HOMICÍDIO
TENTATIVA
MORTE DA VÍTIMA
INDEMNIZAÇÃO
PERDA VIDA
Sumário

I. Tendo o arguido atuado com intenção de causar a morte da ofendida (atentos o modo de atuação; a circunstância de já estar munido do objeto da agressão quando foi ao encontro da vítima; a natureza do objeto de agressão empregado; e a zona do corpo da vítima que foi atingida), não tendo a morte ocorrido porque a vítima conseguiu fechar o vidro da viatura e fugir dali, o crime que decidiu cometer foi de homicídio qualificado na forma tentada (artigo 131.º e 132.º, § 2.º, al. b) CP); e não de ofensa à integridade física (artigo 143.º CP).
II. Advindo a especial censurabilidade da conduta do facto de a atuação ilícita ter sido dirigida contra a sua ex-namorada, sequente à rotura da relação de namoro, comportando-se o arguido como se fora dono e pudesse dispor da vontade do outro.
III. Emergindo posteriormente a morte da vítima, tendo constitui a atuação do arguido causa (uma das causas) necessárias à verificação do dano (perda da vida da vítima), ficou aquele constituído na obrigação de indemnizar os herdeiros da mesma.
IV. No respeitante aos danos não patrimoniais tem de atender-se à equidade. Para esta concorrendo vários fatores (violência da evento danoso; existência e intensidade das dores causadas; o tempo em que as mesmas se fizeram sentir; o grau de tristeza gerado e o tempo decorrido; bem assim como todas as demais circunstâncias atinentes à pessoa concreta e à sua vida – como a idade e a relação com a demandante [sua mãe], etc. – sem nenhuma contribuição da vítima para a verificação dos danos ou para a dimensão destes).
IV. Julgar segundo a equidade significa dar a um conflito a solução que parece mais justa, atendendo apenas às circunstâncias e características de situação e sem recurso necessário à lei que seria eventualmente aplicável.

Texto Integral

I – Relatório
a) No …º Juízo (1) Central Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum e competência do tribunal coletivo de AA, nascido a … de … de 2001, com os demais sinais dos autos, a quem se imputou a prática, como autor, de: um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto no artigo 132.º, § 1.º e 2.º, al. b) e artigo 22.º do Código Penal (CP).

BB constituiu-se assistente nos autos e, juntamente com CC deduziram contra o arguido/demandado um pedido de indemnização civil, reclamando a condenação deste no pagamento de 50 000€, a título de danos não patrimoniais causados na falecida; e no pagamento de 5 000€ a cada um deles por danos não patrimoniais por si sofridos, acrescidos de juros moratórios.

Ainda na fase preliminar de preparação do julgamento, foi indeferido o pedido civil formulado por CC, por ilegitimidade processual, na medida em que não está legalmente demonstrada a qualidade de progenitor da falecida (despacho de 26fev2024).

O arguido contestou oferecendo o merecimento dos autos.

A final o Tribunal proferiu acórdão, pelo qual condenou o arguido, pela autoria de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto no artigo 132.º, § 1.º e 2.º, al. b) e artigo 22.º, na pena de 8 anos e 6 meses de prisão; mais o condenando a pagar à demandante BB a quantia de 5 000€, a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima, acrescida de juros contados da data do acórdão; e à Unidade Local de Saúde do … a quantia de 90,91€ acrescida de juros contados da data da notificação do respetivo pedido de indemnização, indeferindo-se os demais pedidos de indemnização civil.

b) Inconformado com esta decisão, dela recorre o arguido/demandado, rematando a motivação do seu recurso com as seguintes conclusões (transcrição):

«(…)

3- O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e a matéria direito do douto Acórdão proferido nos presentes autos.

4- Foi dado como provado pelo Tribunal a quo no ponto 1 dos factos provados que, o Arguido manteve um relacionamento de namoro com a Ofendida DD durante cerca de um ano, relação essa que começou em Maio de 2022 e terminou por volta da segunda semana de Junho de 2023.

5- Todavia, a existir uma relação entre arguido e ofendida, nenhuma das testemunhas concretizou em que data se iniciou a alegada relação e quando a mesma terminou.

6- Aliás, a ofendida residia com os pais, testemunhas nos presentes autos que referiram que nem sabiam que a filha/ofendida namorava com o arguido, ora recorrente. E, nem se aperceberam que a mesma namorava com o arguido durante um ano.

7- Este facto não pode ser dado como provado, pois, a existir uma relação entre ambos, não foi possível concretizar quando a mesma se iniciou e quando a mesma terminou.

8- Aliás, atenta a declaração dos progenitores da ofendida não se consegue concretizar se a ofendida e arguido eram, efectivamente, namorados ou amigos.

9- A mãe da ofendida, assistente nos presentes autos, referiu que “a minha filha nunca apresentou como namorado”. Salientando, diversas vezes, que desconhecia que o arguido era namorado da ofendida.

10- O que se estranha e suscita dúvidas se, efectivamente, ambos eram namorados.

11- Pois, assistente e ofendida residem na mesma residência e a assistente, durante um ano, salienta-se, durante um ano, não se apercebe que a sua filha tem uma relação amorosa com o arguido ou com outro individuo.

12- E, se eram efectivamente namorados, o arguido não prestou declarações e não foram lidas as declarações da ofendida, pelo que não há prova credível e sólida que permita concluir o início e fim desta alegada relação amorosa, pois a haver relação, a mesma até era anónima perante os familiares mais próximos e as restantes testemunhas, não conseguiram concretizar um início e um fim para a mesma. Pelo que se entende, que não foi realizada prova desse facto.

13- O ora Recorrente não se pode conformar com o douto Acórdão, uma vez que o Tribunal Aquo valorou o depoimento indirecto das testemunhas arroladas e ouvidas em Julgamento, pois nenhuma destas testemunhas presenciou o facto objecto do presente processo.

14- A ofendida prestou declarações em sede de inquérito duas vezes, todavia, as declarações da mesma não foram lidas em sede de discussão e julgamento.

15- E, a ter ocorrido os factos em causa, o certo é que ninguém os presenciou, nenhuma das testemunhas teve conhecimento directo dos factos dados como provados.

16- As testemunhas arroladas e ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento não têm qualquer conhecimento directo dos factos em causa e narraram no douto Tribunal o que lhes foi narrado por terceiros.

17- Os factos dados como provados nos pontos 2 ao 20, decorrem somente de depoimento indirecto, motivo pelo qual, entende o ora Recorrente que tais depoimentos não podem ser valorados e, consequentemente, não devem ser dados como provados os pontos 2 ao 20.

18- No ponto 4, o Tribunal a quo dá como provado que no dia 15 de Junho de 2023, cerca das 08h35m.

19- Ora, se ninguém presenciou os factos, não se compreende como é que o douto Tribunal a quo consegue alcançar e dar como provado e com exatidão da hora e minutos que, alegadamente, o arguido se deslocou a casa da ofendida.

20- E, também não pode dar como provado que o arguido se dirigiu a casa da ofendida munido de um objecto não concretamente apurado mas de natureza corto-perfurante.

21- O arguido a ter na sua posse tal objecto, não se prova se já o tinha anteriormente e que a munido com um o objecto.

22- Ninguém o viu com qualquer objecto.

23- Pelo que, se suscita dúvidas se, efectivamente, o arguido se deslocou a casa da ofendida munido de um objecto.

24- Dos pontos 8 a 10 dá-se como provados expressões proferidas pelo Arguido, expressões essas que não foram ouvidas por uma qualquer testemunha, pelo que se coloca em dúvida se tais expressões foram efectivamente proferidas nos termos que o Tribunal a quo considerou como provado.

25- Entende o ora Recorrente que tais pontos não podem ser dados como provados, não há qualquer prova que os sustente.

26- Em suma, quanto aos pontos 2 a 20, dado que os mesmos emergem de depoimentos indirectos, os mesmos não podem ser valorados e dados como provados, pelo contrário deveriam ter sido dados como não provados.

27- Assim, não restam dúvidas, que a prova produzida é manifestamente insuficiente para a sustentabilidade da condenação do arguido, ora recorrente.

28- Pelo que, e salvo melhor opinião, somos do entendimento que o Acórdão em crise padece do vício provado no artigo 410. n.º 2, alínea a) do CPP, ou seja, a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito.

29- No que toca aos pontos 21 a 27, referentes ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente e mãe da ofendida, ouvidas as testemunhas, entende o Recorrente que, não ficou provado que a mesma não retomou ao trabalho por medo do arguido, mas sim porque após o dia 15 de junho de 2023, após a mesma se ter deslocado ao Hospital de … e ter tido alta nesse mesmo dia, a mesma teve alta hospitalar e teve de baixa médica, daí não ter retomado ao trabalho.

30- No ponto 22, o Tribunal a quo considerou provado que o período de tempo que mediou entre os sobreditos ferimentos, duas feridas incisas causadas no pescoço da DD até ao seu falecimento, sofreu esta muitas dores, ficou abalada física e psicologicamente, recebeu vários tratamentos hospitalares, foi transferida por vários hospitais, foi helitransportada, com internamentos. Todavia, no que toca a este ponto não pode ser assacada qualquer responsabilidade ao arguido, tudo o que sucedeu à ofendida, posteriormente, à saída do CH… de …, no dia 15.06.2023, não é da responsabilidade do arguido.

31- Aliás, decorre da prova documental junta aos autos que a ofendida entrou e saiu no próprio dia (16.06), pelo seu próprio pé do CH… ….

32- O Tribunal a quo refere neste ponto vários tratamento hospitalares que a mesma recebeu, todavia, não se especifica que tipo de tratamentos são esses e de que derivam.

33- O certo é que, a ofendida desde o dia dos factos (15.06.2023), até à ida a um hospital, medeiam 7 (sete) dias.

34- Pelo que, considera o ora Recorrente que houve uma interrupção do nexo causal, pelo que não pode ser assacada qualquer responsabilidade ao arguido do sucedeu posteriormente à saída da ofendida do CH… de … (15.06.2023).

35- E, com todo o devido respeito que é muito, se estranha, o facto de a ofendida padecer de muitas dores, febre, etc, e não ter se deslocado mais cedo a uma unidade hospitalar,

36- Mas, somente, passados 7 (sete) dias.

37- Aliás, conforme decorre do documento junto aos autos a fls. fls. 89 a 90, se esta infeção tivesse sido detetada mais cedo e tivesse tido o tratamento médico adequado, a vítima poderia ter sobrevivido.

38- E, quando se desloca ao hospital em 22.06.2023 não o faz em sequência dos ferimentos causados, alegadamente, pelo Arguido no dia 15.06.2023, mas em consequência de um abcesso cervicomediastínico pós-traumático, complicado de sépsis, surgido como complicação das lesões traumáticas no pescoço.

39- Decorre do ponto 22, que a ofendida foi transferida por vários hospitais e sofreu internamentos, todavia tal não corresponde à verdade, decorre da prova documental que a arguida, somente esteve internada uma vez.

40- Pois, na data dos factos (15.06), entrou e saiu nesse mesmo dia do CH…-…, pelo que não ficou internada.

41- Tendo voltado a uma unidade hospitalar somente no dia 22.06 e, neste dia foi transferida para o Centro Hospitalar …, onde aqui sim ficou em internamento, à espera de ser sujeita a uma cirurgia.

42- Ora, somente esteve internada uma vez e não uma pluralidade de internamentos, conforme decorre do ponto 22, pelo que este ponto não corresponde à verdade.

43- Decorre do ponto 26 que a ofendida tinha um grande amor à vida e gostava de viajar com os pais, organizando viagens em família, fazendo planos de fim de semana, todavia, em sede de audiência de julgamento não foi referido uma qualquer viagem que tenha sido organizada pela ofendida, pelo que se entende que este ponto não corresponde à verdade e não deveria ter sido dado como provado.

44- Acresce que, se dá como provado no ponto 24 que, à data dos factos possuía emprego estável como …, todavia, não há qualquer prova documental que o ateste.

