MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
RECUSA OBRIGATÓRIA DE EXECUÇÃO
MANDADO DE DETENÇÃO
Sumário


I -  A causa de recusa facultativa do Mandado de Detenção Europeu prevista na al. g), do n.º 1, do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23/08 exige a verificação dos seguintes requisitos: que a pessoa procurada se encontre em Portugal, tenha nacionalidade portuguesa ou resida em Portugal; que o Estado Português assuma o compromisso de executar a pena ou medida de segurança que deram causa à emissão do MDE, de acordo com a lei portuguesa.
II -  Sendo o regime de execução do Mandado de Detenção Europeu da competência exclusiva do poder judicial, o compromisso do Estado Português de executar a pena ou medida de segurança deve ser assumido numa decisão judicial.

Texto Integral




MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU Nº 146/24.0YRCBR.S1

Requerente: Ministério Público

Requerido: AA


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Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

 

I. RELATÓRIO

1. Por acórdão de 26 de Julho de 2024, do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido nos autos para execução de mandado de detenção europeu emitido pelo Tribunal ..., República Italiana, em 24 de Fevereiro de 2022, foi decidido determinar a sua execução contra o requerido AA, com os demais sinais nos autos, com a consequente entrega do mesmo às autoridades judiciárias da República Italiana.


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Inconformado com a  decisão, recorre para este Supremo Tribunal o requerido AA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1. O Douto Acórdão de fls., proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, decidiu: “Deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido em 24/02/2022, pelo Procurador do Ministério Público junto do Tribunal ..., República Italiana, referente ao cidadão AA, ora requerido, titular do passaporte n.º ...44, nascido a … de … de 1989, natural de ..., Índia, solteiro, com residência na Rua …, determinando-se a sua entrega às autoridades judiciárias da República Italiana, para efeitos de cumprimento da pena, pelos factos mencionados no mandado de detenção, consignando-se que o requerido não renunciou ao benefício da regra da especialidade.”

2. Por sentença transitada em julgado em 26 de Novembro de 2021 n.º 309/2021, n.º 1238/2021 …., proferida pelo Juiz das Investigações Preliminares junto do Tribunal Ordináro …, Itália, que se tornou irrevogável em 26 de Novembro de 2021, foi o requerido condenado na pena de 2 anos 6 meses e 12 dias de prisão, pela autoria de um crime de facilitação de entrada e permanência de residência não autorizadas, p. e p. nos termos do art. 110.º do Código Penal Italiano e no art. 12.º, n.º 3, al. a) da Lei Italiana n.º 286/1998.

3. Crime esse praticado em 15/06/2021, tendo o tendo o requerido transportado, com um automóvel, de Itália para França 7 estrangeiros de nacionalidade ... para entrarem ilegalmente em França.

4. Tais factos justificaram a emissão do presente MDE, foi emitido, em 24 de fevereiro de 2022, uma ordem para detenção provisória do requerido, com o n.º 31/2022 SIEP, inserido no Sistema de Informação Schengen sob o n.º ….01, tendo em vista a sua extradição (com o   registo    Schengen n.º …01), vindo a PSP a deter o requerido no dia 19/06/2024, na Rua …, tendo feito a respetiva comunicação ao Tribunal da Relação de Coimbra para consideração e validação da detenção no âmbito destes autos.

5. O recorrente reside em Portugal desde Junho de 2023.

6. Em 19 de Outubro desse mesmo ano, constituiu a empresa “L..., Lda”, com o NIF …97, e sediada em Rua …, conforme documento junto aos autos, possuindo 3 lojas, pagando as rendas, impostos IVA, IRC, autoliquidações por conta, contribuições para a segurança social, pagando ao contabilista, à empresa de consultadoria de higiene e segurança alimentar, pagando as licenças camarárias, licenças de actividade, aos fornecedores e demais despesas inerentes à prossecução de uma actividade comercial.

7. O recorrente investiu em Portugal mais de 30.000 € (trinta mil euros), tendo vendido todo o seu património da India, nomeadamente um terreno, e investido todas as suas economias para lançar a sua vida e o seu futuro em Portugal, aliás o recorrente pretende ficar a viver aqui e refazer toda a sua vida, constituindo, inclusivamente, família.

8. O recorrente formalizou um pedido de legalização em 06/09/2023, através da manifestação de interesse n.º …05, tendo junto todos os documentos que lhe eram solicitados.

