I - O âmbito subjetivo da previsão do artigo 493, n.º 1 do CC radica em que tenha o controlo da coisa.
II - Mais, a vinculação imposta por aquele normativo é mesmo independente de a circunstância de o dever de guarda se basear ou não em qualquer título jurídico.
Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Fátima Andrade e Mendes Coelho.
Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório
A..., Lda., intentou a presente ação contra B..., Lda. e peticionou a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 41.837,42€, acrescida de juros legais até integral pagamento.
Invocou, para o efeito e em resumo, que explora um estabelecimento comercial de artigos de vestuário, acessórios de moda, artigos de bijuteria, marroquinaria e calçado, localizado no rés do chão do mesmo edifício onde a ré é proprietária de uma fração urbana localizada no andar superior, sobre a loja da autora. Refere que, tendo ocorrido uma fuga de água, em finais de julho de 2020, proveniente da fração da ré, que se infiltrou na loja da autora, causou estragos nas instalações e nos materiais aí existentes, pedindo a autora, por isso, a respetiva indemnização e invocando a responsabilidade civil da demandada, à luz do disposto no artigo 493, n.º 1, do Código Civil (CC).
A ré contestou, argumentando, em suma, haver dado de arrendamento a fração a AA, sendo BB fiador no arrendamento. Teria a inquilina efetuado obras na casa de banho da fração, que seriam a origem do ocorrido e rejeitando, por isso, a sua responsabilização. Impugnou os estragos e custos associados, que a autora explanou. Requereu ainda a intervenção acessória das pessoas antes nomeadas, visando a salvaguarda de um potencial direito de regresso sobre aquelas.
Respondeu a autora, refutando o invocado na contestação e reiterando a sua posição de imputação à ré do ocorrido e da sua subsequente responsabilização.
Foi admitido o chamamento à lide, a título acessório, de AA e BB, vindo estes a afastar a atribuição a si de qualquer responsabilidade pelo sucedido e rejeitando também a descrição dos estragos causados e dos encargos necessários à sua resolução.
Foi apresentado, ainda pela autora, um articulado superveniente, clamando esta pela condenação da ré no pagamento do montante de custos associados à queda do teto falso, ocorrida ainda em resultado da inundação sofrida, e que conduziu à necessidade da sua reparação, com o fecho da loja e posterior limpeza, formulando o pedido acrescido da quantia global de 7.188,45€.
Ré e chamados contrariaram a nova factualidade invocada pela autora, mantendo as respetivas posições, anteriormente articuladas no processo.
Proferido despacho saneador, foi posteriormente realizada audiência de julgamento e proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido.
Para assim decidir, aplicando o Direito aos factos que deu como provados, o tribunal recorrido entendeu, ora em síntese: “(...) não era a ré que tinha em seu poder o imóvel, mas sim a sua inquilina, AA, que justamente ali efetuava trabalhos nos sanitários. E o que se conclui dos factos provados é que a fonte comprovada dos estragos infligidos à loja da autora jaz na fração ocupada e utilizada exclusivamente pela inquilina da ré, sem qualquer intervenção desta última no sucedido ou possibilidade de tal ocorrer. (...) o senhorio não só não responde perante a arrendatária, como também não responde perante o condomínio pois, tendo sido um ato isolado dum terceiro a desencadear a inundação, não só a resolução do contrato de arrendamento seria inidóneo a impedir a produção do resultado lesivo por parte do terceiro, como não é expectável que o senhorio monte guarda ao olho de boi. Não se podia exigir nada à ré que evitasse o sucedido, designadamente através de trabalhos de manutenção, reparação ou vigilância: era a inquilina que detinha exclusivamente o uso e fruição do imóvel no que à sua utilização concernia. Afasta-se assim a culpa da ré e a sua consequente responsabilização”.
II – Do Recurso
Inconformada, a autora veio apelar. Sustenta a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que julgue totalmente procedente a ação. Para tanto, conclui:
1 - O recurso versa matéria de facto e de Direito.
