CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
VÍCIO DE INSUFICIÊNCIA DE FACTOS
ARQUIVAMENTO
ABSOLVIÇÃO
Sumário


Com a apresentação dos autos de contraordenação ao juiz por parte do MºPº, abre-se a fase de julgamento em sede judicial, devendo o juiz apreciar apenas a tempestividade da impugnação e o cumprimento dos requisitos de forma, seguindo-se o julgamento, ou dispensado este nos termos do artigo 64º,2 do RGCO, decidir o caso por despacho.
Havendo impugnação da decisão administrativa, por força da norma do art. 62º nº 1 do RGCO, a decisão administrativa converte-se em acusação. Sendo assim, irrelevam vícios que tenham ocorrido, desde que o arguido se tenha valido em sede judicial do direito ou direitos preteridos, ou as irregularidades processuais do processo administrativo e/ou da decisão contraordenacional administrativa condenatória, possam ser sanadas na fase judicial.
Ocorrendo falta ou insuficiência dos factos relevantes para preenchimento da tipicidade da contraordenação imputada, não podendo o vício ser suprido nos termos dos artigos 358º e 359º do CPP, devem os autos ser arquivados se for proferida decisão por despacho, ou ser a arguida absolvida se ocorreu julgamento.

Texto Integral


Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

A arguida, ... - SOCIEDADE DE GÁS ..., S.A., N.I.P.C. n.º ...13, idf. nos autos, veio interpor recurso da decisão proferida pelo tribunal ..., que conhecendo de nulidade invocada, julgou verificada a mesma, ordenando o reenvio do processo à Autoridade para as Condições do Trabalho, em consonância com o preceituado nos artigos 426.º, n.º 1, do C.P.P., 41.º do R.G.C.O. e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, a fim de serem supridos os vícios supra identificados.
- À arguida fora aplicada pela ACT a coima única de € 9.180,00 (nove mil e cento e oitenta euros), com sanção acessória de publicidade, pela prática, em concurso efetivo, das seguintes contraordenações:
- 1 contraordenação, p. e p. pelo artigo 129.º, n.ºs 1, al. b) e 2, do C.T.;
- 1 contraordenação, p. e p. pelo artigo 127.º, n.º 1, al. b) e 278.º, n.º 6, do C.T.

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Refere-se na decisão recorrida:

“verifica-se que a decisão recorrida, no âmbito do processo de contraordenação n.º ...53, não analisou as vicissitudes associadas aos diversos pleitos que o trabalhador AA manteve com a recorrente de forma sucessiva e as respetivas implicações (v.g. a declaração de ilicitude do despedimento, por extinção individual do posto de trabalho, o que implicou o regresso do trabalhador à recorrente; a ulterior suspensão preventiva do trabalhador no âmbito de um processo disciplinar, contra o qual o trabalhador reagiu mediante a interposição de uma providência cautelar, que veio a ser deferida; posteriormente o trabalhador veio a ser despedido, tendo impugnado judicialmente essa decisão; a recorrente e o trabalhador puseram termo aos vários litígios, mediante uma transação), para se aferir se havia um direito de ocupação efetiva ao qual a recorrente se encontrava a obstar de forma ilícita, pois era preciso escalpelizar em que período surgiu essa obrigação da recorrente de permitir ao trabalhador que regressasse ao trabalho e em que momentos lhe foi lícito obstar à sua comparência no local de trabalho.
De igual modo, constata-se que a decisão recorrida, no âmbito do processo de contraordenação n.º ...52, não se detalhou quais os quantitativos que seriam devidos ao trabalhador AA e que a recorrente não lhe teria pago, designadamente, a parte da remuneração correspondente às prestações em espécie (que estavam sob controvérsia no processo n.º 1402/20.... que correu termos neste Juízo e que levou a que o despedimento fosse considerado ilícito), assim como não foi especificado o momento em que tal incumprimento se teria verificado e em que circunstâncias, à luz dos sucessivos conflitos judiciais que o trabalhador manteve com a recorrente, para se escrutinar se e em que medida não foram pontualmente pagas as retribuições devidas ao trabalhador...
Não tendo sido dada resposta pela entidade recorrida à exigência de descrição dos factos provados, conclui-se que a decisão recorrida é nula, por reporte à alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do C.P.P. (aplicável “ex vi” artigos 41.º do R.G.C.O. e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro)… Conclui-se, assim, que se impõe proceder à anulação da decisão recorrida, e, bem ainda, ordenar o reenvio do processo à autoridade administrativa, por impossibilidade do Tribunal “ad quem” suprir tal irregularidade, em consonância com o preceituado no artigo 426.º, n.º 1, do C.P.P. (aplicável por via da remissão prevista nos artigos 41.º do R.G.C.O. e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro)…”
Para tanto, a recorrente defende:
A) A aqui recorrente … invocou, entre o mais, que a referida decisão deveria ser declarada nula por violação do disposto no artigo 25.º n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro;
D) Bem como que tal violação pela Autoridade Administrativa determina a nulidade da decisão administrativa nos termos do disposto no artigo 379.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 374.º n.º 2 e n.º 3 alínea b) do mesmo diploma, aplicáveis por força do disposto no artigo 41.º do RGCO ex vi o artigo 60.º da Lei n.º 107/2009;

