ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
Sumário

A Acusação Particular/Pública deverá conter (sob pena de nulidade) uma descrição fáctica, com a indicação precisa e completa dos factos que entende estarem indiciados e que integram o tipo de ilícito em causa (tanto os elementos objetivos do crime, como os elementos subjetivos daquele) e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
Os elementos objetivos do crime constituem a materialidade do crime; traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjetivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
Verificando-se na Acusação particular deduzida a omissão de factos integradores dos elementos constitutivos do tipo subjetivo dos ilícitos imputados, considera-se que a mesma é manifestamente infundada, devendo ser rejeitada, uma vez recebidos os autos em Tribunal (e não tendo havido Instrução), nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de … – Juiz …, Proc. nº 410/22.2GBODEM, foi proferido despacho, aos 27/12/2023, que rejeitou por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nºs 1 e 2, alínea a) e 3, alínea b), do CPP, a acusação particular deduzida pela assistente AA contra a arguida BB em que lhe é imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, de dois crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal e um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do mesmo.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso a assistente, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

I- A Assistente AA, deduziu Acusação Particular contra a arguida imputando-lhe a prática dois crimes de injúria, previstos e punidos nos termos do art.º 181º do C. Penal e um crime de difamação, previsto e punido nos termos do art.º 180º do C. Penal;

II- Por decisão preferida através da referência …, o Tribunal “a quo”, rejeitou a Acusação Particular, por insuficiência de narração dos factos – dos elementos subjetivos dos tipos legais de crime de injúria e de difamação imputados à arguida -, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b) e 311.º, n.º 1, 2, al. a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal;

III- Extrai-se da Acusação Particular que a mesma cumpre inteligivelmente os termos do disposto no art.º 283º, n.º 3, do C.P. Penal, por força do art.º 285º, n.º 3 do mesmo diploma legal;

IV- Os elementos subjetivos constitutivos dos crimes imputados encontram-se narrados nos artigos 8º, 9º, 10º e 11º da Acusação Particular, resultando do texto do próprio artigo 8º a imputação direta dos factos à arguida e que os mesmos eram falsos;

V- O Tribunal “a quo” não teve, na decisão proferida e agora impugnada, a melhor consideração do disposto no art.º 311º, n.º 3, al. b) do C.P. Penal, violando-o claramente.

Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão que rejeitou a Acusação Particular, devendo a mesma ser substituída por outra que admita liminarmente aquele articulado;

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

4. Foi apresentada resposta à motivação de recurso pela arguida, em que pugna pela manutenção da decisão revidenda.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos, em síntese:

Cumpre, desde já adiantar que no nosso modesto parecer, assiste razão, por inteiro, à Mme Juiz na 1ª instância.

Importa concretizar que o principal ponto de distinção entre o crime de injúria e o crime de difamação afere-se pela circunstância do juízo ou facto ser directa ou indirectamente imputado, isto é, se a imputação é efectuada perante o próprio ofendido ou, pelo contrário, se é efectuada perante um terceiro, sendo que no primeiro caso tratar-se-á do tipo incriminador do artigo 181.º do Código Penal, enquanto que no segundo caso estará em causa a prática de um crime de difamação do artigo 180.º do mesmo diploma legal.

Um «facto» corresponde a um «juízo de existência ou de realidade», sendo que a formulação de um juízo, realidade também abarcada pelo tipo incriminador, corresponde, por sua vez, a uma valoração de uma ideia ou de uma coisa.

Importa enfatizar que a imputação de um facto ou a formação de um juízo têm de ser contextualmente analisados com vista a aferir se assumem relevância penal, isto é, deve o julgador ter em consideração a respectiva adequação social no meio em que são reproduzidos, o mesmo sendo aplicável a «palavras ofensivas da sua honra e consideração».

No caso em apreço e ora presente à alta apreciação de Vossas Excelências e no que concerne ao tipo subjectivo de ilícito é de considerar que o mesmo é susceptível de preenchimento mercê de uma actuação dolosa por parte do agente em qualquer uma das modalidades a que se refere o artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal, e somente é susceptível de integração a este título porque uma actuação negligente já será considerada atípica (sem prejuízo de ocorrência de eventual responsabilidade civil).

O Prof. Paulo Pinto de Albuquerque refere que o tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo (1).

No caso concreto e precisamente a respeito do elemento subjectivo, afigura-se-nos que a acusação particular, ressalvada sempre melhor apreciação, não o descreve através da correspondente alegação fáctica, a qual é, assim, omissa nesta vertente.