45- Também decorre deste ponto 24 que, a ofendida vivia com a Demandante BB, todavia, conforme decorre das declarações das testemunhas ouvidas, sobretudo da testemunha CC, que afirmou ser o pai biológico da ofendida, também ele residia com a ofendida e demandante, aliás até pela morada de ambos se conclui que também vivia com a ofendida e que esta não residia apenas com a Demandante, sua mãe.

46- Por outro lado e, a ter sido o ora arguido a praticar tal acto, com todo o devido respeito entendemos que os factos indiciários não são suscetíveis de serem integrados no crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23.º, 131.º, e 132., n.ºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal.

47- Ora, o circunstancialismo consubstancia uma ofensa à integridade física grave, nos termos a alínea d) do artigo 144.º do Código Penal e não o crime pelo qual o arguido vem condenado – Crime de homicídio qualificado na forma tentada.

48- Não foi provada com a necessária profundidade e rigor qual a intenção do arguido no momento da ocorrência dos factos e não foram reunidos elementos de facto suficientemente indiciadores da intenção do arguido tirar a vida da ofendida.

49- Não foi analisado qualquer objecto utilizado bem como a aptidão do mesmo para matar.

50- Por isso fica a dúvida, qual o instrumento utilizado e se o mesmo tinha aptidão para matar?

51- O instrumento utilizado não causou, conforme decorre dos relatórios médicos danos maiores, porque não seria um meio idóneo para os provocar e a hipótese de arguido sabê-lo quando o utilizou levanta dúvidas sobre a sua intenção de matar que não são de desprezar.

52- Pelo que entendemos que, subsistem dúvidas referentes a uma intenção por parte do arguido.

53- Com todo o devido respeito que é muito, não fica provada a certeza de que quando agrediu a ofendida a forma como consta no Acórdão, tenha querido a matar, mas tão somente feri-la com gravidade, o que é corroborado pelos relatórios médicos juntos aos autos e pelos procedimentos médicos aplicados.

54- In casu, não foram afastadas as dúvidas que surgem ao tentar compatibilizar uma inequívoca intenção de matar com as respetivas consequências que não apresentam gravidade proporcional à tal suposta intenção.

55- Esgrimidos os documentos médicos juntos aos presentes autos, verifica-se desde logo da nota de alta médica do CH… – Unidade Hospitalar, a ofendida deu entrada nessa Unidade Hospitalar, no dia 15 de junho de 2023, e apresentava “pequenas incisões superficiais”.

56- Observada pela Cirurgia, referem que “trata-se de ferida superficial, sem lesão vascular o visceral”. E, do supra referido relatório da nota de alta médica, resulta notoriamente que as feridas não eram graves, pelo contrário.

57- Visualizaram “2 feridas punctiforme superficiais, sem necessidade de sutura, sem hematomas visíveis e sem hemorragia, é feita limpeza e desinfeção da área e penso simples., sem necessidade de cuidados adicionais por parte da cirurgia geral”.

58- Ora, face aos procedimentos médicos tomados por quem tem todos conhecimentos e capacidades para o efeito no referido Hospital, denota-se também que as consequências do acto foram demasiado ligeiras e que não são aptas para provocar a morte a alguém.

59- O douto Acórdão no que toca à análise dos documentos/relatórios médicos juntos aos autos demonstra erro notório na apreciação da prova, pois as consequências descritas e que resultaram do evento, não atingem um grau de gravidade que denote uma intenção de matar, mas somente o efeito previsto no artigo 144.º alínea d) do Código Penal.

60- Assim e, a ter sido o arguido a praticar tal acto, se agrediu a ofendida, não o fez da forma tão intensa como a que consta na decisão proferida pelo Tribunal a quo, que tenha querido matá-la, mas tão são somente ferir com gravidade.

61- O circunstancialismo, preenche os pressupostos do crime consumado de ofensa à integridade física p. e p. pelo artigo 144.º alínea d) do Código Penal, mas nunca preenchendo o homicídio qualificado na forma tentada.

62- A existir dolo, entendemos que não foi dolo de morte, mas dolo de perigo.

63- Somos do entendimento que, resulta dos autos que o acto ilícito objecto dos presentes autos criou um perigo para a vida da ofendida.

64- Entende o Recorrente que, o Acórdão proferido também consubstancia um erro de qualificação jurídica, motivo pelo que deve ser alterada a qualificação do ilícito criminal, bem como a pena aplicada.

65- A aplicação de um apena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão ao arguido no caso concreto, pois a mesma é demasiado penosa.

66- O certificado de registo criminal do arguido AA, todavia, é de salientar que o mesmo não é reincidente.

67- A data da prática dos crimes pelo que já foi condenado são anteriores à data dos factos em causa nos presentes autos e o Arguido cumpriu, escrupulosamente, com as condenações a que foi sujeito.

68- Todavia, entendemos que a ter sido praticado um ilícito criminal pelo ora Recorrente, o mesmo não se subsume no crime de Homicídio Qualificado na forma tentada, conforme descrito no Acórdão proferido, mas sim no crime previsto e punido no artigo 144.º alínea d) do Código Penal, que é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

69- Nestes termos, por tudo o supra exposto e, salvo melhor opinião entendemos que a ter sido praticado um ilícito criminal, não existe elementos que consubstanciem ou possam fundamentar a prática de um crime de Homicídio Qualificado na forma tentada, mas sim de um crime de Ofensa à integridade física grave, o qual é punido com pena de prisão de dois a dez anos, motivo pelo que deve ser modificada a qualificação do ilícito criminal, reduzindo-se a pena aplicada pelo Tribunal a quo.

Nestes termos e nos demais de Direito, e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deverá o douto Acórdão do Tribunal A quo ser revogado e substituído por outro que, considerando a factualidade, a prova produzida em sede de audiência e julgamento, absolva o Arguido AA do crime pelo qual foi condenando com todas as consequências legais.

Sem prescindir e, na eventualidade de o venerando Tribunal Ad quem não partilhar da posição que se deixou supra exposta no presente recurso, não poderá deixar de considerar desproporcional e desadequada a aplicação de um apena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão ao arguido no caso concreto, pois a ter sido praticado um ilícito criminal, o mesmo não se subsume no tipo do ilícito criminal de Homicídio Qualificado na forma tentada pelo que V. Exas., deverão revogar a decisão proferida pelo Tribunal A quo, substituindo-a por outra em harmonia com a moldura penal do crime de Ofensa à integridade física grave, fazendo-se, assim, a habitual necessária e lidima JUSTIÇA!!!»

c) Também o Ministério Público se apresentou a recorrer, formulando as seguintes conclusões:

«2. (…) no nosso modesto entendimento, a referida pena é demasiado benévola, sem que, para tal existam motivos justificados, tanto mais que, ao invés, as particulares exigências de prevenção geral e especial que o caso reclamam, assim como, o grau de culpa do arguido AA, impunham, com todo o respeito por opinião contrária, que ao mesmo fosse aplicada a pena de 12 anos de prisão.

3. Com efeito, está em causa a vida humana, a qual, é inviolável (artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), razão pela qual, é forçoso que a comunidade esteja convencida de que as transgressões dos laços mais básicos de partilha social são sancionados com a adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que a vida humana é um valor intocável.

4. Adiante-se, desde já, que os factos/circunstâncias concretas em que o Ministério Público sustenta a sua pretensão, foram todas, ou no essencial, tidas em consideração pelo acórdão sob recurso, todavia, no nosso modesto entendimento, não tiverem o peso que a sua gravidade impunha na graduação da medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido AA.

5. Considerando o disposto no artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, importa, assim, ponderar à luz da matéria de facto dada como provada, o seguinte:

- In casu, as exigências de prevenção geral atingem o patamar máximo, tanto mais que, estamos perante uma vítima que à data da prática dos factos tinha 26 anos e, na verdade, foi a situação em causa nos presentes autos que teve na base das causas supervenientes em razão das quais veio a ocorrer o seu decesso.

6. As exigências de prevenção especial também se situam a um nível muito elevado, por diversas ordens de razão: primeira: o arguido AA evidenciou na prática dos factos uma personalidade sem respeito pelos outros, aproveitando-se da circunstância de a vítima se encontrar desacautelada e sem hipóteses de pedir socorro para, por puro despeito (por não aceitar que a vítima não mais quisesse manter a relação de namoro), a atacar e praticar os factos que resultaram provados, não exteriorizando qualquer sentido crítico relativamente aos mesmos, patenteando, dessa forma, falta de empatia pelo outro e inexistência de sentimentos de culpa; segunda: o arguido não se encontra e, nem para tanto se esforça, inserido no mercado de trabalho ou socialmente; terceira: possui três antecedentes criminais registados, sendo o primeiro pela prática do crime de condução sem habilitação legal, o segundo, pela prática dos crimes de ameaça e ofensa à integridade física simples e o terceiro pela prática do crime de roubo, denotando-se uma personalidade avessa ao direito, «sendo possível constatar no seu certificado do registo criminal um escalar nas condutas criminosas, contra por parte do arguido a que se impõe por cobro, até pela sua juventude e consequente necessidade de redefinição do caminho que se encontra a trilhar.»;

7. O grau de ilicitude é também elevadíssimo, sendo de atender que, por um lado, o arguido AA muniu-se previamente de um instrumento corto-perfurante e utilizou o mesmo para desferir um golpe numa zona vital do corpo deDD, a qual se encontrava desprevenida e sem modo de poder reagir.

8. No que tange ao grau de culpa, é muito alto, atento não só o respetivo móbil (vingança em virtude de se recusar a aceitar que a vítima não quisesse manter a relação de namoro), como também o grau de proximidade da vítima, até muito recentemente sua namorada. Acresce ainda que, o arguido não confessou a prática dos factos, sem assumir, portanto, a nosso ver, uma atitude de arrependimento e de valoração crítica da sua conduta.

9. O Tribunal «a quo», no nosso modesto entendimento, ao aplicar ao arguido AA a pena de 8 anos e 6 meses de prisão, lançou mão de injustificada benevolência e, por conseguinte, ressalvado o devido respeito por melhor opinião, fez uma incorrecta interpretação dos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal.

10. Termos em que, deverá ser julgado procedente o presente recurso e, por consequência, aplicada ao arguido AA a pena de 12 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º 1 e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), todos do Código Penal.»

d) A assistente (e parte civil) apresentou recurso, no âmbito do qual concluiu:

«B. A Recorrente não se conforma com o conteúdo do douto Acórdão proferido, quanto ao pedido de indemnização cível, porquanto O douto Tribunal não conheceu de todos os danos que emergiram das condutas do Arguido, ali Demandado, nem foram quantificados tais danos que do ponto de vista da Recorrente teriam que resultar provados.

Quanto à nulidade da decisão

C. Os factos não provados nas alíneas O., P. e Q., relativamente ao Pedido de Indemnização Civil deduzido pela Recorrente encontram-se em contradição com os factos provados nos pontos 21. a 27. e bem assim com a motivação desses factos.

D. Porquanto o Tribunal motiva os factos provados nos pontos 21. a 27. com os depoimentos da Demandante e aqui Recorrente, tendo esta descrito o estado de alma de DD nos momentos que se seguiram ao ataque de AA, tendo esclarecido que optou por solicitar à entidade empregadora o gozo de dias de férias nos dias imediatamente subsequentes ao ataque, de molde a poder acompanhar a filha, uma vez que esta tinha bastantes dores e medo de estar em casa sozinha.”

E. No depoimento de EE “chega inclusive a mencionar que nos dias subsequentes se chegou a deslocar a casa de DD, mas não logrou chegar à fala com esta, uma vez que esta não se encontrava em condições de falar com ninguém.”

F. De igual modo a testemunha FF refere que a Ofendida DD lhe referiu ter medo que AA voltasse a atacá-la e que esteve de cama nos dias imediatamente a seguir ao ataque.

G. Tendo ficado também provados os factos 24. a 26, respeitantes à personalidade da Ofendida DD, o que foi tido em conta pelos esclarecimentos prestados pela Assistente e Demandante e pelas testemunhas GG, FF e HH.