F) SUCEDE, PORÉM, QUE, apesar de a Douta Sentença ter determinado a anulação da decisão recorrida, determinou ainda ordenar o reenvio do processo à autoridade administrativa nos termos do disposto no artigo 426.º n.º 1 do CPP, 41.º do RGCO e 60.º da Lei n.º 107/2009 de 14 de setembro, a fim de serem supridos os vícios identificados, segmento decisório com o qual, sempre ressalvado o devido respeito, que é muito, não se pode conformar e do qual se interpõe presente recurso;
G) POR CONSEGUINTE, impõe-se a admissão do presente recurso nos termos do disposto no artigo 49.º n.º 2 da Lei n.º 107/2009, nos termos do qual se estabelece que: “… pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”;
H) NA VERDADE, o presente Recurso interposto ao abrigo do disposto no artigo 49.º n.º 2 da Lei n.º 107/2009, é manifestamente necessário à melhoria da aplicação do Direito e à promoção da uniformidade da jurisprudência pois tal, como afirmado por ABÍLIO NETO versa sobre uma questão que não só assume relevante incidência prática, no caso saber se pode ou não a decisão administrativa nula ser remetida à autoridade administrativa para que esta proceda à eliminação dos vícios de que a mesma padece, como tem sido objeto de tratamento pela jurisprudência;

J) COM EFEITO, a questão de saber se uma decisão administrativa em processo contraordenacional declarada nula pode ou não ser remetida à autoridade administrativa para que esta proceda à eliminação dos vícios de que a mesma padece, é inelutavelmente uma questão de relevante incidência prática, uma questão jurídica relevante para a decisão da causa que necessita de esclarecimento e que permitirá o isolamento de uma ou mais regras gerais 20 Código de Processo de Trabalho Anotado, Lisboa, 2010, p. 357 aplicáveis a outros casos similares pelo que que estamos em face de uma absoluta necessidade de melhoria da aplicação do Direito;
K) EM CONCLUSÃO, deve ser admitido o presente Recurso, nos termos do disposto no artigo 49.º n.º 2 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.

R) No que respeita à consequência da nulidade da decisão administrativa, importará antes de mais considerar que a jurisprudência tem divergido quando à natureza da decisão administrativa, sendo que determinadas decisões consideram que a mesma reveste a natureza de acusação em processo penal (cfr, artigos 37.º da Lei n.º 107/2009 e artigo 62.º do RGCO);
S) DESTA FORMA, a decisão proferida pela autoridade administrativa tem de cumprir com a disciplina constante do art. 283.º do CPP que comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, sendo que esta patologia não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, SENDO CERTO QUE não se vislumbra qualquer razão para que este regime não deve ser aplicado ao ilícito contraordenacional;
T) Na verdade, uma acusação manifestamente infundada só pode conduzir à absolvição do arguido posto que não é lícito ao tribunal socorrer-se do regime vertido nos artigos 358.º e 359.º do CPP para transformar em crime o que à luz da acusação não o era;
U) Por sua vez, existem outras decisões jurisprudenciais que consideram que a decisão administrativa se aproxima da matriz da sentença penal, pelo que a fundamentação da decisão deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal, sob pena de ser a mesma nula nos termos do disposto no artigo 374.º do CPP;
V) Não obstante, a jurisprudência considera que quer se entenda que a decisão condenatória da autoridade administrativa tem o valor de acusação ou de sentença em processo penal, certo é que a nulidade da mesma (acusação ou sentença) sempre determinará o arquivamento dos autos e absolvição do arguido;

X) CONSEQUENTEMENTE, salvo melhor opinião e ressalvado o devido respeito, não será possível a remessa do processo à autoridade administrativa para que a mesma possa colmatar os vícios de que padece a decisão condenatória;
CC) De facto, o artigo 39.º da Lei n.º 107/2009 e o artigo 64.º do RGCO apenas permitem ao tribunal decidir ordenando o arquivamento, absolvendo o arguido ou mantendo ou alterando a decisão, não se possibilitando, no entanto, o reenvio do processo à autoridade administrativa para sanação dos vícios que determinaram a nulidade da decisão por esta proferida;

HH) Embora estas decisões consagradas no artigo 39.º da Lei n.º 107/2009 e no art. 64.º do RGCO se refiram à decisão proferida através de Despacho, certo é que tal também se aplica quando o processo é decidido por sentença, tal como doutamente decidido pelo Acórdão o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES datado de 19 de Maio de 2016 no qual se determina que caso seja proferida sentença a mesma ou é de condenação ou de absolvição conforme resulta dos artigos 374.º e 376.º do CPP (subsidiariamente aplicável), pelo que “…
considerando-se a decisão administrativa/acusação manifestamente infundada, se o juiz não decidir o arquivamento por despacho, na sentença proferida após julgamento, deverá absolver o arguido da prática da contraordenação que lhe foi imputada”;
II) ASSIM, salvo o devido respeito, que é muito, considera a Recorrente que ao ter ordenado a remessa do processo para a Autoridade Administrativa a fim de serem supridos os vícios identificados, a Douta Decisão recorrida violou entre o mais o disposto nos artigos 32.º, 39.º e 60.º da Lei 107/2009, no n.º 3 do artigo 64.º do Regime Geral das Contraordenações e nos artigos 32.º e 111.º da Constituição da República Portuguesa;
JJ) De facto, estes preceitos sempre deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido de determinar o arquivamento do processo ou, sem prescindir e por mera cautela, caso assim não se entenda, a absolvição da Arguida por força da nulidade declarada na Douta Decisão recorrida, reconhecendo-se ainda a impossibilidade do Douto Tribunal a quo ordenar o reenvio do processo à autoridade administrativa a fim de serem supridos os vícios identificados na Douta Decisão, com as demais consequências legais já explicitadas.
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LL) Ademais, caso se permitisse à autoridade administrativa sanar os vícios de que padece a decisão condenatória proferida, sempre se diria que esta solução permitiria à ACT voltar a sancionar a Arguida Recorrente pela alegada prática dos mesmos factos o que contende desde logo com o princípio do ne bis in idem, que, como bem refere AGOSTINHO S. TORRES, “… tem na sua base expressiva e mais nuclear, embora em si mesma redutora, não obstante o acquis jurisprudencial da última década sobrevindo sobretudo do TJCE, o reconhecimento geral de que ninguém pode ser condenado mais de uma vez (ne bis) pelo mesmo (idem) delito.”;
MM) Na verdade, caso a autoridade administrativa pudesse reformular a sua decisão condenatória suprindo os vícios que determinaram a nulidade da mesma, a aqui recorrente seria sujeita a uma nova decisão condenatória e a um novo julgamento pela (alegada) prática dos mesmos factos;

