AÇÃO ESPECIAL DE ACIDENTE DE TRABALHO
DESPACHO SANEADOR
ALTERAÇÃO DE REQUERIMENTO PROBATÓRIO
EXTEMPORANEIDADE
Sumário


Ainda que se defenda que na acção especial de acidente de trabalho o requerimento probatório possa ser alterado após ser conhecido o despacho saneador onde se fixa o objecto do litígio e se enuncia os temas de provas (por aplicação subsidiária e analógica do artigo 498º, 1, CPC), no caso o requerimento foi apresentado extemporaneamente para lá do prazo geral de 10 dias a contar do seu conhecimento.
A parte não veiculou ao juiz qualquer justificação para a apresentação tardia de meios de prova (depoimento de parte) para que este pudesse admiti-los ao abrigo de princípios jurídicos mais latos, como o princípio do inquisitório ou da descoberta da verdade material.

Texto Integral


Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A apelação respeita a uma acção especial emergente de acidente de trabalho em que é autor AA, patrocinado pelo Ministério Público, e em que são rés a“EMP01... – Companhia de Seguros ... S.A.” e “EMP02... – Montagem e Reparação, Lda.”.
A fase conciliatória frustrou-se, quer porque a seguradora invocou violação de regras de segurança por parte da entidade empregadora e não aceitou a IPP atribuída, quer porque a empregadora não aceitou a retribuição não transferida para seguradora, negando, também, que tenha havido inobservância de regras de segurança da sua parte.
Foi apresentada petição inicial e contestação por ambas as rés, todas as peças com indicação de meios de prova.
Foi seguidamente proferido despacho saneador a, entre o mais, fixar a matéria assente, identificar o objecto do litígio e enunciar os temas da prova e a admitir os requerimentos de prova, determinando-se o desdobramento do processo para fixação de incapacidade para o trabalho, sem marcação imediata de audiência de julgamento. Este despacho considera-se notificado às partes em 18-03-2024.
A ré empregadora apresentou reclamação à matéria assente no despacho saneador, a qual foi desatendida, tendo sido interposto recurso deste despacho, não admitido por prematuro.
No entretanto, a ré empregadora, em 20-05-2024, em complemento aos anteriores meios de prova, requerer o depoimento de parte do autor a matéria por ela alegada.

Foi então, em 24-05-2024, proferido o despacho ora recorrido, com o seguinte teor:

“Afigurando-se intempestivo o requerimento de prova apresentado (cfr. artigo 63.º, n.º 1 do CPT), indefere-se o mesmo.”
Nessa mesma altura (24-05-2024) foi designada data para audiência de julgamento (para 7-10-2024).
A ré empregadora interpôs recurso deste despacho interlocutório que não admitiu o depoimento de parte - 79º-A, 2, al.d), CPT.

FUNDAMENTOS DO RECURSO DA RÉ - CONCLUSÕES:

