I - Se o recorrente entende que o acórdão recorrido aplicou, como ratio decidendi, norma ferida de inconstitucionalidade, em função da interpretação que da mesma foi adotada, deveria ter suscitado essa inconstitucionalidade durante o processo e, preenchidos os demais pressupostos processuais específicos do respetivo recurso, sempre poderia ter recorrido para o Tribunal Constitucional (TC) para que este apreciasse e declarasse, se fosse caso disso, a inconstitucionalidade da norma em que assentou a sua condenação, não constituindo o recurso de fixação de jurisprudência meio de substituição do recurso de constitucionalidade que o recorrente não interpôs.
II – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem como pressupostos substanciais que: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas – oposição entre decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.
III – Resultando distintas as situações de facto e as questões de direito que estiveram na base das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, não se verifica a invocada oposição relevante de julgados que pressupõe que as situações de facto sejam idênticas nos arestos em confronto, e bem assim que neles haja expressa e explícita resolução da mesma e exata questão de direito, pelo que falece, manifestamente, um requisito substancial para a admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.
1. AA, com os sinais dos autos, tendo sido notificado do acórdão que negou provimento ao recurso que havia apresentado, confirmando a decisão da 1.ª instância que o condenou pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e b), da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão (pela prática de cada um) e, em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, com imposição da condição do pagamento pelo arguido, no período da suspensão, da quantia global em sede de IRC no valor de €368.933,01, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, invocando o disposto no artigo 437.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
2. São do seguinte teor as conclusões que o recorrente extraiu da motivação que apresentou (transcrição):
I. O arguido recorreu da decisão proferida pela Primeira Instância relativamente à matéria de facto, que o Tribunal da Relação julgou improcedente, fundamentando tal decisão na verificação do caso julgado resultante da sentença proferida em sede de impugnação judicial intentada pela sociedade L..... ...., de acordo com o disposto no artigo 48º do RGIT.
II. Refere o Acórdão recorrido de que no caso em análise, verifica-se a identidade da causa de pedir e pedido quanto à questão da pretendida veracidade das facturas, sendo que porém o arguido AA ora recorrente, não foi autor/impugnante na Impugnação.
III. Porém, de acordo ainda com o Acórdão proferido, a doutrina e também a jurisprudência, vêm fazendo a distinção entre a excepção de caso julgado que exige a identidade do pedido, causa de pedir e partes, e figura da autoridade de caso julgado que pode prescindir dessa identidade mas em que “o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
IV. E conclui ser este o sentido que, em nossa opinião, se deve extrair do disposto no artº 48º do RGIT. A autoridade do caso julgado da sentença proferida no processo de impugnação judicial nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, impõe-se à segunda decisão (do processo penal tributário) como sendo seu pressuposto indiscutível, subjacente a uma relação de prejudicialidade entre o objeto de ambas as decisões, ainda que os sujeitos deste último processo não tenham tido intervenção naquele.” Assim, por força dessa autoridade de caso julgado, e porque a questão da não correspondência de operações reais às facturas, fundamento das liquidações adicionais do IRC não pode ser voltada a analisar, nessa parte é improcedente a impugnação.
V. Isto posto, dispõe o artigo 437.º, nº 2, do Código de Processo Penal, que é admissível recurso quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
VI. Estão verificados os requisitos da admissibilidade do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, uma vez que não é admissível a interposição de recurso ordinário – cfr. artigo 400º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal – e foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do Processo nº 1120/09.1TABCL.G3, transitado em julgado, em que foi Relator o Exmo. Senhor Desembargador Jorge Bispo, em oposição com o Acórdão ora recorrido.
VII. Com efeito, foi decidido neste Acórdão do TRG, conforme sumariado, que «a reversão e a respetiva impugnação deduzida na execução fiscal não constitui uma questão prejudicial ou da qual dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objeto do processo penal tributário. Consequentemente, a decisão proferida pela jurisdição tributária, a julgar procedente a oposição e a anular o despacho de reversão, não produz efeito de caso julgado com incidência sobre o processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa, nos termos previstos no artº 48º do RGIT».
VIII. Consta da fundamentação deste Acórdão o seguinte: «E a questão que, agora, se coloca, julgada que se mostra em definitivo aquela causa, é a de saber se a decisão proferida tem qualquer tipo de implicação, designadamente, nos termos previstos pelo artº 48º do RGIT, na subsistência da presente instância penal. E a resposta é, quanto a nós, adiantamo-lo já, manifestamente negativa, por várias ordens de razões.