RR) LOGO, também pelo exposto deverá ser determinada a revogação do segmento decisório da Douta Sentença quanto à remessa do processo para a ACT;
SS) PORTANTO, ao ter ordenado a remessa do processo para a Autoridade Administrativa a fim de serem supridos os vícios identificados, a Douta Decisão recorrida violou entre o mais o disposto nos artigos 32.º, 39.º e 60.º da Lei 107/2009 de 14 de setembro, o disposto no n.º 3 do artigo 64.º do Regime Geral das Contraordenações, o disposto no n.º 5 do artigo 29.º, nos artigos 32.º e 111.º da Constituição da República Portuguesa;
TT) De facto, estes preceitos sempre deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido de determinar o arquivamento do processo ou, sem prescindir e por mera cautela, caso assim não se entenda, a absolvição da Arguida por força da nulidade declarada na Douta Decisão recorrida, reconhecendo-se ainda a impossibilidade do Douto Tribunal a quo ordenar o reenvio do processo à autoridade administrativa a fim de serem supridos os vícios identificados na Douta Decisão, com as demais consequências legais já explicitadas;
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A Exmª PGA deu parecer no sentido da admissibilidade do recurso, nos temros do art.º 49.º, n.º 3 da Lei n.º 107/2009, de 14.09, sustentando dever ser dado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
A factualidade é a que resulta do precedente relatório.
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Importa verificar da admissibilidade do recurso nos termos do artigo 50º nº 3 do RPACOLSS.

O artigo 49.º do RGCOLSS (aprovado pela L. 107/2009 de 14/9) refere:
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.
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No caso invoca-se a relevante incidência prática de saber se pode ou não a decisão administrativa nula ser remetida à autoridade administrativa para que esta proceda à eliminação dos vícios de que a mesma padece. Trata-se, refere-se, de questão jurídica relevante para a decisão da causa, que necessita de esclarecimento e que permitirá o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a outros casos similares.
Refere-se no douto parecer:
Considera-se que a questão suscitada é, efetivamente, uma questão muito controversa na doutrina e na jurisprudência, existindo, basicamente duas posições relativamente ao procedimento a adotar perante a constatação da nulidade da decisão administrativa: reenvio dos autos à autoridade administrativa a fim de serem supridos os vícios da decisão emanada de tal autoridade que estejam em causa (neste sentido, nomeadamente Ac. do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), os Acs. do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5) e o Ac. do TRE de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1), ou absolvição do arguido(a)/arquivamento dos autos (neste sentido, nomeadamente, Ac. do STJ de 29.01.2007 (proc. nº 06P3202), Ac. do TRG de 19.05.2016 (proc. nº 4302/15.3T8VCT.G1 e Ac. do TRL de 31.10.2019 (proc. nº 344/19.8T9MFR.L1-9).
É também uma questão que extravasa o caso concreto e que assume grande relevância prática, justificando-se o seu esclarecimento por tribunal superior, concluindo-se assim no sentido da admissão do recurso.”
Encontram-se preenchidos os requisitos para admissibilidade do recurso. Como se refere no Ac. desta secção, processo nº 1737/21.6T8VCT.G1, “a lei exige para aceitação do recurso que o mesmo seja manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito (ou à promoção da uniformidade da jurisprudência), não bastando que seja conveniente ou sequer necessário.
Assim, julga-se que está pressuposto que esteja em causa uma questão de direito autónoma e que, por ser amplamente controversa na doutrina e na jurisprudência, com relevante aplicação prática, apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto, de tal forma que se imponha o seu melhor esclarecimento pela instância superior, com vista a propiciar um contributo qualificado no seu tratamento e aplicação a título imediato e em casos idênticos futuros.”
Como se discorre no douto parecer, encontram-se verificados no caso os pressupostos para admissão do recurso.
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A questão prende-se como saber se em face da nulidade da decisão administrativa declarada na sentença recorrida, relativa à insuficiência da factualidade, poderia ser, como foi, ordenada a remessa àquela entidade, possibilitando-lhe a correção do vício, ou se deveriam ser os autos arquivados, ou absolvida a arguida.
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Nas alegações sustenta-se que, quer se entenda que a decisão proferida pela autoridade administrativa tem o valor de uma acusação em processo penal, quer se entenda que a decisão condenatória da autoridade administrativa no processo contraordenacional se aproxima da matriz da sentença penal, nunca poderiam os autos ser remetidos à autoridade administrativa.
Refere, que se quisermos estabelecer o paralelo da decisão administrativa com a acusação em processo penal, a verdade é que uma acusação manifestamente infundada só pode conduzir à absolvição do arguido posto que não é lícito ao tribunal socorrer-se do regime vertido nos artigos 358.º e 359.º do CPP para transformar em crime o que à luz da acusação não o era. Alude à nulidade prevista do artigo 283º do CPP, afirmando que esta patologia da acusação não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada.
Entendendo-se que a decisão condenatória da autoridade administrativa no processo contraordenacional se aproxima da matriz da sentença penal, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação) e que não contenha os elementos que a lei impõe é nula, por aplicação do disposto no art. 379.°, n.º 1, al. a), do CPP, impondo a absolvição.
Refere a recorrente a propósito o Ac. STJ de 29-01-2007, processo nº 06P3202 (DGSI). Este acórdão, referindo embora a nulidade da decisão nos termos do artigo referido, não afirma, parece-nos, a absolvição como consequência dela. Ao invés dele parece resultar que a absolvição decorre do facto de não são referidos “factos que sejam prestáveis” para definir e identificar os elementos da tipicidade suscetíveis de integrar a contraordenação. E concluiu-se no acórdão:
“Não existe, assim, suporte de facto na decisão da entidade administrativa que permita determinar a existência da infração por que vem condenado o arguido.
Nem a base factual foi integrada por qualquer prova suplementar na audiência, apenas tendo sido indicada uma testemunha pelo próprio arguido.
Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência terá de ser a absolvição.”
Quer com um quer com outro entendimento quanto ao vício, encontra-se jurisprudência em ambos os sentidos, e apontando ambas as consequências; quer considerando não poderem ser os autos enviados à autoridade administrativa para repetição do ato nulo, quer no sentido inverso.
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O regime penal é aplicável subsidiariamente, com as devidas adaptações, por força do artigo 41º do RGCO (DL n.º 433/82, de 27 de outubro), para o regime das contraordenações laborais e da segurança social (RPACOLSS - Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro), nos termos daquela norma aplicável por força do artigo 60º do RPACOLSS.
Ora, o regime penal, quer da nulidade do artigo 379º, 1, a) quer do artigo 283º, 3, do CPP, não implica uma impossibilidade de repetição do ato nulo, e dos atos subsequente que dele dependiam – artigo 122º do CPP -.
Se se entender que a decisão administrativa se aproxima da matriz da sentença penal, aplicar-se-iam, refere variada jurisprudência e doutrina, a nulidade nos termos do artigo 374º, 2 e 379º, 1, a) do CPP.
No sentido de a omissão constituir nulidade nos termos do artigo 379º 1, a) do CPP, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, “Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 2.ª edição, Vislis Editores, págs. 334 e 335, e Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2ª edição, Almedina, pág. 157.

