HABEAS CORPUS
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE PRISÃO
RECURSO DE REVISÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
II - Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o STJ apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário (ou aquele em cujo beneficio tenha sido peticionado o habeas) atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.
III - A providência de habeas corpus não serve para sindicar a bondade da condenação transitada em julgado, razão por que tudo o que se alegue a esse respeito na petição não tem, no contexto desta providência, qualquer cabimento.
IV - Para além de ser controversa a verdadeira natureza da revisão – pedido de anulação/ação de impugnação ou verdadeiro recurso -, não oferece qualquer dúvida que o pedido de revisão de sentença transitada em julgado, com tramitação própria e autónoma prevista nos artigos 449.º a 466.º, do CPP, não tem efeito suspensivo, do processo ou da decisão, não lhe sendo aplicável o regime dos recursos ordinários.
V - Sendo incontroverso que o pedido de revisão (ou mesmo a decisão que autoriza a revisão) não suspende, de imediato, a execução da pena de prisão ou da medida de internamento que esteja em execução, é manifestamente infundado o pedido de habeas corpus que tem por base a apresentação de tal pedido.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

1. AA, com os sinais dos autos, veio, através de advogado, apresentar petição de habeas corpus, com invocação do artigo 222.º, n.º2, al. b, do Código de Processo Penal, nos termos e com os fundamentos que se transcrevem:

«I – Dos Fundamentos da Admissibilidade

1 - A providência de habeas corpus constitui um incidente que se destina a assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido – art.º 27.º n.º 1 e 31.º n.º 1, da CRP –, e visa pôr termo a situações de prisão ilegal, motivada, entre outros, ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite– art.º 222.º, n.º 1 e 2, alínea. b) do CPP.

2 - A providência de habeas corpos tem como pressuposto de facto a prisão efetiva e atual e como fundamento de direito a sua ilegalidade.

3 - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP, o que sucede, in casu:

A - Porquanto, o Arguido foi notificado de um Acórdão de condenação tendo apresentado Recurso de Revisão sobre a justeza da condenação, podendo tal acórdão influir no desfecho da pena que está em cumprimento.

B – O Arguido, tendo pendente mandado de detenção, entregou-se livremente em 02-09-2024, no Estabelecimento Prisional de ..., para cumprimento dos onze meses e vinte dias que faltam para o cumprimento integral dos três anos de prisão, uma vez que há a descontar, dois anos e dez dias.

4 – A prática destes factos, contrários à lei, manutenção de mandado, sem que o mandado fosse suspenso, em virtude de um recurso de revisão, que coloca em causa a própria condenação.

5 - O Arguido encontra-se preso ilegalmente uma vez que a decisão condenatória que lhe impôs pena privativa de liberdade tem um recurso pendente, susceptível de influir na condenação, o que obsta à execução da pena em que foi condenado e, consequentemente, através deste habeas corpus, pede a sua libertação imediata ao abrigo do disposto no art. 222.º, nº 1 e nº 2, al. b), do CPP.

6 - Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

7 - São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

8 - Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

9 - Convém ter presente, como se refere no art. 31.º, n.º 1 CRP, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2 CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

10 - De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão condenatória ou erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

11 – O Arguido deve ser libertado de imediato por, na sua perspetiva, não haver motivos para a sua detenção ou prisão, uma vez que interpuseram recurso de revisão, o qual teria efeito suspensivo automático (por aplicação do disposto no art. 408.º, n.º 2, al. c) e 414.º, n.º 1, ambos do CPP), tendo a 1ª instância esgotado o seu poder jurisdicional, não lhe incumbindo emitir mandados de detenção, os quais seriam da competência do Tribunal Superior, tanto mais que o recurso fora admitido pela Relação, que não emitira mandados de detenção, como o podia fazer, pelo que à 1ª instância apenas lhe restava instruir o recurso, não podendo restringir a liberdade dos requerentes, sendo que na pendência da admissão do recurso só o STJ, em fase posterior, no âmbito do art. 457.º do CPP, poderá vir a aplicar medidas de coação, verificados os respetivos pressupostos para o efeito.

12 – Embora o mérito do Recurso para aqui não importe, todavia não se pode deixar de ter em consideração, dois segmentos injustos na condenação:

“(…)

Assim não foi levada a cabo prova pericial sobre as características psíquicas da Assistente, tendo sido levantada a questão de poder ser fantasiosa, o que o inquérito em curso, vem precisamente concluir que o seu telemóvel não está haqueado, quer o telemóvel quer outros aparelhos informáticos, como a sua

testemunha BB referiu e que foi levada ao acórdão condenatório.