IX. A primeira delas é a de que o artº 48º do RGIT - que estabelece que a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição do executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Penal Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário -, não pode ser lido isoladamente. (nosso sublinhado)
X. Com efeito, a disposição normativa em causa articula-se com a previsão do antecedente artº 47º, no qual se prescreve que, se estiver a correr termos processo de qualquer uma das indicadas espécies, a respetiva pendência só determina a suspensão do processo penal tributário, quando nelas se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados. Não é, por conseguinte, qualquer impugnação judicial ou qualquer oposição à execução que determina, ou deve determinar a suspensão do processo penal tributário. É necessário que, por alguma dessas formas de reação processual, seja posta em causa situação tributária de cuja definição dependa, por seu turno, a verificação do delito penal.
XI. Do mesmo modo que assim é, só decisão, proferida no âmbito de impugnação judicial ou de oposição, que tenha esse alcance pode ter como efeito, em caso de procedência, a formação de caso julgado, que constitui exceção que obsta à apreciação do mérito do processo penal tributário.
XII. Para além disso, o artº 48º do RGIT estabelece, ainda, que essa eficácia de caso julgado abrange apenas as questões decididas e nos precisos termos em que o foram. (…) a verdade é que o processo penal se rege, por efeito do que se prescreve no artº 7º do Cód. de Proc. Penal, pelo princípio da suficiência, que dita, justamente, que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro, nele se resolvendo todas as questões que interessem à decisão da causa. (nosso sublinhado)
XIII. A noção de caso julgado, embora não expressamente prevista no regime processual penal, decorre claramente do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, comportando a dimensão subjetiva de garante ao cidadão de que não será julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos.
XIV. Diferentemente se passam as coisas no processo penal, em que a fonte da responsabilização criminal e civil do arguido e demandado não emerge de uma responsabilidade tributária, mas outrossim da prática de um facto criminoso, gerador de responsabilidade criminal e civil nos termos gerais, com elementos típicos próprios, que transcendem o incumprimento da obrigação tributária, ainda que o pressuponham. A responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária são, pois, realidades distintas, que surgem, se mantêm e se extinguem de forma independente entre si.
XV. Em síntese conclusiva, a reversão e a respetiva impugnação deduzida na execução fiscal não constitui uma questão prejudicial ou da qual dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objeto do processo penal tributário. Consequentemente, a decisão proferida pela jurisdição tributária, a julgar procedente a oposição e a anular o despacho de reversão, não produz efeito de caso julgado com incidência sobre o processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa, nos termos previstos no art. 48º do RGIT. (nosso sublinhado)
XVI. Há, pois, manifesta oposição entre o Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos e o Acórdão fundamento supra citado. No primeiro há o entendimento de que a sentença proferida em processo de impugnação judicial, uma vez transitada, constitui caso julgado para o processo penal tributário e que, não obstante, não se verificar a identidade das partes, verifica-se a autoridade do caso julgado aplicável ao processo penal.
XVII. No Acórdão fundamento, ao contrário, entende-se que não é qualquer impugnação que possa determinar a verificação do caso julgado, sendo que o fundamento do caso julgado assenta no princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
XVIII. Ou seja, o entendimento sufragado no Acórdão fundamento jamais prescindiria da identidade das partes em ambos os processos para que se verificasse o caso julgado, pelo que jamais se aplicaria o disposto no artigo 48º do RGIT ao caso dos presentes autos.
XIX. Ambos os Acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação, sendo que o Acórdão fundamento transitou em julgado.
XX. Deverá, pois, ser proferida decisão a fixar jurisprudência, sendo que no modesto entendimento do Recorrente a mesma deverá ser no sentido entendido pelo Acórdão fundamento, isto é de que o artigo 48º do RGIT - que estabelece que a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição do executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Penal Tributário, uma vez transitada, constitui caso julgado para o processo penal, apenas no caso de identidade do pedido, da causa de pedir e dos sujeitos, face ao princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
XXI. No caso dos autos não há identidade dos sujeitos, pelo que não se põe em causa o fundamento do disposto no artigo 48º do RGIT.