Ora a consequência desta nulidade, não é a absolvição, já que o mérito não é apreciado, mas antes a declaração da nulidade da decisão. Tal nulidade, no quadro do direito penal, não implica a absolvição nem o arquivamento, tendo os efeitos do artigo 122º do CPP:

Artigo 122.º
Efeitos da declaração de nulidade
1 - As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.
Consequentemente pode a decisão ser reformulada. Veja-se o teor do nº 3 do citado normativo (379):
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.

O âmbito material da enunciação dos factos na decisão penal, ancora no artigo 339º, 4 do CPP – “ Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º”
É a omissão de pronúncia sobre tais factos, o incumprimento desta norma, que está em causa, determinando a nulidade e a baixa do processo para ser suprida a mesma – Neste sentido Ac. da RC de 24-4-2019, processo nº 708/15.6T9CBR.C1 (DGSI), referindo:
“ Quanto ao âmbito material desse enunciado, diz-nos o artigo 339.º, n.º 4 do CPP que a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º (questão da culpabilidade) e 369.º (questão da determinação da sanção). Isto sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, como o próprio artigo 339.º, n.º 4 também ressalva, e levando ainda em linha de conta que a questão da culpabilidade, nos termos acima indicados, abrange a matéria factual alegada pela acusação e pela defesa e bem assim a que resultar da discussão da causa, relevante para saber, entre outros aspetos, se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido o praticou e atuou com culpa, e ainda se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil [artigo 368.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e f), do CPP]…
Verificada a apontada nulidade, não pode a Relação substituir-se ao tribunal a quo e proceder ao seu suprimento, pois se assim fizesse estaria a negar-se o único grau de recurso de que o arguido dispõe, violando-se por essa via o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Devendo, pois, o processo baixar à 1.ª instância para que esta venha suprir a omissão assim detetada.”
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Nesta linha de pensamento, o Ac. RE de 3-12-2009, proc. n.º 2768/08.7TBSTR.E1 (DGSI), entre outros, determina o envio do processo à autoridade administrativa para que esta “proceda esta às diligências que se afigurem necessárias e à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade”. No mesmo sentido, Ac. RC de 30-3-2022, processo nº 173/21.9T8TND.C1 (DGSI); RL de 19-2-2013, processo nº 854/11.5TAPDL.L1-5; STJ de 6-11-2008, no processo n.º 08P2804, aludindo a ambas as nulidades e determinando a remessa dos autos à autoridade administrativa; RL de 19-2-2013, processo nº 854/11.5TAPDL.L1-5; RE de 25-9-2012 no proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1.
O acórdão do STJ de 21-12-2006, no proc. nº. 06P3201, (DGSI), refere, a par, a nulidade da decisão – artigo 379º do CPP - e a nulidade da acusação – artigo 283º do mesmo diploma. Consta do acórdão:
Ora, na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público como acusação (art. 62.º, n.º 1 do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contraordenações (art. 41.º, n.º 1 do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Como vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma ação ou omissão, um nexo psicológico de ligação do facto ao agente e uma imputação desse mesmo facto a título de dolo ou negligência, quando esta seja especialmente prevista. Sem esses pressupostos não pode ser aplicada a respetiva coima.
A sanção para o incumprimento da alínea b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, aplicável subsidiariamente, como vimos.
A nulidade é sanável e pode ser suprida pela [autoridade administrativa], inclusive com recurso a diligências probatórias indispensáveis para apuramento dos elementos em falta..”
Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263, defende, que “o tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício”.
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No sentido da ocorrência de nulidade da decisão administrativa nos termos do artigo 379º, 1 do CPP, mas defendendo não ser possível a remessa dos autos à autoridade administrativa, veja-se o Ac. STJ de 29-01-2007, processo nº 06P3202, mas com a particularidade acima referida.
Referindo a nulidade da decisão administrativa, mas invocando igual solução se for considerada nulidade da acusação, e no sentido de a mesma não poder ser colmatada, a RP de 9/11/2022, processo nº 1004/22.8T9AVR.P1.
No ac. da RC de 11.11.2020, processo nº 351/19.0T8MBR.C1, refere-se a circunstância de não estarem integrados os elementos de tipicidade da contraordenação imputada, e apelando ainda à semelhança com a acusação manifestamente infundada que “ultrapasse o crivo do artigo 311.º do CPP”, defende-se que, “mais tarde, realizado o julgamento, só pode conduzir à absolvição.”
A RP, Ac. de 09.11.2009, processo n.º686/08.8TTOAZ.P1, em igual sentido, referenciando a falta de indicação de factos relativos à imputação à arguida, quer na decisão administrativa quer no auto de notícia.
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Defende-se igualmente a consideração da decisão administrativa como acusação, por força do disposto no artigo 62º, 1 do RGCO (artigo 32º do RPACOLSS), e a aplicabilidade da nulidade do artigo 283º, 3 do CPP.
No sentido de equivaler a uma acusação veja-se o Assento do STJ nº 1/2003 de 28-11-2002, DR  n.º 21/2003, Série I-A de 2003-01-25, páginas 547 – 559, referindo-se:
“Na outra hipótese, ou seja, na de impugnação judicial da «decisão administrativa», já os «preceitos reguladores do processo criminal» a haverão de encarar como se de uma «acusação» se tratasse”.
Ora, o regime da nulidade do artigo 283º, 3 do CPP, no campo penal, não implica necessariamente a impossibilidade de refazer o ato expurgado da nulidade.
O TC no Ac n.º 246/2017, DR, Série II, de 25/07/2017, pronunciando-se em sede de constitucionalidade relativamente a situação em que, rejeitada acusação por insuficiente descrição de um elemento típico, é deduzida nova acusação, suprindo a omissão verificada. Decide-se:
“Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”
Resulta que a não aptidão da acusação, por insuficiência da descrição de um elemento típico, não conduz necessariamente, como se refere no acórdão, à “impossibilidade da perseguição  criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido …, afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (adiante assinalados) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.”
O acórdão refere a rejeição da acusação por fundamentos em ultima análise formais, e ocorrida “no primeiro ato da fase de julgamento, não chegando o arguido a sujeitar-se à pendência do processo na referida fase”.
No Ac. RC de 22-3-2023, processo nº 136/21.4GCACB-A.C1, referenciando o acórdão do TC, considerando que; “encerrando o M.P. o inquérito deduzindo acusação, conforme prevê o art. 276º, nº 1, do CPP, se após a remessa dos autos para julgamento a acusação vier a ser rejeitada, a única possibilidade de reação contra o correspondente despacho será através de recurso procurando convencer do bem fundado da acusação deduzida, porquanto sendo o processo penal constituído por uma sucessão de atos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, e não prevendo a lei a possibilidade da reabertura do inquérito senão nos casos em que tenha havido arquivamento (art. 279º, nº 1, do CPP), não pode o M.P. sanar os vícios de que a acusação padeça, praticar novos atos de inquérito ou alterar a acusação. Assim, não ocorrendo razão que justifique a remessa dos autos a título devolutivo ao Ministério Público, a consequência necessária será o seu arquivamento”

Mas adianta-se:
“Não significa isto que, aceitando o M.P. o entendimento do Tribunal Constitucional relativo à relevância e limites do ne bis in idem, esteja impedido de renovar a acusação na parte em que não foi recebida, completando-a de modo a conferir-lhe viabilidade. Simplesmente, não o poderá fazer no mesmo processo, ficando salva a possibilidade de o fazer com base em certidão que para o efeito deverá requerer”.
Tem-se ainda referido esta possibilidade de renovar o ato nulo, quando a nulidade da acusação for arguida perante o titular do inquérito, ficando sujeita à disciplina do artigo 122º do CPP, e nos casos de rejeição na fase de saneamento, nos termos do artigo 311º do CPP.
Nuno Brandão, O Controlo Judicial da Decisão Administrativa Condenatória Manifestamente Infundada no Processo Contraordenacional, https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/1604, a pág. 324, defende, a propósito das contraordenações, que mais que nulidade estaremos face a ineptidão da acusação, constituindo acusação manifestamente infundada – pág. 324. Refere, no entanto, que “será esse vício de ineptidão que o juiz deverá declarar (logo) quando tome contacto com o processo na abertura da fase judicial.”

