I. Para a verificação do crime de burla, exige-se a verificação de uma conduta astuciosa, que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano o lesado; e verificar-se causalmente um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como efeito daquela conduta.
II. A conexão densa e forte de suspeitas da possibilidade de participação de uma pessoa no esquema ilícito e astuciosamente gizado, que induziu o assistente/lesado em erro e a uma disponibilização pecuniária, que a terá enriquecido, à custa do prejuízo do assistente/lesado, só lograria a prova dos factos integradores do crime de burla, se a conjugação das provas disponíveis arredasse qualquer dúvida razoável acerca da autoria ou coautoria do arguido.
BB, ofendido, constitui-se assistente, aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido e dirigiu contra este um pedido de indemnização civil, reclamando a condenação do arguido/demandado a entregar-lhe a quantia de 3 259,07€, acrescida de juros de mora vincendos.
O arguido contestou oferecendo o merecimento dos autos relativamente à questão penal e, no respeitante ao pedido de indemnização civil, afirmando não ter dado causa a qualquer dano ao demandante, pelo que reclamou a sua absolvição.
Na sentença o tribunal recorrido absolveu o arguido da acusação e do pedido de indemnização civil, por falta de prova dos factos constitutivos dos respetivos ilícitos (penal e civil).
b. Inconformado com tal decisão, o assistente apresenta-se a recorrer, extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:
«1.ª – No que concerne à matéria de facto provada a mesma carece de ser alterada porque há factos que estão provados por documento e que nela não foram relevados, e que a serem-no levariam à condenação do arguido;
2.ª – Porquanto, não entende o recorrente como se pode dar por provado que pagou 3 000€, pela aquisição da máquina, cuja venda foi publicitada, e
3.ª – a final nenhuma consequência teve a conduta do arguido plasmada na factualidade contida na acusação pública;
4.ª – Na verdade, o recorrente visualizou o anúncio, contactou o interessado na venda e com ele ajustou os pormenores do negócio;
5.ª – O tal “homem” com quem falou afirmou que se quisesse ficar com a máquina “tinha de pagar para reservar”, facto provado;
6.ª – O recorrente solicitou uma “declaração de venda”, o que lhe foi remetido;
7.ª – Após isso, transferiu o remanescente do preço, 2 500€, facto provado;
8.ª – Para a conta bancária titulada pelo arguido na …, também provado;
9.ª – Tendo o mesmo movimentado o valor transferido para outras contas e pago despesas, cfr. resulta do extrato inserto nos autos, factos provados;
10.ª – Sendo certo que, na ocasião, a conta em causa dispunha apenas de 0,73€ de saldo, igualmente provado;
11.ª – Por outro lado, demonstrou-se que o arguido somente dispunha de dois registos de remunerações na segurança social, também provado;
12.ª – O recorrente mandou um motorista recolher o bem adquirido, mas, esperou em vão, pelo que aquele ficou sem o dinheiro e sem a publicita máquina;
13.ª – Ora o arguido bem sabia que não podia vender uma coisa que não lhe pertencia.
14.ª - E que fazendo crer ao recorrente que o podia fazer, o quis enganar;
15.ª – Convencendo-o a desembolsar a quantia acima referida que utilizou em proveito próprio;
16.ª – Pelo que, deve ser alterada a resposta aos factos provados neles se incluindo os constantes dos pontos A a H e I da acusação pública, passando os mesmos as serem julgados provados;
17.ª – O crime pelo qual o arguido foi acusado caracteriza-se pela “intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”;
18.ª – Ora, não pode deixar de se ver na conduta do arguido que o mesmo conhecia a proveniência do dinheiro que caiu na sua conta bancária;
19.ª – Que foi ele que publicitou a venda do bem que sabia não ser seu;
20.ª – E, em face do interesse manifestado pelo recorrente em adquiria máquina, agiu por forma a que o mesmo operasse a deslocação patrimonial a seu favor, como o evidencia a transferência primeiro de 500€ e seguida da quantia de 2 500€ para a sua conta, a qual apresentava um saldo de 0,73€, ficando apos os movimentos bancários com 53,90€;
21.ª – E com isso sabia e não poderia ignorar que lhe iria causar um prejuízo patrimonial, como causou;
22.ª – Pelo que, com a sua conduta preencheu o tipo de crime previsto no art. 217º, nº 1, do CP.»
c. Admitido o recurso o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu às motivações de recurso, concluindo que:
«2.ª Da análise da prova produzida não se infere que foi o arguido que executou um artifício fraudulento que determinou um prejuízo patrimonial ao ora recorrente.