H. Tendo resultado provado que a Ofendida e os seus familiares (Recorrente e o marido) deixaram de fazer planos no exterior da habitação e que se alterou toda a dinâmica familiar, pelo clima de tensão, nervosismo e medo causados pelo ataque do Arguido.

I. Socorrendo-nos do princípio do homem médio, qualquer família colocada naquelas circunstâncias iria agir de igual modo.

J. Os factos indicados apontam necessariamente para uma decisão de em sentido diferente no sentido da atribuição de uma indemnização por danos próprios a atribuir à aqui Recorrente.

K. A qual assim conflitua, por contradição insanável entre os factos dados como não provados e a fundamentação (motivação de facto).

L. Verifica-se o vício previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, o que se invoca para todos os legais efeitos, devendo o Tribunal ad quem declarar a existência desse vício.

M. Atrevemo-nos a dizer até que, do modo como foi a prova apreciada ocorreu com erro notório na apreciação da prova, vício que levou também a uma decisão a nosso ver, contrária a que deveria ter sido tomada, o que aqui se deixa alegado para todos os legais efeitos.

Quanto ao facto dado como não provado

N. O facto dado como não provado na alínea B. não se encontra corretamente julgado, que: “O Arguido, por diversas ocasiões, tentou reatar o namoro, enviando mensagens e vídeos através das redes sociais WhatsApp e Instagram e insistindo, por diversas formas, em conversar com a Ofendida.”

O. Tal facto não poderia ter sido dado como não provado, porquanto, na motivação de facto da decisão o Tribunal a quo suporta-se em depoimentos testemunhais que comprovam a veracidade desses factos.

P. Afirmando a douta decisão no 5º parágrafo da “Motivação de Facto” que: “(…) ainda que nenhum dos depoimentos indicados tenha avançado, com certeza, datas para as deslocações do asserção de que, pelo menos desde o final de Maio de 2023 que este o fazia, contra a vontade daquela, por forma a pressioná-la para manter a relação de namoro entre ambos.”

Q. Mais, no parágrafo 6º - “EE confirmou em audiência que chegou a ver AA na companhia de DD junto à creche em que ambas trabalhavam, em momento posterior à troca de mensagens que se encontra plasmada nos autos de fls. 56 a 62 dos autos, troca de mensagens essa que já evidenciava o desconforto de DD com as «esperas» que o Arguido lhe fazia no seu local de trabalho.”

R. E ainda, no parágrafo 7º - “(…)GG que, com naturalidade, contou o episódio da entrega das chaves de casa ao Arguido, esclarecendo que acompanhou DD em tal entrega porque esta tinha medo dele, não apenas que este lhe fizesse mal, mas que a manipulasse a reatar o relacionamento amoroso.”

S. Tendo que resultar por provado que, por diversas vezes o Arguido insistiu em conversar com a ofendida no sentido de insistir na manutenção da relação, fazendo-lhe esperas no local de trabalho, sem o consentimento da Ofendida, o que foi corroborado pela prova testemunhal.

T. O que no dia do ataque perpetrado pelo Arguido, mais uma vez se constatou e que resulta provado.

U. Considerando-se assim, para os efeitos do artigo 412.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Penal, que o facto dado como não provado na alínea B. devia ter sido julgado como provado e em consequência deverá ser modificada a decisão do Tribunal de 1ª Instância sobre a matéria de facto nesta parte.

Quanto Danos Causados à Demandante BB

V. Em consequência do ataque perpetrado pelo Arguido/Demandado, originaram-se outros danos, que não o “dano morte” que podem e devem, com toda a dignidade e tutela e que merecem do direito, ser contabilizados e indemnizados.

W. Conclui o douto Acórdão “(…) a «assistência» ao sofrimento de DD pela Demandante, não é suscetível de gerar direito a qualquer indemnização.”

X. Entendendo a jurisprudência que os incómodos, contrariedades, angústias ou desgostos significativos devem ser suscetíveis de compensação – Cfr. v.g. Ac. STJ de 21.04.2010.

Y. Conforme ainda se retira do texto da douta Decisão: “Provou-se ainda que BB e CC assistiram, entre o dia 15 e o dia 22 de Junho de 2023, ao degradar das condições de saúde de DD.”

Z. Os danos não patrimoniais de pessoas que tenham uma relação próxima com a vítima, como é o caso da Demandante, podem ser indemnizados sempre que a vítima sofra uma lesão fatal ou uma lesão não fatal, mas muito grave.

AA. Do dia 15 de Junho de 2023 até ao dia 23 de Junho de 2023 as condições de saúde da Ofendida degradaram-se, do que resulta inequivocamente para a Demandante uma perturbação emocional, com a angústia do estado de saúde da filha, decorrente da lesão que foi provocada a esta.

BB. A Demandante suspendeu a sua atividade profissional para cuidar da filha e ficar na companhia da mesma, pois que esta e a mãe temia pela integridade física e segurança da própria filha.

CC. Compreende-se na categoria “dano moral” as perturbações emocionais ou afetivas como os desgostos, as angústias, os vexames, resultantes v.g. de ofensa à integridade física, à saúde, à honra, à liberdade, à paz e tranquilidade espirituais.

DD. Constituindo-se assim como danos morais “reflexos”, o sofrimento dos pais que decorram de facto diferente da morte, e que mereça a tutela do direito.

EE. Tratando-se de situação que afeta profundamente os termos em que se estabelecia e mantinha uma convivência, e os estreitos laços afetivos, bem como a relação que integrava o núcleo das vidas emocional e afetiva da Ofendida e Demandante aqui Recorrente.

FF. Viu a Demandante abalados na sua esfera jurídica, a sua personalidade, e também a sua convivência com a sua filha, a Ofendida DD, e toda a dinâmica familiar e pessoal de ambas, merecendo e devendo estes factos ser merecedores da tutela do direito, conforme preceitua o artigo 496.º do Código Civil.

GG. A lei – artigo 496.º Código Civil - não exclui, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em casos de que não resulte a morte. – Vide Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01.04.2014, Proc. n.º 498/12.4TBTNV.C1, disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf//61127478618f93e280257cb5003bf9da

HH. Alguma doutrina, nomeadamente a expressa por Maria de Lurdes Pereira, in Direito da Responsabilidade Civil – A Obrigação de Indemnizar, de que não se devem fazer leituras limitativas e que a solução indemnizatória aos casos em que o dano dos terceiros e que fique em aberto a fenomenologia do dano não patrimonial indemnizável, de forma a que se inclua o sofrimento decorrente de se assistir à angústia, depressão ou dores físicas de um ente querido; o empobrecimento ou privação da componente relacional de vida do familiar em consequência das limitações que a lesão trouxe à vida da vítima.

II. Pelo que se requer a revogação do douto Acórdão, passando a contemplar a ressarcibilidade dos danos próprios sofridos pela Demandante, reflexos dos danos causados pelas lesões à Ofendida e imputáveis ao Arguido, devendo ser arbitrado quantum indemnizatório, justo e adequado.

Quanto aos Danos Causados à Ofendida DD

JJ. A jurisprudência tem considerado o dano corporal ou à saúde, traduzido na diminuição psicossomática da pessoa por lesão à integridade física e psíquica.

KK. O douto Acórdão, circunscreve no quantum indemnizatório, apenas as dores sofridas pela Ofendida DD no dia 15 de Junho de 2023, dia em que foi perpetrado o ataque e golpeada no pescoço pelo Arguido.

LL. São merecedores da tutela do direito os danos corporais provenientes da morte ou de lesão corporal, mas também os desde que graves, resultantes da violação de outros direitos de personalidade, como a saúde, liberdade, honra, vida privada, imagem, desenvolvimento da personalidade e a identidade.

MM. Não podem os danos sofridos pela Ofendida DD circunscrever-se ao dia 15 de Junho de 2023 e só quanto às dores corporais e medo sentidos pela Ofendida nesse dia.

NN. Nos termos do artigo 563.º do Código Civil, sob a epigrafe “Nexo de Causalidade” pode ler-se: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”

OO. É evidente que duas causas necessárias podem concorrer para a produção do dano.

PP. Agressão por arma branca com atingimento no pescoço e o complicado de sepses, ambos contribuíram para o desfecho final, do falecimento de DD.

QQ. Enquanto o dano morte, propriamente dito, não pode ser, neste caso, assacado ao Arguido, pode e deve ser assacado ao Arguido todo e qualquer dano que a Ofendida DD sofreu até ao momento da sua morte.

RR. Na responsabilidade civil por factos ilícitos, o facto só não constitui causa do dano se for totalmente indiferente à produção do evento (sendo neste caso eventos: as dores sofridas, o medo, a alteração da dinâmica familiar, as alterações da personalidade, alteração das rotinas, falta ao trabalho).

SS. A doutrina da causalidade não pressupõe a exclusividade da condição nem a relação direta ou imediata entre o facto e o dano.

TT. O escopo da norma violada, pressupõe que se averigue da correspondência entre os danos causados pelo facto e a frustração dos interesses protegidos, sendo inequívoco, no caso sub judice, que o comportamento do agente, do Arguido e de interesses legalmente protegidos, não apenas as dores ou o medo.

UU. A Recorrente pugna, de acordo com o nexo de causalidade já acima invocado, de que se imporia ao douto Tribunal a avaliação de todos os factos que concorreram para a produção dos referidos danos, não se circunscrevendo aos danos provocados no dia 15 de Junho de 2023, dia em que a Ofendida foi golpeada, mas sim abrangendo todos os que desse episódio advieram.

VV. Devendo ser revogado o douto Acórdão contemplando os referidos danos sofridos pela Ofendida, entre o dia do facto gerador da responsabilidade (15 de Junho de 2023) e o dia em que foi internada (22 de Junho de 2023), devendo ser arbitrado quantum indemnizatório, justo e adequado, que não o que foi anteriormente quantificado em 5.000,00€ (cinco mil euros).

Termos em que, V. Exas. concedendo provimento ao presente Recurso e, em consequência ser revogada a douta Sentença que nos termos pugnados e que com os fundamentos aduzidos seja proferida outra que julgue o Pedido de Indemnização Civil totalmente procedente, com o que V. Exas. farão inteira JUSTIÇA!»

e) Admitido o recurso do arguido o Ministério Público respondeu-lhe, pugnando pela sua improcedência, referindo em suma que:

- O depoimento indireto é admissível quando o testemunho direto (que neste caso seria da falecida) não se mostra possível;

- A relação de namoro entre o arguido e a vítima provou-se, tendo sido relatada em audiência pelas declarações da mãe da falecida e de CC.

- A decisão recorrida não padece de nenhum dos vícios que o arguido lhe aponta.

f) Admitido o recurso do Ministério Público respondeu-lhe o arguido, alegando, em síntese, que:

- o Tribunal recorrido formou a sua convicção em depoimentos indiretos, que a lei não permite;

- o crime cometido foi de ofensa grave à integridade física e não de homicídio qualificado tentado, porque as lesões causadas na vítima, como refere o diagnóstico médico, foram «ferida superficial, sem lesão vascular ou visceral».

g) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância secundou, reforçando, a posição já assumida no recurso e na resposta ao recurso.

h) Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º CPP, nada ase crescentou.

i) Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). As questões a examinar, suscitadas nos recursos, pela ordem racionalmente pressuposta na lei adjetiva, são as seguintes: i. Vícios da decisão recorrida (suscitados pelo arguido e pela demandante civil); ii. Erro de julgamento da questão de facto (suscitada pelo arguido e pela demandante civil); iii) Qualificação jurídica dos factos (suscitada pelo arguido): iv) Pena (suscitada pelo arguido e pelo Ministério Público) v. Erro de julgamento de direito na fixação do quantum indemnizatório (suscitado pela demandante civil).

2. No acórdão recorrido o Tribunal a quo deu como provado e não provado o seguinte acervo factológico, decisão essa motivada do modo seguinte:

«Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma, resultaram PROVADOS os seguintes factos:

1. O Arguido manteve um relacionamento de namoro com a Ofendida JDD durante cerca de um ano, relação essa que começou em Maio de 2022 e terminou por volta da segunda semana de Junho de 2023.