Quanto a tal poder de rejeição refere:
“Dado que a ineptidão resulta não de uma inequívoca e inultra­passável ausência de relevância contraordenacional na materialidade do “pedaço de vida” objeto do processo, mas somente de uma deficiência formal da imputação realizada pela administração, não é aceitável que se atribua à posição que o juiz tome sobre esse vício o significado de um juízo sobre o mérito da causa que possa adquirir força de caso julgado material e a partir do qual possa o arguido escudar-se na garantia do ne bis in idem (artigo 29.º-5 da CRP)”
Defende a aplicação subsidiária do artigo 311º do CPP (fase do saneamento), distinguindo dois tipos de realidades.  defendendo que “aqueles em que o pedaço de vida a que a acusa­ção se refere é manifestamente desprovido de relevância criminal; e aqueles em que, pelo contrário, nele será divisável uma materialidade cri­minal que, todavia, não foi adequadamente descrita. Na primeira espé­cie justifica-se que o juiz encerre definitivamente o processo mediante decisão de mérito que julgue improcedente a imputação. Caso em que a rejeição da acusação porá termo ao processo e implicará uma proibição de bis in idem. Já na segunda espécie deverá ser tomada uma decisão de forma, que corresponda a um não recebimento da imputação, na qual a rejeição da acusação envolverá uma sua “devolução à procedência”, fi­cando aberta a possibilidade da sua reformulação, em princípio, no mesmo processo.”
No Ac. da RC de 3-5-2024, processo nº 1542/23.5T8CBR.C1, refere-se competir ao juiz, além da apreciação da admissibilidade do recurso nos termos do artigo 63º do RGCO (a que corresponde o artigo 37º do RPACOLSS), efetuar o saneamento do processo nos termos do artigo 311º do CPP, sustentando-se; “em caso de vícios da “Decisão-Acusação” [neste ponto concordamos com a posição de JOÃO SOARES RIBEIRO], os mesmos devem ser apreciados à luz do art.º 311.º CPP, isto é, arquivando o processo em caso de vícios formais [art.º 311.º/3/a)/b)/c) CPP] ou absolvendo a Arguida/Recorrente caso os factos constantes da “Decisão-Acusação” não constituam contraordenação.”
Adiante abordaremos a questão da aplicabilidade do artigo 311º do CPP.
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Referindo a nulidade da acusação e no sentido do envio do processo à autoridade administrativa, vejam-se os acórdãos acima referidos que também referem esta nulidade, e Ac. do STJ, de 21-9-2006, no proc. n.º 06P3200, https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2006:06P3200.9A?search=HdmmqyQFLvB0xLPEtDA.
No sentido da impossibilidade de repetição do ato, o Ac. RG de 29-5-2023, processo nº  485/22.4T9BRC.G2, entendendo-se ocorrer nulidade nos termos do artº 283º nº 3 al. b) do CPP,  referindo-se que  não pode o Tribunal a quo devolver à respetiva autoridade administrativa o respetivo processo contraordenacional para correção, devendo, antes, proceder à absolvição da acoimada, sustentada, ao que nos parece, no facto de se estar em sede de julgamento, não tendo o vício sido atalhado antes de chegar a tal fase, e referenciando o Ac. uniformizados do STJ nº 1/2015.
No Ac. R. Guimarães de 19.05.2016, processo nº 4302/15.3T8VCT.G1, no sentido da equivalência a acusação, defendendo-se o arquivamento ou a absolvição, consoante o momento da apreciação:
Certo é que a decisão da autoridade administrativa é suscetível de impugnação judicial, impugnação essa que, apresentada, embora, àquela, é enviada para o Ministério Público que se a tornar presente ao juiz – como tornou – vale como acusação (Artº 37º).

