HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
MEDIDA DE COAÇÃO
INTERNAMENTO
PRISÃO ILEGAL
REJEIÇÃO
Sumário


I -    Encontrando-se o requerente privado da liberdade na sequência de despachos judiciais transitados em julgado, que o sujeitaram à medida de coacção de prisão preventiva e, depois, em substituição desta, à medida de internamento preventivo, e que reviram e mantiveram, quer a prisão preventiva, quer o internamento preventivo, privação da liberdade resultante da indiciação da prática de factos qualificados na lei como crimes e por ela sancionados com pena de prisão, e não se mostrando ultrapassados os prazos legais de manutenção da privação da liberdade, não está verificado qualquer dos fundamentos de habeas corpus previstos no n.º 2 do art. 222.º do CPP, o que determina, necessariamente, o indeferimento da providência.
II -   Sendo manifestamente infundada a petição de habeas corpus, há lugar ao sancionamento do requerente, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 223.º do CPP.

Texto Integral




Processo nº 3560/23.4T9MTS-F.S1

Habeas Corpus


*


Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. O cidadão AA, sujeito a medida de coacção de internamento preventivo, à ordem do processo nº 3560/23.4T9MTS, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., veio, pessoalmente, requerer ao Exmo. Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus, por prisão ilegal, nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

            “(…).

Porto, 17 de Julho de 2024

Assunto: Processo Comum 3560/23.4T9MTS

Solicitação de Habeas Corpus

Exmos. Srs. V. Exas.

Com os melhores cumprimentos segue missiva para V. Exas. com vista a Habeas Corpus no processo supra-referido.

1 – O abuso de poder é notório quando foi decretada prisão preventiva por falta de morada, existiam duas moradas que eram sobejamente conhecidas.

a) A cronologia de prisões preventivas foi a de tentar exacerbar, o que aconteceu com os mais variados argumentos; prisão preventiva.

2 – Foi já repetidamente e anulada a concepção da história ridícula do soco a uma mulher.

a) Nenhuma prova foi encontrada nos veículos do arguido, seu telemóvel, o que é ilegal na sua intimidade, conforme Constituição da República Portuguesa.

3 – A perícia forense é forjada, pois só com a mesma atingiriam o artº 30 da Constituição da República Portuguesa, prisões sucessivas preventivas por anomalia psíquica.

a) Fizeram-no com dolo e em crimes de tráfico de influências, pois NUNCA existiu teste, mas sim entrevista de 10 minutos.

b) O teste forense foi realizado em ... e durou mais de 2 horas, estando no Tribunal de Família e Menores de ..., por conseguinte pede-se a nulidade do “teste” de Abril de 2024. Entranhe-se perícia de 2023 de ....

4 – Mais uma falácia que o arguido vivia em casas abandonadas em fls. 124; é de teor público que o mesmo e seu filho sempre viveram em absoluto luxo e em 2 propriedades. Isto durante 12 anos.

5 – A condição do arguido é débil, depois de enfarte grave do miocárdio interrompeu tratamento, nunca mais reposto até ao dia de hoje.

Foram violados vários artigos da Constituição Portuguesa, nomeadamente a inviolabilidade de vida humana, presunção de inocência, força jurídica pelo que se apela à imediata libertação do arguido com apresentação semanais na P.S.P. de ..., ….

Sem mais de momento, subscrevo-me com honra e consideração

Muito Atentamente

AA

 (…)”.

2. Foi prestada a informação referida na parte final do nº 1 do art. 223º do C. Processo Penal, nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

“(…).

De harmonia com o disposto no art.º 223.º do CPP, cumpre informar V. Exª do seguinte:

» AA foi detido, em cumprimento do competente mandado de detenção, em 18-10-2023 (Referência: ...00).

» sujeito a 1.º interrogatório judicial de arguido detido, por decisão datada de 18-10-2023, foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva (Referência: ...16), por se encontrar indiciado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de coação sobre órgão constitucional, p. e p. pelo artigo 333.º, n.º 1 do C. Penal, um crime de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º, n.º 1, artigo 184.º por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do C. Penal, um crime de ofensa a integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, nº 1, 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1, artigo 155º, n.º 1, al. c), por referência ao artigo 132.º, nº2, al. l), todos do C. Penal, e por, das circunstâncias e modo de atuação do arguido, resultar fortemente indiciado o perigo de continuação da atividade ilícita e, consequentemente, o perigo de perturbação da tranquilidade pública.

» nessa mesma data, o arguido foi conduzido ao Estabelecimento Prisional ....

» a prisão preventiva do arguido foi revista e mantida por despachos proferidos nos dias 11-01-2024 (Referência: …44) e 11-04-2024 (Referência…04).