XXII. Noutra perspetiva, entendendo-se que o caso julgado previsto no artigo 48º do RGIT decorre do principio ne bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, o certo é que nem sequer tem aplicação no caso presente, por precisamente se tratarem de pessoas distintas, a Impugnante e o aqui arguido. Ou seja, jamais a não aplicação do regime previsto no artigo 48º do RGIT determinaria a violação daquele princípio constitucional.
XXIII. Quanto à invocação do caso julgado no sentido de se evitarem decisões contraditórias, terá de se ter em conta que se está no âmbito do processo penal e tal sacrifício de justiça material deverá ter limites. Por esse motivo é que a redação da lei refere “a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram.” (nosso sublinhado)
XXIV. E as questões que foram discutidas em sede de impugnação judicial não constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal, tal como decorre do disposto no artigo 103º, nº 1, alínea a), do RGIT, por cuja prática foi o arguido julgado, no sentido de se terem, ou não, preenchidos os elementos típicos deste crime.
XXV. Sem prescindir, a interpretação do disposto no artigo 48º do RGIT, perfilhada pelo Acórdão recorrido, segundo a qual os factos que constituem os elementos típicos do crime, pelo qual o arguido foi julgado e condenado, resultaram provados em consequência da decisão proferida no âmbito da impugnação judicial, por força da aplicação do caso julgado ou da autoridade do caso julgado constitui interpretação violadora do disposto no artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
XXVI. Ora, tendo sido proferida sentença anterior ao da realização do julgamento sentença no âmbito do Tribunal Administrativo e Fiscal à qual é atribuída força de caso julgado, ou autoridade do caso julgado, de acordo com o disposto no artigo 48º do RGIT, forçoso será concluir que tal preceito, assim, entendido, fere os princípios estabelecidos nos citados nºs 1 e 2 do artigo 32º da CRP.
XXVII. No caso dos autos assume maior gravidade o facto do arguido não ter sido parte na impugnação judicial, uma vez que foi instaurada pela co-arguida L..... ..... E o facto do arguido, ora recorrente, e os demais arguidos terem beneficiado da suspensão do processo penal consagrada no artigo 47º, n.º 1, do RGIT, não poderá constituir caso julgado para todos estes arguidos que não foram parte na impugnação judicial.
XXVIII. É que a impugnação judicial tem carácter individual e pessoal, pelo que apenas pode condicionar os efeitos da sua ação em relação ao impugnante e não em relação a quem não é parte na impugnação, sendo pois inoponível a terceiros que, aliás, também não a podem invocar para obtenção de qualquer benefício em sede tributária.
XXIX. É pois inconstitucional o artigo 48.º do RGIT, se interpretado, tal como o fez o Tribunal da Relação do Porto, no sentido de que as decisões proferidas em processo de impugnação judicial constituem caso julgado em processo penal, aplicável a quem não foi parte, por violação dos princípios consagrados nos nºs 1 e 2 do artigo 32.º da CRP.
Termos em que deverá ser admitido e julgado procedente o presente recurso, tudo com as legais consequências, designadamente proferido Acórdão de Fixação de Jurisprudência no sentido do decidido pelo Acórdão fundamento, isto é de que o artigo 48º do RGIT - que estabelece que a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição do executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Penal Tributário, uma vez transitada, constitui caso julgado para o processo penal, apenas poderá ocorrer caso haja em ambos os processos identidade do pedido, da causa de pedir e dos sujeitos, face ao princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa,
assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
3. O Ministério Público junto da Relação do Porto apresentou resposta, concluindo não se verificar a condição de admissibilidade do recurso exigida pelo artigo 437º,nº 2, do Código de Processo Penal, pelo que o mesmo deverá ser rejeitado.
4. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), pronunciou-se no sentido de não se verificarem os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto.
5. Notificado o recorrente da posição assumida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, para efeitos de contraditório, o mesmo nada disse.
6. Realizado o exame preliminar a que alude o artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP) e colhidos os vistos, cumpre decidir em conferência - decisão que, nesta fase, se circunscreve a aquilatar da admissibilidade ou rejeição do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. A questão objeto do recurso, nos termos em que o recorrente a configura nas conclusões da motivação, consiste em saber se existe oposição de julgados, justificativa do presente recurso extraordinário, entre o acórdão recorrido (da Relação do Porto, de 6.03.2024, transitado em 21.03.2024) e o acórdão fundamento (da Relação de Guimarães, de 8.05.2017, transitado em 22.05.2017), quanto à questão que consiste em saber os termos em que uma sentença proferida em processo de impugnação judicial, uma vez transitada, constitui, face ao disposto no artigo 48.º do RGIT, caso julgado para o processo penal tributário.