2 - A prova produzida (concretamente o documento junto à contestação) impõe que seja aditada aos factos provados a data de início do arrendamento a que o tribunal alude no facto provado 16 e a que se refere na própria convicção da sentença, ou seja, que “por contrato de arrendamento celebrado em 1 de agosto de 2020, deu de arrendamento a AA (...) a identificada fração L, para que esta ali instalasse um “Gabinete de Estética”.
3 - Por outro lado, o facto provado 37 deve ser retificado, nos seguintes termos: a água proveio da casa de banho da fração L.
4 - Resulta do próprio texto e contexto da sentença, nomeadamente dos factos 13 e 16 e da motivação da matéria de facto, que a água proveio da casa de banho da fração L, pelo que, certamente por lapso, o tribunal não identificou a letra da fração de onde provinha a água.
5 - Sem prescindir, a factualidade assente impõe de per si diferente decisão de Direito e a condenação da ré em tudo quanto foi peticionado, tendo o tribunal errado na interpretação que fez do artigo 493 do CC.
6 - Quando assim se não entenda, considerando a alteração requerida aos factos provados, a ação tem de proceder.
7 - A decisão assenta num equívoco: o de que vigorava um arrendamento na data em que ocorreu a inundação. Não vigorava: não havia “inquilina”.
8 - A recorrida tinha, à data da inundação, o dever de vigiar a fração, devendo tomar as providências necessárias para evitar a lesão, o que não sucedeu.
9 - Tendo a recorrente logrado provar que as águas que inundaram e danificaram o seu estabelecimento provieram do interior da fração da ré, mostra-se preenchido o ónus da prova de que o facto danoso teve origem na coisa sob vigilância da ré.
10 - A ré não logrou alegar e provar que não houve culpa nenhuma da sua parte na produção do evento do dia 27.07.20 e/ou que não havia modo de evitar os danos, tendo adotado todas as providências indispensáveis para evitar a lesão.
11 - Sem prescindir, não é pelo facto de não ser a ré que tinha em seu poder o imóvel, mas sim a sua “inquilina” que justamente ali efetuava trabalhos nos sanitários [conforme convicção da sentença] que se pode concluir que a recorrida transferiu o seu dever de vigilância.
12 - Ainda sem prescindir, se, por mera hipótese académica, se concedesse estar em vigor o arrendamento à data do facto danoso, ou a fração estar entregue à “inquilina” e estarem a ser executadas obras na fração propriedade da ré (conforme motivação vertida na sentença), tal não desoneraria a ré, proprietária, por si só, do seu dever de vigilância, porque tal não constitui motivo suscetível de demonstrar que não houve culpa sua.
13 - Por último, o tribunal não ponderou que, sobre a recorrida, atento o seu objeto social, impende um dever de vigilância acrescido, na exata medida em que, atuando, permanentemente no ramo, está devidamente avisada e é profundamente conhecedora de todos os riscos inerentes aos imóveis, nomeadamente à sua utilização, à realização de obras e à utilização de água.
14 - O tribunal fez uma errada valoração da prova e errou na interpretação e aplicação que fez dos artigos 342, 350, 493, n.º 1, e 1035, 1069, n.º 1, 1074, n.º 1, todos do C.C., que impõem decisão de Direito inversa e condenação da ré no peticionado.
A recorrida respondeu ao recurso. Sustentando a sua improcedência, veio a concluir, ora em síntese:
- A prova produzida demonstra que o contrato [de arrendamento] foi celebrado em data anterior a 17.07.2020, apenas foi dado à inquilina um período de carência de 15 dias para realizar as obras, com vista a adaptar o locado ao fim a que era destinado, conclusão que resulta da fatura do consumo de água, do teor dos ofícios do Município ... e das declarações do legal representante da recorrida.