3.ª Do exame e conjugação da prova verifica-se que os pontos “A” a “I” delimitados na douta sentença devem ser dados como não provados, como decidiu o Tribunal a quo.
4.ª O Tribunal a quo fez uma correta apreciação da matéria de facto e de Direito, verificando-se que não existem elementos suficientes para condenação do arguido pela prática de um crime de burla.
5.ª Da douta sentença recorrida resulta uma correta e ponderada apreciação da prova produzida, reconhecendo-se a descrição do processo lógico ou racional subjacente à formação da convicção do Juiz, sendo percetível o exame crítico da prova que permitiu dar como provados e não provados os factos.
6.ª O Tribunal a quo não violou qualquer disposição legal.
Pelo que, deve ser mantida a sentença proferida nos presentes autos e negado provimento ao douto recurso.»
d. Também o arguido respondeu ao recurso, referindo, no essencial, que:
- «a sentença proferida é uma cuidada e bem elaborada peça, que interpretou corretamente os factos e aplicou devidamente o direito, nenhuma censura merecendo e devendo ser integralmente mantida.»
e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer, no qual secundou integralmente a posição já assumida na resposta ao recurso.
f. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º do CPP, o recorrente/assistente, agora sob o mote do contraditório ao parecer do Ministério Público, reitera, agora sumariamente, a argumentação já apresentada no recurso.
g. Os autos foram aos vistos e à conferência, em sequência do que cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). Suscitando-se as seguintes questões: i) erro de julgamento da questão de facto; ii) erro de julgamento da questão de direito.
B.1 O tribunal recorrido considerou provado o seguinte quadro factológico:
«1. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 23 de maio de 2021, foi publicitado no site da Internet denominado “…” a venda de um empilhador da marca …1.8 toneladas pelo preço de 3 000€.
2. No dia 23 de maio de 2021 BB visualizou tal anúncio onde se interessou por tal empilhador, aceitando adquiri-lo por 3 000€.
3. O ofendido no dia 23 de maio de 2021, cerca das 23h10 fez um pagamento de 500€ por MBWAY para o n.º …
4. Posteriormente, no dia 24 de maio de 2021, o ofendido entregou ao arguido o montante de 2 500€, mediante transferência bancária para uma conta titulada pelo arguido na …, com o NIB ….
Condições pessoais e económicas:
- O arguido trabalhou para a …, tendo recebido, a partir de 1-12-2021, o valor de 250,50€, sendo a última remuneração em 12-2021.
- Em 18-09-2023 prestou trabalho para a …, sendo a última remuneração em 10-2023, no montante de 97,40€.
– Dos antecedentes criminais:
O arguido não tem antecedentes criminais.»
B.2 E julgou não provados os seguintes factos:
«A. Foi o arguido, em comunhão de esforços e intentos e em execução de um plano previamente acordado com um individuo cuja identidade não se logrou apurar, que publicitou o anúncio referido em 1.
B. Nessa sequência, contactou telefonicamente o arguido a quem mostrou interesse na sua aquisição.
C. O arguido confirmou que dispunha do referido empilhador e, nessa conformidade, o ofendido acertou com aquele a modalidade de pagamento bem como a forma de entrega do mesmo.
D. O pagamento referido em 3 foi feito, após acertar com o arguido os termos do pagamento, tendo o valor sido entregue a este, que convenceu o ofendido que o número era da sua filha.
E. O valor referido em 4 era correspondente ao remanescente do valor que acordou com o arguido, persuadido por este de que, logo que recebido o preço procederia à entrega do empilhador em local a combinar posteriormente.
F. Todavia, o arguido não pretendia vender tal bem, nunca tendo procedido à sua entrega ao ofendido, tendo feito seu os 3 000€ que este lhe pagou.
G. Ao fazer crer a BB, mediante a publicação da venda do empilhador num site de vendas on-line, e ao confirmar ao ofendido que dispunha de tal bem para venda e que o venderia ao ofendido pelo preço de 3 000€, agiu o arguido bem sabendo que o ludibriava.