2. Estabelece o artigo 437.º do CPP, sob a epígrafe “Fundamento do recurso”:
«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.»
O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, devendo o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, bem como justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (n.ºs 1 e 2 do artigo 438.º do CPP).
Os artigos 437.º e 438.°. n.ºs 1 e 2, do CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos (vd., por todos, Pereira Madeira, Código de Processo Penal, Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016, 2.ª ed. Revista, p. 1438 e ss.; acórdão de 29.10.2020, proc. 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação):
a) Formais:
1. legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);
2. interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;
3. identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;
4. trânsito em julgado do acórdão fundamento.
b) - Substanciais:
1. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;
2. a identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;
3. a oposição deve verificar-se entre duas decisões sobre a mesma ou as mesmas questões de direito e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra (exige-se que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções opostas para a mesma questão fundamental de direito);
4. que as decisões em oposição sejam expressas e não meramente tácitas ou implícitas;
5. a identidade de situações de facto - que os dois acórdãos assentem em soluções opostas da mesma questão de direito a partir de idêntica situação de facto.
3. No caso em apreço, não se questiona a verificação dos pressupostos formais de legitimidade, interesse em agir e tempestividade, bem como a identificação do acórdão fundamento.
O mesmo não ocorre, porém, com os pressupostos substanciais, como passaremos a demonstrar.
3.1. Em primeiro lugar, o recorrente, para além de manifestar a sua discordância relativamente ao acórdão recorrido, apresentando os argumentos que, no seu entender, teriam justificado decisão diversa - matéria que é completamente alheia ao presente recurso e denota a pretensão de transformar este recurso extraordinário num recurso ordinário para o STJ, que lhe está vedado -, alega, igualmente, que a interpretação do disposto no artigo 48.º do RGIT, perfilhada pelo acórdão recorrido, “segundo a qual os factos que constituem os elementos típicos do crime, pelo qual o arguido foi julgado e condenado, resultaram provados em consequência da decisão proferida no âmbito da impugnação judicial, por força da aplicação do caso julgado ou da autoridade do caso julgado, constitui interpretação violadora do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa”.
Tal alegação não tem qualquer cabimento no âmbito do presente recurso.
Realmente, se o recorrente entende que o acórdão da Relação do Porto, aqui recorrido, aplicou, como ratio decidendi, norma ferida de inconstitucionalidade, em função da interpretação que da mesma foi adotada, deveria ter suscitado essa inconstitucionalidade durante o processo e, preenchidos os demais pressupostos processuais específicos do respetivo recurso, sempre poderia ter recorrido para o Tribunal Constitucional (TC) para que este apreciasse e declarasse, se fosse caso disso, a inconstitucionalidade da norma em que assentou a sua condenação, não constituindo o recurso de fixação de jurisprudência meio de substituição do recurso de constitucionalidade que o recorrente não interpôs.
2.2. Os acórdãos, recorrido e fundamento, foram proferidos no âmbito da mesma legislação, pois durante o intervalo de tempo da sua prolação não ocorreu modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
Porém, não se verifica a indispensável identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pelo que não se pode sustentar que estejamos perante soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, que se verifique que os dois acórdãos em contraposição consagraram “soluções opostas” na interpretação e aplicação da mesma norma – oposição entre decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra.
Na perspetiva do recorrente, está em causa a aplicação de forma diversa, nos acórdãos em confronto, do disposto no artigo 48.º do RGIT (Regime geral das infrações tributárias – Lei n.º 15/2001, de 5 de junho), que, sob a epígrafe ‘Caso julgado das sentenças de impugnação e de oposição’, dispõe:
«A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram.»
Vejamos.
O ora recorrente, no recurso que interpôs para a Relação do Porto, pretendeu alterar a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância.