“(…) que lhe arranjou informático que verificou os dispositivos electrónicos do escritório e residência da ofendida; que os mesmos foram limpos de software intrusivo; que este foi encontrado em tais equipamentos, no que contribuiu para os factos dados como provados, e para a mencionada formação da convicção do Tribunal, como sobredito. E para infirmar os em contrário, neste último ponto contribuindo pois para os factos dados como não provados.”

(…)

No caso dos autos, atentos os novos meios de prova surgidos, e tal como refere a Srª Juiz na informação prestada a fls. 80 dos autos, afigura-se igualmente que o depoimento integral prestado pela referida testemunha BB, da própria assistente e do Arguido, conjugado com o inquérito Processo n.º 385/22.8..., e com os demais elementos probatórios constantes dos autos principais, que se encontram no tribunal de 1ª instância, justificam uma análise com maior detalhe e profundidade em sede de julgamento, sede em que operam os princípios da imediação e do contraditório por forma a ajuizar do conjunto dos factos/meios de prova recolhidos.

Assim, afigura-se que os novos factos/ meios de prova trazidos ao conhecimento do tribunal, combinados com os que foram apreciados no processo, são susceptíveis de gerar dúvidas sobre a justiça da condenação, dúvidas que podem considerar-se de sérias e, nessa medida, graves, sobre a justiça da condenação criminal do arguido, pelo que nos pronunciamos pelo deferimento da requerida revisão de sentença, a par das nulidades invocadas e reconhecidas pelo Tribunal da Relação, mas que segundo este não têm sanção.

Vide acórdão da Relação de Lisboa:

“Cotejando o teor dos factos provados com a narração factual constante da acusação é possível extrair a conclusão de que apenas os factos que constavam da acusação mantiveram a numeração no acórdão. Não sucedeu da mesma foram quanto aos factos subsequentes que não constavam da acusação.

É dado adquirido que na fundamentação do acórdão, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

Ora, lida a decisão recorrida temos de convir que a mesma não segue o figurino legal definido pelo art.º 374º do C.P.P.. Não obstante, a Lei não comina esta irregular inobservância com o vício de nulidade.”

Ora o Tribunal da Relação no seu acórdão refere que a norma está efectivamente violada, mas que não tem sanção. Não deixa de ser sui generis o entendimento da Veneranda Relação de Lisboa, que da decisão citada e da argumentação expendida se verifica que há a sanção e que essa é a nulidade do acórdão.

Não tendo sido observado tal comando legal, este gera nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e 374 nº 2, ambos do Código de Processo Penal, a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal “ a quo”, a qual, não é passível de ser suprida pelo Tribunal Superior nos termos do artº 379 nº 2 do CPP.

A exigência legal de enumeração destina-se a substituir a necessidade de formulação de quesitos sobre a matéria de facto consignada no Código pré-vigente e a permitir que a decisão, em processo penal, demonstre que o tribunal considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída na acusação ou na pronuncia e na contestação, vide A. A. Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., pg. 953. (vide os Acs. STJ, de 5-6-91, CJ, S, XVI, 3, pg. 29; e de 18-12-97, BMJ, 477, pg. 185)

O legislador foi muito preciso e claro quando, em analepse exige uma concreta enumeração de todos os factos que resultaram provados/ e não provados, quer estejam eles na acusação, na pronúncia, contestação e pedidos cíveis/ contestações, para perfectibilizar uma decisão judicial, não se bastando também por exemplo, sequer com as referências feitas por remissão, pois enumerar significa uma descrição especificada dos factos que como tal se consideram sendo necessário indicá-los um a um.

São aqueles, e porventura outros, que estão exuberantemente omissos do acórdão, como bem se constata da sua leitura, e que dele terão, em prolepse de constar.

Tal omissão no acórdão, para além de ser fulminada com a nulidade, e com razão diga-se, pois para além do comando legal ser muito claro, torna-o “opaco” por ficar imperceptivel, em virtude da adopção desta, digamos, deficiente técnica jurídica, a qual por nada valer, pois não os concretiza, não os enumera, tornando-os invisíveis logo insidiáveis. Logo o Arguido não se pode defender destes factos provados não numerados, nem dos factos não provados não numerados.

12 – Neste momento temos um Recurso de Revisão, com os fundamentos aí descritos, e em caso de decesso, poderá o Arguido lançar mão de um recurso de fixação de jurisprudência por oposição de julgados, uma vez, que no domínio da mesma legislação, o mesmo Tribunal já produziu dois Acórdãos em sentidos opostos, sobre a nulidade do artigo 374 do CPP. Logo é falso o vertido no Acórdão condenatório do Venerando Tribunal da Relação que confirmou o acórdão do Tribunal Central Criminal de ....