2. Desde o final de Maio de 2023, por mais do que uma vez, o Arguido dirigiu-se ao local de trabalho da Ofendida, sito na Rua …, em ….

3. Na primeira quinzena de Junho de 2023, DD, na companhia de GG dirigiu-se à residência do Arguido, sita na …, em …, ocasião em que entregou a este último, as chaves da residência deste.

4. No dia 15 de Junho de 2023, cerca das 08h35m, o Arguido dirigiu-se a casa da Ofendida DD, sita na Rua … , em …, munido de um objecto não concretamente apurado mas de natureza corto-perfurante.

5. Nesse local, o Arguido viu DD no exterior a caminhar para a viatura de marca e modelo …, com a matrícula …, pelo que, decidiu abordá-la, perguntando-lhe se sabia da sua pulseira.

6. Enquanto o Arguido falava, DD continuou a dirigir-se para a referida viatura, abrindo a porta e sentando-se no lugar do condutor.

7. Sequentemente, o Arguido debruçou-se sobre a traseira do banco da Ofendida, e ao levantar-se trazia numa das mãos a dita pulseira.

8. De seguida, o Arguido dirigiu-se novamente à Ofendida perguntando-lhe «Então e nós?».

9. Ao que DD respondeu «nós nada», dizendo-lhe que tinha de ir trabalhar.

10. Acto contínuo e, sem nada que o fizesse prever, o Arguido empunhou o sobredito objecto não concretamente apurado mas de natureza corto-perfurante, e com ele golpeou a Ofendida atingindo-a no pescoço, causando-lhe duas feridas incisas com cerca de 0,5 cm de largura cada uma, ao mesmo tempo que proferia as seguintes expressões: «Se não és minha, não és de mais ninguém.»

11. Imediatamente, DD, logrou fechar a janela do condutor, e trancar todas as portas daquele veículo, impedindo o Arguido de aceder ao seu interior.

12. De seguida, colocou o referido veiculo automóvel em andamento, encetando uma fuga daquele local.

13. DD acabaria por imobilizar a sua viatura, em frente a uma papelaria, situada no Largo …, em …, local onde solicitou auxílio.

14. Os sobreditos ferimentos determinaram o socorro da Ofendida pelos Bombeiros Voluntários de … e o seu imediato transporte para o Centro Hospitalar … – Unidade Hospitalar de …, local onde a Ofendida foi assistida, tendo sido realizada a limpeza e desinfecção das zonas atingidas, com colocação de penso.

15. Apesar de ter tido alta hospitalar no dia 15.06.2023, DD veio a ser internada no dia 22.06.2023, no CH… de … e, posteriormente, helitransportada para o Hospital … (Serviço de Medicina Intensiva), local onde acabou por falecer, no dia 23.06.2023, pelas 21h49m, em consequência de um abcesso cervicomediastínico póstraumático, complicado de sépsis, surgido como complicação das lesões traumáticas no pescoço causadas por objecto corto-perfurante ou como tal actuando (agressão por arma branca com atingimento do pescoço).

16. Ao agir pela forma anteriormente descrita, atento o instrumento utilizado e a região corporal atingida, que o Arguido bem sabia que alojava vasos de grande circulação sanguínea, teve o Arguido o propósito de causar a morte da Ofendida, resultado este que previu como possível e com essa conduta se conformou.

17. Agiu o Arguido voluntária, livre e conscientemente, com intenção de causar a morte da Ofendida, só não levando a cabo os seus intentos porque aquela logrou fechar de imediato o vidro do condutor da sobredita viatura, impedindo o Arguido de aceder ao seu interior.

18. O Arguido praticou os factos descritos motivado pelos ciúmes que tinha da Ofendida, por não aceitar que esta quisesse deixar de namorar consigo.

19. O Arguido actuou com manifesta e completa insensibilidade perante o valor da vida humana, especialmente a daquela que havia sido durante um ano sua namorada, a quem devia estar ligado por laços de solidariedade e respeito, movido pela determinação de lhe impor a sua vontade, obstando à livre determinação da vítima de pôr termo à referida relação amorosa.

20. O Arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei penal.

Do pedido de indemnização civil deduzido por BB

21. Após agressão de que foi vítima, DD sofreu estado deprimido e de prostração, traduzidos no medo de estar sozinha, de retomar o trabalho e de ser atalhada pelo Arguido Demandado.

22. No período de tempo que mediou entre os sobreditos ferimentos, duas feridas incisas causadas no pescoço da DD até ao seu falecimento, sofreu esta muitas dores, ficou abalada física e psicologicamente, recebeu vários tratamentos hospitalares, foi transferida por vários hospitais, foi helitransportada, com internamentos.

23. No período de tempo que mediou entre os sobreditos ferimentos, duas feridas incisas causadas no pescoço de DD até ao Demandado se apresentar na Polícia Judiciária de .., viveu com medo de que este voltasse para terminar com a sua vida.

24. DD tinha 26 anos de idade e vivia com a Demandante BB.

25. Era uma pessoa alegre e saudável, com formação superior, um emprego estável como …, com um núcleo de amigos robusto e especialmente dedicada à família.

26. Tinha um grande amor à vida e gostava de viajar com os pais, organizando viagens em família, fazendo planos de fim de semana.

27. BB e CC assistiram a todo o padecimento de DD com o aproximar do falecimento.

Do pedido de indemnização civil deduzido pela UNIDADE LOCAL DE SAÚDE ….

28. No âmbito da actividade assistencial, a UNIDADE LOCAL DE SAÚDE …, em …, prestou cuidados de saúde a DD, computados no valor de € 216,00 (duzentos e dezasseis euros), reportando-se o montante de € 90,91 (noventa euros e noventa cêntimos) ao episódio de urgência do dia 15.06.2023 e o demais montante ao episódio de urgência de dia 22.06.2023.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelo CENTRO HOSPITALAR …

29. No âmbito da actividade assistencial, o CENTRO HOSPITALAR …, prestou cuidados de saúde a DD, em episódio de urgência e internamento, de 22.06.2023 a 23.06.2023, que importaram o dispêndio do montante de € 16.488,35 (dezasseis mil, quatrocentos e oitenta e oito euro e trinta e cinco cêntimos.).

Mais se provou que

30. AA descende de uma família monoparental, com total ausência do pai no seu processo de crescimento.

31. Cresceu junto da mãe e até aos 11 anos de idade beneficiou de um contexto económico bastante favorável.

32. Quando AA tinha 11 anos de idade, a mãe terá perdido o trabalho, e pouco tempo depois, perdeu a sua irmã, vitima de doença, tendo os três filhos daquela, primos do Arguido integrado o agregado familiar que este compunha com a sua mãe.

33. A partir desse momento, a mãe de AA passou a repartir rendimentos e afectos entre o filho e os sobrinhos, situação que terá tido um forte impacto económico e afectivo na vida do Arguido, que passou a evidenciar-se uma criança triste e frustrada, que facilmente desenvolvia episódios de impulsividade, contrariedades e desafio, pelo que andou em acompanhamento em consultas de psicologia.

34. O seu percurso escolar pautou-se pelo desinteresse pelas atividades lectivas, e comportamentos disruptivos, privilegiando o convívio com pares associados à marginalidade, integrando precocemente contextos de diversão noturna, ingestão de bebidas alcoólicas e consumos de estupefaciente, situações condutoras de retenções sucessivas no 2º e 3º ciclos do ensino básico.

35. Com 17 anos de idade, sofreu uma medida de internamento que cumpriu no Centro Educativo …, em regime semiaberto, entre novembro de 2018 e novembro de 2019.

36. No Centro Educativo, fez um percurso positivo, concluiu o 9º ano de escolaridade integrado no Curso, (EFA) Educação e Formação de Adultos - B3 - na área de ….

37. Antes da sua detenção, AA não desenvolvia nenhuma atividade formalizada, trabalhando juntamente com a mãe em …, quando esta tinha muita afluência de trabalho, não tendo um rendimento fixo.

38. Antes de ser detido, residia com a mãe e a prima, continuando a beneficiar do seu apoio, bem como dos outros primos que com ele cresceram.

39. Em meio prisional tem mantido um comportamento consentâneo com as normas institucionais.

40. Do certificado de registo criminal do Arguido constam as seguintes condenações:

a) por sentença proferida em 12.11.2018, transitada em julgado em 12.11.2018, proferida no âmbito do Processo Sumaríssimo n.º 1206/18.1…, do Juízo Local Criminal de …, J…, foi o Arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, por factos praticados em 30.08.2018, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,00. Tal pena foi declarada extinta em 13.11.2019.

b) por sentença proferida em 19.02.2019, transitada em julgado em 08.03.2019, proferida no âmbito do Processo Sumaríssimo n.º 134/18.5…, do Juízo Local Criminal de …, J…, foi o Arguido condenado pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º do Código Penal, e por um crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º do Código Penal, por factos praticados em 20.03.2018, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00. Tal pena foi declarada extinta em 20.10.2022.

c) por sentença proferida em 14.04.2021, transitada em julgado em 07.06.2021, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º 1500/18.1…, do Juízo Local Criminal de …, J…, foi o Arguido condenado pela prática de um crime de roubo, previsto e punido no artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.

Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma, resultaram NÃO PROVADOS os seguintes factos:

A. Durante o período de namoro o Arguido, por diversas vezes, manifestou um carácter e personalidade egocêntrica, gerando-se discussões entre ambos, motivadas pelo comportamento excessivamente ciumento do Arguido em relação à Ofendida.

B. O Arguido, por diversas ocasiões, tentou reatar o namoro, enviando mensagens e vídeos através das redes sociais WhatsApp e Instagram e insistindo, por diversas formas, em conversar com a Ofendida.

C. Em 12 ou 13 de Junho de 2023, o Arguido dirigiu-se ao local de trabalho da Ofendida, sito na Rua …, em … (…).

D. Nessa ocasião e, após várias insistências, o Arguido logrou convencer a Ofendida a dar-lhe boleia para …, na viatura de marca e modelo …, com a matrícula …, o que a Ofendida aceitou, mas apenas até à localidade de ….

E. Já em …, DD, parqueou a sobredita viatura junto das piscinas municipais, ocasião em que o Arguido agarrou a mala da ofendida que se encontrava no banco traseiro daquele veículo, retirando do seu interior o telemóvel da Ofendida.

F. DD tentou, sem sucesso, retirar o telemóvel das mãos do Arguido, e na posse do mesmo, o Arguido acedeu ao seu conteúdo, uma vez que conhecia o código de desbloqueio, por forma a verificar quais os contactos que a Ofendida havia estabelecido.

G. De seguida, pediu desculpa pelo seu comportamento, tentando reatar a relação com a Ofendida, o que esta última recusou.

H. Volvidas algumas horas, através da rede social WhatsApp, o Arguido remeteu uma mensagem à Ofendida, perguntando-lhe se a sua pulseira estava no interior do veículo da ofendida, já que o dito objecto teria caído quando se encontravam no interior daquela viatura, junto das piscinas municipais de ….

I. Ao que a Ofendida retorquiu, através de mensagem da rede social WhatsApp, que não se encontrava qualquer pulseira no interior da sua viatura.

J. Nesse local [junto à casa da Ofendida], o Arguido viu DD no exterior a caminhar para a viatura de marca e modelo …, com a matrícula …, pelo que, decidiu abordá-la, perguntando-lhe se estava com medo de si.

K. Acto contínuo, perguntou à Ofendida se sabia onde tinha de estar hoje, tendo aquela dito que não, ao que o Arguido retorquiu que tinha de estar em ….

L. Imediatamente, DD, logrou fechar a porta do condutor, e trancar todas as portas daquele veículo, impedindo o Arguido de aceder ao seu interior.

M. Ao agir pela forma anteriormente descrita, atento o instrumento utilizado [faca] e a região corporal atingida [pescoço], que o Arguido bem sabia que alojava órgãos vitais à vida.

N. O Arguido só não levou a cabo os seus intentos porque a Ofendida logrou fechar de imediato todas as portas da sobredita viatura, impedindo o Arguido de aceder ao seu interior.

