas prosseguir com a apreciação dos pressupostos da situação de insolvência, posto que é esse o único objeto do processo de insolvência na sua fase declarativa inicial e que, conforme já referido, determina a competência material do juízo de comércio para a sua tramitação, que não é afetada ou prejudicada pela natureza, origem ou causa constitutiva do crédito, nem pela juízo que se faça quanto à viabilidade do mesmo.
(…)
Conforme resulta do proémio do art.º 20º nº 1 do CIRE, a legitimidade ativa (ad substantium) do credor é condicionada pela verificação de certas situações - o credor tem legitimidade para requerer em juízo que o devedor seja declarado insolvente desde que, para além da justificação da qualidade de credor, invoque como fundamento da situação de insolvência algum dos factos previstos pelo art.º 20º, nº 1 do CIRE que, conforme se referiu, para além da natureza de factos-índice e condição suficiente da declaração de insolvência (pelo valor de presunção de situação de insolvência que a lei lhes reconhece)[4], surgem como factos legitimadores do pedido de declaração de insolvência apresentado por credor[5]. Conforme refere Soveral Martins[6], O art.º 20.º, 1, do CIRE enumera um conjunto de factos cuja verificação deve ter lugar para que os sujeitos ali referidos possam requerer a declaração de insolvência do devedor. Não se trata, na verdade, de outras tantas situações de insolvência que devam ser somadas às previstas no art.º 3.º, mas sim de meros requisitos de legitimidade e de «factos-índices» ou presuntivos da insolvência (…). O que bem se compreende pois, conforme refere Catarina Serra, “existem casos de incumprimento sem impossibilidade de cumprimento (o devedor não cumpre porque não quer ou porque discorda da exigibilidade da dívida).[7] O que equivale a dizer que o (facto) incumprimento não se confunde com a (situação de) insolvência, e que nem sequer é indício da sua verificação[8].”
(…)
Com efeito, na discussão jurisprudencial sobre a questão ganhou terreno e consenso a posição que reconhece legitimidade ao credor titular de crédito que, no processo, se revele controvertido/litigioso. Nesse sentido, acórdão do STJ de 29.03.2012 que, conforme resumido por Soveral Martins[9], assentou essencialmente nos seguintes fundamentos: “o art.º 20º, 1, não faz qualquer distinção; a legitimidade em causa é de natureza processual e o CPC, aplicável subsidiariamente, não exige, para se ter [essa] legitimidade, que se seja titular do direito; não há motivo para discriminar o titular de crédito litigioso em relação ao titular de crédito condicional; o juiz do processo não é passivo; pode afirmar-se um princípio da autossuficiência do processo de insolvência; o reconhecimento de legitimidade nos casos referidos evitará o benefício para o devedor que apresenta a sua contestação no processo declarativo só para ganhar tempo[10]; a legitimidade é processual e por isso não haverá necessariamente julgados contraditórios[11]; o requerente pode ser responsabilizado pela dedução de pedido infundado.
(…)”
Baseia-se o crédito invocado pela requerente numa confissão de dívida da requerida para com aquela (e outros), o que nos remete para a temática dos negócios unilaterais – que é o que uma confissão/reconhecimento de dívida é.
A confissão de dívida não apaga a regra segundo a qual quem se dirige a um tribunal, invocando um direito de crédito e exigindo a correspondente obrigação  tem que alegar  a fonte que dá origem a tal crédito/obrigação; não pode limitar-se a dizer, em termos abstractos, genéricos e indefinidos, que é credor do R./requerido num concreto montante e pedir que este seja condenado a pagar-lhe tal concreto montante ou, como é o caso, que seja declarado insolvente.
De acordo com o disposto no artigo 458º, nº1, do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Mas não constando a causa de pedir (relação jurídica subjacente à declaração de dívida) da declaração/confissão de dívida, esta – a causa de pedir – tem que ser alegada na petição inicial.
In casu, alegou a requerente na petição inicial que o crédito que invoca decorre “da transmissão de quotas da sociedade Requerida” e da escritura consta que decorre “de transmissão de direitos e valores relacionadas com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à identificada sociedade”.
Não se pode, todavia, deixar de atender ao facto de o crédito ora invocado já o ter sido anteriormente na execução instaurada contra a requerida.
No requerimento executivo ali apresentado, os exequentes limitaram-se a alegar “são donos e legítimos portadores de uma Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, celebrada em 1 de Fevereiro de 2008, que se junta e dá por integralmente reproduzida. (Doc. 1)
2. Nos termos da referida Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, os executados confessaram-se solidariamente devedores dos exequentes das quantias abaixo discriminadas, que totalizam o valor global de €1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil euros), decorrente de transmissão de direitos e valores relacionados com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à sociedade “C…, Lda”.
A ali executada, ora apelante, deduziu esta oposição na qual invocou que a dívida constante da escritura ali apresentada como título executivo e ora junta com a petição inicial, não é sua, mas “tem origem na aquisição das quotas por parte dos outorgantes (E… e C… A…), agora igualmente executados, pelo valor de preço global de €1.526.641,37 (um milhão quinhentos e vinte e seis mil seiscentos e quarenta e um Euros e trinta e sete cêntimos) …  A executada sociedade C…, Lda., não comprou qualquer quota.
10º. Os executados C… A… e E…, subscreveram ainda no mesmo dia um outro contrato denominado “CONTRATO DE COMPRA E VENDA” (sic), pelo qual os agora exequentes venderam, pelo valor nominal contabilístico, as prestações suplementares de capital, efectuados à sociedade de que eram sócios à época (agora executada), no montante global de €50.000,00 (cinquenta mil Euros) (cfr doc. 2).
11º. A executada sociedade C…, Lda, subscreveu também ela no mesmo dia, já representada pela nova sócia a executada E…, um documento denominado “Acordo de pagamento”, para o pagamento dos suprimentos efectuados a esta sociedade pelos então sócios agora exequentes (cfr doc. 3).
12º. Esta é, pois, a única dívida que a sociedade executada tem perante os então sócios da própria, agora também ela executada. Porém os credores desta obrigação, também exequentes na presente acção, não deram à execução este título executivo, consubstanciado no acordo subscrito.
13º.
O documento, título que agora pretendem os exequentes executar, mormente o denominado “CONFISSÃO DE DÍVIDA E HIPOTECA” (sic), não corresponde à verdade dos factos. É uma simulação.”