H. Efetivamente, o arguido apenas visou obter um proveito económico de 3 000€ a que sabia não ter direito, diminuindo nesse valor o património de BB, o qual só lhe entregou tal montante por ter sido persuadido de que os factos acima descritos correspondiam à realidade.
I. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente e em execução de um plano previamente delineado com um individuo cuja identidade não se logrou apurar, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e sendo capaz de a orientar de harmonia com esse conhecimento.»
B.3 Tendo-se motivado a formação da convicção nos seguintes termos:
«A convicção do Tribunal fundou-se no conjunto da prova realizada, que foi analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º do Código de Processo Penal.
O arguido não esteve presente na audiência de julgamento.
Prestou declarações o assistente/demandante BB, que contou que, viu o empilhador, …, no valor de 3 000€, e ligou para a pessoa, que era um homem. Este disse que existiam mais interessados, pelo que tinha que pagar para reservar. Fez o pagamento de 500€, por MBWAY para o número que aquele lhe indicou, dizendo que era da filha. Combinaram que falavam no dia a seguir para combinar e ele disse que tinha que fazer o restante pagamento de 1 500€ para o NIB que lhe indicou. Pediu-lhe uma declaração de venda, que lhe foi enviada. Confrontado com a que consta de fls. 9 confirma que se trata da que recebeu, dizendo que não confirmou o nome da empresa, nem fez qualquer pesquisa. Acordaram a entrega, mandou um motorista ao local, mas ninguém apareceu. Questionado relativamente ao número para o qual ligou, diz que indicou o mesmo no momento em que fez a denúncia.
Não obstante se tratar do ofendido, as declarações que prestou foram naturais, coerentes e convictas, sendo que, são também corroboradas pela prova documental constante dos autos. Em concreto, do comprovativo de transferência MBWAY a fls. 6, resulta a transferência de 500€ para o número …, no dia 23 de maio de 2021, pelas 23h10. O que corresponde ao primeiro pagamento, que disse ter realizado, e nos permite fixar os factos no dia 23 de maio de 2021.
No que respeita ao restante valor, da cópia do talão multibanco a fls. 8, resulta a transferência de 2 500€, para o NIB …, no dia 24-5-2021, que teve como destinatário AA, valor que, de acordo com o extrato bancário de fls. 19, entrou na conta do arguido. Ainda, da declaração de venda de fls. 9, resulta o valor de 3 000€ que o ofendido se comprometeu a pagar pelo empilhador, e que corresponde à totalidade do valor transferido.
No que respeita à intervenção do arguido:
O ofendido referiu que indicou o número, para o qual ligou para fazer o negócio, quando apresentou queixa. E efetivamente este consta do auto de denúncia de fls. 2, sendo correspondente ao número …. Foi também, com este número, que depois do sucedido foram trocadas várias mensagens, conforme print de fls. 35 a 43.
Da informação prestada pelo … de fls. 30, resulta que, tanto este número, como aquele para o qual foi feita a transferência por MBWAY, tratam-se de cartões pré-pagos, não sendo assim possível apurar o seu titular.
Questionado o ofendido sobre a pessoa com quem falou, disse não saber o nome.
Relativamente à declaração de venda de fls. 9, desta consta que a “empresa …”, declara que vende o empilhador, por 3 000€, constando uma assinatura, que apesar de não ser percetível o nome na totalidade, percebe-se que começa por J, tendo também um B maiúsculo. Pelo que, desta não se retira o nome do arguido, sendo que, não foi feita qualquer prova sobre a relação do mesmo com a referida empresa.
Chegamos ao talão multibanco e à informação bancária. Este encontra-se a fls. 8, e retira-se a realização de uma transferência de 2 500€, para o NIB …, no dia 24-5-2021, que teve como destinatário AA. Da informação bancária de fls. 18 e 19, consta que a conta é apenas titulada pelo arguido, resultando do extrato bancário que, no dia 24-5-2021, o valor de 2 500€ entrou na conta do arguido, por transferência de BB, ocorrendo no mesmo dia dois levantamentos e uma compra, no dia seguinte, novos levantamentos e dia 26, dois levantamentos e duas transferências. Importa referir que, quando o dinheiro entr[ou] na conta esta tinha 0,73€, ficando no dia 26, após os referidos movimentos com 53,90€.