9. O recorrente desde que vive em Portugal não tem antecedentes criminais, nem tem antecedentes criminais no seu país de origem, atento, os documentos juntos na manifestação de interesse.

10. Entende o recorrente estar perante um dos motivos que a Lei Portuguesa, nomeadamente no artigo 5º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, e salvo posição contrária, a verificação do fundamento de recusa facultativa previsto na alínea g) do n.º1 do artigo 12º, Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

11. O recorrente investiu todas as suas economias na constituição de uma empresa, e na realização de uma actividade, está inserido financeiramente e economicamente, tem meios de subsistência.

12.Pelo que, entende o recorrente que estão preenchidos os requisitos, verificando causa de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu.

13.O Douto acórdão, salvo o devido respeito que é muitíssimo, não teve em consideração os factos acima mencionado que integram as causas facultativas para a recusa da execução do MDE, bem como, não fundamentou essa recusa.

14. Com efeito, limitou-se apenas a referir que o recorrente residia em Portugal.

15. Dos factos constantes quer das auto de declarações do recorrente quer da sua oposição, resulta a evidência e a consubstanciação de factos concretos que preenchem o conceito residir em Portugal.

16. Analisado todo o processo apresentado pelo ora recorrente, bem como os elementos probatórios constantes dos autos, decidiu o Tribunal a quo deferir o mandado de execução europeu –, enviando o recorrente para o Tribunal ..., em Itália, para cumprir uma pena de prisão.

17. Nos termos do n.º 1 do artigo 12º da Lei 65/2003, de 23 de agosto, “a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

g) “A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

18. A lei portuguesa não define o conceito “residência em Portugal”.

19. Limita-se a pugnar a lei quem tiver residência em Portugal.

20. Razão pela qual o presente MDE deve ser recusada a sua execução.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento o presente recurso e, por via dele, ser revogado o Acórdão recorrido, em consequência, o Recorrente ser recusada com fundamento na existência de causa de recusa a execução do MDE, cumprindo o Recorrente em Portugal a pena a que foi condenado pelo Tribunal ... – Itália, respeitando assim, os princípios legais e constitucionais consagrados.

Este é o nosso firme entendimento, e o desejo justo do Recorrente.

A JUSTIÇA será de Vossas Excelências.


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O recurso foi admitido por despacho de 6 de Agosto de 2024.


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Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, alegando, sem síntese, que o acórdão recorrido analisou devidamente os requisitos formais e substanciais legalmente exigidos para que fosse autorizada a execução do MDE e considerou todas as circunstâncias invocadas pelo recorrente, sendo certo que não existe qualquer compromisso do Estado Português em executar a pena em que este foi condenado, estando pois em falta um dos elementos necessários à verificação da causa de recusa facultativa prevista na alínea g) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e concluiu pela manutenção do acórdão recorrido. 


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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, cumprindo agora decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

           

A) Âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.

Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.

Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questão a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se está ou não, verificado o motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto no art. 12º, nº 1, g), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.


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B) Dos factos

Retira-se do acórdão recorrido e do mandado em execução que a matéria de facto provada relevante a considerar, com vista à resolução da questão suscitada no recurso, é a seguinte:

1. Pelas autoridades judiciárias de Itália – Tribunal ... – foi emitida, em 24 de Fevereiro de 2022, uma ordem para detenção provisória do requerido, com o n.º 31/2022 SIEP, inserido no Sistema de Informação Schengen sob o n.º ...01, tendo em vista a sua extradição (com o registo Schengen n.º …01);

2. Tal mandado foi emitido pelo Procurador do Ministério Público junto do referido Tribunal para cumprimento da pena de 2 anos 6 meses e 12 dias de prisão em que o requerido foi condenado no dia 19 de novembro de 2021, por sentença n.º 309/2021, n.º 1238/2021 ..., proferida pelo Tribunal ..., transitada em julgado em 26 de novembro de 2021;

3. O requerido esteve presente no julgamento;

4. Na dita sentença o requerido foi condenado pela prática de um crime de facilitação de entrada e permanência de residência não autorizadas, p. e p. nos termos do artigo 110º do Código Penal Italiano e do art. 12.º, n.º 3, al. a) da Lei Italiana n.º 286/1998;