13 – Em caso de confirmação da decisão, uma vez que o Arguido se entregou livremente é caso para que o Tribunal possa fazer uma prognose favorável de que o mesmo se entregará voluntariamente para cumprir a determinar ou a pena restante, após avaliação do Recurso de Revisão.

14 – O Arguido beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Termos em que, deve o presente procedimento de “Habeas Corpus” ser julgado provado e procedente e, por via dele, deve ser nos termos das disposições conjugadas do 222 n.º 1 e 2, al b) ser o Arguido restituído à liberdade, com o que se fará a mais elementar Justiça!»

2. Foi prestada a informação referida no artigo 223.º, n.º1, parte final, do Código de Processo Penal (doravante CPP), nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

«Intentado pelo arguido AA habeas corpus por prisão ilegal, nos termos do artº.222º., do CPP, nos termos do requerimento antecedente, cujo teor se dá por aqui reproduzido, verifica-se que o mesmo, s.m.o., é manifestamente improcedente.

Com efeito, a decisão condenatória mostra-se transitada.

E o recurso de revisão intentado pelo arguido não tem efeito suspensivo.

Ademais não tendo o mesmo sido detido, mas sim se apresentado voluntariamente em EP a fim de cumprir a pena transitada, que oportunamente terá de ser liquidada.

Donde se afere que o arguido está, por decisão própria, à ordem dos presentes autos.

Por outro lado não está preenchido, com referência aos presentes autos, qualquer dos pressupostos de habeas corpus por prisão ilegal, nos termos do artº.222º., do CPP, nem se verifica qualquer dos vícios aventados pelo arguido.

Não se mostra ultrapassado qualquer prazo de prisão.

Não se constata dos autos qualquer vício, nomeadamente nulidade, inconstitucionalidade ou preterição de direito fundamental do arguido.

Notifique o MP, arguido e seu Il. Advogado mencionado.

Extraia certidão do presente despacho e requerimento e informação de EP antecedente, acórdãos e demais pertinente dos autos e do aludido no requerimento do arguido e remeta-a de imediato ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artº.223º., nº.1, do CPP.»

3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão a decidir:

Saber se o peticionário se encontra na situação de prisão ilegal em razão da dedução de pedido de revisão da decisão condenatória transitada em julgado.

2. Factos

A matéria factual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e da consulta efetuada através do CITIUS, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula):

1. No processo comum (coletivo) n.º 977/19.2SGLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, ... - JC Criminal – Juiz 3, o peticionário foi condenado, além do mais, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.ºs 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de três anos de prisão (efectiva) e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de cinco anos, com obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

2. O ora peticionário recorreu para a Relação de Lisboa, tendo esta, por acórdão de 29.09.2023, confirmado a condenação em 1.ª instância, vindo a mesma Relação, por acórdão de 25.10.2023, a indeferir reclamação deduzida contra o acórdão anterior.

3. O ora peticionário recorreu para o Tribunal Constitucional, que por Decisão Sumária n.º .46/2024, de 20.06.2024, não conheceu do recurso por inadmissível, o que foi confirmado, em sede de reclamação, pelo Acórdão n.º .95/2024, transitado em julgado em 4.07.2024.

4. Na sequência do trânsito em julgado do acórdão condenatório, o tribunal da condenação, em 16.07.2024, determinou a emissão de mandados de condução a estabelecimento prisional do arguido AA, para cumprimento da pena de 3 anos de prisão que lhe foi aplicada.

5. Em 17.07.2024, o condenado, ora peticionário, invocando o artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do CPP, apresentou pedido de revisão da decisão de condenação.

6. No dia 2.09.2024, o condenado apresentou-se voluntariamente no estabelecimento prisional de ..., para cumprimento da sua pena, conforme auto de apresentação voluntária com essa data.

*

3. Direito

3.1. Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

O artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.

Em anotação ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508):

«Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27.º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.»

José Lobo Moutinho (Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de José Lobo Moutinho [et alii], Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo1, 2.ª edição, 2010, pp. 694-695), em comentário ao mesmo artigo 31.º, n.º1, da Lei Fundamental, sustenta que a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus « …não significa e não equivale à excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.»

A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.

Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que constituem fundamentos da providência de habeas corpus os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

Tem também decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).

Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1).

3.2. Adquirido que o habeas corpus é uma providência extraordinária, destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida (e não a toda e qualquer ilegalidade), tem-se assistido, nos últimos anos, neste Supremo Tribunal de Justiça, a uma utilização crescente, no mínimo pouco criteriosa e mesmo censurável, do habeas corpus, com mobilização de meios – realização de audiência pública, com participação de quatro juízes conselheiros – em casos manifestamente desprovidos de qualquer fundamento que possa sustentar o pedido formulado.