Desta apreciação resulta que, o valor de 2 500€ foi transferido para a conta do arguido, conta esta titulada pelo próprio, tendo sido nos dias seguintes utilizado pelo próprio, essencialmente com outros levantamentos.
Nada mais.
Porém, a entrada deste valor na conta do arguido, não nos permite concluir que, foi o arguido que colocou o empilhador à venda, que foi com o arguido que o ofendido contactou, ou que foi o arguido que indicou as formas de pagamento, o numero de telemóvel e a conta para a qual deveria ser feita a transferência. É certo que, o valor de 2 500€ entrou na conta do arguido e foi pelo mesmo utilizado. No entanto, tal não nos permite concluir, com certeza o restante.
Face ao exposto, da conjugação das declarações do assistente, com a referida prova documental resultam provados os factos dos pontos 1 a 4. Porém, por falta de prova, resultam não provados os factos dos pontos A a I.
Sobre as condições económicas do arguido:
O arguido não compareceu na DGRSP para elaboração do relatório social, cf. informação junta aos autos e a que corresponde a referência …. Com efeito, os factos sobre a sua situação económica e social resultam das pesquisas realizadas nas bases de dados da segurança social - referências … e ….
Sobre os antecedentes criminais:
No que tange aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos a que corresponde a referência ….»
C. Apreciando
C.1 Do erro de julgamento da questão de facto
A motivação do recurso e, por consequência também as respetivas conclusões, evidenciam que o recorrente discorda da matéria de facto julgada provada pelo tribunal recorrido. Mas o que é verdade é que não se indica de que factos concretos se discorda, nem (muito menos) quais são as provas que evidenciam o contrário do que se considerou provado! Lembremos, brevemente, que de acordo com o figurino normativo vigente, o recurso não constitui um novo julgamento da causa. Sendo antes - e apenas - um meio processual que permite identificar e corrigir erros concretos in procedendo ou in judicando, que resultem de forma clara e evidente da prova indicada.
Para tanto, a impugnação da convicção do tribunal deverá assentar na violação dos passos seguidos para a sua aquisição, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação; ou porque se se ignorou determinado meio de prova; ou se consideraram provados factos baseados em declarações ou depoimentos cujos declarantes ou depoentes a eles se não referiram ou disseram o contrário do que o tribunal afirma; ou ainda porque a liberdade na formação da convicção estava de algum modo comprometida.
É exatamente isto que o Supremo Tribunal de Justiça vem sublinhando (3): «impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorretamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na ata, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso.
Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exato sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.»
Quer-se dizer, os recursos servem para despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, impondo-se ao recorrente o ónus de proceder a (pelo menos) uma dupla especificação (artigo 412.º/3 CPP):
- a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – al. a) (devendo individualizadamente indicar-se os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados);
- a indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida – al. b) (id est indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida).
Porquanto, conforme resulta do disposto no artigo 431.º, al. b) CPP, havendo documentação da prova - como no caso se verifica -, a decisão do tribunal de 1.ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos previstos no artigo 412.º, § 3.º CPP, com o requisito substancial de que tal prova tem que impor diversa apreciação probatória.
Ora, não é isso que sucede no caso em apreço! Sendo patente a insuficiência das motivações do recorrente quanto ao cumprimento do indicado ónus (que factos impugna? que provas impõem decisão diversa relativamente a que factos?).
A incerteza na resposta a estas questões logo evidencia que nestas circunstâncias se deverá simplesmente concluir pela inexistência desse substrato essencial. (4) O recorrente limita-se a dizer que o tribunal recorrido, «apesar de referenciar na fundamentação da decisão de facto» certos factos, não os deu como provados. Desligando-se das razões que ali se apontam justamente no sentido de não poderem considerar-se provados. Sem apontar erro a esse juízo, designadamente por o meio de prova «X» ou «Y» ou a conjugação dos meios de prova ou de obtenção de prova «Z», «J» e «G», impor que se considerassem provados!
Ora esse é que é o pressuposto da impugnação, de quando se alega haver erro no julgamento da questão de facto (artigo 412.º, § 3.º CPP).