No que toca à propalada difamação apenas se vislumbra o seguinte:

Assim, no dia 19 de Maio de 2022, a arguida dirigindo-se a uma vizinha da assistente, afirmou que assistente terá entrado no lote …, com o "intuito de envenenar o jardim”, o que é falso.

Nesta esteira como bem adverte o Excelentíssimo Desembargador Renato Barroso no Ac. Relação de Évora de 26.09.2023 (no âmbito do processo 203/18.1PCSTB.E1) “ Note-se que “faltando todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.5.2019, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Vasques Osório, processo n.º 267/16.2T9PMS.C, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Mais resulta do citado acórdão desta Veneranda Relação que: “…conforme surge mencionado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015, “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito”, dando-se ainda conta que “de forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum»” e que “tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objectiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa”, concluindo-se que “a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa” e fixando-se a jurisprudência segundo a qual “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça publicado no DR 18, SÉRIE I, 27.1.2015), e, por maioria de razão, talqualmente não se nos afigura que possa sê-lo por via do preceituado no artigo 359.º da lei processual penal.

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, declarar improcedente o recurso apresentado pela assistente e manter a douta decisão recorrida.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se deveria a acusação deduzida nos autos pela assistente ser rejeitada por manifestamente infundada.

2. Elementos relevantes para a apreciação deste recurso

2.1 Aos 12/09/2023, a assistente AA deduziu acusação particular contra a arguida BB, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do Código Penal e um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, do Código Penal.

2.2 Por despacho de 14/09/2023, o Digno Magistrado do Ministério Público não acompanhou a acusação particular, por entender que “não foram recolhidos indícios suficientes de que os crimes ocorreram, sendo o juízo de prognose negativo relativamente à possibilidade de a arguida ser condenada”.

2.3 Em 27/12/2023, foi proferida a seguinte decisão objecto do recurso (transcrição):

Autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.

Do Saneamento:

O Tribunal é competente.

A Assistente tem legitimidade para deduzir acusação contra a arguida pela prática de crime de injuria e de difamação.

Não existem outras nulidades, exceções ou questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

Da Acusação Particular:

Veio a Assistente AA, nos presentes autos de processo comum, deduzir Acusação Particular (referência …) contra a arguida BB, imputando-lhe os factos e tipos de crime que melhor se encontram plasmados naquela sua Acusação e para cujo teor se remete integralmente.

No seu seguimento, veio o Ministério Público informar que não acompanha a Acusação Particular deduzida pela Assistente (referência …).

Em causa, está a imputação à arguida da prática, em autoria material, sob a forma consumada, e em concurso efetivo de dois crimes de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.

Remetidos os autos de inquérito a este Juízo, para julgamento em processo comum, cumpre, pois, apreciar liminarmente a Decisão de Acusação, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Assim, determina o artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n. º3, alínea b), do Código de Processo Penal que a Acusação deverá ser rejeitada se o juiz a considerar manifestamente infundada, mormente por não conter a narração dos factos.

Concomitantemente, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal que “A acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)”.

Ora, tal imposição legal deriva do facto de ser a Acusação que fixa e delimita o objeto do processo, isto é, é nos limites da Acusação Particular/Pública que se definem os poderes de cognição do Juiz, em sede de Julgamento. Segundo Figueiredo Dias, é este o significado do princípio da vinculação temática do tribunal, sendo nele que se consubstanciam os princípios da identidade (objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objeto do processo penal (mesmo quando o objeto não tenha sido conhecido na sua totalidade, deve considerar-se irrepetivelmente decidido, não podendo renascer noutro processo).

Pelo que, e tendo em consideração o normativo referido, a Acusação Particular/Pública deverá conter (sob pena de nulidade) uma descrição fáctica, com a indicação precisa e completa dos factos que entende estarem indiciados e que integram o tipo de ilícito em causa (tanto os elementos objetivos do crime, como os elementos subjetivos daquele) e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

Os elementos objetivos do crime constituem a materialidade do crime; traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjetivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Não contendo a Acusação Pública/Particular tais factos atinentes ao elemento objetivo e elemento subjetivo, considera-se – tal como já anteriormente mencionado - que a mesma é manifestamente infundada, devendo ser rejeitada, uma vez recebidos os autos em Tribunal (e não tendo havido Instrução), nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

Ora, no que diz respeito aos elementos do tipo subjetivo de ilícito, nestes incluem-se os que se prendem com o dolo (ou negligência) – artigo 13.º, do Código Penal – sendo este composto por vários elementos, desdobrando-se em elemento intelectual e elemento volitivo e/ou emocional.

Assim, o elemento intelectual do dolo consiste no conhecimento (enquanto previsão ou representação) pelo agente, das circunstâncias do facto, isto é, dos elementos materiais constitutivos do tipo objetivo do ilícito, o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem.