Sustentaram que “15. Os vendedores das quotas (exequentes) e os compradores das mesmas (executados C… A… e E…), simularam que a sociedade cujas quotas foram transaccionadas, era devedora solidária destes, para poderem constituir uma garantia real sobre um bem imóvel de propriedade da sociedade. a nulidade do negócio jurídico por si” e que “esta simulação gera a nulidade do negócio jurídico «confissão de dívida e hipoteca», no que tange à pessoa jurídica ora executada denominado C…, Lda., quem deve são os sócios, ora executados C… A… e E… e que 17. Nula a confissão da divida, …, é nulo o negócio acessório de constituição de hipoteca sobre o imóvel de pertença da sociedade.”
Subsidiariamente invocaram que “jamais a constituição de uma hipoteca de uma sociedade a favor dos seus antigos sócios, para garantia do pagamento do valor das quotas adquiridas pelos novos sócios, pode ser entendido como efectuado no interesse da sociedade. Como é inegável, (cfr art.º 6º nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, conjugado com o art.º 294.º do Código Civil …), concluindo que “assim com base no título agora dado à execução, não pode proceder penhora sobre o imóvel dado de garantia nos termos da lei.”.
A oposição à execução foi julgada improcedente, decisão esta que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme certidão extraída dos autos e junta com a petição inicial da insolvência.
A decisão que julgue a oposição à execução improcedente não faz caso julgado da existência da obrigação ou das suas condições, ou seja e nas palavras de Rui Pinto, in A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pág. 435: “i. e., não é prolatada uma simples apreciação positiva da obrigação, pela simples razão de que numa ação declarativa o julgamento de improcedência do pedido do autor, não equivale a um inverso julgamento com valor de caso julgado da situação material oposta”.  
Ainda assim, não se pode deixar de colocar a questão de saber se, julgada improcedente oposição oposta a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) na oposição que opôs à anterior execução.
E nesta questão concreta, não obstante não se desconheça a posição segundo a qual “Julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior, vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente” - cfr., entre outros, Ac. do STJ de 03/05/2023, Cons. Barateiro Martins, Proc. nº 1704/21.0T8GRD.C1.S1, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt -, é nosso entendimento que in casu, seria muito estranho admitir que na oposição que deduziu na referida execução, na qual o invocado no requerimento executivo relativamente ao crédito era em tudo idêntico ao alegado nestes autos, a ali executada, ora requerida, nada tivesse alegado quanto à ineptidão daquele requerimento por falta de identificação da concreta relação jurídica subjacente à declaração de dívida e ora pudesse vir a alegar a ineptidão da petição inicial da acção de insolvência com fundamento na impossibilidade de, face à mesma, identificar os factos constitutivos do alegado direito da requerente/recorrida.
Como refere o Cons. Abrantes Geraldes in CPC Anotado, vol. II, Almedina, 2020 – Reimpressão, pág. 81 e 82: “Na verdade, embora a falta de dedução dos embargos não tenha qualquer efeito cominatório, determinando simplesmente que o processo de execução siga os seus termos normais para satisfação do direito emergente do título executivo, é legítimo afirmar que existe um ónus de embargos, o que, aliás, se compagina com a previsão de um prazo peremptório de 20 dias para o efeito, nos termos do art.º 728º, nº 1 e com o facto de apenas se admitirem posteriormente fundamentos que sejam objetiva e subjetivamente supervenientes, nos termos do nº 2.
(…) é de assinalar que as normas da ação executiva e especificadamente as que regulam os embargos de executado conferem ao executado a possibilidade de se defender amplamente, o que torna difícil sustentar que, depois de percorrida toda a tramitação empreendida pelo exequente para obter a satisfação do seu crédito configurado no título executivo, sob auspícios da autoridade judiciária e com todo o rol de garantias que as leis de processo conferem (defesa, contraditório, solenidade processual, legalidade e objetividade), ainda se admita a reabertura da discussão noutro plano diferenciado, conferindo ao executado a possibilidade de invocar fundamentos que não integrou nos embargos de executado que constituem o instrumento adequado e único para veicular qualquer dos meios de defesa contra a pretensão executiva e contra o cumprimento coercivo da obrigação exequenda”.
Neste mesmo sentido Rui Pinto, ob. cit, pág. 410: “(…) os dados legais que decorrem implicitamente do nº 2 do artigo 718º são de que, esgotada a oportunidade processual dada pelo nº 1, apenas se admite matéria superveniente, conquanto seja matéria dos artigos 729º a 731º e não outra: a contrario, não pode o opoente trazer factos, impugnações e exeções, perentórias e dilatórias, cuja alegação omitira”.
Atento tudo o que fica referido, não pode merecer acolhimento a excepção de ineptidão da petição inicial invocada pela requerida, ora embargante, com fundamento no facto na falta de identificação da concreta relação jurídica subjacente à declaração de dívida.
*
D) Da falta de interesse em agir
Invocou também a requerida, ora recorrente, que não dispondo de outro bem patrimonial diferente do edifício hipotecado e posteriormente penhorado pela recorrida e outros, uma hipotética procedência da acção de insolvência não poderá determinar para nenhum dos credores garantidos uma vantagem ou um interesse patrimonial diferente daquele que obteriam do produto da venda do bem no âmbito da acção executiva. Por outro lado, a recorrente não tem outros credores que não sejam os já reconhecidos e graduados naquela execução, pelo que o único interesse que a recorrida protagoniza nesta acção de insolvência já está assegurado na acção executiva, o que determina que se tenha que concluir pela falta de interesse em agir por parte da mesma.
A afirmação do interesse em agir como verdadeiro pressuposto processual visa assegurar que o direito de acção seja efectivamente exercido para tutela do direito correspondente.
O interesse processual ou interesse em agir, sendo diferente da legitimidade tem, todavia, em comum com este conceito o dever ser aferido, objectivamente, pela posição alegada pelo autor, que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito (cf. Sousa, Miguel Teixeira de, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, p. 97).
A acção há-de ser indispensável à tutela judicial que se pretende obter e há-de ser adequada, no sentido de que é a acção o meio apto à consecução do resultado.
"O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela" (Sousa, Miguel, op. cit., p. 99).
O facto cuja existência se pretende que seja declarada não pode ser um facto qualquer. Tem de ser um facto jurídico, ou seja, um facto juridicamente relevante (Varela, Antunes, Manual de Processo Civil, 2.a ed., p. 21).
É facto jurídico todo aquele de que promanam efeitos jurídicos, sendo juridicamente irrelevante todo o que nenhuma alteração produz na ordem jurídica (Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 2002, pp. 9, 11 e 17).