- É inócua para a decisão a data da celebração do arrendamento, pois a chamada, aquando das obras, estava a atuar na qualidade de inquilina.
- Na eventualidade de se entender necessário o aditamento defendido pela recorrente, a redação do mesmo deve ser a seguinte: “Por contrato de arrendamento celebrado em data anterior a 22.07.2020, e ao qual foi aposta a data de 1 de agosto de 2020, a recorrida deu de arrendamento a AA a fração L do prédio urbano identificado no ponto 13 da matéria de facto dada como provada”.
- A sentença aplicou corretamente o Direito e não existe qualquer mácula na interpretação e aplicação do artigo 493 do CC: os factos causais da entrada da água e consequentes danos no estabelecimento da autora estão fora do âmbito da obrigação de vigilância que recai sobre a ré e, encontrando-se a fração na posse da inquilina (como se provou) a ré não tinha a fração em seu poder; nem por ação, nem por omissão, pode imputar-se à ré qualquer facto havido como causal do evento danoso, e a ré não dispunha da possibilidade de controlar as obras que a inquilina levava a efeito.
O recurso foi recebido nos termos legais e os autos correram Vistos, nada se observando que obste ao conhecimento do mérito da apelação, cujo objeto, atentas as conclusões da recorrente se traduz em saber se a) Deve ser aditada (e retificada) a decisão relativa à matéria de facto e se b) Em razão da pretendida alteração, ou independentemente dela, deve revogar-se a decisão e, com fundamento no disposto no artigo 493 do CC, condenar-se a recorrida no pedido formulado pela autora.
III – Fundamentação
III.I – Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Como resulta das conclusões 2 a 4, apresentadas pela apelante, pretende a mesma, atenta a prova produzida, “concretamente o documento junto à contestação”, que seja aditada à factualidade provada “a data de início do arrendamento a que o tribunal alude no facto provado 16 e a que se refere na própria convicção da sentença”. Por outro lado, sustenta que “o facto provado 37 deve ser retificado, nos seguintes termos: a água proveio da casa de banho da fração L”, uma vez que, “do próprio texto e contexto da sentença, nomeadamente dos factos 13 e 16 e da motivação da matéria de facto” resulta “que a água proveio da casa de banho da fração L” e o tribunal, “não identificou a letra da fração de onde provinha a água”.
Fundando a apelante a sua pretensão no documento junto aos autos [contrato de arrendamento] e pretendendo que a data do início do arrendamento seja aditada aos factos provados, mostra-se cumprido o ónus de quem impugna a decisão relativa à matéria de facto (artigo 640 do Código de Processo Civil – CPC), e a reapreciação da prova mostra-se pertinente, atendendo, desde logo à plausibilidade das diversas soluções jurídicas da questão relevante nos autos. No mais, a melhor identificação da fração (ponto 37 dos factos provados) é imediatamente de deferir: ela resulta do texto de outros factos provados e do seu contexto, sendo que considerar manifesto lapso a omissão da letra “L”.
Relativamente ao aditamento pretendido, a apelada considera, em síntese, que o contrato de arrendamento “foi celebrado em data anterior a 17.07.2020”, mas a inquilina teve um período de carência para a realização das obras, “com vista a adaptar o locado ao fim a que era destinado” e isso mesmo resulta de outros documentos, como o consumo de água, os ofícios do Município ... e ainda das declarações do legal representante da ré. Sem embargo, sustenta que, caso seja entendido como necessário o aditamento pretendido pela apelante, então a redação do facto a aditar deverá ser: “Por contrato de arrendamento celebrado em data anterior a 22.07.2020, e ao qual foi aposta a data de 1 de agosto de 2020, a recorrida deu de arrendamento a AA a fração L do prédio urbano identificado no ponto 13 da matéria de facto dada como provada”.