Já no que diz respeito ao elemento volitivo do dolo, este traduz-se na especial direção da vontade/intenção do agente na realização do facto típico ou da previsão do resultado danoso ou da criação de perigo como consequência necessária da sua conduta ou ainda da previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (consoante o dolo seja direto, necessário ou eventual, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.ºs 1 a 3, do Código Penal).

A tais elementos acresce um outro, segundo Figueiredo Dias: o elemento emocional, o qual se traduz na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma, fazendo parte do tipo de culpa doloso. Este elemento emocional é conseguido através da consciência da ilicitude.

Em suma, os elementos subjetivos do tipo são habitualmente expressos na Acusação através da expressão de que o arguido agiu de forma livre (podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito), deliberada ou voluntária (querendo a realização do facto), e consciente (tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

Faltando, na Acusação Particular/Pública, um dos elementos constitutivos do elemento subjetivo do ilícito, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em sede de julgamento, por intermédio do mecanismo processual previsto no artigo 358.º, do Código de Processo Penal (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2015, de 27 de janeiro).

Importa, neste momento, verter ao caso em concreto, ou seja, ao teor da Acusação Particular dos presentes autos.

Os crimes que a arguida vem incursa são o crime de injúria, previsto no artigo 181.º, n. º1, do Código Penal, o qual estatui que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.” e o crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º1, do Código Penal, o qual determina que “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputa a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”.

No que concerne ao elemento objetivo do crime de injúria e de difamação, o seu preenchimento depende da verificação cumulativa dos seguintes elementos constitutivos:

1) Imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo.

2) A conduta deve ser adequada a produzir a ofensa no bem jurídico tutelado.

A diferença entre os crimes mencionados é que no crime de injuria a imputação de facto ofensivo/formulação de juízo ofensivo da honra é efetuada diretamente pelo agente à vítima e no crime de difamação aquela é dirigida pelo agente sobre a vítima mas diretamente a terceiros.

No que toca ao elemento subjetivo de ambos os tipos legais de crime, o preenchimento do tipo legal basta-se com o dolo genérico, podendo verificar-se em qualquer das suas formas – direto, necessário ou eventual, em conformidade com o disposto no artigo 14.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Penal. Assim, o elemento subjetivo envolve o conhecimento do agente sobre cada um dos elementos objetivos anteriormente referidos e, bem assim, a vontade do agente na realização do facto típico ou da previsão do resultado danoso ou da criação de perigo como consequência necessária da sua conduta ou ainda da previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento, e na consciência do agente da ilicitude da sua conduta.

Pelo que, escalpelizando os factos narrados na Acusação Particular, extrai-se que os mesmos não correspondem aos elementos subjetivos do tipo de crime em causa.

Assim, analisando a Acusação Particular apresentada pela Assistente da mesma não resulta qualquer factualidade referente aos elementos subjetivos do tipo de crime de injúria.

Efetivamente, da Acusação Particular não resulta que a arguida sabia que ao proferir as expressões descritas na Acusação estava a imputar factos à assistente que não correspondiam à verdade, que sabia que os mesmos ofendiam a honra da Assistente ou eram adequados a tal, tendo agido com tal propósito concretizado, e que aquela sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Pelo que, a Acusação Particular falhou quando não imputou factos relativos aos elementos subjetivos constitutivos do tipo de crime de injúria e de difamação.

O mesmo será dizer que, perante a factualidade vertida na Acusação Particular a mesma não é suscetível de integrar a prática de qualquer tipo legal de crime.

Acresce referir que a insuficiência de narração dos factos na Acusação é fundamento de rejeição desta, a qual não dará lugar à devolução da mesma à Assistente, nos termos do disposto no artigo 122.º, do Código de Processo Penal, na medida em que tal implicaria uma contravenção do estipulado no artigo 311.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, e frustraria as legítimas expetativas do arguido e garantia de defesa constitucionalmente tuteladas pelo artigo 32.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa.

Em face do supra exposto e considerando todos os fundamentos legais supramencionados, rejeita-se a Acusação Particular, por insuficiência de narração dos factos – dos elementos subjetivos dos tipos legais de crime de injúria e de difamação imputados à arguida -, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b) e 311.º, n.º 1, 2, al. a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

Custas processuais a cargo da Assistente, nos termos do disposto no artigo 515.º, n.º 1 alínea f), do Código de Processo Penal.

Notifique.

Apreciemos.

Estabelece-se no artigo 311º nº 2, do CPP, que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente”.