1ª. O requerimento de prova apresentado pela apelante em 20/05/2024 foi motivado pela necessidade e relevância do apuramento da realidade factual ocorrida que foi causal do acidente dos autos e que foi protagonizada pelo Autor sinistrado, designadamente, quanto às circunstâncias em que o acidente se deu e que o próprio relatou na “Descrição do acidente”, ao perito averiguador da R. seguradora, nos termos exarados a fls. 4 do Relatório de averiguação junto à contestação da seguradora.
2ª. Essa factualidade tem correspondência com o alegado nos artºs 5º, 6º e 7º da contestação da apelante e nos artºs 23º a 27º da contestação da seguradora.
3ª. Todo o iter do acidente, v.g. quanto ao deflagrar do mesmo e às circunstâncias relevantes que o rodearam, não ficou definido, em termos de narração factual, no auto da tentativa de conciliação, pelo que ficou em aberto a necessidade de apuramento da matéria respeitante à forma como ocorreu o acidente e o que lhe foi causal, por exemplo, se na sua origem esteve a violação de regras de segurança por parte da empregadora ou do sinistrado, o que releva para a definição da culpa e responsabilidade pela produção desse evento.
4ª. Atento o princípio da cooperação das partes para a justa composição do litígio, o princípio do inquisitório e da cooperação para a descoberta da realidade material, previstos nos artºs 7º, 411º e 417º do CPC, a apelante apresentou o requerimento que foi objecto do despacho recorrido, com vista a que o Autor fosse ouvido em depoimento de parte à matéria relativa a essas circunstâncias factuais que estiveram na origem e antecederam o acidente dos autos.
5ª. O fundamento da não admissão desse requerimento de prova foi a sua alegada intempestividade face ao disposto no artº 63º, nº 1 do CPT, argumento este que, com a devida vénia, a apelante entende não ser impeditivo da apresentação de meios de prova complementares para além da fase dos articulados.
6ª. Face aos princípios gerais que estão na base da actual estrutura do Direito Processual Civil e que se estendem ao Processo do Trabalho, o Autor sinistrado, enquanto parte que é, tem o dever de colaborar activamente para que a realização da Justiça vá de encontro ao apuramento da realidade material, decisiva para o mérito da causa.
7ª. Estando o Processo Civil na primeira linha de aplicação para a integração das lacunas e solução dos casos omissos no Processo do Trabalho, o teor literal da regra do artº 63º, nº 1 do CPT – semelhante, aliás, à dos artºs 55º, nº 6 e 572º, al. d) do CPC – não impede que, após prolação do despacho saneador e fixação dos temas da prova, as partes possam complementar os seus meios probatórios, não havendo lugar a audiência prévia, no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho saneador.
8ª. Sendo inquestionável essa possibilidade face ao CPC, não existem fundamentos que impeçam a sua aplicação no âmbito do CPT, o que representaria a primazia de um argumento formal em detrimento das razões de apuramento da realidade material.
9ª. O artº 131º, nº 2 do CPT dispõe que, proferido que seja despacho saneador e quando a ação houver de prosseguir – como foi o caso dos autos -, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, nos termos previstos no artigo 596.º do Código de Processo Civil, numa remissão expressa para a sistemática normativa dessa fase processual prevista no processo civil.
10ª. A razão de ser da possibilidade de alteração do requerimento probatório pelas partes, na audiência prévia, é justificada pelo facto de nela se proceder à identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, pelo que, nos casos de dispensa da audiência prévia (artºs 593º nº 2 al. c) e 596º nº 1, ambos do CPCivil), idêntica admissibilidade existe de alteração do requerimento probatório.
11ª. Sendo a alteração do requerimento probatório, pelas partes, permitida no âmbito do processo civil, nada justifica que tal direito não seja permitido no processo do trabalho, onde estão presentes as bases e princípios da última reforma processual civil, por via da integração dos casos omissos, nos termos previstos no artº 1º, nº 2, al. a) do CPT.
12ª. Face à consagração do direito à prova e do direito à realização da justiça material, através do apuramento da verdade e da justa composição do litígio, que constituem realidades subjacentes ao processo do trabalho, nenhum impedimento existe na sistemática normativa do processo de trabalho que impeça o recurso ao regime processo civil permissivo de complementação dos meios de prova, no caso de não realização de audiência prévia e prolação de despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
13ª. Tal como preconizado no Acórdão da Relação de Lisboa, de 25/10/2023 (Proc. nº 1785/18.3T8FNC.L1-4), em matéria de acidente de trabalho e para reconhecimento de todas as lesões descritas no relatório do exame médico-legal realizado nos autos, a lei processual do trabalho não limita os meios de prova admissíveis, por idêntica razão a mesma lei não deve também limitar os meios de prova destinados à definição da culpa e responsabilidade pela ocorrência do sinistro.
14ª. O despacho sob recurso violou, para além do mais, os artºs 7º, 411º e 417º do CPC.
Nestes termos, nos melhores de Direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de V. Excias., deve o presente recurso merecer provimento, em consequência do que deve ser revogado o douto despacho recorrido e substituído por outro que admita o requerimento de 20/05/2024, sob a ref. 48963942, de complemento dos meios de prova apresentado pela apelante, assim se fazendo Justiça.
CONTRA-ALEGAÇÕES: (as referentes à reclamação ao despacho saneador irrelevam porque não são objecto do presente recurso): sustenta-se a manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi apreciado em conferência – 659º, do CPC.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso[1]): extemporaneidade do requerimento probatório (depoimento de parte) apresentado pela ré empregadora.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
Os constantes do relatório.