Do pedido de indemnização civil deduzido por BB

O. Após agressão de que foi vítima, DD sofreu pesadelos e alteração do sono.

P. Os familiares de DD acompanharam-na aos hospitais, auxiliaram-na quando esta acordava a meio da noite com pesadelos, deixaram de fazer planos no exterior da sua habitação, pois permaneciam em casa, pelo receio que tinham de AA, conhecendo já o seu histórico comportamental.

Q. Durante o período que mediou entre o ataque perpetrado por AA e a morte de DD, alterou-se toda a dinâmica familiar vivenciando BB e CC, todos em conjunto, um “clima” de tensão, nervosismo e medo.»

Motivando-se a decisão quanto à matéria de facto nos seguintes termos:

«O Tribunal fundou a sua convicção na globalidade da prova produzida em audiência de julgamento – mormente na análise crítica das declarações prestadas pela Assistente e Demandante Civil, bem como dos depoimentos das testemunhas, atendendo-se à coerência, objetividade e isenção dos mesmos – atendendo ainda à prova documental e pericial constantes dos autos, tudo apreciado à luz das regras gerais da experiência comum, recorrendo à lógica que tem de estar sempre subjacente à apreciação da prova ao abrigo do artigo 127.º do Código de Processo Penal.

O Arguido optou por exercer o seu direito ao silêncio, não prestando declarações durante todo o julgamento.

Os factos enunciados sob o n.º 1 foram corroborados pela testemunha GG, amiga de DD, que foi capaz de balizar com exactidão o início da relação de namoro desta com o Arguido, sendo que as datas por si avançadas vão ao encontro dos relatos de FF, que referiu que se recorda de a Ofendida lhe ter confidenciado que namorava com AA no Verão de 2022, mas que sabia que o namoro era anterior a esse Verão.

A factualidade ínsita sob o número 2 adveio da conjugação dos depoimentos das testemunhas EE, GG, II e das declarações prestadas pela Assistente BB.

Com efeito, ainda que nenhum dos depoimentos indicados tenha avançado, com certeza, datas para as deslocações do Arguido ao local de trabalho de DD, foram unânimes na asserção de que, pelo menos desde o final de Maio de 2023 que este o fazia, contra a vontade daquela, por forma a pressioná-la para manter a relação de namoro entre ambos.

Note-se que, embora os demais apenas tenham sabido de tais deslocações através dos desabafos de DD, EE confirmou em audiência que chegou a ver AA na companhia de DD junto à creche em que ambas trabalhavam, em momento posterior à troca de mensagens que se encontra plasmada nos autos de fls. 56 a 62 dos autos, troca de mensagens essa que já evidenciava o desconforto de DD com as «esperas» que o Arguido lhe fazia no seu local de trabalho.

O facto n.º 3 emergiu das declarações prestadas por GG que, com naturalidade, contou o episódio da entrega das chaves de casa ao Arguido, esclarecendo que acompanhou DD em tal entrega porque esta tinha medo dele, não apenas que este lhe fizesse mal, mas que a manipulasse a reatar o relacionamento amoroso. Contudo, concluiu que a entrega das chaves decorreu de forma tranquila, não tendo DD sequer chegado a abandonar o carro.

A partir do facto n.º 4, encontram-se os factos relativos ao ataque perpetrado pelo Arguido AA contra DD.

A presença de AA junto à residência de DD no dia 15 de Junho de 2023, pelas 08:35 é confirmada por pelo menos duas testemunhas, JJ e II.

O primeiro esclareceu o Tribunal que, enquanto se dirigia para o trabalho, passou pelo prédio onde residia DD e viu AA à porta do mesmo. Não tem dúvidas acerca da identidade do mesmo visto terem estado juntos em momento prévio num jantar de aniversário e pela circunstância de o ter cumprimentado quando por ele passou nessa manhã e ele ter respondido ao cumprimento.

Explicou ainda que telefonou à sua mulher – EE – para que esta informasse a sua colega de trabalho DD que AA se encontrava à porta do seu prédio. Instado a esclarecer porque o tinha feito, e após várias insistências, acabou por admitir que o fez porque sabia, através da mulher, que estes haviam terminado o relacionamento e achou «estranho» que AA ali estivesse.

Já o segundo relatou que iria ao encontro de DD nessa manhã, quando se deparou com o Arguido à porta do prédio em que esta residia. Apesar de nunca o ter visto pessoalmente em momento anterior, não hesitou no reconhecimento, confessando que se encontrava a iniciar um relacionamento com DD e que esta lhe teria mostrado fotografias do ex-namorado. Mais referiu ter estacionado o carro um pouco afastado, ter telefonado a DD a avisar que AA estaria a aguardar por si à porta do prédio e ficado a aguardar que esta lhe dissesse algo, com a expectativa de ainda estar com ela nessa manhã.

II chegou a tirar uma fotografia onde alegadamente se vê AA à porta do prédio da vítima - vide fls. 465 e 466 – mas dada a fraca qualidade da imagem, não é possível afirmar, com certeza, \

Ora, não obstante estar a apenas alguns metros de AA e de DD no momento do ataque, II não tinha visibilidade para o carro em que este ocorreu, uma vez que os veículos estacionados em frente da viatura de DD bloqueavam tal visibilidade. É, no entanto, firme na afirmação de que viu DD a sair do prédio e a dirigir-se ao carro seguida por AA. Vide factos n.ºs 5 e 6.

Tal relato é compaginável com os testemunhos da Assistente e do Inspector KK, que mencionaram ainda que AA, nesse momento interpelou DD, insistindo que esta estaria na posse de uma pulseira sua, relatando o que lhes havia sido transmitido por DD.

Ambos narraram ainda que AA se terá debruçado para dentro do carro de DD e terá exibido uma pulseira que alegadamente aí teria encontrado nesse mesmo momento, mas que esta terá garantido que não estaria ali e que mais não foi do que uma desculpa do ex-namorado para encetar contacto. De notar que neste momento a porta do condutor teria de estar aberta, tendo DD fechado a mesma subsequentemente, e em momento anterior ao ataque, ainda que não se tenha apurado em concreto qual. Cf. Facto n.º 7

O Inspector KK menciona ainda que DD lhe descreveu que, concomitantemente, AA a havia questionado acerca do estado da relação entre ambos, tendo esta respondido que não existia relação, resposta que terá espoletado o ataque. Vide factos 8 e 9.

O facto n.º 10, concernente a ataque sofrido por DD, encontra respaldo nos depoimentos de quase todas as testemunhas ouvidas. De facto, talvez pelo peso da frase proferida pelo Arguido no momento em que desferiu os golpes no pescoço da vítima, esta foi reproduzida pela Assistente, pelo Inspector KK, por GG e por II, tendo estes tido conhecimento da mesma através do relato de DD.

Já a descrição dos ferimentos sofridos pode encontrar-se na comunicação de notícia de crime de fls. 20/21, no auto de notícia de crime e relatório inicial de diligências de fls. 22/25, no relatório n.º 2023011616-EPOLC de fls. 32/41 – em que nas fotos os ferimentos e a sua dimensão é facilmente apreensível e na documentação clínica junta no apenso I.

A Assistente e as testemunhas Inspector KK, GG e II foram coincidentes no relato de que DD lhes terá confirmado que teria as portas do carro trancadas e o vidro do lado do condutor aberto, o que terá permitido o ataque. Acrescentaram ainda que esta mencionou que quando sentiu os cortes no pescoço e ouviu a frase proferida por AA, DD terá logrado fechar o vidro e abandonar o local ao volante da sua viatura. Cf. facto n.º 11

Aliás, II chegou a ver AA abandonar o local do ataque, a correr, em direcção à parte traseira do prédio da vítima, tendo, todavia, continuado a aguardar o contacto de DD, que apenas sucedeu minutos depois, quando já abandonava o local, convicto de que esta já estaria a caminho do trabalho.

Recorda que, dado o estado de ansiedade e medo manifestado por DD nesse telefonema, esta não lhe conseguiu indicar a sua localização, tendo tido de realizar o percurso habitual desta, acabando por encontrar a sua viatura imobilizada junto a uma papelaria, situada no Largo …, em …, local onde pediu que chamassem a polícia e o INEM, o que sucedeu. Vide factos 12 e 13.

Simultaneamente, também EE, que igualmente havia sido contactada por DD acionou a polícia para o local onde esta se encontrava, tendo ido ao seu encontro momentos depois.

Os ferimentos sofridos por DD foram alvo de uma avaliação e cuidados primários por parte dos Bombeiros Voluntários de … – conforme relataram a Assistente, o Inspector KK, EE, II, e o militar da GNR LL - tendo os três últimos estado no local onde DD foi primeiramente assistida e os dois primeiros no Hospital de …, local para onde a vítima foi sequentemente encaminhada, examinada e lhe foram prestados os cuidados clínicos necessários

Todas estas acções estão também descritas nos já mencionados auto de notícia de crime e relatório inicial de diligências de fls. 22/25, no relatório n.º … de fls. 32/41 e ainda na documentação clínica do Apenso I.

Por último, e no que tange ao facto provado n.º 15, estes assentam no exame da documentação clínica de DD constante do Apenso I e ainda do Relatório de autópsia médico-legal de fls. 210/213 e dos esclarecimentos prestados pela Perita Médica, Dr.ª MM a fls. 540/541.

Em suma, não subsistem quaisquer dúvidas acerca da identidade do atacante de DD.

A todos a quem relatou a ocorrência – Assistente, CC, II, GG, EE, FF, Inspector KK, militar da GNR LL – esta identificou categórica e inequivocamente AA como sendo o seu atacante, tendo também mencionado a todos que este a atacou com uma “arma branca” (independentemente do nome que cada um lhe dê, ora faca, ora canivete, ora navalha ou até lâmina).

Ora, ainda que se trate de depoimento indirecto, dado a falecimento de DD este é admissível nos termos do disposto no artigo 129.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e deve ser valorado.

Sendo que tal depoimento é necessariamente concatenado com a circunstância de o Arguido ter sido visto, no dia e hora do ataque, no local do mesmo, por pelo menos duas testemunhas distintas, sendo que uma delas – II – chega a referir tê-lo visto a abandonar o local a correr.

Ademais, era a única relação de tensão que se conhecia à Ofendida, sendo que esta já teria verbalizado às testemunhas que teria medo do Arguido, visto este não aceitar o final da relação.

De igual modo, não se suscitam questões quanto à natureza dos ferimentos, dada a panóplia de documentação clínica nos autos já mencionada e até o próprio relatório da autópsia e subsequentes esclarecimentos prestados pela perita. Vide fls. 210/213 e fls. 540/541.

Sobre o conhecimento e vontade do Arguido – factos 16 a 20 – o Tribunal socorreu-se das regras de experiência comum e presunções de normalidade, conjugadas com os demais factos dados como provados, uma vez que o conhecimento e vontade são elementos internos a cada pessoa e, por isso mesmo, insuscetíveis de direta apreensão pelos sentidos do julgador.

Ora, é evidente que o Arguido estava ciente da gravidade da conduta por si adoptada, facto apreensível até pela circunstância de ter abandonado o local de imediato, nem tendo tentado socorrer a vítima ou averiguar do seu estado de saúde, apenas se tendo apresentado junto da GNR dias após o sucedido.

Mais sabia, obviamente, de que tais condutas eram proibidas, porque qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias o saberia.

No que concerne aos factos do pedido de indemnização civil deduzido por BB dados como provados, mormente os factos 21 e 23, estes encontraram sustento nas declarações prestadas pela própria Demandante, que de uma forma até algo distanciada, foi capaz de descrever o estado de alma de DD nos momentos que se seguiram ao ataque de AA, tendo esclarecido que optou por solicitar à entidade empregadora o gozo de dias de férias nos dias imediatamente subsequentes ao ataque, de molde a poder acompanhar a filha, uma vez que esta tinha bastantes dores e medo de estar em casa sozinha.