A acusação considera-se manifestamente infundada, nos termos do nº 3, do mesmo artigo:

“a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d) Se os factos não constituírem crime”.

O tribunal a quo rejeitou a acusação particular da assistente considerando-a manifestamente infundada, por não conter factos integradores dos elementos subjectivos dos imputados crime de injúria e difamação.

De acordo com o consagrado no nº 3 do artigo 285º, do CPP, é aplicável à acusação particular o disposto nos nºs 3, 7 e 8 do artigo 283º, sendo que resulta do nº 3, alínea b) deste artigo que se impõe que contenha a acusação os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo (ou tipos) criminal que se considere terem sido preenchidos.

Daí que na acusação particular pelo assistente deduzida se tenha igualmente de descrever a factualidade configuradora dos aludidos elementos.

Como é sabido, a importância da delimitação de um modo suficientemente rigoroso do objecto do processo prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa - artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

E, uma vez que se está perante crimes que revestem natureza procedimental particular, não tendo sido requerida a instrução pela arguida, o objecto do processo fixa-se precisamente com a acusação, constituindo esta uma das vertentes do princípio do acusatório.

Ora, a assistente, na peça acusatória que apresentou, descreveu a materialidade da conduta integradora dos crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal e difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, desse Código cuja prática imputa à arguida. Quer dizer, os factos que preenchem os tipos objectivos dos crimes.

Porém, tinha de narrar igualmente os factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo. Isto é, da imputação de tais factos ao agente a título de dolo, em qualquer das suas modalidades definidas no artigo 14º, do Código Penal – pois os crimes de injúria e difamação são crimes que apenas admitem a forma de cometimento doloso, como decorre do artigo 13º, do Código Penal, conjugado com a descrição das normas tipificadoras.

Na verdade, tem-se sedimentado na doutrina penalista o entendimento do dolo do tipo de ilícito como composto pelo conhecimento (momento intelectual ou cognitivo) e vontade (momento volitivo) de realização do facto, o que plasmado está no referenciado artigo 14º, de onde, para que o dolo do tipo esteja presente necessário se torna, desde logo, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo objectivo de ilícito (isto é, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do mesmo).

Com efeito, é necessário que ao actuar, o agente conheça “tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter de ilícito”, porquanto só quando os elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito – assim, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 351 - exigindo-se ainda que a prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização.

Daí que, como se refere no Ac. da Relação de Coimbra de 13/09/2017, Proc. nº 146/16.3 PCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual)”.

E, no Ac. do STJ nº 1/2015, de 20/11/2014, DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, fixou-se a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.

No mesmo aresto se podendo ler, que “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.”

Acrescentando-se ainda: “conexionada com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP)” (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa” – fim de citação.

Pois bem.

Percorrendo a acusação particular, conclui-se que, para além da factualidade relativa aos elementos objectivos dos tipos legais, narra-se que as palavras e expressões dirigidas pela arguida à assistente, imputando-lhe determinados factos são falsos, ofensivos na honra e consideração desta; a assistente sentiu-se magoada, indignada e envergonhada na sua honra e consideração com as palavras proferidas pela arguida, uma vez que foram proferidas por uma vizinha e na presença de familiares e terceiros, bem assim que com a sua conduta, a arguida agiu de forma livre e consciente e com a intenção de injuriar e difamar a assistente.

Ora, a articulação de que a arguida agiu de forma livre e consciente e com a intenção de injuriar e difamar a assistente descreve com suficiência que tinha a arguida possibilidade de actuar conforme ao direito, de se autodeterminar e escolher suas acções, tendo optado por proceder de forma a atingir a honra e consideração da assistente, o que basta para afastar a verificação de causas de exclusão da culpa, afirmando-se a sua liberdade da acção na actuação contra o direito.

Porém, a acusação claudica quando não relata os factos relativos ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo do tipo dos crimes, que exige “o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem”.

Como se elucida no Ac da Relação de Coimbra de 22/02/2023, Proc. nº 61/20.6GDLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt, “seria imprescindível que a acusação adoptasse uma expressão como “o arguido sabia que as expressões por si proferidas eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração dos Assistentes” ou expressão similar.”

Destarte, verificando-se, como se verifica, a omissão na acusação particular de factos integradores dos elementos constitutivos do tipo subjectivo dos ilícitos imputados na acusação particular, não merece censura a decisão recorrida que a rejeitou, atento o preceituado no artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea b), do CPP.

Termos em que, cumpre negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso pela assistente AA interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Évora, 24 de Setembro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(Jorge Antunes

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1 Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CP, Lisboa, UCE, 2010, nota 8, pág. 569