O interesse em agir apresenta-se como um interesse instrumental em relação ao interesse substancial primário, pressupondo "a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação" - Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, 1982, p. 253).
Escreve, por seu turno, Manuel de Andrade, in Noções Elementares, pp. 78/82 - que o interesse em agir [na Alemanha designado por "necessidade de tutela jurídica"]: " ... Consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial".
Antunes Varela (Manual de Processo Civil, pp. 181 e 186/187), defende que se exige:
"Uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção - mas não mais que isso" [...] e Humberto Theodoro Júnior (in Curso de Processo Civil, voI. I, Forense, Rio de Janeiro, 1990, p. 59), citado no ac. do STJ, de 16-9-2008, in http://www.dgsi.pt/(relator Fonseca Ramos) escreve: "O interesse de agir, que é instrumental e secundário, surge da necessidade de obter através do processo a protecção ao interesse substancial. Entende-se, dessa maneira, que há interesse processual se a parte sofre um prejuízo, não propondo a demanda, e daí resulta que, para evitar esse prejuízo, necessita exactamente da intervenção dos órgãos jurisdicionais".
O processo de insolvência encontra-se definido no art.º 1.º, n.º 1 do CIRE como “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
O processo de insolvência apresenta características próprias e como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/03/2024, relator: Paulo Correia, Proc. 3020/23.3T8VIS.C1, também em www.dgsi.pt: “O interesse individual do credor na satisfação do seu crédito apresenta-se, neste contexto, em 2.º plano, ante o interesse superior do processo - o interesse comum dos credores.
(…) o interesse acautelado na ação da insolvência é o do interesse da globalidade dos credores, e, consequentemente, não pode ser apreciado, como o fez o tribunal recorrido, na lógica individualística em que assentou, ou seja apoiada no fundamento em como a insolvência não tutela de forma acrescida a situação jurídica que Requerente atualmente dispõe.”
Também no Ac. da Relação de Lisboa de 14/12/2023, relator: Nuno Teixeira, Proc. 9385/22.7T8LSB-C.L1, acórdão este subscrito pela ora relatora enquanto 1ª adjunta e igualmente consultável em www.dgsi.pt, se diz: «No caso da insolvência, o interesse em agir terá como pressuposto a existência de um interesse na respectiva declaração. Como refere CATARINA SERRA, “aquilo que o autor, seja ele quem for, pretende é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criadas por aquela situação”.[13 - Cfr. A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito – O problema da natureza do processo aplicável à insolvência no Direito Português, pág. 263] É certo que quando o requerente é um credor o que ele visará primeiramente é a satisfação do seu crédito, mas a verdade é que a sua iniciativa desencadeia outros efeitos, que não apenas o seu, designadamente “a protecção da economia, em particular dos agentes económicos que potencialmente podem agir no comércio com o insolvente, obstando ao perigo real do seu alastramento com base numa cadeia de incumprimentos”.[14 - Cfr. TRC, Ac. de 28/05/2013 (proc. 1275/12.8TBACB-B.C1), disponível em www.direitoemdia.pt, onde se concluiu não se verificar a excepção dilatória de falta de interesse em agir “quando o credor instaura processo, tendo em vista a declaração de insolvência do devedor, na pendência de acção executiva por si intentada, ainda que nesta não se encontre demonstrada a insuficiência dos bens penhorados para satisfazer o crédito do exequente, quando fundamenta o seu pedido no nº 1 do artigo 3º do CIRE, invocando a verificação de outros factos-índice de insolvência que não o previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 20º daquele diploma.”
No caso em apreço, sendo o requerente titular de um crédito de valor avultado sobre o requerido, não ficou demonstrado que seria certa a sua satisfação no âmbito do processo executivo. Acresce que são conhecidos outros credores do Requerido de quantias significativas.
Assim, tendo o Requerente invocado outros factos indiciadores da situação de insolvência do Requerido, designadamente, o incumprimento do seu crédito desde 2018, a pendência de duas execuções fiscais e a ausência de rendimentos e de acesso a crédito que permitissem ao Requerido pagar as dívidas vencidas, temos de reconhecer que o Banco tem interesse na instauração do processo de insolvência, de forma a este cumprir as finalidades consagradas no artigo 1º do CIRE.
Em suma, se a situação de insolvência, enquanto estado patrimonial do devedor, é, de acordo com o disposto no artigo 3º, nº 1 do CIRE, o único pressuposto necessário da insolvência, não tem o credor, disponha ou não de título executivo, de, previamente ao pedido de insolvência, instaurar contra o devedor uma acção executiva, ou de a continuar, caso já a tenha instaurado.[15- Cfr. neste sentido TRG, Ac. de 15/11/2018 (proc. 3016/18.7T8GMR-C.G1), disponível em www.direitoemdia.pt.]»
In casu, invocou a requerente que a requerida é proprietária de um único bem – o imóvel que identifica, o qual foi penhorado nos autos de execução supra aludidos e cujo valor não permite o pagamento integral dos créditos reclamados. Diz que a mesma não é titular de quaisquer outros bens ou rendimentos, razão pela qual se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações.
Atento o que ficou referido, conclui-se que, tal como entendeu a Mmª Juíza a quo, improcede a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir invocada pela requerida, ora apelante.
*
E) Matéria de Facto decidida na 1ª Instância
Na sentença sob recurso foi considerada como provada a seguinte factualidade:
1. A Sociedade “C…, Lda.”, pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, tem o capital social de €380.670,00 - cfr. certidão do registo comercial, junta a 02.05.2023, que se dá por reproduzida.
2. Dedica-se à actividade de jardim de infância, ensino pré-escolar, 1º ciclo do ensino regular básico e atividades de tempos livres – cfr. certidão do registo comercial, junta a 02.05.2023, que se dá por reproduzida.
3. Por alteração do contrato de sociedade deliberada, a 01.02.2008, a forma de obrigar a sociedade passou a ser pela assinatura de um gerente, para que foi designada a sócia E… – cfr. certidão do registo comercial, junta a 02.05.2023, que se dá por reproduzida.
4. A 12.09.2015 é inscrita a alteração ao artigo 1.º do contrato de sociedade, passando a sede da Rua …, para a Av. …, - cfr. certidão do registo comercial, junta a 02.05.2023, que se dá por reproduzida.
5. E, a 09.03.2020 alterada para Rua … cfr. certidão do registo comercial, junta a 02.05.2023, que se dá por reproduzida.