Também o Inspector da Polícia Judiciária KK, num depoimento minucioso, ainda que eivado de emoção, salientou o nervosismo e medo demonstrado por DD nos momentos que se seguiram ao ataque. Sentimentos esses que foram também destacados nos depoimentos do militar da GNR LL, de EE, II, pessoas que contactaram com a Vítima minutos após o ataque.

EE chega inclusive a mencionar que nos dias subsequentes se chegou a deslocar a casa de DD, mas não logrou chegar à fala com esta, uma vez que esta não se encontrava em condições de falar com ninguém.

De igual modo a testemunha FF refere que esta lhe referiu ter medo que AA voltasse a atacá-la e que esteve de cama nos dias imediatamente a seguir ao ataque.

O facto n.º 22 encontra amparo na documentação clínica junta aos autos nas fls. 158/170, 173/186, 191/193, 195/208, 329/363 e 494/496 e no Apenso 1, que refere todas as intervenções sofridas por DD, bem como as queixas por esta relatadas aos profissionais de saúde, que ficaram vertidas nos relatórios clínicos.

No que tange aos factos 24 a 26, concernentes à personalidade de DD e às suas condições de vida, o Tribunal levou em linha de conta os esclarecimentos prestados pela Assistente e pelos amigos de DD, GG, FF e HH.

Os factos dados como provado relativamente aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo CENTRO HOSPITALAR …. e pela UNIDADE LOCAL DE SAÚDE … – factos 28 e 29 – fundaram-se nas facturas que acompanhavam os referidos pedidos de indemnização civil, bem como a documentação clínica junta aos autos – Apenso 1 e fls. 158/170, 173/186, 191/193, 195/208, 329/363 e 494/496.

Já a situação familiar e profissional do Arguido, plasmada nos factos provados 30 a 39, fundou-se no relatório social elaborado pela DGRSP e nas declarações por este prestadas em sede de 1.º Interrogatório de Arguido detido e que por serem em seu benefício aqui se usam.

Em relação aos antecedentes criminais do Arguido – facto 40 – teve-se em consideração o seu Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

*

Já quanto à factualidade dada como não provada, no libelo acusatório vêm imputados ao Arguido os factos constantes sob as letra A e B , que plasmam que «durante o período de namoro o Arguido, por diversas vezes, manifestou um carácter e personalidade egocêntrica, gerando-se discussões entre ambos, motivadas pelo comportamento excessivamente ciumento do Arguido em relação à Ofendida.» e ainda « (…) por diversas ocasiões tentou reatar o namoro, enviando mensagens e vídeos através das redes sociais WhatsApp e Instagram e insistindo, por diversas formas, em conversar com a Ofendida.», sendo os sublinhados da responsabilidade da signatária.

Ora, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que os factos imputados ao Arguido na acusação devem ser claros e precisos, não podendo ser utilizadas na sustentação de uma condenação penal (e devendo, por isso, ser consideradas não escritas) imputações vagas, imprecisas, genéricas ou conclusivas, sem individualização das concretas circunstâncias, actos e intenções integrantes da actividade delituosa e especificação do respectivo tempo e lugar, uma vez que tal impede o exercício efectivo do direito de defesa e do contraditório por aquele (pois se a vítima tem direito à tutela penal, também ao arguido é reconhecido o direito a conhecer os concretos factos que lhe são imputados), assim como a aferição das condições de procedibilidade (como o exercício do direito de queixa) ou de factos extintivos do procedimento criminal (como a prescrição) ou da lei penal aplicável no tempo. (3)

Ora, o que consta dos trechos da acusação supra transcritos não se mostra minimamente concretizado, estando descritos de forma vaga e genérica, sem qualquer concretização quanto ao tempo ou número de vezes, nem quanto ao local ou contexto em que teriam ocorrido os factos que aí se imputam.

Nos factos referidos, a tentativa de baliza temporal que aí é feita alarga-se a um período superior a um ano, não havendo nenhuma especificidade que permita circunstanciar tais condutas, ou sequer o que é que pode ser entendido como «carácter e personalidade egocêntrica», «comportamentos excessivamente ciumentos» sendo tais expressões manifestamente conclusivas e sem qualquer densificação traduzida em factos concretos, não permitindo o exercício cabal do direito de defesa por parte do Arguido, não podendo ser utilizadas na fundamentação de uma decisão penal.

Já o facto ínsito sob a letra C, apenas foi dada como não provada a data na qual o Arguido alegadamente se terá deslocado à creche na qual trabalhava a Vítima, uma vez que ninguém a mencionou, fazendo as testemunhas uma referência genérica aos finais do mês de Maio e à primeira quinzena de Junho.

Quanto aos factos sob as letras D a I, existe uma total ausência de prova quanto aos mesmos, não tendo sido referidos por ninguém em audiência de julgamento, com excepção de uma eventual questão quanto à localização de uma pulseira, mas não nos moldes descritos na acusação.

De igual modo, também ninguém mencionou os episódios vertidos sob as letras J e K.

A factualidade sob as alíneas L e N advém da desconformidade do teor da acusação com os relatos de todas as testemunhas. Com efeito, as testemunhas referem que DD lhes revelou que havia fechado as portas do carro e aberto o vidro do lado do condutor para manter a conversa com o Arguido, e não que as portas estariam abertas, tendo esta fechado as mesmas e aberto o vidro em momento anterior ao ataque e posterior ao momento em que o Arguido se debruçou para o interior da viatura para alegadamente alcançar a pulseira que procurava, ainda que não se saiba o concreto momento em que fez, motivo pelo qual tais factos tiveram de ser dados como não provados.

Por último, sob a letra M, sendo do conhecimento geral e crendo tratar-se de um lapso, deu-se como não provada a circunstância de o pescoço alojar órgãos vitais.

Já no concernente aos factos concernentes ao pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente, estes advieram da ausência de prova cabal que os confirmasse. De facto, em momento algum a Assistente e o seu marido demonstraram ter receio do Arguido, pelo que tais factos tiveram de ser dados como não provados.»

3.1 Dos vícios da decisão recorrida (suscitados pelo arguido e pela demandante civil) O arguido afirma que a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova (conclusão 59.ª), dizendo no essencial a propósito que «as consequências descritas e que resultaram do evento, não atingem um grau de gravidade que denote uma intenção de matar, mas somente o efeito previsto no artigo 144.º alínea d) do Código Penal.» Também a demandante civil afirma que a decisão recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, afirmando: «o modo como foi a prova apreciada ocorreu com erro notório na apreciação da prova» (conclusão M.)! Considera ainda que a decisão padece (também) do vício da contradição insanável da fundamentação (conclusões C. e K.), para o que indica que os factos julgados não provados constantes das alíneas O., P. e Q. contradizem a factualidade provada dos pontos 21. a 27. do acórdão recorrido!

Entendamo-nos, em primeiro lugar, sobre o que são vícios da decisão previstos no § 2.º do artigo 410.º do CPP. Neste retábulo normativo prevê-se, com efeito, que o recurso possa ter por fundamento uma das hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Impondo-se até o conhecimento oficioso naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão (ou uma decisão correta e rigorosa) sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou ainda por assentar em premissas que se mostram contraditórias. Tais vícios respeitam à perfeição formal da decisão sobre a matéria de facto, cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, pois trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei, as quais são apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Haverá contradição insanável quando seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta àquela que foi alcançada; ou não a justifica; ou que a torna fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal. Respeita, pois, a uma contradição entre os fundamentos da decisão ou entre estes e a própria decisão, nunca entre os meios probatórios em si mesmo considerados, ou entre a convicção formada pelo tribunal e aquela que, segundo o recorrente, devia prevalecer face às provas produzidas. Já relativamente ao erro notório na apreciação da prova, ocorre quando o tribunal dá como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão lógica seria a contrária, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova. (4) Tendo esse erro ser tão clamoroso que não passa despercebido ao cidadão comum (a um homem médio). A recorrente assistente e parte civil tem parcialmente razão relativamente à contradição insanável da fundamentação, pois que se verifica uma contradição entre os factos provados do acórdão nos pontos 21. a 27. e os factos alinhados P. e Q. do acervo dos factos julgados não provados, na medida em que a matéria fáctica nestes vertida se contêm também na factualidade provada nos aludidos pontos 21. a 27. Mas já não o ponto O., pois a matéria neste constante refere que durante o período crítico que antecedeu o decesso da vítima, esta «sofreu pesadelos e alteração do sono», realidade não afirmada (sequer implicitamente) naqueles. Deverão, pois, os pontos P. e Q. da matéria de facto não provada ser expurgados deste acervo, sem necessidade de reenvio do processo para novo julgamento nesta parte (artigo 426.º, § 1.º CPP). Mas não se verifica o alegado (pela demandante cível e pelo arguido) erro notório na apreciação da prova, na medida em que não só nenhum dos recorrentes assinala onde vislumbram o vício apontado, como, percorrendo o acórdão recorrido, nele o não verificamos, porquanto do seu texto, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, não resulta (menos ainda clamorosamente ou com toda a evidência – id est que não passe despercebido ao cidadão comum) conclusão contrária àquela a que chegou o Tribunal.

3.2 Do erro de julgamento da questão de facto O arguido manifesta discordar de alguns pontos da matéria de facto julgada provada, por entender que não foi produzida qualquer prova dos factos contidos nos pontos 1. a 22., 24., 26. e 27. do acervo factológico provado; e que relativamente ao ponto 24. se provou que o marido da mãe da vítima vivia integrava o agregado familiar desta, devendo fazer-se a correspondente aditamento.

Já a assistente/demandante civil considera que a matéria contida na al. B. dos factos não provados se deveria julgar provado.

Ora, conforme resulta da conjugação do disposto nos artigos 431.º e 412.º CPP, o recurso penal em matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas antes - e apenas - um meio processual que permite a identificação e correção de concretos erros praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. Daí que o tribunal de recurso não tenha que reapreciar a causa e toda a prova que foi nela produzida, Antes, o tribunal ad quem só tem que apreciar o recurso nos moldes em que o recorrente o coloca (para além dos vícios de conhecimento oficioso, naturalmente – artigo 410.º, § 2.º CPP).

Efetivamente, da conjugação das normas contidas nos artigos 431.º e 412.º, § 3.º CPP resulta que a especificação dos «concretos pontos de facto» só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado.

E se é verdade que ambos os impugnantes indicam os pontos da matéria de facto que consideram ter sido erradamente julgados, só o primeiro (o arguido) indica os meios de prova impõem decisão diversa daquela que foi tomada, indicando que o Tribunal firmou a sua convicção relativamente aos factos 1. a 22., 24., 26. e 27. com base em prova indireta (com base em depoimentos testemunhais prestados por pessoas que não tiveram deles conhecimento direto, o que é proibido por lei. Mas o recorrente/arguido não tem razão (com exceção dos pontos 14., 15., 21. e 24.º, conforme se detalhará adiante)

É verdade que o Tribunal firmou a sua convicção relativamente aos pontos 1. a 13., 16. a 23., 26. e 27. em prova indireta, isto é, essencialmente nas declarações prestadas na audiência pelas testemunhas e pela assistente. Tendo estas adquirido o conhecimento dos factos que narraram através da própria vítima, a quem aquela descreveu os acontecimentos.

Ora, a valoração desses depoimentos indiretos não é proibida por lei, na medida em que a única testemunha que deles teve conhecimento direto faleceu (justamente em razão dos factos que os autos narram) – conforme expressamente prevê a parte final do § 1.º do artigo 129.º CPP.

As referidas testemunhas justificaram todas (cada uma delas) a sua razão de ciência, sendo esse um elemento fundamental para a credibilização do que por eles foi dito, a mais da coincidência dos diferentes depoimentos relativamente aos pontos em que havia conhecimento comuns.

Sendo que a prova dos factos 14. e 15. se firmaram em documentos constantes dos autos, identificados no acórdão recorrido. Decorrendo a prova do facto 21. também das declarações prestadas na audiência pela assistente e pelo marido desta, que deles tiveram conhecimento direto.