5. Isto porquanto, em …, Itália, em 15 de junho de 2021, o requerido transportou, com um automóvel, de Itália para França, sete indivíduos de nacionalidade ..., para entrarem ilegalmente em França, a troco de € 400 cada, indivíduos esses que se encontravam em situação irregular no território nacional;

6. Na legislação penal portuguesa, tais factos integram, em abstrato, a prática de um crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. nos termos do art. 183.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos;

7. O requerido foi detido a 19 de Junho de 2024, às 1h45, na Rua …, pela Polícia de Segurança Pública;

8. O requerido foi ouvido nesse mesmo dia 19 de Junho do corrente ano, nos termos do artigo 18º, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, tendo declarado não consentir na sua entrega e não renunciar ao benefício da regra da especialidade;

9. Foi proferido despacho de validação da detenção;

10. O requerido encontra-se a residir em Portugal desde Junho de 2023, tendo dado entrada no SEF da manifestação de interesse nº…05, em 6/9/2023;

10. O requerido não tem filhos, reside sozinho e não tem em Portugal qualquer familiar;

11. O requerido formalizou um contrato de arrendamento para fins de exercício de atividade comercial  com início no dia 1 de Outubro de 2023.

           

Inexistem factos não provados.


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C) Do direito

Da verificação do motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu previsto no art. 12º, nº 1, g) da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto

1. Alega o recorrente AA – conclusões 5 a 15 e 20 – que reside em Portugal desde Junho de 2023, que em 19 de Outubro do mesmo ano constituiu uma empresa no …, possui três lojas, paga impostos e contribuições para a segurança social e tudo o mais inerente à prossecução de uma actividade comercial, tendo investido € 30000, tem meios de subsistência, pretende ficar a viver em Portugal e aqui constituir família, formalizou em Setembro de 2023 pedido de legalização e não tem antecedentes criminais, nem em Portugal, nem na União Indiana, seu país de origem, estando, assim, verificado o fundamento de recusa facultativa previsto na alínea g) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto. Contudo, o acórdão recorrido não considerou os factos alegados, limitando-se a referir que reside em Portugal, e decidiu deferir o mandado de detenção europeu [doravante, MDE], quando, atento o disposto no referido art. 12º, nº 1, g), deveria ter recusado a sua execução, cumprindo o recorrente em Portugal a pena em que foi condenado pelo Tribunal ..., da República Italiana.    

Vejamos.

a. A Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.06.2002 criou a Ordem de Detenção Europeia, substituindo o sistema clássico do complexo e lento processo de extradição, por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, fundado em procedimentos expeditos e com prazos reduzidos, sempre, no entanto, com salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa.

Dando exequibilidade a esta decisão-quadro, o legislador nacional aprovou, pela Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, definindo-o, no nº 1 do seu art. 1º, como, uma decisão judiciária emitida por em Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, estabelecendo o nº 2 do mesmo artigo que, o mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho.

O MDE é, assim, uma decisão judiciária emitida por um Estado membro – Estado de emissão – visando a detenção e entrega por outro Estado membro – Estado de execução – de pessoa procurada, seja para efeitos de procedimento criminal, seja para efeitos de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas da liberdade, que se executa com base no princípio do reconhecimento mútuo e sem controlo da dupla incriminação do facto, nos casos previstos no nº 2 do art. 2º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e com controlo da dupla incriminação, nos casos subsumíveis à previsão do nº 3 do mesmo artigo.

Trata-se de um regime simplificado de entrega, entre autoridades judiciárias de diversos Estados membros, de pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças que apliquem pena de prisão ou medida de segurança de duração não inferior a quatro meses, ou de procedimento criminal por factos puníveis, pela lei do Estado de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a doze meses.

Sendo o MDE executado com base no princípio do reconhecimento mútuo, certo é que a lei não define o seu conteúdo e a sua extensão, os quais devem ser densificados com recurso ao direito da UE e à jurisprudência do TJUE relativa à interpretação das respectivas disposições.