6. Mediante Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, celebrada em 1 de fevereiro de 2008 (junta como doc. 2 da petição inicial), na sequência da transmissão de direitos e valores relacionados com as cessões de participações sociais na sociedade, a devedora e os sócios, E… e C… A… confessaram-se
solidariamente devedores das quantias:
- a MP… e marido MAP, de €220.101,82 (duzentos e vinte mil, cento e um euros e oitenta e dois cêntimos);
- a MM… e marido AM…, quantia de €412.620,40 (quatrocentos e doze mil, seiscentos e vinte euros e quarenta cêntimos);
- a M…, a quantia de €157.373,45 (cento e cinquenta e sete mil, trezentos setenta e três euros e quarenta e cinco cêntimos);
- a AP…, a quantia de €157.373,45 (cento e
cinquenta e sete mil, trezentos setenta e três euros e quarenta e cinco cêntimos);
- a MR… e marido AR…, a quantia de €123.223,90 (cento e vinte e três mil, duzentos e vinte e três euros e noventa cêntimos);
- a AS… e mulher MS…, a quantia de €123.223,90 (cento e vinte e três mil, duzentos e vinte e três euros e noventa cêntimos);
- a JS… e mulher AC… a quantia de €123.223,90 (cento e vinte e três mil, duzentos e vinte e três euros e noventa cêntimos);
- a RB… e marido AB… a quantia de €123.223,90 (cento e vinte e três mil, duzentos e vinte e três euros e noventa cêntimos);
- a BA… e marido A A… a quantia de €123.223,90 (cento e vinte e três mil, duzentos e vinte e três euros e noventa cêntimos);
- a AFM… a quantia de €2.349,80 (dois mil, trezentos e quarenta e noves euros e oitenta cêntimos);
- a JFM… a quantia de €2.349,80 (dois mil, trezentos e quarenta e noves euros e oitenta cêntimos) – cfr. escritura pública, junta como doc. 2 da petição inicial, que se dá por integralmente reproduzida.
7. Nos termos da referida Escritura, os referidos montantes seriam liquidados até 31 de Março de 2011 - cfr. escritura pública, junta como doc. 2 da petição inicial, que se dá por integralmente reproduzida.
8. Foram pagas as seguintes quantias:
- a MP… e marido MAP… €9.820,10, pelo que permaneceu em dívida o valor de €210.281,72;
- a MM… e marido AM… €19.049,41, pelo que permaneceu em dívida o valor de €393.570,99;
- a M… €7.545,46, pelo que permaneceu em dívida o valor de €149.827,99;
- a AP…  €7.545,46, pelo que permaneceu em dívida o valor de €149.827,99;
- a MR… e marido AR… €5.907,84 pelo que permaneceu em dívida o valor de €117.316,06;
- a AS… e mulher MS… €5.907,84, pelo que permaneceu em dívida o valor de €117.316,06;
- a JS… e mulher AC… €5.907,93, pelo que permaneceu em dívida o valor de €117.315,97;
- a RB… e marido AB… €5.907,84, pelo que permaneceu em dívida o valor de €117.316,06;
- a BA… e marido AA… €5.907,84, pelo que permaneceu em dívida o valor de €117.316,06;
- a AFM… €112,70, pelo que permaneceu em dívida o valor de €2.237,10;
- a JFM… €112,70, pelo que permaneceu em dívida o valor de €2.237,10 – admitido por acordo – artigo 10.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição.
9. Para garantia do cumprimento da dívida, o C…, Lda., constituiu a favor dos Requerentes hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, composto de terreno para construção com 1.540 m2, sito na …, concelho de …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº … e inscrito na matriz sob o art.º …– escritura pública, junta como doc. 2 da petição inicial e certidão predial junta como doc. 3, que se dão por integralmente reproduzidas.
10. Sobre o imóvel incidem duas outras hipotecas a favor do Banco BPI, para garantia de empréstimos no valor de 500.000,00€ e 250.000,00€, respectivamente registadas pelas inscrições C-um e C-dois, mediante Ap. 11 de 2004/09/21 e Ap. 8 de 2005/07/26. certidão predial junta como doc. 3, que se dá por integralmente reproduzida.
11. A Requerente e os outros credores, supra identificados, instauraram execução, que corre termos no Juízo de Execução de Sintra (Juiz 3), processo nº …, a peticionarem o pagamento da quantia total de €1.576.375,07, Capital de €1.494.563,10 e Juros de €81.811,97 – cfr. certidão do processo executivo junta como doc. 5.
12. A dívida exequenda foi objecto de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que confirmou o prosseguimento da execução e a improcedência da oposição – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.05.2018, que se dá por reproduzido - cfr. certidão do processo executivo junta como doc. 5.
13. O Banco BPI, SA., reclamou créditos nos autos de execução pelo montante de €592.294,49, que foi graduado à frente do crédito da Requerente, atenta a ordem da prioridade do registo – cfr. certidão do processo executivo junta como doc. 5.
14. A sociedade comercial “S…, Lda.” veio reclamar, na referida execução, créditos no valor de €5.719,557.69, arrogando-se da qualidade de locatária do estabelecimento comercial que opera no imóvel penhorado, estando o apenso da reclamação de créditos pendente do resultado da acção declarativa interposta por aquela Proc. nº …, que corre termos nos Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Cível de …, Juiz …, que se encontra ainda pendente, sem decisão final em 1ª instância – admitido por acordo – artigo 22.º e 34.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc. 7 junto com a petição inicial e doc. 3 da oposição.
15. Requerida perícia ao imóvel penhorado, a 15.05.2018, foi o mesmo avaliado em €1.471.100,00 (um milhão, quatrocentos e setenta e um mil e cem euros) – admitido por acordo – artigo 27.º, da petição inicial e artigo 109.º (a requerida não põe em causa a perícia realizada no processo executivo), da oposição e doc. 5 junto com a petição inicial.
16. A 22.11.2020 nos autos de execução foi proferido o seguinte despacho:
«Compulsados os autos, verifica-se que a decisão do Sr. Agente de Execução, ora reclamada, na parte que atribuiu ao imóvel o valor base de €1.471.100,00, funda-se em relatório de avaliação que o mesmo solicitou ao abrigo do artigo 812.º, n.º 5, do CPC, efectuado em 15/06/2018.
Aliás, por não ter sido o referido relatório pericial notificado à ora executada foi anulada anterior decisão do Sr. AE proferida nos termos do citado artigo 812.º do CPC e ordenada a sua notificação àquela para o efeito de deduzir reclamação, o que esta veio a fazer por requerimento de 17/09/2019, que veio a ser indeferido.