Valendo, em face da lei, após apresentação judicial, como acusação, não parece que se lhe deva aplicar o regime legal supletivo vigente para a sentença que omita a fundamentação. Muito concretamente o Artº 379º/1-a) do CPP (com referência ao Art.º 374º/2).
Na verdade, em presença da distinta natureza de cada um dos atos, não podem ser equivalentes as consequências a aplicar a um e a outro.
O ato que no processo penal – regime supletivo legal por força do disposto no Artº 60º da Lei 107/2009 e 41º/1 do DL 433/82 de 27/10 – lhe equivale é, então, a acusação.
Ora, dispõe o Artº 311º/2-a) do CPP que a acusação deverá ser rejeitada se o presidente a considerar manifestamente infundada…
a verdade, a decisão a proferir no âmbito deste processo pode operar por via de despacho ou de sentença, estando aquele reservado aos casos em que o juiz não considere necessária audiência de julgamento sem que haja oposição das partes.
Este seria, pois, o momento adequado a avaliar da questão que nos ocupa, tanto mais que expressamente se admite que o despacho possa ser de arquivamento do processo.
Ultrapassado este momento, resta ajuizar da questão na sentença.
Esta, ou é de condenação ou de absolvição conforme emerge dos Artº 375º e 376º do CPP (subsidiariamente aplicável).
Acresce, como bem alega a Arguida, que caso outra solução fosse encontrada que não fosse a absolvição, como seja a remessa dos autos para a autoridade administrativa autuante, colocar-se-ia a autoridade administrativa numa posição de superioridade relativamente á arguida, facultando-lhe a possibilidade de sanar vícios, acrescentando factos, mesmo aqueles que até agora não tinham sido imputados, o que viola o princípio da igualdade, da confiança e da segurança jurídica.”
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Como vimos, a questão não se resolve por via da opção entre nulidade da decisão nos termos do artigo 379º, 1 a) do CPP ou nulidade da acusação nos termos do artigo 283º, 3 do CPP, já que para ambas existem opiniões jurisprudências e doutrinais num e noutro sentido – arquivamento/absolvição ou envio à autoridade administrativa para refazer o ato expurgado da nulidade, sendo que nos termos acima referidos de nenhuma das nulidades resulta uma impossibilidade de refazer o ato expurgado da nulidade.
Além das posições acima elencadas, António Beça Pereira, “Regime Geral das Contraordenações e Coimas Anotado”, 6.ª edição, Almedina, março de 2005, pág. 109, refere-se a mera irregularidade, defendendo a aplicabilidade do artigo 123º do CPP.
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A questão deve ser analisada à luz das próprias especificidades do direito contraordenacional. Importa ter em conta que não estamos em face de uma acusação nos termos configurados no CPP, mas de uma decisão administrativa a que o artigo 62º, 2 do RGCO atribui a qualidade de acusação, por força do ato do MºPº de apresentação ao juiz.
Importa considerar a natureza e especificidades próprias deste regime, pautado pela simplicidade e celeridade, distinto do direito penal pela diferente natureza dos bens jurídicos acautelados e consequente diversa ressonância ética.
Como refere o artigo 41º, 1 do RGCO, sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. Importa assim levar em linha de conta as regras do RGCO que se mostrem completas, e na falta destas aplicar o direito subsidiário, mas adaptado às especificidades desde regime.
Trata-se, nas palavras de Nuno Brandão, obra referida, pág. 318, das adaptações, “impostas pela lógica interna das contraordenações”.
Refere o assento 1/2003, “a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma «condenação», pois que, se impugnada, «tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação».
Esta dupla vertente da decisão administrativa e a falta de regulamentação própria das nulidades e suas consequências, levanta dificuldades de resolução, que têm dado azo às várias soluções defendidas.
Importa ter em linha de conta que o tribunal não aprecie a decisão administrativa, não se tratando de recurso, por força do disposto no artigo 62º do RGCO, mas antes aprecia a questão de mérito sobre que se debruçou a decisão administrativa, com caráter pleno (salvo artigo 72-A do RGCO), o que a aproxima mais do julgamento penal em primeira instância (Nuno Brandão, pág. 321).
Disso dá nota o acórdão uniformizador 3/2019, DR n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02, páginas 3317 – 3324, que fixou jurisprudência no sentido de que “Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa”.