Vejamos. O tribunal recorrido, na motivação da decisão relativa à matéria de facto, pronunciou-se detalhadamente sobre a “origem das águas”: “(...) A proveniência das águas foi ainda confirmada por outras pessoas que se deslocaram ao local, designadamente condóminos de frações próximas da “L”, como as testemunhas CC, advogada com escritório em espaço junto à fração e seu marido, a testemunha DD, agente da GNR, que não só viram a água a avançar da fração da ré para a sua, impelindo-os a intervir na sua limpeza, como ouviram pedidos de desculpa da chamada pelo sucedido, sendo muito firmes no seu relato. EE, que labora numa outra loja do edifício, chegando ao local pelas 9:30, pôde também confirmar a proveniência da água, tal como a testemunha FF, senhorio da loja da autora, ali deslocado também para ajudar, corroborando os demais relatos. A presença de rasgos no piso do sanitário em obra, como se visiona nas fotografias recebidas nos autos, e foi declarado, nomeadamente por FF, EE e GG, teria facilitado a passagem de água para o piso inferior. HH, perito averiguador da C..., cujo relatório de peritagem está junto aos autos e que se deslocou ao espaço no dia 31 de julho seguinte, referiu que após análise do sucedido, apesar de não se ter descoberto a origem exata da água, não tem dúvidas de que esta proveio da fração “L” – o que consta no relatório em causa, referindo ainda a questão do consumo registado de 7000 litros de água pela fração, inusitadamente alto. A faturação junta indica efetivamente um consumo naquele período distante dos restantes valores indicados, revelando um consumo aparentemente “excecional”. E aquela passagem de água para o piso inferior mostrou-se absolutamente indesmentível” (sublinhados nossos).
No mais, e com relevo à pretensão da apelante, refere-se: “Ouvida a chamada AA, explicou esta que as obras nos sanitários estavam a cargo do picheleiro, Sr. II, e que na noite anterior tinha estado na loja preparando a sua abertura, mantendo-se as instalações sanitárias fechadas por ordem do Sr. II, que ainda não teria terminado os trabalhos. Teria estado acompanhado pelo seu marido, BB, e pela sua amiga JJ, que, ouvidos em juízo, confirmaram que o WC permaneceu fechado, sem utilização, e que se teriam ausentado cerca da 01:00 daquele mesmo dia sem incidentes. (...) Todavia, mesmo não se aferindo com rigor a torneira, tubo ou abertura de onde a água irrompeu, dúvidas não restaram que foi da casa de banho da fração “L” que a água saiu, inundando a loja da autora. (...)
Ponderou ainda o tribunal o que colheu da inspeção ao local, percecionando a sua configuração, bem como os demais documentos juntos, os elementos matriciais e registrais, as missivas das seguradoras D... e E... e os contratos de arrendamento apresentados” (sublinhados nossos).
Vejamos. Da leitura do documento invocado pela apelante, ou seja, o contrato de arrendamento celebrado entre a chamada (como arrendatária) e a ré (como senhoria), tendo o chamado como fiador, resulta inequivocamente – conforme fls. 1657 e ss. do processo eletrónico (p.e.) – que o mesmo “é formalizado pelo prazo de um ano, com início a 1 de agosto de 2020”, e se a apelante se funda unicamente nesse documento, único junto com a contestação da ré, para fundamentar a sua impugnação da decisão relativa à matéria de facto, não podemos olvidar que, na resposta à referida contestação (ponto 22. desta peça processual), não deixa de, expressamente, o impugnar quanto ao “seu teor, letra e assinatura”.
Mas se o contrato foi formalizado, conforme seu próprios dizeres, para ter início naquele início de agosto do ano de 2020, há outros suportes probatórios que importa não desconsiderar.