Por outro lado, há uma expressiva discrepância dos valores-base que cada uma das partes pretender ver atribuído ao imóvel, que oscilam entre os €930.500,00 e os €2.630.500,00, sendo que um e outro têm a justificá-los relatórios de avaliação apresentados pelo credor reclamante e pela executada, respectivamente.
Neste enquadramento, afigura-se que o aludido relatório de 15/06/2018, que baseou a decisão reclamada, é o que oferece maiores garantias de isenção, pois que não foi pedido por qualquer das partes, mas pelo próprio Sr. Agente de Execução, no exercício de um poder legal que a lei lhe confere.
Acresce que, como sublinhado pelo credor reclamante na resposta apresentada à reclamação, o relatório de avaliação junto pela executada reclamante parece subvalorizar factores que não podem deixar de se repercutir negativamente no valor de mercado do imóvel penhorado nos autos, como a ausência de licença de utilização e o facto de o edifício nele implantado não ter acesso directo para a rua principal.
Assim sendo, deve manter-se como valor base do imóvel o que consta da decisão do Sr. AE (€1.471.100,00).»
17. Interposto recurso do despacho de 20.02.2023, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 06.07.2023, a confirmar a decisão:
«I- As diligências de pagamento são da competência do agente de execução como decorre do disposto no art.º 719/1, ao juiz de execução cabe em regra uma competência estrictamente decisória não executiva, entre elas se salientando o conhecimento da reclamação sobre o valor dos bens como do art.º 812/7 resulta.
II- Tendo ocorrido reclamação anterior da fixação do valor base para venda do imóvel penhorado nos autos de execução, na altura existindo dois valores possíveis para esse valor, que foi indeferida no sentido de se manter o valor base de €1.471.100, por decisão transitada em 22/11/2020, a alteração de uma ou mais das variáveis de avaliação não justifica a realização de avaliações sucessivas do imóvel, protelando a concretização da venda, designadamente por requerimento de nova avaliação do imóvel formulado pelo exequente junto do juiz de execução, nesse sentido.»
18. A sociedade comercial “I…, Unipessoal, Lda.”, Credora Habilitada (adquiriu o crédito do primitivo credor BPI S.A.) veio requerer a adjudicação do imóvel pelo preço de €1.300.000,00 (um milhão e trezentos mil euros) – admitido por acordo – artigo 28.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc.5 junto com a petição inicial.
19. Por ofício de 25.05.2023 o credor adjudicante, foi notificado para efectuar o pagamento do preço em falta, do valor da adjudicação – €1.300.000,00.
20. O crédito do BPI S.A., cedido a “I…, Unipessoal Lda.”, foi graduado à frente do crédito dos Exequentes, totalizava, a 27-01-2023, o valor de €730.561,68 - admitido por acordo – artigo 31.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc. 5 junto com a petição inicial.
21. A Requerida celebrou um contrato de locação de estabelecimento comercial, pelo período de 20 anos, renovável por igual período, pela renda mensal de €1.000,00, com a sociedade comercial “S…, Lda.”, a 15.02.2013, outorgado pela gerente da requerida, que intervém também, na qualidade de gerente da locatária – admitido, em parte, por acordo – artigo 33.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e Escritura junta como doc. 8 junto com a petição inicial.
22. As sociedades “C…, Lda.” e “S…, Lda.” partilham os mesmos sócios: E… e C… A… – admitido por acordo – artigo 35.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc. 9 e 10 juntos com a petição inicial.
23. O actual gerente de “S…, Lda.” é ACR…, filho de E… – admitido por acordo – artigo 36º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc. 11 e 12 juntos com a petição inicial.
24. A sociedade comercial “I…, Unipessoal Lda.” (a Credora Habilitada e proponente para a adjudicação do imóvel), constituída em Outubro de 2022 (um mês antes da cessão de créditos que celebrou com o credor hipotecário) tem como sócio gerente GN…, filho de AGN… – admitido por acordo – artigo 40.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc. 14 e 15 juntos com a petição inicial.
25. O estabelecimento comercial de … continua a ser explorado, pela sociedade “S… Lda.”, locatária do espaço (por uma renda de €1.000,00 (mil euros) mensais) – admitido em parte por acordo – artigo 51.º, da petição inicial e artigo 109.º, da oposição e doc. 8 junto com a petição inicial, no artigo 9.º do requerimento de reclamação de créditos apresentado pela S…, Lda., da certidão junta como doc. 8 da petição inicial consta o contrato de locação de estabelecimento comercial, celebrado a 15.02.2013.
26. Das pesquisas realizadas na execução pendente não resultaram outros bens que pudessem garantir o ressarcimento do crédito da Requerente - doc. 5 junto com a petição inicial.
27. No relatório elaborado pelo Eng.º JFA…, em Setembro de 2023, o edificado correspondente ao prédio urbano sito na Rua …, da freguesia e concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … é atribuído o valor comercial de €3.278.500,00 – cfr. doc. 4 junto com a oposição.
28. A requerida apresentou, a 15.12.2023, o seguinte balanço:


29. E, na mesma data a demonstração de resultados que segue:


30. O processo de execução n.º …, do Juízo de Execução da Comarca … – Juiz … encontra-se suspenso, por despacho de 09.01.2024, ao abrigo do disposto no artigo 793.º, do Código de Processo Civil, no que concerne aos pagamentos.
31. E, a 01.03.2024 foi proferido o seguinte despacho: «Sendo a adjudicação uma forma de pagamento e não tendo aquela sido concluída pelo depósito, pela Credora Reclamante, do remanescente do preço em data anterior à prolação do despacho de 09.01.2024, essa adjudicação mostra-se abrangida pela suspensão determinada por aquele despacho e, por conseguinte, por ora não poderá ser outorgada a respectiva escritura.»
*
F) Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios: «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Citando o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, «Estabelecendo o paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as alegações destituídas em absoluto de conclusões são “ineptas”, determinando a rejeição de recurso (art.º 641º, nº 2, al. b), sem que se justifique a prolação de qualquer despacho de convite à sua apresentação.(…) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.(…)» – cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 122 e 132.
Como consequência, segundo o mesmo autor, impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam alguns dos elementos referidos - Ob. cit, pág. 135.
Existe divergência jurisprudencial no que concerne a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº 2 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil). O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se nos seguintes termos: No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Cons. Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.»
No Acórdão de 11.4.2016, relatora Cons. Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, deverão nelas ser identificados com precisão os pontos de factos que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Cons. Clara Sottomayor, 1060/07.
