- Estando-se perante a contra-ordenação prevista no artº 111º, nº 2, al. a), do D.L. 127/2013 de 30/8, ou seja, “A construção, alteração ou laboração de uma instalação que explore uma ou mais atividades constantes do anexo I com inobservância das condições fixadas na LA;”e estando essa inobservância da Licença Ambiental bem explicitada em várias alíneas da matéria considerada provada na decisão administrativa, esta manifestamente refere que atento o facto de tais inobservâncias terem que ver com desrespeito de normas que regem a atividade da arguida, não foram cumpridas as obrigações que sobre ela impendiam, não tendo, por isso, a mesma atuado com a diligência necessária e de que era capaz.
- Não está aqui em causa sequer saber se a decisão administrativa deve conter todos os elementos da sentença judicial, pois do que se trata é apenas de apurar se contem todos os factos (objetiva e subjetivamente falando), tal e qual como se fosse uma acusação.
Por decisão de 4/12/2023, a Inspecção-Geral da Agricultura e do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território condenou a arguida AA (assim identificada na decisão condenatória de fls. 346 e segs.) na coima de € 12.000,00, pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, p. e p. pela alínea e) do nº 2 do artº 111º do D.L. 127/2013 de 30/8, punível a título de negligência pela al. b) do nº 3 do artº 22º da L. 50/2006 de 29/8.
A arguida impugnou judicialmente a referida decisão e recebido que foi o processo no tribunal, foi proferida a seguinte decisão:
“Por legal e tempestiva recebe-se a impugnação judicial.
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Da invocada nulidade da acusação por ausência da descrição dos elementos subjetivos da contraordenação imputada:
Vem arguida acusada da prática de uma contraordenação ambiental grave, p. e p. pela al. e) do n.º 2 do artigo 111.º do Decreto-Lei 127/2013 de 30 de agosto.
Perpassada a factualidade dada como provada na decisão administrativa/acusação, resulta que a negligência está descrita em termos conclusivos/genéricos, cf., o descrito sob as alíneas v) e w), não estando identificada a concreta ação/omissão negligente que conduziu à produção do resultado típico, nem o agente responsável ou que executou essa ação/omitiu a ação necessária.
Se é certo que que se verifica uma insuficiência factual ao nível da descrição da negligência/elementos subjetivos do tipo de infração acusada, podemos dizer que essa insuficiência é não meramente referente à tipicidade subjetiva da infração, mas também à tipicidade objetiva da infração.
Com efeito, estando em causa responsabilidade de pessoa coletiva, há que atentar, em particular, ao disposto no artigo 7.º do RGCO:
Artigo 7.º
(Da responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparada)
1 - As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções. (sublinhado nosso)
Sendo as pessoas coletivas, por natureza, entidades abstratas, ainda assim, na averiguação da sua responsabilidade pela prática de contraordenação, é necessário conhecer os seus agentes individuais e as suas ações ou omissões.
Ora, no ponto v) da factualidade dada como provada na decisão administrativa, é referido que a “arguida, através dos seus legais representantes e/ou funcionários, incumpriu obrigações/condições”, mas essa formulação é genérica/tabelar; no caso impõe-se saber quem são, em concreto, essas pessoas, e quais a ações/omissões praticadas.
A decisão administrativa equivale, para todos os efeitos, a uma acusação - como se pode ler no artigo 62.º, n.º 1, do RGCO “Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação” (sublinhado nosso).
Em fase de julgamento - e tal vale, por analogia, para o processo de recurso de contraordenação e a fase processual em que nos encontramos - não há lugar ao conhecimento de nulidades da acusação por ausência da descrição de elementos factuais necessários; tal conduz à rejeição da acusação com o consequente arquivamento do processo - artigo 311.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal; não será questão a conhecer segundo o regime das nulidades nem a mesma é passível de sanação ou correção.
A situação com que nos deparamos é, na verdade, idêntica; a decisão administrativa/acusação não descreve todos os factos necessários à conclusão de que existe responsabilidade contraordenacional, pelo que deve ser rejeitada com o consequente arquivamento dos autos, por aplicação subsidiária da já acima citada disposição reguladora do processo criminal (artigo 41.º, n.º 1, do RGCO).
Termos em que rejeito a decisão administrativa/acusação com o consequente arquivamento dos presentes autos de recurso de contraordenação.”
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Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
“1 - É “desnecessária a identificação concreta da pessoa singular que atuou.”
2 - Com o seu comportamento a sociedade arguida atuou de forma negligente.