O núcleo do princípio do reconhecimento mútuo traduz-se em a decisão definitiva da autoridade judiciária competente e em conformidade com o direito do respectivo Estado membro, dever ter efeito directo e pleno em todo o território da União Europeia, o que vale dizer que, as autoridades competentes do Estado membro onde a decisão pode ser executada, devem prestar a sua colaboração à respectiva execução, como se fosse decisão tomada por autoridade competente desse mesmo Estado (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 2023, processo nº 107/23.6YRGMR.S1, in www.dgsi.pt). Como se pode ler neste aresto, a autoridade judiciária do Estado de execução está obrigada a executar o MDE que, emitido em conformidade com o formulário anexo, observe os requisitos legais, ficando reservado àquela autoridade o controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, que só pode ser recusada nos casos de não execução obrigatória e não execução facultativa (arts. 11º, 12º e 12º-A da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto) ou na falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (art. 13º da mesma lei). Também no acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Maio de 2024 (processo nº 55/24.EVR.S1, in www.dgsi.pt) se afirma que tem sido sublinhado em jurisprudência uniforme do TJUE que o princípio do reconhecimento mútuo assenta em noções de equivalência e de elevado grau de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da UE, alicerçada no respeito pelos direitos fundamentais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado‑Membro partilha com todos os outros Estados‑Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2.º TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados‑Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito do direito da União que os aplica (Acórdãos de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.º 35; e de 15 de outubro de 2019, Dorobantu, C‑128/18, EU:C:2019:857, n.º 45).

Em síntese, estamos perante um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados membros da União Europeia, entre os quais se contam a República Italiana e a República Portuguesa.

           

b. O âmbito de aplicação do MDE encontra-se definido no art. 2º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, dispondo o seu nº 1 que, [o] mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses. Ora, o MDE emitido pela República Italiana visa a sujeição do recorrente ao cumprimento de uma pena de prisão de 2 anos 6 meses e 12 dias.

O nº 2 do mesmo artigo enumera as infracções puníveis, nos termos da legislação do Estado de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a três anos, relativamente às quais, será concedida a entrega da pessoa procurada com base num MDE, sem controlo da dupla incriminação do facto, contando-se, entre elas [alínea n)], o auxílio à entrada e à permanência irregulares. A pena cujo cumprimento fundamenta a emissão do MDE pela República Italiana respeita à prática de um crime de facilitação de entrada e permanência de residência não autorizadas, p. e p. nos termos do art. 110º do Código Penal Italiano e do art. 12.º, n.º 3, al. a) da Lei Italiana n.º 286/1998, portanto, a infracção prevista na alínea n) do nº 2 do art. 2º da nº 65/2003, de 23 de Agosto, o que dispensa o controlo da dupla incriminação.

Em todo o caso (nº 3 do mesmo artigo), os factos que determinaram a condenação do recorrente são qualificáveis, de acordo com a lei portuguesa, como crime de crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. nos termos do art. 183º, nº 2 da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.

Conforme já referido, as causas de recusa do MDE encontram-se previstas nos arts. 11º e 12º da nº 65/2003, de 23 de Agosto, regulando o primeiro, os motivos de não execução obrigatória do MDE e o segundo, os motivos de não execução facultativa. O art. 12º-A da mesma lei, prevê a recusa de execução de MDE emitido para efeitos de cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade, quando a pessoa procurada não tenha estado presente no julgamento, verificadas que estejam determinadas circunstâncias, enquanto o art. 13º do mesmo diploma prevê os casos em que a execução do MDE pode ficar dependente da prestação de determinadas garantias pelo Estado de emissão. Como vimos, o objecto do recurso versa a existência ou não, da causa de recusa de execução facultativa prevista na alínea g) do nº 1 do art. 12º da lei em referência.

O recorrente foi detido em cumprimento do MDE contra si emitido, foi apresentado e ouvido no tribunal competente, nos termos e com observância do disposto nos arts. 17º e 18º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, não consentiu na entrega e apresentou oposição.

           

Conforme se dispõe no nº 2 do art. 21º da lei em referência, [a] oposição pode ter por fundamentos o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu. O recorrente não questiona na oposição deduzida ser a pessoa procurada no MDE, antes entende, como dissemos, estar verificada a causa de recusa facultativa prevista no art. 12º, nº 1, g), da mesma lei.

Atentemos, pois, na referida causa de recusa facultativa.

c. Nos termos do disposto no art. 12º, nº 1, g), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando [a] pessoa procurada se encontrar em território nacional , tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança  e o Estado Português se comprometa a executar aquela ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa

Esta causa de recusa facultativa exige a verificação dos seguintes requisitos: que a pessoa procurada se encontre em Portugal, tenha nacionalidade portuguesa ou resida em Portugal; que o Estado Português assuma o compromisso de executar a pena ou medida de segurança que deram causa à emissão do MDE, de acordo com a lei portuguesa.