Em sede de prova gravada, e com relevo à questão suscitada em na impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o legal representante da ré, KK [Ficheiro n.º 20230510101825] referiu que o escritório/loja, a fração “L” foi arrendado. A AA (chamada) foi quem fez as obras na loja, tendo pedido para instalar uma casa de banho com uma espécie de banheira, “ligada à área dela”, o que lhe foi consentido, não obstante a oposição inicial do pai do depoente. Instalou um poliban, mexendo no equipamento, “mas a ré não acompanhou a obra”. A AA (chamada) entrou na loja no dia 15, quando assinou o contrato, e lhe foram entregues as chaves, mas pediu quinze dias de carência, ficando o contrato a partir de 1 de agosto. Como sucede em mais três escritórios que a ré tem no prédio, não têm água ou luz, que tem de ser pedida pelos inquilinos. A AA (chamada) contactou-o em finais de junho, viu o espaço, gostou, negociaram e as chaves foram-lhe entregues em 15 de julho. Foi autorizada a fazer obras. Na casa de banho foi ela quem acrescentou os tubos exteriores, por fora da parece e instalou o chuveiro, que não havia.
Por sua vez, a chamada AA [Ficheiros n.ºs ... e ...] referiu que, quando aconteceu a inundação, ligou ao senhorio, “o senhor KK, que lhe tinha arrendado o espaço”. Havia água “na minha fração”, água por todo o lado. Na altura, o picheleiro ainda não tinha acabado a casa de banho, que estava à responsabilidade dele; a água passou “pela minha fração”. Quando foi à Câmara, no dia 17 de julho, levou o contrato de arrendamento. O picheleiro tinha uma cópia da chave.
Por último, II [Ficheiro n.º 20230616101712] referiu que trabalhou para a D. AA; não lembra exatamente a data, mas foi há cerca de três anos: fez pichelaria, meteu um cilindro e um lavatório, mudando a casa de banho.
Ainda com relevo, constam dos autos o documento de fls. 241/243 do p.e., que é um contrato de prestação de serviços públicos de, além do mais, fornecimento de água, subscrito pela chamada AA na qualidade de arrendatária e datado de 17.07.2020.
Numa análise crítica da prova, temos por evidente que a formalização do arrendamento (entre ré e chamada) com efeitos a agosto de 2020, não é mais que essa mesma formalização, ou seja, o arrendamento existia desde, pelo menos, 17 de julho, data em que a inquilina, como o documento supra referido demonstra, solicitou o fornecimento de água, comprovando perante os serviços do Município a sua qualidade de inquilina. Note-se que, tendo o facto danoso ocorrido a 27 de julho de 2020 (como os factos revelam e a apelante não impugna ou sequer discorda), toda a prova é no sentido de que a chamada, nessa data, levava a cabo obras no local que lhe foi arrendado, ainda que formalmente hajam os contraentes aposto do documento contratual de arrendamento a data de 1 de agosto de 2020 como a do início do vínculo.
Em conformidade e – repete-se – numa perspetiva de fixação dos factos assentes ponderando todas as soluções de Direito plausíveis, entendemos que (apenas) se justifica a correção do ponto de facto provado n.º 16, em sentido esclarecedor e nestes termos, que intercalaremos e assinalaremos no aludido facto provado: “desde, pelo menos, 17 de julho de 2020, e ainda que formalizando-o, o arrendamento, com início a 1 de agosto seguinte”.
III.II – Fundamentação de facto
Factos Provados
(Da atividade da autora no imóvel)
1 - A autora é uma sociedade por quotas que se dedica ao comércio, inclusive o comércio online, importação e exportação de artigos de vestuário, acessórios de moda, artigos de bijuteria e marroquinaria e calçado.
2 - E desenvolve essa atividade, entre outras, na Vila ..., concretamente na fração autónoma designada pela letra “D”, sita no R/C, na Praça ..., com entrada pelo n.º ..., na União de Freguesias ..., ..., ... e ..., do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo predial de Lousada sob o n.º ..., destinada a comércio.
3 - Esta fração é composta por um espaço de venda ao público, um espaço destinado a armazém e uma casa de banho.