3 - Essencial é que seja submetida a apreciação do julgador uma peça processual que satisfaça os requisitos mínimos duma acusação, o que salvo o devido respeito por opinião contrária e que é sempre muito elevado se afigura ser o caso.
4 - O Mm. º Juiz julgou não valorando as provas e as normas legais corretamente, não as conjugando e analisando à luz das regras da experiência e das normas legais, pelo que observadas estas premissas, outro resultado não pode ser obtido que não seja a justeza da condenação da arguida nos termos da d. decisão administrativa.
5 – A decisão administrativa não é omissa sobre a concreta norma jurídica aplicada.
6 - O fundamento dogmático do ilícito de mera ordenação social encontra-se, quer numa ideia de subsidiariedade do Direito Penal, quer no alargamento da sua atuação conformadora e reguladora da Administração Pública, que tem de estar associada à possibilidade de aplicação de sanções e à maior especialização das entidades que aplicam essas sanções.
7 - São razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção.
8 - Retira fundamento às considerações da douta sentença por serem fundamentalmente diferentes a natureza de crime e do ilícito de mera ordenação social.
9 - A coima relativamente a pessoas coletivas permite um tratamento sancionatório igualitário relativamente às pessoas físicas, no sentido de evitar resultados injustos.
10 - Acresce que a regra geral das contraordenações, como se alcança do artigo 7.º do R.G.C.O., é, pois, a aplicação de coimas às pessoas coletivas, sem qualquer tipo de destrinça entre elas em função da sua natureza, isto é, independentemente de serem pessoas coletivas públicas, ou privadas, ou de utilidade administrativa.
11- Mal andou o d. Tribunal recorrido ao julgar integralmente procedente a impugnação judicial e ao rejeitar a decisão administrativa/acusação de que a arguida vem acusada, determinando o consequente arquivamento dos autos.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, deve ser revogada e substituída por outra a decisão recorrida que, a final, julgue improcedente a impugnação judicial e condene a arguida como vem acusada, assim fazendo, V. Excelências, agora, como sempre, JUSTIÇA.”
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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.
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APRECIAÇÃO
Importa analisar se existiam razões para a “rejeição” da decisão administrativa/acusação, designadamente porque “a negligência está descrita em termos conclusivos/genéricos, cf., o descrito sob as alíneas v) e w), não estando identificada a concreta ação/omissão negligente que conduziu à produção do resultado típico, nem o agente responsável ou que executou essa ação/omitiu a ação necessária.”
Não nos parece acertada a decisão recorrida, quer quando entende que a decisão administrativa não contém os factos suficientes consubstanciadores da negligência, quer quando entende ser necessária a indicação do “agente responsável ou que executou essa acção/omissão necessária”.
É certo que, como bem refere Tiago Lopes de Azevedo, Lições de Direito das Contra-Ordenações, pág. 138: “… o princípio da taxatividade no Direito contraordenacional impõe que haja um mínimo de determinabilidade que permita com precisão a composição de um nexo entre o comportamento do agente e a valoração jurídico-contraordenacional prevista na norma. Este mínimo de determinabilidade, clareza e segurança encontra acolhimento no princípio do Estado de Direito, previsto no artigo 2º da Constituição”.
Mas esse mínimo de determinabilidade existe no caso em apreço.
Não há qualquer dúvida que a contra-ordenação em causa é a prevista no artº 111º, nº 2, al. a), do D.L. 127/2013 de 30/8, ou seja, “A construção, alteração ou laboração de uma instalação que explore uma ou mais atividades constantes do anexo I com inobservância das condições fixadas na LA;”
Essa inobservância da Licença Ambiental nº 124/2008 está bem explicitada em várias alíneas da matéria considerada provada na decisão administrativa, ou seja, em síntese:
al. l) – foram efectuadas duas campanhas de monotorização às águas subterrâneas do complexo;
al. n) – os relatórios dessa monotorização foram enviados à APA, com desrespeito do prazo de 30 dias impostos no 1º aditamento da L.A.;
al. r) – dos resultados obtidos nas análises das amostras resulta que vários parâmetros excediam os previstos no 1º aditamento da L.A, estando aí especificados quais foram esses excessos;
al. s) – especifica os dois incumprimentos à L.A. – valores limites de emissão dos parâmetros e prazo para envio dos relatórios.
A entidade administrativa refere que atento o facto de tais inobservâncias terem que ver com desrespeito de normas que regem a actividade da arguida, não foram cumpridas as obrigações que sobre ela impendiam (cfr. al. v) da matéria considerada provada), não tendo, por isso, a mesma actuado com a diligência necessária e de que era capaz (cfr. al. w) da matéria considerada provada).