O AUJ n.º 12/2023, relatora Cons. Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, disponível também em www.dgsi.pt, pronunciou-se expressamente no sentido que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Assim, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. art.º 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr a este respeito Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV vol., Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg. e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 660 e seg.).
In casu, a apelante cumpriu os ónus estabelecidos na lei para efeitos de impugnação da decisão de facto, sendo certo que, como se referiu, o tribunal a quo, após os articulados e face aos elementos que já constavam dos autos, entendeu desnecessária a produção de qualquer outra prova, tendo passado desde logo a proferir sentença.
Sustenta a mesma que, atendendo aos elementos probatórios que invoca, deve ser aditado à matéria de facto assente o seguinte: O bem imóvel descrito no facto provado nº 9 tem o valor de, pelo menos, €3.278.500,00.
No que a tal concerne, a Mmª Juíza a quo considerou provado sob o ponto 27. o seguinte: “No relatório elaborado pelo Eng.º JFA…, em setembro de 2023, o edificado correspondente ao prédio urbano sito na Rua … da freguesia e concelho de … , inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … é atribuído o valor comercial de €3.278.500,00 – cf doc. nº 4 junto com a oposição”.
No que se refere à prova pericial diz-nos o artigo 388º do Código Civil que a mesma tem por finalidade “a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”. E o artigo seguinte refere que o valor da prova pericial está também sujeito à livre apreciação do juiz.
Tal meio probatório enquanto tal está sujeito na respectiva produção a um determinado número de regras de direito probatório formal, previstas nos artigos 467º e ss do Código de Processo Civil.
Nos presentes autos não teve lugar à produção de prova pericial, não tendo, desde logo, tido lugar a nomeação de peritos nos termos e para os efeitos previstos na lei processual civil. O documento a que se faz alusão no ponto 27. dos factos provados e que ora a apelante também refere trata-se de um “relatório de avaliação” elaborado por um engenheiro e no qual é atribuído ao imóvel o valor de €3.278.500,00. Não sendo o mesmo um relatório pericial nos termos do artigo 484º do C.P.Civil, não pode deixar de ser entendido como um parecer técnico respeitante a questões de facto e destinado a elucidar o tribunal sobre o significado e alcance de factos de natureza técnica cuja interpretação demanda conhecimentos especiais. Se as opiniões dos técnicos forem expressas em diligência judicial valem como meio de prova, se forem expressas por via extra judicial valem como pareceres e valendo apenas como pareceres representam apenas e tão só uma opinião sobre determinada questão, no caso sobre uma questão de facto. In casu, não pode deixar de ser considerado que nos autos de execução nº …, nos quais foi peticionado contra a executada, ali embargante, o pagamento da quantia de €1.576.375,07, o imóvel foi avaliado, mediante perícia realizada nos autos, em €1.471.100,00 e a credora habilitada I…, Unipessoal, Lda, requereu a adjudicação do imóvel em causa pelo preço de €1.300.000,00, ao que a ali executada, ora recorrente, não se opôs. Por essa razão, por notificação elaborada em 25.05.2023, o credor adjudicante foi notificado para efectuar o pagamento do preço em falta, do valor da adjudicação - €1.300.000,00.
Sendo o valor do imóvel mais do dobro, como se entenderia que a executada aceitasse a adjudicação pelo referido montante?
Deste modo e independentemente da questão respeitante ao relevo que a factualidade em apreço poderá assumir para efeitos da decisão, a qual, oportunamente e caso não fique prejudicada pela solução que for dada às outras questões suscitadas, será apreciada, em nosso entender, os elementos constantes dos autos não permitem a prova dos factos nos termos requeridos pela apelante, razão pela qual não podem os mesmos ser aditados aos factos provados.
Invocou ainda a mesma que, atentas as razões e fundamentos invocados nos nºs 125 a 133 das alegações, bem como o teor do documento identificado no nº 132, deverá o facto considerado provado sob o ponto 22- dos Factos Provados ser expurgado da matéria assente, uma vez que, contrariamente ao que ali ficou plasmado, os sócios da requerida – E… e C… A… - não são os actuais sócios da sociedade S…, Lda.
Consta ali como provado que: «As sociedades “C…, Lda.” e “S…, Lda.” partilham os mesmos sócios: E… e C… A…». Diz a Mmª Juíza a quo a factualidade em causa resultou demonstrada por acordo das partes e ainda por força do teor dos documentos nºs 9 e 10 juntos com a petição inicial.
No artigo 35º da petição inicial foi alegado o seguinte:
«As sociedades “C…, Lda” e “S…, Lda” partilham os mesmos sócios fundadores: E… e C… A… – conforme Documentos n.º 9 e 10, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.», factualidade que a requerida declarou aceitar no artigo 109º da contestação.
 Dos documentos em causa – certidões da Conservatória do Registo Comercial relativas à sociedade S…, Lda - apenas resulta que, aquando da sua constituição, a sociedade tinha como sócios E… e C… A…
Assim e considerando o teor das aludidas certidões, decide-se que a redacção do ponto 22- dos Factos Provados passará a ser a seguinte:
22- Aquando da sua constituição, em 18/01/2012, a sociedade S…, Lda, tinha como sócios E… e C… A…
No mais, como se disse supra, improcede a impugnação da matéria de facto.
*
G) Da verificação dos pressupostos para declaração da insolvência
Concluiu o tribunal recorrido que se verificam os pressupostos estabelecidos na lei para que haja lugar à declaração de insolvência da requerida, conforme peticionado pela requerente, o que foi decretado, decisão contra a qual aquela se insurge.
Estabelece o art.º 3º do CIRE:
“1- É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2- As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.
O que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas que surgem na actividade do devedor por falta de liquidez e/ou de crédito para cumprimento pontual do passivo vencido, impossibilidade essa que é apreciada objectivamente, independentemente da causa ou do conjunto das causas que determinaram essa situação. A lei consagrou assim o critério do fluxo de caixa para avaliação da incapacidade/impossibilidade de cumprimento com que define a insolvência: em insolvência estão as entidades com fundo de maneio negativo e tesouraria negativa, mesmo que possuam activos valiosos mas não geradores de fluxos de caixa para honrar as suas obrigações contraídas.
Como refere Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2009, p. 77: “De acordo com o critério do fluxo de caixa, o devedor é insolvente logo que se torne incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que estas se vencem. Para esse critério, o facto de o seu activo ser superior ao passivo é irrelevante, já que a insolvência ocorre logo que se verifica a impossibilidade de pagar as dívidas que surgem regularmente na sua actividade.”