4 - Tal fração foi dada de arrendamento à autora por contrato de 23.10.2018, por LL e MM, seus únicos proprietários, mediante o pagamento de uma renda mensal de 1.400,00€.
5 - Em 16.12.2019, celebraram um aditamento ao contrato de arrendamento, tendo o valor anual da renda, para os primeiros 5 anos, sido reduzido para o montante de 1.250,00€.
6 - A autora celebrou com a sociedade F... SA, um contrato de franchising, pelo qual esta lhe concedeu a exploração de uma loja G..., para o concelho ..., que a autora explora, desde 1.12.2018, na loja identificada em 2.
7 - Por via desse contrato, a autora obrigou-se a mobiliar e a decorar a loja, quer no interior, quer na fachada exterior, no exato cumprimento das instruções e diretrizes que lhe foram transmitidas pela sociedade F....
8 - Mais se obrigando a diligenciar e a garantir que a loja se mantenha sempre e permanentemente limpa, em boas condições de higiene e segurança, pintada e decorada, por forma a que todos os elementos que compõem a sua decoração estejam em bom estado de conservação,
9 - Bem como a adquirir toda a mercadoria para venda e quaisquer objetos em exposição àquela, tudo em vista da proteção da identidade específica da rede G....
10 - No cumprimento dessa obrigação, a autora efetuou obras de remodelação no interior e exterior de toda a fração, utilizando materiais na obra e na montagem do estabelecimento adquiridos à sociedade F..., que assim permitiu a sua abertura.
11 - O horário de abertura ao público da loja está compreendido entre as 10:00 e as 13:00 e as 14:00 e as 19:30.
(Da sociedade ré)
12 - A ré é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de imóveis, locação e gestão de propriedades ou direitos imobiliários, urbanização e loteamento de terrenos, e bem como a construção de prédios urbanos próprios ou alheios.
13 - A ré é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “L” do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo predial de Lousada sob o n.º ..., que se situa no 1.º piso, imediatamente por cima da loja a autora desenvolve a sua atividade.
(Da inundação e seus efeitos)
14 - No dia 27.07.2020, ocorreu uma inundação da Fração D, arrendada à autora, que lhe foi comunicada pelo senhorio,
15 - Nesse dia, por volta das 9H00, quando a funcionária entrou na loja constatou que havia água no chão, e água a escorrer do teto, pelos focos iluminadores e aparelho de ar condicionado.
16 - Toda aquela água provinha do piso superior, concretamente da loja da ré, identificada em 13, e entrou durante a noite, provindo da respetiva casa de banho, onde AA, inquilina da ré por ter tomado de arrendamento a fração, desde, pelo menos, 17 de julho de 2020, e ainda que formalizando-o, o arrendamento, com início a 1 de agosto seguinte, efetuava obras por sua iniciativa.
17 - O gerente da autora, familiares dos sócios e as duas funcionárias a trabalhar naquela loja, munidos de baldes, esfregonas, vassouras e toalhas, tentaram retirar a água depositada no piso da loja.
18 - Como a água escorria pela instalação elétrica, chamaram ao local um eletricista que os informou que tinham que proceder ao corte da corrente elétrica e não a podiam ligar, sob pena de, ocorrer curto-circuito.
19 - A autora, na pessoa do seu gerente, comunicou imediatamente à franchisadora tal ocorrência, que os informou que, até à normalização da situação não poderiam abrir a loja.
20 - A água que assim entrou causou estragos no mobiliário, instalação elétrica, produtos em exposição, sistema informático, pavimento flutuante, rodapés, pladur, papel de parede, móveis e sistema de som.
21 - Várias peças de vestuário, calçado e bijuteria ficaram ensopadas em água, manchadas e com cheiro a mofo.
22 - Os acessórios de madeira e de ferro dos expositores ficaram estragados e enferrujados.
23 - A madeira dos balcões, móveis, prateleiras, estantes ficaram empenadas.