B) DA EXTEMPORANEIDADE DO REQUERIMENTO DE DEPOIMENTO DE PARTE
A acção emergente de acidente de trabalho é um processo especial que se rege por normas próprias e, subsidiariamente,  pelas regras do processo declarativo comum laboral e do processo civil - 21º, nº 4, 1º, nºs 1, 2, a), 48º, 49º e 99º e ss CPT.
Relativamente à fase contenciosa em caso de existirem outras questões controvertidas a decidir para além da incapacidade para o trabalho (como é o caso dos autos) só encontramos uma norma especial laboral reguladora do momento de apresentação de provas. É o artigo 133º CPT que dispõe: “O rol de testemunhas pode ser apresentado no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho saneador”. A norma não contempla, assim, a situação ora em análise.
Refere ainda a lei especial reguladora deste tipo de acção que, proferido despacho saneador e quando a ação houver de prosseguir, o juiz identifica o objeto do litígio e enuncia os temas da prova e, com exceção do referido sobre o rol de testemunhas, observam-se seguidamente os termos do processo comum regulados nos artigos 63º e seguintes - 131º, 2, CPT.
Segundo estas normas de aplicação subsidiaria, com os articulados as partes devem juntar os documentos e requerer quaisquer outras provas, salvo o que se refere à mencionada excepção do rol de testemunhas (este pode ainda ser alterado/aditado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final) - 63º, 1, CPC.
Ao abrigo desta norma, o requerimento de prova foi indeferido.
Defende a recorrente que as partes possam completar os requerimentos de prova, nos 10 dias seguintes à prolação do saneador onde se definem os temas de prova, com recurso a normas do processo civil.
Vejamos: o artigo 598º do CPC estabelece que o requerimento probatório pode ser alterado na audiência prévia. Embora a lei não o preveja, a doutrina e alguma jurisprudência vêm defendendo que deve ser consentido às partes a alteração do requerimento probatório ainda que não haja lugar a audiência prévia, no prazo geral de 10 dias a contar do despacho saneador que fixa o objecto do litígio e enuncia os temas de prova - 596º, 1, CPC.
Assim, refere Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in CPC Anotado, vol. 2º, Almedina, 4ª edição, pág. 644:
 «não havendo audiência prévia, às partes deve ser consentida a alteração do requerimento probatório no prazo (geral) de 10 dias contados a notificação do despacho previsto no artº 596º n.º 1, ainda que tal conduza a retificação do despacho de programação da audiência final. Com efeito, não se justificaria que o direito das partes à alteração do requerimento probatório precludisse com a dispensa de audiência prévia.»  Ainda Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum”, Gestlegal, 4ª ed, pág. 206, refere que «em tal situação, o requerimento complementar deve ser apresentado no prazo geral de 10 dias contados do despacho em que lhe é dado conhecimento da fixação dos temas de prova com dispensa da audiência prévia». Também Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. 2, 2ª ed., pág. 284, nota de rodapé 555 parece aderir a esta posição. Na jurisprudência ac. RL. de 30-04-2019, p. 704/18.1T8AGH-A.L1-7, www.dgsi.pt
Entende-se que o prazo para apresentar requerimento probatório que altere um anterior se inicia com a notificação do despacho saneador, momento em que a parte fica inteirada do objecto do litígio e dos temas de prova, caso contrário situação não expressamente contemplada na lei (alteração de meio de prova sem realização de audiência prévia) usufruiria de um prazo maior do que a contemplada na lei (é logo na audiência prévia que as partes podem alterar o requerimento probatório anterior).
Como quer que seja, no caso a norma não aproveita ao recorrente. Isto porque há muito havia decorrido o prazo geral para alterar a prova (28-03-2024) quando a ré apresentou o seu requerimento (20-05-2024), ainda que se defenda o recurso a estas regras de processo civil[2] - o que não temos sequer como absolutamente liquido, na medida em que na acção especial de acidente de trabalho a lei estipula que após os articulados o juiz profere logo despacho saneador destinado, entre o mais, a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova. As partes sabem, assim, de antemão e com certeza que não haverá lugar a audiência prévia, ao contrário do processo civil em que esta pode ou não ocorrer dependendo do juiz.
Em todo o caso, a apresentação de requerimento probatório de alteração é, como referimos, no caso extemporânea, ainda que se recorra, por aplicação subsidiária e analógica, ao disposto nos artigos 598º, 1, 149º, 1, CPC.
Refira-se que a ré, na altura, não apresentou qualquer explicação para a apresentação tardia de prova. Fê-lo como se tal fosse normal.