O princípio da presunção de inocência proclamado no artigo 32.º, § 2.º da Constituição, com referência às «garantias do processo criminal», dispõe que: «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».
Proclamado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em plena revolução francesa, no ano de 1789, emerge ligado às ideias de liberdade e de dignidade da pessoa humana, à luz dos quais a possibilidade de submeter alguém que não praticou nenhum ato criminoso a consequências penais, constitui algo de intolerável, traçando um limite absoluto à prossecução dos fins estaduais de administração da justiça.
Não sendo por acaso que consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 11.º, § 1.º); da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (artigo 6.º, § 2.º); do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º, § 2.º); e no artigo 48.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
Na administração da justiça esse princípio conexiona-se ainda com as garantias de um processo penal moderno, que é um processo equitativo (artigos 20.º, § 4.º e 32.º, § 2.º da Constituição; 6.º da CEDH; 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; e 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
Tendo as provas produzidas conexões evidentes com a pessoa do arguido: uma parte significativa do dinheiro que o assistente despendeu foi depositado numa conta bancária que que pertence ao arguido; e que tal quantia dali foi levantada, cujo destino se tornou desconhecido. A verdade é que este facto não demonstra mais que isto mesmo!
Claro que essa conexão adensa suspeitas fortes sobre a possibilidade da intervenção do arguido no esquema que levou o assistente à disponibilização da quantia em referência e ao consequente prejuízo. Mas os factos não o demonstram suficientemente.
Pelo menos para além de dúvida razoável (pois existe a possibilidade de não ter sido ele – ou ele com outro) quem astucioso gizou e/ou participou no esquema montado que induziu o assistente/lesado em erro ou engano e a uma disponibilização pecuniária, que o terá enriquecido, à custa do prejuízo do assistente/lesado (que se vem mantendo).
Isto é, o conjunto das provas disponíveis no processo, não é suficiente para demonstrar os factos essenciais (porque constitutivos do ilícito em referência). Como já sucedia quando foi deduzida a acusação.
O recorrente está convicto que foi o arguido quem praticou os factos que o tribunal recorrido julgou não provados. Mas, como visto, não se consegue demonstrá-lo. Onde mora o erro de julgamento?
Ora, ao juízo efetuado pelo tribunal recorrido, exposto na motivação da sentença, subjaz uma racionalidade que não contradiz as regras da lógica e a experiência comum, sendo claramente demonstrativa que as provas disponíveis e produzidas não demonstram os factos que se consideraram não provados. Tendo os factos considerados não provados sido, pois, bem julgados. Não se demonstrando nesse conspecto qualquer erro de julgamento.
C.3 Do erro de julgamento da questão de direito
O crime de burla vem previsto no artigo 217.º, § 1.º CP, aí se dispondo que: «1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
Em termos sintéticos, para a verificação do crime de burla, exige-se a verificação de uma conduta astuciosa, que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano o lesado; e verificar-se causalmente um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como efeito daquela conduta. O recorrente afirma que a conduta do arguido preenche o tipo de ilícito em referência, para tanto considerando os factos julgados não provados, que se tivessem sido julgados «provados». Mas a verdade é que não foram.
Do acervo da factologia provada não emerge: - que o arguido tenha induzido o recorrente em erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados; e que tenham sido determinantes da disponibilização patrimonial de que o ofendido se encontra desembolsado; - que tenha (ele próprio) agido com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. E por isso não se verifica o crime de burla que o recorrente veementemente afirma, sem que se demonstre! Razão pela qual o recurso se não mostra merecedor de provimento.
III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a douta sentença recorrida.
b) Custas pelo assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 515.º, § 1.º, al. b) CPP e Tabela III do Reg. Custas Processuais);
c) Notifique-se.
Évora, 24 de setembro de 2024
J. F. Moreira das Neves (relator)
Artur Vargues
Laura Goulart Maurício
............................................................................................................
1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.
3 Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 3/2012, de 8mar2012, publicado no DR, I-A, de 18abr2012.
4 Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 259/2002, de 18/6/2002 (publicado no DR, II, de 13dez2002): «quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 412.º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.» O mesmo se considerou no acórdão n.º 140/2004, de 10mar2004 do mesmo Tribunal.