24 - O soalho flutuante levantou em partes.
25 - O papel de parede levantou em partes e apresenta machas de humidade.
26 - A tinta descascou.
27 - O teto falso apresentava inicialmente buracos e machas de água em várias zonas, que revelam diferente tonalidade (mais escura).
28 - Os focos iluminadores e o aparelho de ar condicionado colocados no teto perderam o suporte do teto falso e correm o risco de cair.
29 - A loja ficou encerrada ao público entre os dias 27.07.2020 e 2.08.2020 (inclusive), e nesse período foi limpa.
30 - No dia 8.04.22 o teto falso da loja acabou por ruir, caindo ainda a estrutura que o suportava, bem como os focos (LED) ali colocados.
31 - Com o ocorrido, a reparação da loja foi orçamentada no valor de 9.930,00€.
32 - E carece da concretização de trabalhos de eletricidade orçados em 2.800,00€.
33 - A autora necessita de adquirir novos materiais à G..., com o que despenderá a quantia de 6.841,90€ (mais IVA), assim distribuído: a. Pavimento flutuante: 1.401,71€; b. Rodapé – 97,18€; c. Tapete – 162,29€; d. Papel de parede e cola – 553,27€; e. Módulos de iluminação – 253,00€; f. Retro-balcão – 463,63€; g. Balcão de atendimento com posto informático – 1.514,58€; h. Base dos painéis de bijuteria e cabelo – 569,25€; i. Transporte - 1.800,00€.
34 - Para realizar tais obras, a loja terá de encerrar durante, pelo menos, 23 dias.
35 - No período homologo do ano de 2019, entre 27.07.2019 e 2.08.2019, as vendas da autora ascenderam à quantia de 5.123,60€ (a que acresce IVA), uma média de 640,45€ /dia (+IVA).
36 - A autora teve de manter (nos 8 dias que encerrou) os custos com rendas e trabalhadores, que ascendem ao montante global de 2.411,57€, bem como os custos fiscais: a. Renda no montante de 1.250,00€; b. Vencimento das duas funcionárias num total de 1.161,57€.
37 - A água proveio da casa de banho da fração “L”[1].
Factos não provados
A. Que a inundação proveio de uma torneira que se deixou aberta na casa de banho a que se alude em 16.
B. Que o encerramento do estabelecimento agravou os efeitos da humidade existente na loja explorada pela autora.
C. Que a autora estava vinculada a renovar periodicamente os materiais que constituem a sua loja no âmbito da relação de franchising descrita.
III.III– Fundamentação de Direito
Pretende a apelante a condenação da ré, proprietária da fração “L” com base no disposto no artigo 493, n.º 1 do CC, que assim prescreve: “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelo dano que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
A primeira questão que o recurso, tal como a ação, parecem colocar prende-se ao âmbito subjetivo da norma citada. É inegável que esse âmbito radica “no puro controlo da coisa, contradizendo também a solução acolhida no artigo 2394.º do Código de Seabra, que consagrava a culpa presumida do proprietário, dado se considerar agora que esta modalidade de responsabilidade não deve constituir um encargo correspetivo de situações de soberania jurídica ou económica, mas apenas de presumir a culpa daquele que, pela sua situação de facto em relação à coisa, deve guardá-la”[2].
Acompanhando a citação que antecede e, consequentemente, exigindo um corpus possessório na aplicação do preceito, importa ter presente que a alteração operada no atual Código Civil, por comparação ao Código de Seabra, não corresponde a uma restrição de âmbito, mas a uma clarificação que pode ser, em múltiplos casos, e basta pensar na composse, um alargamento. O proprietário é possuidor e responsável pela vigilância da coisa, a menos que, independentemente da sua qualidade de proprietário, que eventualmente mantenha, tenha perdido o controlo da coisa.
Assim, o proprietário, enquanto possuidor, há de vigiar a coisa sua propriedade, salvo se tiver, nomeadamente em razão de um negócio jurídico, perdido o controle sobre ela.