» entretanto, foi aquela medida de coação apreciada em sede de recurso, tendo sido igualmente mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, por douto acórdão datado de 21-02-2024, proferido nos autos de processo apenso n.º 3560/23.4T9MTS-D.

» em 15-04-2024, foi deduzida acusação contra o arguido, tendo o mesmo sido acusado pelos crimes por que vinha indiciado, pelos quais o Ministério Público entende que deve ser considerado inimputável, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1 do C. Penal, com aplicação de uma medida de segurança de internamento, nos termos do disposto no artigo 91.º do citado diploma legal (Referência: 95013564).

» por despacho datado de 03-05-2024, foi determinada a alteração da medida de coação de prisão preventiva pela medida de internamento preventivo a cumprir na ala psiquiátrica junto ao E.P ... (Referência: ...23).

» remetidos os autos para julgamento, sem ter sido requerida a abertura da instrução, foi a acusação recebida em 18-06-2024 (Referência: …57), tendo o arguido sido devidamente notificado para contestar, o que fez (Referência: …37, de 25-07-2024), estando a audiência de discussão e julgamento designada para o próximo dia 12 de setembro.

» a medida de internamento preventivo foi revista e mantida por despacho proferido no dia 31-07-2024 (Referência: …87).

Face ao exposto, são estas as condições em que se mantém a medida de internamento preventivo de AA, e o que me cumpre informar.

(…)”.


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Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Ilustre Defensor do requerente, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais, após o que o tribunal reuniu e deliberou (art. 223º, nº 3, segunda parte do C. Processo Penal), nos termos que seguem.


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II. Fundamentação

A. Dos factos

Com relevo para a decisão do pedido de habeas corpus, dos elementos que instruem o processo extraem-se os seguintes factos:

1. O requerente AA, após ter sido sujeito a 1º interrogatório de arguido detido, por despacho de 18 de Outubro de 2023, foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva à ordem do processo nº 3560/23.4T9MTS, por se encontrar indiciada a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de coacção contra órgãos constitucionais, p. e p. pelo art. 333º, nº 1 do C. Penal, de um crime de injúria agravado, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 184º, por referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, de um crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, 145º, nºs 1, a) e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, e de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, c), por referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal;

2. A prisão preventiva foi revista e mantida por despachos de 11 de Janeiro de 2024 e de 11 de Abril de 2024;

3. E foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Fevereiro de 2024;

4. Em 15 de Abril de 2024 foi deduzida acusação contra o arguido pela prática dos crimes indiciados, referidos em 1., na qual o Ministério Público, considerando-o inimputável, promoveu que lhe seja aplicada uma medida de segurança de internamento;

5. Por despacho de 3 de Maio de 2024 foi determinada a substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela medida de internamento preventivo, a ter lugar na ala psiquiátrica junto do Estabelecimento Prisional ...;

6. A acusação foi recebida por despacho de 18 de Junho de 2024, o requerente contestou em 25 de Julho de 2024, e a audiência de julgamento foi designada para o dia 12 de Setembro de 2024;

7. A medida de internamento preventivo foi revista e mantida por despacho de 31 de Julho de 2024.

B. A questão objecto do habeas corpus

Embora o requerente da providência não tenha expressamente indicado o fundamento do habeas corpus, cumpre apreciar se o mesmo se encontra em situação de prisão ilegal por, segundo depreendemos [atento o confuso requerimento apresentado], não ser admissível o seu internamento preventivo.

C. Do direito

Com raízes no sistema judicial britânico, a providência de habeas corpus foi pela primeira vez contemplada na ordem jurídica portuguesa na Constituição de 1911, foi mantida na Constituição de 1933, e também se encontra presente na actual Constituição da República Portuguesa, enquanto garantia expedita e extraordinária contra situações ilegais de privação da liberdade.

Dispõe o art. 31º da Lei Fundamental:

1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

No actual modelo constitucional o habeas corpus, enquanto garantia, tutela o direito fundamental liberdade, quando gravemente afectado por situação de abuso de poder, em consequência de prisão ou detenção ilegal. A providência pode ser requerida pelo interessado ou por qualquer cidadão, assim se aproximando da acção popular (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 509), e deve ser decidida pelo juiz competente no prazo de oito dias.   

A nível infraconstitucional o habeas corpus encontra-se regulado nos arts. 220º e 221º do C. Processo Penal, quando seja determinado por detenção ilegal, e nos arts. 222º e 223º do mesmo código, quando seja determinado por prisão ilegal.

In casu, o requerente foi o subscritor do próprio requerimento e não indicou a norma ou as normas em que funda a pretensão deduzida. Porém, a prisão ilegal em que alega encontrar-se parece resultar da inadmissibilidade da medida de internamento preventivo a que se encontra sujeito [note-se que conclui a petição, apelando à sua imediata libertação e sujeição à medida de coacção de apresentação periódica à autoridade policial], situação esta subsumível à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 222º do C. Processo Penal.