Sendo o regime de execução do MDE da inteira competência do poder judicial, o compromisso do Estado Português de executar a referida pena ou medida de segurança deve ser assumido numa decisão judicial.

Assim, estabelece o nº 3 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto que [a] recusa de execução nos termos da alínea g) do nº 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada. Definindo o procedimento aplicável, dispõe o nº 4 do mesmo artigo que, [a] decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.

Nesta decorrência, estabelece o art. 26º da Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro que:

Sem prejuízo do disposto na Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, alterada pela Lei nº 35/2015, de 4 de Maio, o disposto na presente lei aplica-se, na medida em que seja compatível com as disposições dessa lei, à execução de condenações, se:

a) O mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena de prisão ou medida de segurança privativa da liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional;

(…).

Note-se que a Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro tem por objectivo, facilitar a reinserção social da pessoa condenada (art. 1º, nº 1). Aliás, lê-se no ponto 9 do preâmbulo da Decisão-Quadro 2008/909/JAI (transposta pela Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro) que «A execução da condenação no Estado de execução deverá aumentar a possibilidade de reinserção social da pessoa condenada. Para se certificar de que a execução da condenação pelo Estado de execução contribuirá para facilitar a reinserção social da pessoa condenada, a autoridade competente do Estado de emissão deverá atender a elementos como, por exemplo, a ligação da pessoa ao Estado de execução e o facto de o considerar ou não como o local onde mantém laços familiares, linguísticos, culturais, sociais, económicos ou outros.».

No que à densificação do conceito de «residente», para efeitos da causa de recusa em análise, respeita, incluindo a apreciação do objectivo de reinserção social da pessoa procurada, há que considerar as normas de direito derivado da União relativas à liberdade de circulação e residência (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2024, supra, identificado).

Pois bem.

d. Como já se disse, a causa de não execução facultativa do MDE prevista na alínea g) do nº 1 do art. 12º da nº 65/2003, de 23 de Agosto depende, além do mais, de o Estado Português, a requerimento do Ministério Público, assumir o compromisso de executar a pena ou medida de segurança de acordo com a lei portuguesa, compromisso esse expresso em decisão do tribunal da relação que proceda ao reconhecimento da respectiva sentença, proferida no processo de execução do mandado (nºs 3 e 4 do mesmo artigo).  

Compete, pois, ao Ministério Público, promover o procedimento de reconhecimento da sentença condenatória do Estado de emissão do MDE, no próprio processo de execução deste. Se tal não suceder, portanto, se o Ministério Público nada promover, não pode o tribunal da relação, ex officio, proceder ao reconhecimento da sentença do Estado de emissão e na sua sequência, recusar a execução do mandado. E se, por qualquer razão, não obstante a falta de promoção do Ministério Público, vier a ser reconhecida a sentença condenatória do Estado de emissão do MDE e vier a ser recusada a execução do mandado, verificar-se-á a nulidade insanável prevista no art. 119º, b), do C. Processo Penal (ex vi, art. 34º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto).

Vistos os autos, resulta evidente que o Ministério Público não requereu, como previsto no nº 3 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, que o Tribunal da Relação de Coimbra declarasse exequível em Portugal a sentença condenatória proferida pelo tribunal italiano e confirmasse a pena nela imposta ao recorrente. Com efeito, no requerimento que deu início aos presentes autos (referência …34) a Digna Magistrada do Ministério Público não fez qualquer referência e, muito menos, pedido de reconhecimento da sentença condenatória da República Italiana, também não o fez no auto de audição do recorrente (referência …22), o mesmo sucedendo na resposta à oposição apresentada pelo recorrente (referência …82), na qual, aliás, afirma expressamente, não existir compromisso por parte do Estado Português em executar a pena em que aquele foi condenado, de acordo com a lei portuguesa, e que, sendo o mesmo não nacional e residente no país, como diz, desde Junho de 2023, sem qualquer familiar, não se verifica qualquer motivo de recusa de execução facultativa do MDE, tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na resposta ao recurso interposto pelo recorrente para este Supremo Tribunal (referência …39), afirmado expressamente que não existe compromisso por parte do Estado Português em executar a pena de prisão em causa, de acordo com a lei portuguesa, assim faltando um requisito essencial para a verificação da pretendida causa de recusa facultativa da execução do mandado.