O acórdão da Relação que confirmou a condenação do ora recorrente pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 103.º, n.º 1, al. a) e 104.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e b), da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho, para além da demais argumentação que utilizou, referiu ainda o seguinte:
«[…] ao pretender impugnar a matéria de facto provada, na parte em que foi dado como provado que as facturas constantes da matéria de facto provada, não correspondem a “efectivas prestações de serviços ou a quaisquer outras operações reais”, o recorrente faz tábua rasa do artº 48º do RGIT, que sob a epígrafe “caso julgado das sentenças de impugnação ou oposição”, dispõe que «A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram.»
Ora, como resulta da certidão de fls.1487e ss, vol.V destes autos a L..... .... impugnou as correcções, à matéria tributável, em relação ao valor que havia declarado nos anos 2011, 2012, 2013 e 2014, e que conforme se extrai do quadro constante do artº 2º dessa acção de impugnação, confrontar fls.1490, os valores de tais correcções são coincidentes com os valores dados como provados no ponto 92 da factualidade provada.
Sendo que na petição dessa acção A impugnante L..... .... peticionava a anulação das liquidações adicionais efectuadas com base nos relatórios de inspecção, e com base na alegação de que “As facturas emitidas pelas ditas sociedades terão necessariamente de ser consideradas como custo, pois representam operações efectivamente realizadas e integralmente pagas pela Autora”. Artº 45 da petição.
Face à existência de tal impugnação e à prejudicialidade da questão da situação tributária da impugnante para estes autos, estiveram os mesmos suspensos nos termos do arº 47º do RGIT entre 29/2/2016 e 7/11/2019, data do trânsito em julgado do acórdão que confirmou a sentença de impugnação, pois, como escrevem João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, «a razão de ser de tal regime radica na necessidade de, para efeitos de apuramento da responsabilidade criminal, ser necessário conhecer os termos da relação substantiva. Ora, esta, só se torna definitivamente conhecida com o trânsito em julgado da sentença em processo de impugnação judicial ou da decisão em oposição à execução fiscal. Só assim se compreende que os factos e o direito nelas fixado constitua caso julgado no processo-crime, tal como resulta do art. 48º deste RGIT ».
A sentença que conheceu da impugnação judicial tributária, deu como provado o teor dos relatórios de inspecção e como não provado que “foram realizados e pagos os serviços têxteis, constantes das facturas emitidas” por cada uma das sociedades identificadas nestes autos, tendo julgado a acção de impugnação judicial contra as liquidações de IRC totalmente Improcedente.
Muito embora, como escreve o Prof. Manuel de Andrade , “(…) o caso julgado só se forma em princípio sobre a decisão contida na sentença”, é contudo legítimo recorrer à motivação da decisão, quando tal se revele necessário, para interpretação do dispositivo da sentença, abrangendo o caso julgado material para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.(sublinhado nosso)
Isto mesmo resulta do que expende o mesmo Prof. quando escreve “a) Os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelos elementos identificativos da acção em que foi proferida a sentença: as partes, o pedido e a causa de pedir (arts.497º e 498º). Mais rigorosamente se dirá que são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo. b) Por outro lado é preciso atender aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade - faz lei para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo. Não pode portanto impedir que em novo processo se dirima aquilo que a mesma não definiu”.
No caso em análise, verifica-se a identidade da causa de pedir e pedido quanto à questão da pretendida veracidade das facturas, sendo que porém o arguido AA ora recorrente, não foi autor/impugnante na Impugnação.
Porém, a doutrina e também a jurisprudência, vêm fazendo a distinção entre a excepção de caso julgado que exige a identidade do pedido, causa de pedir e partes, e figura da autoridade de caso julgado que pode prescindir dessa identidade mas em que “o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
(…)
Sendo a única questão colocada na acção de impugnação judicial a correspondência de operações reais às facturas em causa nos autos, causa de pedir para o pedido de anulação das liquidações adicionais de IRC dos anos de 2011,2012, 2013 e 2014 efectuadas pela AT à sociedade L..... .... de que o aqui arguido AA nos termos da acusação era o único gerente, a decisão de impugnação judicial, fixou o apuramento da matéria tributável, questão precedente e prejudicial, à decisão destes autos, constitui caso julgado neste processo quanto a tal questão nos termos do artº 48º do RGIT.»