Há, assim, que convocar o regime do habeas corpus em virtude de prisão ilegal.

Dando exequibilidade ao regime constitucional do habeas corpus, estabelece o art. 222º do C. Processo Penal:

1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Assim, os fundamentos da ilegalidade da prisão para efeitos da petição de habeas corpus são, taxativamente, os previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal.

Em causa nos autos, está um habeas corpus fundado, ao que cremos, na alínea b)  referida, alínea susceptível de aplicação em inúmeras e distintas situações e cuja verificação terá de resultar da matéria de facto processualmente adquirida, conjugada com a legislação aplicável ao caso. Mas o que é sempre necessário é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário (Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 909).

Em suma, o habeas corpus traduz-se num remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação da liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, processo nº 139/10.4YFLSB.S1, in www.dgsi.pt).  

D. O caso concreto

Resulta, com dificuldade, da petição de habeas corpus que o requerente entende estar ilegalmente privado da liberdade, mas sem que seja possível perceber as concretas razões que a tal conclusão conduzem. Com efeito, as vagas e desgarradas referências a um notório abuso de poder no decretamento da prisão preventiva, à inexistência de provas em veículos, a uma perícia forjada e à existência de crimes de tráfico de influências, não permitem percepcionar os fundamentos da providência.

Vejamos.

Decorre dos factos relevados que por despacho de 18 de Outubro de 2023, proferido pelo juiz de instrução, no processo nº 3560/23.4T9MTS, foi aplicada ao requerente a medida de coacção de prisão preventiva, despacho que foi confirmado pelo acórdão da Relação do Porto de 21 de Fevereiro de 2024, tendo a medida de coacção sido revista e mantida por despachos de 11 de Janeiro de 2024 e de 11 de Abril de 2024.

Em 15 de Abril de 2024 foi deduzida acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de factos objectivamente preenchedores dos crimes de coacção contra órgãos constitucionais, de crime de injúria agravado, de ofensa à integridade física qualificado e de ameaça agravado, nela sendo considerado inimputável, peticionando o Ministério Público a aplicação de uma medida de segurança de internamento.

No seguimento, o juiz de instrução, por despacho de 3 de Maio de 2024, determinou a substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela medida de internamento preventivo, a ter lugar na ala psiquiátrica junto do Estabelecimento Prisional ....

A acusação foi recebida por despacho de 18 de Junho de 2024 e a audiência de julgamento veio a ser designada para o dia 12 de Setembro de 2024, tendo a medida de internamento preventivo sido revista e mantida, por despacho de 31 de Julho de 2024.

Como se vê, a privação da liberdade do requerente – primeiro, pela medida de coacção de prisão preventiva e, depois, pela medida de internamento preventivo – tem respaldo em diversas decisões judiciais, transitadas em julgado, tem fundamento na prática indiciária de factos qualificados na lei crimes, sancionados com pena de prisão, e não se mostram ultrapassados os prazos fixados na lei para a manutenção da privação da liberdade.

Torna-se, pois, evidente a não verificação, in casu, do fundamento previsto na alínea b) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal. Como, igualmente, não estão verificados os fundamentos previstos nas alíneas a) e c) do mesmo número e artigo.

Sendo, pelas sobreditas razões, manifestamente infundada a petição de habeas corpus, deve o requerente ser sancionado nos termos do disposto no nº 6 do art. 223º do C. Processo Penal.


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Em conclusão:

- Encontrando-se o requerente privado da liberdade na sequência de despachos judiciais transitados em julgado, que o sujeitaram à medida de coacção de prisão preventiva e, depois, em substituição desta, à medida de internamento preventivo, e que reviram e mantiveram, quer a prisão preventiva, quer o internamento preventivo, privação da liberdade resultante da indiciação da prática de factos qualificados na lei como crimes e por ela sancionados com pena de prisão, e não se mostrando ultrapassados os prazos legais de manutenção da privação da liberdade, não está verificado qualquer dos fundamentos de habeas corpus previstos no nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, o que determina, necessariamente, o indeferimento da providência;

- Sendo manifestamente infundada a petição de habeas corpus, há lugar ao sancionamento do requerente, nos termos do disposto no nº 6 do art. 223º do C. Processo Penal.


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III. Decisão


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pelo requerente AA.

B) Condenar o requerente nas custas do processo, fixando em três UC a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa) e ainda, nos termos do art. 223º, nº 6 do C. Processo Penal, no pagamento da sanção processual de sete UC.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).


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Lisboa, 13 de Agosto de 2024

Vasques Osório (Relator de turno)

Jorge Gonçalves (1º Adjunto)

António Latas (2º Adjunto)

Maria Amélia Alves Ribeiro (Presidente)