Não parece que seja razoável exigir mais do que isto, o que mesmo é dizer que se entende como suficiente o referido para se concluir que o que se imputa à arguida é a falta de cuidado de modo a (i) cumprir o prazo de 30 dias acima referida e (ii) providenciar para que os valores a que o 1º aditamento à L.A. obrigava (nos termos indicados concretamente na al. r) da matéria considerada provada) fossem cumpridos.
O que é que falta? Escrever que não cumpriu o prazo, mas deveria ter cumprido? Que não cumpriu os limites acima referidos, mas deveria ter cumprido?
É óbvio que resulta da matéria considerada provada que a arguida deveria ter cumprido o que não cumpriu. E o que não cumpriu está concreta e completamente referido.
Não se trata de saber se a arguida cumpriu, ou não, o referido prazo de 30 dias, ou se respeitou, ou não, os limites referidos. Neste momento processual está em causa apenas saber se a decisão administrava contém tudo o que é suficiente para poder ser “liminarmente recebida”. Se se concluir, como se conclui, que contém, então a seu tempo, se verá o mérito da mesma em termos de levar, ou não, à confirmação da condenação da arguida.
Não se vislumbra, ao contrário do alegado pela arguida, que a possibilidade de defesa “em termos razoáveis”, como ela própria refere, tenha sido minimamente afectada, Tanto que não foi que a mesma extensamente aborda as “desconformidades” que lhe são imputadas.
Não está aqui em causa sequer saber se a decisão administrativa deve conter todos os elementos da sentença judicial, pois do que se trata é apenas de apurar se contem todos os factos (objectiva e subjectivamente falando), tal e qual como se fosse uma acusação.
Quanto à questão da não indicação dos elementos concretos da arguida “responsáveis” pela infração em causa (questão que não foi suscitada no recurso de impugnação), entende-se não ser a mesma necessária.
Com efeito, o artº 7º, nº 2, do D.L. 433/82 de 27/10 prevê uma responsabilização autónoma a pessoa colectiva, pelo que é dispensável a referência concreta, individualizada, a quem (da pessoa colectiva) é imputada a violação do dever.
É como se concluiu no parecer da procuradoria-geral da república nº 11/2013 de 5/9 (d.r. IIª série de 16/9/2013):
“1 - O ilícito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos mas axiologicamente neutros. Do ponto de vista teleológico, as contraordenações são uma medida de proteção da legalidade, o que justifica a maior flexibilidade na análise dos pressupostos da imputação, designadamente da culpa, que é diferente da culpa penal.
2 - Atualmente é pacificamente admitida a responsabilização criminal das pessoas coletivas em certos tipos penais. No Direito das contraordenações, contudo, a responsabilidade das pessoas coletivas é um princípio geral que decorre do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações, que constitui uma regra geral de imputação, com inúmeras concretizações em regimes especiais.
3 - O Regime Geral das Contraordenações consagra um regime de imputação restritivo, no n.º 2 do artigo 7.º, ao limitar a responsabilidade das pessoas coletivas às contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, ao contrário do que acontece na maioria dos regimes especiais (artigo 551.º do Código do Trabalho, artigo 7.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, n.º 2 do artigo 401.º do Código dos Valores Mobiliários, n.º 1 do artigo 73.º da lei da Concorrência, e n.º 2 do artigo 8.º da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais).
4 - O preceito do n.º 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas.
5 - A responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num "defeito estrutural da organização empresarial" (defective corporate organization) ou "culpa autónoma por défice de organização", quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada.
6 - A imputação da infração à pessoa coletiva resulta de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por ação ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contraordenação, solução que é coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica mas sim na violação de um dever legal.
7 - O artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações adota a responsabilidade autónoma, tal como os regimes especiais em matéria laboral (artigo 551.º do Código do Trabalho), tributária (artigo 7.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), económica (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro), de valores mobiliários (artigo 401.º do Código dos Valores Mobiliários), de concorrência (artigo 73.º da lei da Concorrência) e de contraordenações ambientais (artigo 8.º da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais), pelo que não é necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infração para que a mesma seja imputável à pessoa coletiva.”
No mesmo sentido do aqui expresso, vejam-se os acórdãos desta relação de Évora de 26/10/2021 e 5/2/2024 (relatados pela Exmª Desembargadora Maria Clara Figueiredo) e 9/6/2022 (relatado pela Exmª Desembargadora Emília Ramos Costa).
Pelo exposto, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida.
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Sem tributação.
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Évora, 24 de Setembro de 2024
Nuno Garcia
Anabela Simões Cardoso
Laura Goulart Maurício