Com o devido respeito, é o que ocorre no presente caso.

Nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do CPP, as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva, quer em território português, quer ainda em território estrangeiro, conforme os tratados, convenções e regras de direito internacional.

Por conseguinte, a pena de prisão só pode ser executada após o trânsito em julgado da condenação (artigo 477.º do CPP).

Não há qualquer dúvida de que a condenação do peticionário transitou em julgado.

Aliás, o peticionário, tendo pendente mandado de detenção e condução a estabelecimento prisional, entregou-se livremente, em 02.09.2024, no Estabelecimento Prisional de ..., para cumprimento da pena de prisão que lhe foi imposta.

A providência de habeas corpus não serve para sindicar a bondade da condenação transitada em julgado, razão por que tudo o que se alega a esse respeito na petição não tem, no contexto desta providência, qualquer cabimento.

O mesmo condenado, ora peticionário no presente habeas corpus, apresentou requerimento a pedir a revisão do acórdão condenatório, sabendo que é seu pressuposto o trânsito em julgado do acórdão cuja revisão requereu e, naturalmente, não podendo olvidar as suas consequências, v.g. quanto à sua exequibilidade.

Tudo se resume, por conseguinte, à alegação, por parte do peticionário, de que o pedido de revisão, terá “efeito suspensivo automático (por aplicação do disposto no art. 408.º, n.º 2, al. c) e 414.º, n.º 1, ambos do CPP)”.

O tribunal da condenação proferiu despacho em que admitiu o recurso de revisão interposto, fixando o efeito meramente devolutivo.

A lei processual penal não faz referência à necessidade de ser proferido um despacho de admissão do recurso, sendo certo que não compete ao tribunal da condenação emitir qualquer decisão quanto ao efeito da apresentação de requerimento de revisão.

Para além de ser controversa a verdadeira natureza da revisão – pedido de anulação/ação de impugnação ou verdadeiro recurso -, não oferece qualquer dúvida que o pedido de revisão de sentença transitada em julgado, com tramitação própria e autónoma prevista nos artigos 449.º a 466.º do CPP, não tem efeito suspensivo, do processo ou da decisão, não lhe sendo aplicável o regime dos recursos ordinários.

A ser como invoca o peticionário, estava encontrado o meio para qualquer condenado, depois de esgotados todos os recursos ordinários, obstar à execução da decisão condenatória transitada em julgado: bastar-lhe-ia apresentar um pedido de revisão.

É, por conseguinte, incontroverso que o pedido de revisão (ou mesmo a decisão que autoriza a revisão) não suspende, de imediato, a execução da pena de prisão ou da medida de internamento que esteja em execução.

O que poderá suceder é o STJ, no âmbito da revisão, determinar a suspensão da execução da pena de prisão que o condenado cumpra, «em função da gravidade da dúvida sobre a condenação», como prevê o artigo 457.º, n.º 2, do CPP (cf., a este propósito, João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2024, Tomo V, p. 619-629; acórdão do STJ, de 29.12.2020, proc. n.º 72/15.3GAAVZ-Q.S1; acórdão do STJ, de 12.05.2022, proc. n.º 421/19.5JELSB-E.S1).

Situação que, manifestamente, não se verifica no caso.

Perante o exposto, cumprindo o peticionário uma pena de prisão que lhe foi imposta por decisão judicial transitada em julgado e não tendo ainda decorrido o respetivo prazo, não se verifica uma situação de ilegalidade da prisão, sendo manifestamente infundada a petição de habeas corpus formulada.

3.3. O artigo 223.º, n.º6, do CPP, estabelece: «Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 30 UC.»

A jurisprudência tem considerado, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso.

O mesmo critério deve ser utilizado para determinar quando uma petição de habeas corpus é “manifestamente infundada”, justificando a aplicação de uma sanção processual pecuniária, penalizadora do uso manifestamente censurável da providência por evidente ausência de pressupostos e fundamentos.

É o que ocorre no presente caso, em que é patente e indubitável, numa avaliação perfunctória dos fundamentos do pedido de habeas corpus, que a prisão em causa não é ilegal.

Em consequência, deve o peticionário ser condenado, para além da tributação devida nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processais, também numa soma, nos termos do artigo 223.º, n.º6, do CPP, que, in casu, se fixa em 10 UC.


*


III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes de turno do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.

Custas pelos peticionário, com 3 UC de taxa de justiça para cada um (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa), sendo ainda condenado, nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, no pagamento de uma soma de 10 (dez) UC, a título de sanção processual.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de setembro de 2024

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Agostinho Torres (1.º Adjunto)

Celso Manata (2.º Adjunto)

Helena Moniz (Presidente)