Já relativamente ao facto 24. firma-se este em prova direta, como o são as declarações da assistente e da parte civil CC, prestadas na audiência. Mas o que relativamente a este mais releva, é a necessidade de o completar (como bem refere o recorrente/arguido), acrescentando-se-lhe (sem controvérsia) que CC integrava o mesmo agregado familiar que era também integrado pela vítima e pela mãe desta. A assistente/demandante civil considera que a matéria contida na al. B. dos factos não provados deveria ter sido julgado provado, mas importava que indicasse que prova impõe decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido, o que não faz. E o incumprimento desse ónus impede que este Tribunal de recurso possa aferir do mérito (ou demérito) dessa pretensão.

Em suma: o ponto 24. dos factos provados passará a ter o seguinte conteúdo: «DD tinha 26 anos de idade e vivia com a sua mãe BB e CC.» Improcedendo as demais alterações preconizadas pelos recorrentes.

3.3 Da qualificação jurídica dos factos

Considera o arguido/recorrente que a correta qualificação jurídica dos factos praticados é a de que os mesmos são apenas integradores do ilícito previsto no artigo 144.º CP (ofensa à integridade física grave). Estriba esta esta pretensão afirmando que «a existir dolo, entendemos que não foi dolo de morte, mas dolo de perigo. Somos do entendimento que, resulta dos autos que o ato ilícito objeto dos presentes autos criou um perigo para a vida da ofendida.»

O recorrente não tem razão.

Vejamos, então.

É no artigo 131.º CP que matricialmente se prevê o ilícito de homicídio. Ali se dispondo que:

«Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.»

O tipo objetivo de ilícito de homicídio consiste em matar outra pessoa. Exigindo o tipo subjetivo o dolo em qualquer das suas formas previstas no artigo 14.º (direto, necessário ou eventual). Relativamente ao elemento subjetivo os factos revelam que o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, com intenção de causar a morte da ofendida, só não levando a cabo os seus intentos porque aquela logrou fechar de imediato o vidro do condutor da sobredita viatura, impedindo-o de aceder ao seu interior. Acrescentando que o arguido praticou os factos descritos motivado pelos ciúmes, por não aceitar que a ofendida quisesse deixar de namorar consigo. De uma forma muito simples pode dizer-se que o dolo é o cometimento do facto com conhecimento e vontade. Isto é: consiste no conhecimento e/ou representação e vontade de realização do facto material típico. No dolo é possível individualizar dois elementos distintos: o elemento intelectual ou cognitivo; e o elemento emocional ou volitivo. O elemento intelectual ou cognitivo consiste na consciência ou previsão dos elementos essenciais da ilicitude do facto típico. E o elemento emocional ou volitivo traduz-se em o agente agir com vontade. Ora esta (a vontade) implica um querer, o qual pode assumir três formas: o agente atua de acordo com a ação se propôs realizar (dolo direto); o agente atua representando ou prevendo na sua mente como consequência necessária do facto (dolo necessário); ou o agente atua representando como possível resultado da sua conduta (dolo eventual). No caso concreto a atuação do arguido foi dolosa, por nela se compreender o conhecimento do caráter proibido da conduta e bem assim a atuação ter ocorrido com intenção de causar a morte (atento o modo de atuação, a circunstância de já estar munido do objeto da agressão quando foi ao encontro da vítima, a natureza do objeto de agressão empregado e a zona do corpo da vítima que foi atingida). Só a não matou no local porque a vítima conseguiu fechar o vidro da sua viatura e fugir dali. A expressão proferida pelo arguido no momento que antecedeu os golpes que desferiu sobre a vítima é bem elucidativo da sua intenção: «se não és minha, não és de mais ninguém.»

É, pois, absolutamente indubitável que o arguido atuou com dolo direto de homicídio (artigo 131.º CP); e não de ofensa à integridade física (artigo 143.º CP), conforme sustenta o arguido no seu recurso.

Estatui o artigo 132.º, que:

«1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 – É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.»

As circunstâncias previstas no § 2.º deste artigo 132.º não operam automaticamente, tratando-se de «exemplos-padrão», tradutores de modos de agir, que valorativamente os distanciam do padrão previsto no artigo 131.º, sendo reveladores de uma especial perversidade ou censurabilidade do agente, sustentadoras da agravação da conduta.

Na al. b) do referido § 2.º prevê-se como circunstância apta a revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente o facto de o agente ter quebrado radicalmente a solidariedade que em princípio decorre da relação de namoro existente ou pretérita (próxima).

Nas circunstâncias do caso presente a atuação empreendida pelo arguido, sequente à rotura da relação de namoro, como se fora dono e pudesse dispor do outro, demonstra de modo inarredável a especial censurabilidade da conduta.

E no respeitante à tentativa, preceitua o artigo 22.º CP, que:

«1 – Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

2 – São atos de execução;

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou,

c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.»

A punição da tentativa é, como sabido, uma resposta do sistema jurídico-penal de molde a abarcar no seu âmbito de proteção também os atos jurídicos penalmente relevantes mas inconsumados. Isto é, o âmbito de proteção do bem jurídico não se queda violação efetiva do mesmo, havendo situações em que o perigo causado ao bem jurídico cuja lesão se demandou, faz as respetivas ações serem merecedoras de punição.

Fundamental na delimitação das categorias de atos de execução é o papel desempenhado pelo elemento subjetivo da tentativa - o plano concreto do agente.

No caso em apreço não subsistem dúvidas que o arguido previu (não podia ter deixado de prever) que muito provavelmente causaria a morte da vítima, o que só não veio a ocorrer e muito proximamente por circunstâncias estranhas à sua vontade.

Restando, pois, concluir, como concluiu o tribunal recorrido, que o arguido se constituiu autor de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto nos artigos 131.º e 132.º, § 2.º, al. b), com referência ao artigo 23.º CP, por a respetiva atuação revelar uma maior censurabilidade e ser por isso merecedora de uma censura mais grave.

3.4 Da pena

O arguido foi condenado numa pena de 8 anos e 6 meses de prisão, considerando o recorrente /arguido que ela é demasiado pesada. Entendendo, porém, o Ministério público que ela «é demasiado benévola, sem que, para tal existam motivos justificados, tanto mais que, ao invés, as particulares exigências de prevenção geral e especial que o caso reclama, assim como, o grau de culpa do arguido». Anotando ainda que todas as circunstâncias relevantes foram todas, no essencial, tidas em consideração pelo Tribunal recorrido, contudo sem «o peso que a sua gravidade impunha na graduação da medida concreta.»

O crime consumado de homicídio qualificado é punível com uma pena de 12 a 25 anos de prisão. Sendo a comissão de tal crime na forma tentada, deverá a pena ser especialmente atenuada, o que, conforme aos critérios fixados no artigo 73.º, § 1.º, als. a) e b) CP, reduz a moldura abstrata para prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias até 16 anos e 8 meses.

Permite esta moldura uma ampla margem de ponderação, no âmbito da qual o Tribunal recorrido considerou «(…) no que concerne ao grau de ilicitude dos factos praticados, o mesmo afigura-se bastante elevado, uma vez que o arguido atacou a ofendida com uma arma que trazia dissimulada, apanhando-a de surpresa, aproveitando-se da vulnerabilidade e da confiança que DD em si depositava - dada a relação de namoro que haviam tido – ao aceitar falar consigo mais uma vez, apesar da situação de rutura em que se encontravam.

O dolo revela-se direto e intenso, tendo o arguido plena consciência das ações por si praticadas, tendo inclusive verbalizado os seus intentos, apanhado a vítima desprevenida (escondendo o objeto cortante que consigo transportava), espoletando um juízo de censura agravado.

Já no que tange às necessidades de prevenção especial, estas atingem um patamar elevado, sendo possível constatar no seu certificado de registo criminal um escalar nas condutas criminosas, contra por parte do arguido a que se impõe pôr cobro, até pela sua juventude e consequente necessidade de redefinição do caminho que se encontra a trilhar.

Até porque, não obstante se ter dado como provado desempenha ocasionalmente trabalhos de limpeza para auxiliar a sua mãe, o certo é que (…) não procura inserir-se no mercado de trabalho ou socialmente, não sendo capaz de prover ao seu sustento.

A favor do arguido milita apenas o apoio da sua família e a circunstância de, em meio prisional, ter vindo a manter um comportamento consentâneo com as normas institucionais.»

Comecemos pelo óbvio: a gravidade de uma conduta afere-se pela pena que lhe é aplicável, isto é, pela moldura abstrata do crime respetivo, com o seu mínimo e o seu máximo. Fixando a lei para um dado ilícito um dado máximo e um certo mínimo, considera-se que casos haverá em que esse mínimo constitui a «justa medida» da condenação e noutros essa corresponderá ao máximo. (5)

A finalidade gizada pelas penas, de acordo com a lei (artigo 40.º CP), é a de proteger os bens jurídicos vulnerados e reintegrar o agente na sociedade, não podendo a pena concreta exceder a medida da culpa do infrator.

Na exegese do texto legal, ensina a este propósito Jorge de Figueiredo Dias (6), que «toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais.»

No concernente à medida concreta, giza-se acautelar a tutela necessária dos bens jurídicos em concreto, num sentido prospetivo, corretamente traduzido pela «necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada.» (7) E a reintegração social do arguido (prevenção especial). Mas não, claro, outras quaisquer finalidades, de cariz moral, retributivo ou securitário, em nome de pretensas (e ilegítimas) exigências de prevenção geral negativa ou de prevenção de intimidação da generalidade (8)!

«A ideia da prevenção geral positiva ou de integração; e que dá por sua vez conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º/2 da Constituição consagra de forma paradigmática» (9), constitui o referente em que assenta o princípio da proporcionalidade ou da justa medida.

Por sua vez, a função da prevenção especial é essencialmente positiva, de socialização. Referindo neste particular o citado autor (10), que a medida da necessidade de socialização do agente é «em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial (…), só entra em jogo se o agente se revelar carente de socialização. Se uma tal carência se não verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da “moldura de prevenção” ou mesmo que com ele coincida (“defesa do ordenamento jurídico”).»

O crime cometido é, deveras, chocante. A mais disso, contextualmente as exigências de prevenção geral são de grau elevado, e acima da mediania as necessidades de prevenção especial, atento o passado criminal do arguido e a falta de arrependimento (pelo menos manifestado).

Mas importará considerar que «(…) também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico. O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da pena, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Assim, o recurso não visa, nem pretende aqui, eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do ato de julgar. A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. (…)» (11)

Neste mesmo sentido se pronuncia o Supremo Tribunal de Justiça (12), relativamente à sua própria intervenção na mesma matéria, considerando que: «... a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.»

O recurso não é, pois, uma oportunidade dada ao recorrente para o Tribunal da Relação fazer um novo juízo sobre a decisão de primeira instância ou a este se substituir; sendo apenas um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo tribunal a quo.

Ora, nenhum dos recorrentes coloca em evidencia razões de justiça que imponham a preconizada (ambos em sentido oposto) alteração à medida concreta da pena. Nem nós as vislumbramos como clamorosas, até porque a graduação feita pelo Tribunal recorrido respeitou os parâmetros normativos que a enquadram e a sua medida concreta se situa próximo do ponto médio da moldura, mostrando-se evidente terem sido ponderadas todas as circunstâncias pertinentes.

A pena aplicada corresponde, no essencial, ao juízo que cremos ajustado sobre as exigências (comunitárias) que o caso concreto evidencia relativamente à prática do ilícito em referência e às necessidades de ressocialização do arguido, que emergem das circunstâncias próprias do mesmo (artigo 40.º, § 1.º e 2.º CP), também bem caracterizadas no acórdão recorrido. E, como assim, nada há que justifique qualquer alteração.

3.5 Da indemnização cível e seu quantum (suscitado pela demandante civil)

BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 50 000€ a título de danos não patrimoniais sofridos por DD; e ainda 5 000€ a título de danos não patrimoniais próprios, que sofreu. O Tribunal coletivo considerou apenas parcialmente procedente o pedido da demandante, a título de danos não patrimoniais sofridos por DD, condenando o demandado a pagar-lhe 5 000€, acrescida de juros de mora à taxa de 4 % contados desde o trânsito em julgado e até ao efetivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais, absolvendo o demandado do demais que se pedia.