Ou seja, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que se havia formado (em processo de impugnação judicial de decisão da autoridade tributária que motivou a suspensão do andamento do processo-crime – nos termos do artigo 47.º do RGIT) caso julgado acerca da factualidade que esteve na base da condenação do arguido, ora recorrente, no sentido de que, como assinala o Ministério Público neste STJ, estamos perante o que vulgarmente se chamam ‘faturas falsas’, inexistindo operações efetivamente realizadas.
Em contraposição, no acórdão da Relação de Guimarães, relativo a uma condenação pela prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, continuado, p. e p. pelos artigos 7.º, 12.º, n.º 2, 105.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 107.º, do RGIT, por referência aos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal, a questão suscitada consistia em saber se a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal, a julgar procedente a oposição à execução fiscal deduzida pela arguida, com anulação do despacho de reversão contra si formulado (por falta de fundamentação) produziu efeito de caso julgado com incidência no processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa.
A Relação de Guimarães acabou por entender, a partir da análise do regime da responsabilidade subsidiária e do instituto da reversão como “figura processual privativa do processo executivo tributário”, que “a reversão não surge como pressuposto da sujeição da arguida ao procedimento criminal ou do preenchimento dos elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (…). A existência ou não da reversão fiscal contra a arguida apenas releva no domínio das relações jurídico-administrativas de natureza fiscal, sendo totalmente irrelevante para o processo penal tributário.»
Mais se assinala que “a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal pronunciou-se apenas pela verificação da invalidade formal do despacho de reversão, por falta de fundamentação (…)” e que atento “o teor dessa decisão, não é a mesma contraditória com o efectivo exercício da gestão de facto por parte da arguida”, concluindo-se que “a reversão e a respetiva impugnação deduzida na execução fiscal não constitui uma questão prejudicial ou da qual dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objeto do processo penal tributário. Consequentemente, a decisão proferida pela jurisdição tributária, a julgar procedente a oposição e a anular o despacho de reversão, não produz efeito de caso julgado com incidência sobre o processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa, nos termos previstos no artº 48º do RGIT”.
Em suma:
- no caso apreciado pela Relação de Guimarães (acórdão fundamento), a reversão foi anulada por motivos formais – invalidade formal do despacho que a havia determinado -, sendo expressamente referido que no processo penal não estava em causa a responsabilidade tributária (no âmbito da qual se verificou a reversão), mas a conduta criminal da arguida, pelo que a decisão no processo tributário não podia ser invocada para os termos do art.º 48º do RGIT - «a reversão não surge como pressuposto da sujeição da arguida ao procedimento criminal ou do preenchimento dos elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social» -, não havendo relação de prejudicialidade;
- no caso apreciado pela Relação do Porto (acórdão recorrido), diversamente, entendeu-se existir relação de prejudicialidade e, nessa base, foi interpretado o artigo 48.º do RGIT.
A decisão da questão de direito não pode ser desligada do substrato factual sobre a qual incide, razão por que a viabilidade do recurso de fixação de jurisprudência pressupõe, como já se disse, que estejam em causa diferentes soluções de direito dadas a situações de facto idênticas.
In casu, não se pode dizer que a norma do artigo 48.º do RGIT tenha sido interpretada de forma contraditória nos dois arestos em confronto, pois as situações de factos presentes nos dois acórdãos são claramente diferentes e os entendimentos quanto à existência ou inexistência de relação de prejudicialidade também partem de contextos jurídicos distintos – no que concerne ao acórdão fundamento, esse contexto é dado pelos regimes da responsabilidade subsidiária e do instituto da reversão, decorrentes da Lei Geral Tributária, não considerados no acórdão recorrido.
Resultando distintas as situações de facto e as questões de direito que estiveram na base das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, não se verifica a invocada oposição relevante de julgados que pressupõe que as situações de facto sejam idênticas nos arestos em confronto, e bem assim que neles haja expressa e explícita resolução da mesma e exata questão de direito, pelo que falece, manifestamente, um requisito substancial para a admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.
Em consequência, o recurso deve ser rejeitado nos termos do artigo 441.º, n° 1, do CPP.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA, nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, do CPP; e
b) condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais), a que acresce, ao abrigo do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi do artigo 448.º, do mesmo diploma, a condenação do mesmo no pagamento da importância de 4 (quatro) UCs.
Supremo Tribunal de Justiça, 12 de setembro de 2024
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Leonor Furtado (1.ª Adjunta)
Vasques Osório (2.º Adjunto)