Ainda que no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o legislador tenha omitido a referência à pontualidade como característica essencial do cumprimento das obrigações vencidas, é evidente que só através da realização atempada das obrigações assumidas se satisfaz integralmente o interesse do credor e se pode considerar cumprida a obrigação a que o devedor se encontrar adstrito.
A lei não exige que o montante em dívida ou as circunstâncias do incumprimento revelem a impossibilidade definitiva e em absoluto de o devedor satisfazer a totalidade da suas obrigações, mas tão só que os factos indiciadores revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer tais obrigações pontualmente, bastando assim uma situação de mora/atraso no cumprimento desde que, pelo seu montante, no conjunto do passivo vencido do devedor e/ou de outras circunstâncias, tal evidencie a impossibilidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Por outro lado, e como sustenta Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, pág. 58: “Insolvência no sentido acima referido (impossibilidade de cumprir) não coincide necessariamente com – e por isso não significa – uma situação patrimonial líquida negativa (superioridade do passivo face ao activo).
Com efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado.”
Um credor, relativamente a devedor que considere em situação de insolvência, pode requerer em tribunal que o mesmo seja declarado insolvente desde que se verifique algum dos factos indícios de insolvência previstos pelo art.º 20º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Dispõe o aludido artigo 20º, nº 1:
“1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;
ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.”
É ao credor que requeira a declaração de insolvência do devedor que incumbe alegar e provar algum ou alguns dos factos-índice enumerados no nº 1 do art.º 20º, cuja verificação faz presumir a situação de insolvência – cfr neste sentido, entre outros Ac. da Relação de Guimarães, de 02-05-2015, relator: José Cravo e ainda Acs das Relações do Porto de 03-11-2005 (Proc. 0534960); de 26-10-2006 (Proc. 0634582) e de 17-07-2009 (Proc. 6107/08.9TBVFR.P1); de Lisboa de 23/02/2006 (Proc. 238/2006-8) e de 10-12-2009 (Proc. 430/08.0TYLSB-A.L1-2); e de Coimbra de 26-10-2010 (Proc. 237/10.4TBFND-B.C1) e de 8-11-2016 (Proc. 2153/16.7T8VIS.C1), estes citados pelo primeiro, todos em www.dgsi.pt.
Como se diz no primeiro dos referidos Acórdãos:
“(…) provado(s) o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência só não será declarada se o requerido ilidir a presunção dele(s) decorrente, demonstrando que, apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, isto é, provando a sua solvência.
Não se provando o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência não poderá ser declarada, nada precisando o requerido de provar.”
No mesmo sentido pode também ver-se o Acórdão da Rel. do Porto de 09-03-2020, relator: Miguel Baldais de Morais, onde se diz:
“(…) a jurisprudência e a doutrina pátrias mantêm uma posição unívoca sustentando que essa impossibilidade de incumprimento não tem obrigatoriamente que abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, estando sim em causa a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, de uma forma objectiva, comprovem ou revelem a incapacidade do devedor de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, ou seja, a situação de insolvência alude à esfera patrimonial do devedor e consiste na incapacidade do seu património para cumprir a generalidade das obrigações já vencidas.
Verificada que seja uma situação que evidencie essa incapacidade, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência (cfr. art.º 18º do CIRE), a qual pode outrossim ser requerida por qualquer dos legitimados referidos no art.º 20º do mesmo diploma legal, entre os quais se contam, no que ao caso interessa, os credores daquele.
Para tanto, em consonância com o regime vertido no último normativo citado, terão que produzir prova relativamente à sua condição de interessados na declaração de insolvência é à verificação de algum dos factos elencados no seu nº 1, os quais constituem meros índices da situação de insolvência, tal como definida no art.º 3º, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações[5].
O estabelecimento de tais factos presuntivos da insolvência tem, pois, por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, fazer a demonstração efectiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência. Significa isto – como, aliás, deflui dos arts. 30º, nº 5 e 35º, nº 4 do CIRE -, que a verificação de qualquer um desses factos-índices é condição suficiente da declaração de insolvência, se a presunção (juris tantum) de insolvência que traduzem não vier a ser ilidida.
Caberá, portanto, ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir, assim ilidindo a presunção emergente do facto-índice, solução que, de resto, está consagrada no nº 3 do art.º 30º do CIRE.
Deste modo, segundo o quadro normativo da repartição do ónus probatório, incumbe ao credor requerente alegar e provar que detém um crédito sobre o devedor e ainda qualquer um dos factos-índice ou presuntivos da insolvência previstos no nº 1 do art.º 20º do CIRE, nos termos preceituados no nº 1 do art.º 23º do mesmo diploma legal e no nº 1 do art.º 342º do Cód. Civil. Por sua vez, recairá sobre o devedor o ónus de ilidir tal presunção, mediante prova da inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou de inexistência da situação de insolvência, ou seja, neste último caso, provando que possui bens ou créditos para solver as suas obrigações, como postula o nº 4 do art.º 30º do CIRE.”
Concluiu-se na sentença recorrida pelo preenchimento da previsão da alínea b) do referido art.º 20º, nº1, do CIRE. 
Neste caso, para que se conclua pela situação de insolvência a lei não exige uma cessação generalizada de pagamentos, podendo resultar apenas de algumas faltas de pagamento ou mesmo de uma só, desde que feitas em circunstâncias ou acompanhadas de actos de onde se possa inferir a impossibilidade de incumprimento das obrigações vencidas – vd Menezes Leitão, ob. cit., pág. 131.
Verifica-se que, mediante Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, celebrada em 1 de Fevereiro de 2008, na sequência da transmissão de direitos e valores relacionados com as cessões de participações sociais na sociedade, a devedora e os respectivos sócios, E… e C… A…, confessaram-se solidariamente devedores das quantias referidas na mesma escritura. Relativamente à requerente confessaram-se devedores de €157.373,45.
Para garantia do cumprimento da dívida, a requerida constituiu a favor da requerente e dos demais hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, composto de terreno para construção com 1.540 m2, sito …, freguesia de …, concelho de …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … e inscrito na matriz sob o art.º …
Sobre o imóvel incidem duas outras hipotecas a favor do Banco BPI, para garantia de empréstimos no valor de 500.000,00€ e 250.000,00€, respectivamente registadas pelas inscrições C-um e C-dois, mediante Ap. 11 de 2004/09/21 e Ap. 8 de 2005/07/26.
Com vista ao pagamento das quantias respectivas, foi instaurada pela requerente e pelos demais execução contra a requerida, execução na qual foi penhorado o identificado imóvel.