Refere este nas conclusões; “a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima não constitui um verdadeiro recurso, mas um reexame do objeto processual com plenos poderes em matéria de facto e de direito, com possibilidade de produção de prova”.
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Tendo em consideração o regime consagrado – equivalência a acusação – tem sentido considerar que determinadas nulidades, designadamente processuais, mesmo que aparentemente graves, irrelevem na sequência da impugnação judicial (a menos que nesta apenas se invoque tal nulidade - circunscrevendo-se assim a impugnação à apreciação da nulidade, que terá as consequências que a lei lhe apontar).
Referem Lopes de Sousa e Simas Santos, Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, Áreas Editora, 2001, p. 373, nota 37, que no artigo 119.º do CPP se indicam as nulidades insanáveis, referindo que apenas a relativa ao “emprego de forma especial de processo fora dos casos previstos na lei” poderá ser aplicável em processo contraordenacional.  Alfredo José de Sousa, Infrações Fiscais não Aduaneiras, Almedina, p. 167, refere “não haver no processo de contraordenação nulidades insanáveis”.
No assento 1/2003 referiu-se:
“Não faria sentido (e seria, mesmo, processualmente antieconómico) (ver nota 40) anular a «acusação» (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o «participante processual interessado» aproveitasse a impugnação (da «decisão administrativa» assim volvida «acusação») para exercer - dele enfim se prevalecendo - o preterido direito de defesa, em ordem (cf. artigo 286.º, n.º 1) à «comprovação judicial» (negativa) (ver nota 41) da «decisão de deduzir acusação».
Assim, e nesta linha, o Ac. RC de 16-5-2018, processo nº 101/17.6T8CDR.C1; RP de 28-6-2023, processo nº 1173/22.7T8VFR.P1 (relativo a não admissão de prova testemunhal requerida pela arguida); Ac. RC de 06/02/2013, Processo 471/12.2TBACB.C1, referindo; “havendo recurso de impugnação, não faz muito sentido continuar a apelar a eventuais falhas da decisão administrativa. A remessa do processo ao juiz inicia uma nova fase, cuja decisão vai esvaziar tudo o que antes foi decidido, nomeadamente na fase administrativa”; RL de 23/03/2023, Processo nº  1878/22.2T9FNC.L1-9, com o seguinte sumário; “caso a decisão judicial, proferida no âmbito da impugnação judicial, repare eventuais irregularidades processuais do processo administrativo e/ou da decisão contraordenacional administrativa condenatória, tais irregularidades têm-se por sanadas, em razão do que as mesmas não se repercutem na decisão judicial.”
Ainda RG de 6-1-2014, processo nº 720/13.0TBFLG.G1, referindo-se que “havendo impugnação da decisão administrativa, esta, por força da norma do art. 62º nº 1 do RGCO, converte-se em acusação, no momento em que o Ministério Público torna os autos presentes ao juiz. Sendo assim, para que o processo prossiga, essencial é que tal decisão contenha os requisitos mínimos duma acusação”.
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A questão colocada refere-se a vício relativo à factualidade, que o tribunal não pode sanar, com recurso aos mecanismos dos artºs 358º e 359º do CPP.
Poderá o tribunal, constatada a nulidade, remeter o processo à autoridade a fim de renovar o ato expurgado da nulidade?
Entendemos que não.
Não existe no regime contraordenacional uma norma do teor do artigo 311º do CPP, sendo que em fase do teor das normas dos artigos 63º e 64º do RGCO, não poderá considerar-se, julgamos, como carência de regulamentação, já que as normas referem o modo como se processa a receção do processo administrativo e os atos a praticar pelo julgador.
A razão de ser de uma regulamentação própria sem previsão de fase de saneamento propriamente dita, sem semelhanças ao regime do artigo 311º do CPP, pode encontrar apoio na natureza célere e simplificada que se emprestou ao procedimento, e na circunstância de em boa verdade ter ocorrido uma instrução embora de natureza administrativa - artº 54º do RGCO - que culminou numa decisão, que não sendo atacada transita em julgado – artigo 79º do RGCO.
Aquelas questões devem ser resolvidas antes da apresentação dos autos a tribunal para julgamento, já que o procedimento não prevê qualquer apreciação sobre elas por parte do juiz aquando da admissão, devendo ser designado julgamento, como regra, ou decidir-se por despacho, caso a impugnação seja tempestiva e obedeça às exigências de forma.
O que resulta da lei – RGCO -, é a apresentação para julgamento da questão, de mérito, seja por despacho seja após audiência.
Já se defendeu que o MºPº pode, detetando nulidades, não apresentar o processo para julgamento, enviando-o à autoridade para expurgação.