Apenas escreveu o seguinte:
 “Sem prejuízo do direito a interpor recurso do douto despacho de 06/05/2024 que desatendeu a sua reclamação do despacho saneador, Vem desde já requerer a V. Excia., em complemento do requerimento probatório oportunamente oferecido, se digne admitir o presente requerimento de  - Prestação de depoimento de parte do Autor à matéria alegada pela R. nos artºs 5º, 6º, 7º, 11º, 12º e 13º da sua contestação.”
Além de não apresentar qualquer explicação para a apresentação tardia da prova, do requerimento depreende-se que o poderia ter feito antes, aquando da contestação, na medida em que visaria provar o que ela própria ali antes alegou.
O direito à prova não implica que não haja momentos próprios para a apresentar, sob pena de completa desorganização processual, não sendo absoluto o argumento substancial sob o formal, tudo dependendo do caso concreto (sendo completamente diferentes os exemplos que cita nas alegações). Os processos têm regras. Estas destinam-se a regular o melhor funcionamento do processado que assim atingirá os seus fins mais celeremente, mais eficientemente, mais eficazmente, e em igualdade de tratamento entre as partes, não podendo uma ser beneficiada em detrimento de outra. A forma serve a substância, é um importante parâmetro de conduta que não pode, sem mais, ser desprezada.
A invocação do principio do inquisitório é despropositado, nada fazendo supor que o depoimento de parte do autor seja para o juiz da causa uma diligência necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (411º CPP).
A invocação da violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade é igualmente desapropriada, dado que este não serve para acolher apresentação intempestiva de meios de prova, ademais sem a invocação de qualquer justificação, legítima ou ilegítima que seja (7º e 417º CPC).
É certo que “ O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.”- 452º CPC.
 Porém, mais uma vez, diga-se que nos autos nada indica que o juiz a quo entenda que o autor deve prestar depoimento por tal interessar à decisão da causa, e isso é um entendimento do juiz e não da parte. Se é certo que a parte pode sugerir ao juiz e sublinhar a importância da prova, terá de o justificar para que aquele avalie a necessidade. Como referimos, na altura da apresentação do meio de prova nada foi veiculado ao juiz. A apelação versa sobre a decisão do juiz com os dados que este na altura dispunha e que as partes lhe colocaram.
É de indeferir o recurso.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida - 87º do CPT e 663º do CPC.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.

19-09-2024

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga


[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
[2] Sendo este um processo de natureza urgente, os prazos não se interrompem em férias.