No entanto, e salvo o devido respeito, a questão que deve conhecer-se não se prende ou não se prende essencialmente com a vigilância da coisa imóvel, no caso, a fração “L”. É que, como os factos revelam de maneira inequívoca, foram feitas, ou melhor, estavam a ser feitas obras nessa fração, a mando e no interesse da chamada, que foram causa dos danos sofridos pela autora. Neste contexto, uma pergunta (hipótese) permite esclarecer a inconsistência da pretensão da recorrente: Se na colocação do teto falso na “sua” fração arrendada fosse danificado o chão da fração “L”, a responsabilidade, perante o proprietário ou o inquilino dessa fração, seria do senhorio da recorrente?
A resposta, parece-nos, só pode ser negativa; tal como aqui sucede, quando se pretende a responsabilização do proprietário da fração, senhorio de quem levou a cabo – no sentido de dono da obra – a obra que causou o dano que, por via da presente ação e recurso, se pretende ressarcir.
Encurtando razões, não estamos, mesmo em relação à inquilina/dona da obra (possuidora para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 493 do CC) perante uma situação subsumível ao disposto neste normativo, como também não está em causa o disposto no artigo 492 do mesmo diploma, prevendo os vícios de construção ou defeitos de conservação. No caso presente, a obra levada a cabo pela chamada na fração “L”, causou danos à recorrente. Estamos em sede de responsabilidade civil extracontratual e ficaram por provar quaisquer pressupostos dessa responsabilidade relativamente à proprietária da fração.
Daí que, independentemente da alteração operada à decisão relativa à matéria de facto, a recorrida só podia ser absolvida.
Com efeito, não podemos esquecer que a alteração (esclarecimento) da factualidade provada radicou na plausibilidade das diversas soluções jurídicas, mas mesmo perante a (hipotética) invalidade ou inexistência do arrendamento – provada que foi a ação causante do dano e a sua imputação à chamada – sempre a solução seria idêntica.
A este propósito, citamos novamente Rui Paulo Coutinho Mascarenhas de Ataíde[3]: “Por fim, à vinculação imposta pelo artigo 493.º/1 é absolutamente indiferente que o dever de guardar a coisa, evitando que cause danos a terceiros, se baseie ou não em qualquer título jurídico, como decorre dos inexoráveis deveres de vigilância que recaiem sobre o sujeito que se apropria abusivamente da coisa, sem que essa detenção beneficie de qualquer cobertura normativa que a legitime, satisfazendo-se com o simples poder de facto sobre a coisa que dure o tempo mínimo suficiente para viabilizar a efetiva constituição dessa posição de domínio”[4].
Atenta a improcedência do recurso, as custas são devidas pela apelante, atento o seu decaimento.
IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença proferida em primeira instância.
Custas pela apelante.
Porto, 9.09.2024
José Eusébio Almeida
Fátima Andrade
Mendes Coelho
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[1] Fração “L”, como resulta do texto de outros factos dados como provados e só por manifesto lapso – como se referiu – não se terá acrescentado no facto provado n.º 37.
[2] Rui Paulo Coutinho Mascarenhas de Ataíde, Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego, Almedina, 2015, págs. 387/388.
[3] Responsabilidade Civil por Violação... cit., pág. 396.
[4] E o referido autor, exemplificativamente, cita jurisprudência (nota 816, a págs. 396/397): “É neste contexto que se deve compreender o sentido da decisão proferida pela RC 06-Jun-2006 (CURA MARIANO), CJ Ano XXXI – Tomo III, 2006, pp. 17-19: embora considerando que recai sobre a oficina o dever acessório de guarda do veículo que lhe foi confiado para reparação, sendo por isso presumível a culpa pelo seu furto, decidiu-se não a responsabilizar pelos danos advenientes de acidente de viação, por o único responsável ser o autor do furto”.