O artigo 63º, 1 do RGCO (artigo 38º do RPACOLSS) refere apenas e com clareza que o “juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma”, -   artigo 59º, 3 do RGCO -. No RPACOLSS, veja-se o art.º 33.º n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14-09, sob a epígrafe “Forma e prazo”, que dispõe:

1- A impugnação judicial é dirigida ao tribunal de trabalho competente e deve conter alegações, conclusões e indicação dos meios de prova a produzir.
2- A impugnação judicial é apresentada na autoridade administrativa que tenha proferido a decisão de aplicação da coima, no prazo de 20 dias após a sua notificação.”

Simas Santos e Lopes de Sousa, Contraordenações – Anotações ao Regime Geral, 2.ª ed., p. 374, referem:

“Os motivos de rejeição são apenas a intempestividade e a falta de observância dos requisitos de forma. Isto significa que, em todos os outros casos, mesmo que existam exceções dilatórias ou perentórias, o recurso não poderá ser rejeitado, tendo a questão de ser apreciada em despacho a proferir nos termos do art.° 64.° ou por sentença.”.
Ultrapassada esta fase, não é possível refazer o ato (acusação) nulo. Retiramos assim que no regime contraordenacional, os factos a submeter a julgamento devem estar definitivamente fixados (na decisão administrativa, já que com a apresentação dos autos para julgamento se entra definitivamente na fase de julgamento, não sendo mais possível a expurgação de qualquer vício relativo à sua falta ou incompletude).
O artigo 64º do RGCO trata da decisão final do juiz, não de qualquer despacho interlocutório, referindo que essa decisão pode ser proferida por despacho ou após audiência de julgamento.
A regra é a marcação de julgamento, já que a decisão por despacho não depende exclusivamente da vontade do julgador, sendo necessária a não oposição do MºPº e do arguido – no RACOLSS, com ligeira diferença, o artigo 39º 2 -.

O artigo 64º do RGCO dispõe (no RPACOLSS, o artigo 39º, essencialmente idêntico):
1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
(…)

Há quem defenda, como acima deixamos referido, que aquando da receção da “acusação”, nos termos do artigo 62º do RGCO, o juiz deve rejeitar a mesma nos termos do artigo 311º, nº 1 e 2, alínea a) do CPP, ou decidir tais questões, por despacho, nos termos do disposto no artigo 64º, do RGCO.
O argumento esbarra com os termos dos citados normativos. O direito contraordenacional, como já referido, tem a sua própria natureza, é marcado pela simplificação e celeridade, sendo aplicáveis as regras do CPP, subsidiariamente, nos casos não previstos. O artigo 63º e 64º afiguram-se normas completas.
Resulta das normas que após o despacho do juiz referenciado no artigo 63º do RGCO, que aprecia apenas a tempestividade e as exigências de forma do recurso, se está em fase de julgamento. As razões de celeridade e simplicidade justificam este regime.
Repisando, está solução será determinada pela própria natureza do regime contraordenacional, e à particularidade de ter já ocorrido todo um processo averiguativo e contraditório, que culminou numa decisão, em que as questões relativas à factualidade deverão ser todas equacionadas e resolvidas, antes da submissão à apreciação judicial.  Note-se que a decisão administrativa, se não impugnada transita.
O legislador terá sido sensível à circunstância de a possibilitar-se a correção e complementação de factualidade, se colocar a entidade administrativa numa posição vantajosa, como se refere no Ac. RG de 19-5-2016, processo nº 4302/15.3T8VCT.G1.
Do artigo 64º, 3 consta que o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação. O arquivamento pode resultar da insuficiência da factualidade para o preenchimento da tipicidade da contraordenação imputada. Se houver julgamento a decisão deve ser de condenação ou absolvição - conforme emerge dos artº 375º e 376º do CPP, Vd. RG de 19-5-2016, processo nº 4302/15.3T8VCT.G1.
No Ac. RG de 30-6-2016, processo nº 808/16.5T8VCT, sustentou-se o arquivamento, se a decisão ocorrer por simples despacho, considerando a decisão administrativa / acusação manifestamente infundada, nos termos do artigo 39º, 1, 2 e 3 do RPACOLSS. A arguida fora absolvida na decisão de primeira instância, em decisão por simples despacho.
Consequentemente, tendo havido julgamento, é de revogar a decisão proferida, absolvendo-se a arguida.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães na admissão do recurso, e na procedência do mesmo decide-se absolver a arguida das contraordenações imputadas.
Sem Custas
Guimarães, 19-9-2024

Antero Veiga
Francisco Pereira
Leonor Barroso