O Banco BPI, SA., reclamou créditos nos autos de execução pelo montante de €592.294,49, que foi graduado à frente do crédito da Requerente, atenta a ordem da prioridade do registo e a sociedade comercial “S…, Lda.” veio reclamar, na referida execução, créditos no valor de €5.719,557.69, arrogando-se locatária do estabelecimento comercial que opera no imóvel penhorado, estando o apenso da reclamação de créditos pendente do resultado da acção declarativa interposta por aquela Proc. nº …, que corre termos nos Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Cível de …, Juiz …, que se encontra ainda pendente, sem decisão final em 1ª instância.
A 15.05.2018 foi o imóvel avaliado em €1.471.100,00 (um milhão, quatrocentos e setenta e um mil e cem euros) e a sociedade comercial “I…, Unipessoal, Lda.”, Credora Habilitada, que adquiriu o crédito do primitivo credor BPI, S.A., veio requerer a adjudicação do imóvel pelo preço de €1.300.000,00 (um milhão e trezentos mil euros) e por notificação elaborada em 25.05.2023 a credora adjudicante foi notificada para efectuar o pagamento do preço em falta, do valor €1.300.000,00, pagamento esse que não chegou a ter lugar, tendo a execução sido suspensa.
A Requerida tem para com a Requerente dívidas decorrentes da falta de cumprimento de pagamento de obrigação vencida há mais de 15 anos
A Requerida citada deduziu oposição, não aceitando a situação de insolvência, sustentando que tem um activo superior ao passivo, argumentando ter, à data de 15.12.2023, um activo no valor de €3.278.500,00, conforme balanço que juntou.
Nesse balanço que consta dos factos provados, a requerida inscreveu na rubrica activos fixos tangíveis o valor de €3.278.500,00, na rubrica Estado de outros entes públicos €143,29 e outros activos €60.254,92, sendo o valor total do activo de €3.338.898,21.
O valor dos activos fixos tangíveis corresponde ao valor que a requerida diz ser o do imóvel, valor esse que não ficou provado.
Mas mais relevante e independentemente desse valor: do invocado pela devedora resulta que só através da liquidação do seu património tem possibilidade de liquidar o seu passivo. O processo de insolvência é precisamente o processo de liquidação universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, de acordo com as preferências legais de pagamento de que cada um deles beneficia (cfr. art.º 1º do CIRE).
Refere Catarina Serra (na obra “Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018” na pág. 58,): “(…) A insolvência no sentido acima referido (impossibilidade de cumprir) não coincide necessariamente com – e por isso não significa – uma situação patrimonial líquida negativa (superioridade do passivo face ao ativo). Com efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado”.
E não se diga que a insolvência não permitirá qualquer outro objectivo que não possa ser alcançado com a acção executiva, sendo os procedimentos e as consequências decorrentes da declaração de insolvência muito diversas dos da execução singular – nesta procura-se a liquidação de bens concretos do património da devedora com vista a satisfazer de um crédito específico, sendo ainda citados para reclamarem os seus créditos os credores que sejam titulares de direito real de garantia, enquanto no processo de insolvência todo o património do devedor fica à disposição da generalidade dos credores – o chamamento de todos os credores opera com a sentença. Através do processo de insolvência, os credores têm a possibilidade de fiscalizar a actividade de liquidação, o destino do produto com ela obtido e os termos em que o mesmo é distribuído.
No caso, do incumprimento do crédito da requerente, associado à confessada ausência de liquidez, resulta a real e comprovada situação de insolvência.
Conclui-se, assim, pelo preenchimento do facto-índice previsto na alínea b) supra mencionada.
Verificado que se encontra o aludido facto-índice e não tendo a requerida demonstrado ter liquidez que lhe permita satisfazer as suas obrigações, deve a sentença ser mantida.
*
IV – Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes deste coletivo em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 01/10/2024                                                                                 Manuela Espadaneira Lopes
Amélia Sofia Rebelo
Nuno Teixeira  
_______________________________________________________
[1] É consensual que a competência é aferida por referência à pretensão formulada pelo autor e respetivos fundamentos, ou seja, pela relação jurídica controvertida tal como surge configurada na petição inicial, sendo irrelevante para o efeito o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão.
[2] Vd. acórdãos da Relação de Guimarães de 02.11.2017, 19.06.2019 e 18.06.2020, procs. nº 440/17.6T8PTL-A.G1, 1607/19.8T8VRL.G1 e 80/18.2T8TMC.G1, da Relação do Porto de 10.07.2019, proc. nº 4800/18.7T8OAZ-A.P1, da Relação de Lisboa de 12.01.2016, proc. nº 2314/15.6T8VFX.L1-7, da Relação de Coimbra de 29.02.2012, proc. 689/11.5TBLSA.C1, todos disponíveis na pagina da dgsi.
[3] Apreciação que tem o seu lugar próprio na fase da reclamação e verificação de créditos, onde, a par com os demais credores e no exercício do contraditório entre todos, fica sujeito ao escrutínio do administrador da insolvência e às impugnações que o devedor e os credores entendam deduzir.
[4] Nesse sentido, entre outros, Catarina Serra, O Novo Regime Português do Direito da Insolvência, Uma introdução, 4ª ed., p. 104, nota 169.
[5] Afirmação que resulta demonstrada pelo disposto no art.º 30º, nº 5 do CIRE, nos termos do qual “Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, e a insolvência é declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo referido no n.º 1, se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do n.º 1 do artigo 20.(subl. nosso), e pelo art.º 35º, nº 4, que dispõe em termos semelhantes.
[6] Ob. cit., p. 67.
[7] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, p. 56.
[8] Vd. Catarina Serra, ob. cit., p. 56.
[9] Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, p. 51 e nota 13.
[10] Ou para evitar que o devedor conteste o crédito para o tornar litigioso e invoque questões suscetíveis de densificar a sua apreciação com o propósito de obstar à apreciação do pedido de insolvência...
[11] Desde logo porque, conforme se referiu, nesta fase do processo não cabe decidir pela verificação ou não verificação do crédito, apenas da verificação ou não da situação de insolvência. Conforme acórdão do STJ de 8/9/2021, “IV. A sentença de improcedência da insolvência, cuja fundamentação não tiver reconhecido o crédito invocado na petição inicial desse processo, não tem força de caso julgado material em relação a este crédito não reconhecido, para vincular a apreciação de mérito de uma acção posterior destinada directamente a reconhecer ou cobrar esse crédito”. (proc. nº 737/17.5T8VNF-A.G1.S1, disponível na página da dgsi).