É assim evidente, como foi afirmado no acórdão recorrido, que inexiste qualquer compromisso por parte do Estado Português a executar a pena em que o requerido foi condenado, de acordo com a lei portuguesa. Na verdade, na lógica do procedimento previsto nos nºs 3 e 4 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, tal compromisso não existe pois, não tendo o Ministério Público requerido reconhecimento da sentença italiana, o Tribunal da Relação de Coimbra não solicitou à República Italiana a transmissão da sentença, nem, evidentemente, conheceu da questão da sua exequibilidade em Portugal e consequente confirmação da pena aplicada.

Como vimos, a existência deste compromisso é condição imprescindível para que possa ser actuada a causa de não execução facultativa do MDE prevista na alínea g) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2024, supra identificado e de 22 de Junho de 2022, processo nº 48/21.1YRGMR.S3 in www.dgsi.pt).

Não existindo tal compromisso, não pode ser aplicada a referida causa de não execução facultativa do MDE.

e. Sem prejuízo do que ficou dito, a causa de não execução facultativa do MDE prevista na alínea g) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, depende, também, de a pessoa procurada se encontrar em território português, ter nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal.

O recorrente foi encontrado, e detido, em território português, não tem nacionalidade portuguesa, sendo nacional da União Indiana, não sendo, por isso, cidadão da União Europeia, e encontra-se a residir em Portugal desde Junho de 2023 (ponto 10 dos factos provados).

Não sendo o recorrente nacional de um Estado membro, não é cidadão da União Europeia, não gozando, por tal razão, do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros (arts. 9º do Tratado da União Europeia e 20º, nºs 1 e 2, a), do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia).

Na verdade, ao recorrente, enquanto cidadão nacional de país terceiro, residente legalmente no território de um Estado membro, apenas pode ser concedida liberdade de circulação e de permanência, de acordo com os Tratados (art. 45º, nº 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

Contrariamente ao que parece pressupor o recorrente, enquanto cidadão nacional de país terceiro, não basta ter residência em território português para que possa ser equacionada a aplicação da causa de não execução facultativa do MDE em análise.

Na verdade, há ainda que verificar se existe um interesse legítimo que justifique tal aplicação, devendo ser dada, nesta sede, especial atenção à possibilidade de realização dos objectivos de reinserção social enquanto ratio da recusa da entrega ou, dito de outro modo, há que atentar na possibilidade de incremento das oportunidades de reinserção social da pessoa procurada, pelo cumprimento da pena no Estado de execução, em função dos laços linguísticos familiares, culturais, laborais, económicos e sociais que com este [Estado], mantém.

Estando apenas provado que o recorrente se encontra a residir em Portugal desde Junho de 2023, vive sozinho, não tem familiares em Portugal, e formalizou um contrato de arrendamento para fins de exercício de comércio, com início a 1 de Outubro de 2023 [e podendo ainda considerar-se, visto estar junto aos autos o pertinente documento (referência 240102) que em 19 de Outubro de 2023 foi constituída uma sociedade unipessoal por quotas, tendo por objecto, comércio e restauração, e como sócio e gerente, o recorrente], não vemos que possa concluir-se que o cumprimento da pena em Portugal seja mais vantajoso para o recorrente, no sentido da sua ressocialização, do que na República Italiana, inexistindo, pois, interesse legítimo na aplicação da causa de não execução facultativa do MDE prevista na alínea g) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

f. Em conclusão:

- Não existindo compromisso do Estado Português em executar a pena de prisão imposta ao recorrente pela República Italiana, enquanto Estado de emissão do MDE, de acordo com a lei portuguesa, compromisso esse consubstanciado em decisão do tribunal da relação declarando a sentença exequível em Portugal e não existindo, também, vantagem para a ressocialização do recorrente, em cumprir a pena de prisão em Portugal, em vez de a cumprir em Itália, não há lugar à aplicação do motivo de não execução facultativa do MDE;

- Pelo que, deve ser confirmado o acórdão recorrido, improcedendo as conclusões do recurso.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCS. (art. 34º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, e art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Providencie a secção pela tradução do presente acórdão e subsequente notificação ao recorrente, logo que junta aos autos.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


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Lisboa, 13 de Agosto de 2024

Vasques Osório (Relator de turno)

António Latas (1º Adjunto)

Jorge Gonçalves (2º Adjunto)