Inconformada com esta decisão recorre a demandante sustentando que o seu pedido tem fundamento na lei, no direito e na justiça, pelo que deverá julgar-se o mesmo totalmente procedente.

O demandado não respondeu.

a) Da responsabilidade civil em geral

Tendo em conta o pedido e a causa de pedir que lhe serve de fundamento, as questões a decidir, devem sê-lo à luz das normas que regem a responsabilidade civil extracontratual, estabelecidas nos artigos 483.º e ss. do Código Civil.

Importa assim realçar desde já o princípio consignado naquele primeiro preceito, segundo o qual a obrigação do indemnizar pelos prejuízos causados impende sobre todo «aquele que com dolo ou mera culpa violar o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios». Daqui resulta serem vários os pressupostos que condicionam a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, quais sejam:

a) o facto;

b) a ilicitude;

c) o vínculo de imputação do facto ao lesante;

d) o dano;

e) e, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

O facto relevante tem de ser um facto voluntário, normalmente por ação (podendo também relevar os factos omissivos quando há o dever jurídico de praticar o ato omitido - cf. artigo 486.º do C. Civil), relevando esta qualificação para excluir os factos naturais produtores de danos, isto é, aqueles que não dependem da vontade humana e se apresentam por ela objetivamente incontroláveis.

Da ilicitude importa realçar que como refere Menezes Cordeiro (13): «em princípio, há ilicitude sempre que alguém pratique um ato que seja proibido pelo direito ou não seja, por lei, permitido». No mesmo sentido P. Lima - A. Varela (14), referindo que «a violação do direito de outrem só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica». Só a violação ilícita do direito ou interesse alheio é fonte de responsabilidade civil, estando afastados os casos de ação direta, de legítima defesa, de estado de necessidade ou do consentimento do lesado. De um modo geral pode dizer-se que não procedem ilicitamente os que atuam no exercício regular de um direito ou no cumprimento de uma obrigação legal.

Por outro lado, para que o facto ilícito gere responsabilidade é também necessário que o autor tenha agido com culpa, e esta traduz-se num juízo de reprovabilidade da conduta do agente (que podia e devia agir de modo diverso). A culpa assenta no nexo que existe entre o facto e a vontade do agente e pode revestir a forma de dolo ou de negligência. E na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487.º n.º 2 C. Civil). A culpa deve assim apurar-se, no que agora importa considerar, em função da diligência que um condutor normal teria face às circunstâncias do caso concreto.

O dano, por seu turno, consiste no desvalor infligido aos bens jurídicos alheios em resultado do facto ilícito. Nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são ressarcíveis, só o sendo os que se incluem na responsabilidade do agente e estes são apenas aqueles que resultaram do facto ou foram por ele causados.

a) A causa penal traz suficientemente descrita a ação voluntária do demandado, sua ilicitude e bem assim a identificação das lesões e danos causados na malograda vítima (Joana Cabrita) e na sua mãe/demandante. Importando aquilatar da existência do respetivo nexo causal, bem assim como do direito à indemnização e sua medida.

b) Do nexo causal

O artigo 563.º do C. Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual «a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excecionais ou extraordinárias» (15). «(…) Do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano». (16) Melhor precisando: a lei acolheu, no artigo 563.º do Código Civil, a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstrato, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente. Vindo o nexo causal a ser definido, na esfera do direito civil, em função da variante negativa da causalidade adequada.

Este princípio geral da causalidade adequada concretiza-se em duas formulações, tendo em vista a delimitação dos danos indemnizáveis “causados” por determinado facto. Segundo uma dessas formulações – a positiva - um facto é causa de um efeito danoso quando é previsível que ele o provoque, atendendo às circunstâncias concretas em que o agente atuou, quer às conhecidas deste, quer às cognoscíveis, à data da produção do facto, por uma pessoa normal. Razões de justiça implicaram o alargamento da noção de causalidade, através do que se designou «formulação negativa do nexo de causalidade», que prescinde da noção de previsibilidade: segundo esta, um facto que atua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais. O que significa que qualquer condição que interfira no processo sequencial dos factos que conduzem à lesão, e que não seja de todo em todo indiferente à produção do dano segundo as regras normais da experiência comum, seja causa adequada do prejuízo verificado. Por isso mesmo, nesta variante negativa da causalidade adequada, o facto é causa adequada do dano se for uma das condições do processo sequencial que vai desembocar na produção desse efeito. Só assim não sendo se essa condição for totalmente irrelevante para a eclosão do dano segundo os dados da experiência comum. (17) Isto é, o dano tem que estar associado ao facto antecedente que, segundo o curso normal dos acontecimentos, foi a sua causa. Todos os demais são periféricos e, portanto, irrelevantes para efeitos de responsabilidade civil.(18)

A formulação negativa da causa adequada a que vimos fazendo referência, aproxima-se da teoria da equivalência das condições, na medida em que um facto é causal de um dano sempre que é uma das várias condições da sua produção, sem a qual o dano não teria ocorrido. E, segundo ela, o agente é sempre responsável quando previu ou devia prever o facto, mas já não os seus efeitos (que ficam de fora do âmbito de previsibilidade). E, por outro lado, o facto-condição só não é causa do dano se era totalmente indiferente para a sua produção segundo as regras de experiência comum ou se só o produziu mercê de circunstâncias anómalas e excecionais (que, por isso, escapavam à previsibilidade do agente). (19)

c) Do dever de indemnizar

Nas circunstâncias do presente caso temos que a atuação do arguido foi causa (uma das causas) necessárias à verificação do dano (perda da vida da vítima), estando consequentemente obrigado a indemnizar os herdeiros da malograda vítima (que na circunstância é a demandante – sua mãe).

d) Da medida da indemnização

Neste caso não estão em causa direitos patrimoniais, cingindo-se a reparação aos danos não patrimoniais.

No respeitante aos danos não patrimoniais tem de atender-se à equidade (20), sendo que para esta concorrem vários fatores (violência da evento danoso; existência e intensidade das dores causadas; o tempo em que as mesmas se fizeram sentir; o grau de tristeza gerado e o tempo decorrido; bem assim como todas as demais circunstâncias atinentes à pessoa concreta e à sua vida – como a idade e a relação com a demandante (sua mãe), etc. – sem nenhuma contribuição da vítima para a verificação dos danos ou para a dimensão destes).

Julgar segundo a equidade significa dar a um conflito a solução que parece mais justa, atendendo apenas às circunstâncias e características de situação e sem recurso necessário à lei que seria eventualmente aplicável (21). A alea é, pois, inarredável. E querendo fazer-se justiça é preciso ter por certo que em muitas situações não há indemnização (ou compensação) que cubra (ou verdadeiramente compense) o dano efetivo sofrido por uma pessoa. No fundo, realmente, há que reconhecer que qualquer indemnização nunca representará efetivamente a diferença entre a situação real em que o autor ficou e a situação hipotética em que permaneceria se não fosse a lesão sofrida.

Passemos, pois, à quantificação da indemnização pelos danos não patrimoniais (artigo 496.º do C. Civil), tendo neste caso bem presente que a vítima em nada contribuiu para a verificação do ataque de que foi vítima e sequentes danos.

A doutrina e a jurisprudência têm entendido que, em caso de morte resultam três danos indemnizáveis:

- o dano pela perda do direito à vida;

- o dano sofrido pelos familiares da vítima com a morte do ente querido;

- e o dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de fatores de diversa ordem, como sejam: o tempo decorrido entre o ato lesivo e a morte; a circunstância de a vítima estar consciente; da intensidade das dores e demais padecimentos; e se teve ou não consciência de que ia morrer.

No caso presente importará apenas valorar a não apenas a violação do direito à vida da vítima, mas também os padecimentos que se provaram ter tido no tempo decorrido entre o facto despoletador da tragédia e o seu decesso, a que acresce o dano da demandante, consistente no sofrimento pela perda abrupta e violenta da sua filha.

Quantificando, pois, os referidos danos, mostra-se indubitável que as quantias pedida pela demandante (a título da perda da vida da vítima e seus sofrimentos; e a título do sofrimento da mãe por ter assistido ao definhamento da vida da sua filha e à perda desta), ajustadas aos critérios enunciados e tendo por referência os valores atribuídos em casos similares pela jurisprudência, com referência ao dia de hoje, ficam muito aquém do que teria direito, restando julgar integralmente procedentes os seus pedidos.

Em suma: os recursos do arguido e do Ministério Público não são merecedores de provimento; ao passo que o recurso da assistente/demandante civil granjeia integral provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, no integral provimento do recurso da demandante cível:

a) Expurgar da matéria de facto julgada não provada pelo Tribunal recorrido os pontos P. e Q.;

b) Alterar a redação do ponto 24. dos factos provados do acórdão recorrido, que passará a ter a seguinte redação: «DD tinha 26 anos de idade e vivia com a sua mãe BB e CC»;

c) Julgar integralmente procedentes os pedidos de indemnização civil formulados por BB (por si e como herdeira da vítima), condenando, em conformidade, o arguido/demandado a pagar-lhe 50 000€ a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima; e 5 000€ a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento decorrente da perda da sua filha por ato violento do arguido;

d) Negar provimento aos demais recursos.

e) Condenar em custas judiciais o recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s; estando o Ministério Público delas isento – artigo 522.º, § 1.º CPP.

Évora, 24 de setembro de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Jorge Antunes

António Condesso

..............................................................................................................

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 2008, processo n.º 07P4197, do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2018, processo n.º 204/10.8GASRE.C1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Novembro de 2019, processo n.º 214/18.7PDAMD.L1-5 e do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Março 2016, processo nº 635/14.4PAVNG.P1, de 10 de Janeiro de 2018, processo n.º 821/16.2T9GDM.P1, de 27 de Junho de 2018, processo n.º 82/17.6GAALB.P1 e de 17 de Junho de 2020, processo n.º 2541/19.7JAPRT.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt

4 Neste sentido, cf. acórdão STJ, de 29out2015, proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt,

5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, Editorial Notícias, p. 198.

6 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 96.

7 Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit. p. 90; e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2017, Almedina, p. 45.

8 Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 92/93.

9 Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 91.

10 Jorge de Figueiredo Dias, ob. Cit., p. 93.

11 Acórdão TRÉvora, de 22/4/2014, proc. n.º 291/13.7GEPTM.E1, Desemb. Ana Barata Brito. No mesmo sentido cf. acórdãos TRÉvora, de 29/5/2012, proc. 72/11.2PTFAR.E1, Desemb. António João Latas; e acórdão TRÉvora, de 16/6/2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, Desemb.

12 Acórdão do STJ, de 27mai2009, proc. 09P0484, relator Raúl Borges - http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e11c50996991c5df802575f20052ae77?OpenDocument ; No mesmo sentido se pronuncia Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1992, Eitorial Notícias, p. 197 - §255.

13 Direito das Obrigações, 2.º vol., p. 303.

14 Código Civil Anotado, vol. II, anot. ao artigo 483.º

15 Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. I, Coimbra, 1987, p. 502.

16 Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, vol. I, 5ª Ed., Almedina, p. 865-

17 Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18ma2006; de 24mai2007 e de 20jun2016 - Coletânea de Jurisprudência do Supremo, t. II, p, 95; t. II, p. 82; e t. II, p. 119, respetivamente.

18 Cf. Ricardo Angel Yaguez, La Responsabilidad Civil, 1989, Universidad de Deusto, p. 244.

19 Cf. neste exato sentido acórdão STJ, de 18dez2013, proc. 1749/06.0TBSTS.P1.S1

20 Neste sentido cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 9.ª edição, 1998, pp. 627/8; Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4.ª ed., 1982, pp. 304/305; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª ed., 2006, pp. 604/605; Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, Almedina, 1980, 2.ª ed., pp. 103/105.

21 Ana Prata, no Dicionário Jurídico, 4.ª ed., 2005, p. 499; Mário Bigotte Chorão, na Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, edição da Universidade Católica Portuguesa, 1984, volume 2.º - DF, pp. 988/997.