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RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário
I - Constituindo a prescrição um facto extintivo do direito, o ónus de alegar e de provar tal exceção recai sobre o devedor, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil e do artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. II - No âmbito da responsabilidade civil emergente de relação contratual, imputando a Autora a Ré o incumprimento definitivo de um contrato de compra e venda, o prazo de prescrição convocável é de 20 anos (cfr. 309.º do CCivil). III - A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória da al. c) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas. IV - O Tribunal da Relação goza no âmbito da reapreciação da matéria de facto dos mesmos poderes e está sujeito às mesmas regras de direito probatório que se aplicam ao juiz em 1ª instância, competindo-lhe proceder à análise autónoma, conjunta e crítica dos meios probatórios convocados pelo recorrente ou outros que os autos disponibilizem, introduzindo, nesse contexto, as alterações que se lhe mostrem devidas.
Texto Integral
Processo nº 2915/22.6T8OAZ.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. José Nuno Duarte
2º Adjunto Des. Dr. António Mendes Coelho
5ª Secção
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
A... S.L.U., sociedade comercial de direito espanhol, com sede na Calle ..., ..., Espanha, com o Número de Identificação Fiscal ...29 intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra B..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ..., concelho de Oliveira de Azeméis, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de €3.925,00, acrescida de juros de mora, alegando para tanto, em suma, que celebrado um contrato de compra e venda de equipamentos, a ré recebeu da autora o pagamento do respetivo preço, contudo, não diligenciou pela efetiva entrega.
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Regularmente citada, a ré contestou alegando a prescrição do direito da Autora, mais referindo ter procedido à entrega do material vendido.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos teve lugar à audiência final que decorreu com a observância das formalidades legais.
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A final foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva: “Pelas razões de facto e de Direito expostas, decide este Tribunal: a) julgar a presente ação totalmente procedente, por provada, em consequência do que condena a ré a restituir à autora a quantia de € 3.925,00, acrescida de juros de mora já vencidos no valor de €1.163,74 e demais vencidos e vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento, à taxa legal em vigor e a contabilizar desde 02.09.2022; b) julgar parcialmente procedente o pedido de condenação da ré como litigante de má-fé e, em consequência, condenar a ré ao pagamento de multa processual que se fixa em 2 (duas) Ucs e, bem assim, no pagamento à autora, a título de indemnização, da quantia de €500,00 (quinhentos euros); c) julgar improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé deduzido pela ré”.
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Não se conformando com o assim decidido veio A Ré interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões: a. Invocou a R. que o direito de crédito da A. se encontrava prescrito, por se mostrar decorrido o prazo de 3 anos de prescrição. b. Ora a recorrente discorda da posição da Mmª Juiz a quo que conclui pela aplicação do art 498º CC., pois que c. Para apurar se a conduta que a autora imputa ao réu para fundamentar o pedido formulado se insere no âmbito da responsabilidade civil contratual ou se, ao invés, poderá ser enquadrável na responsabilidade civil por facto ilícito, há que ter em consideração os factos através dos quais se mostra alicerçada a causa de pedir, sendo certo que o enquadramento numa ou noutra modalidade tem importantes consequências ao nível do prazo de prescrição d. Assim como vem configurado nos autos, a atuaçao da R ao receber a quantia e a não entregar a mercadoria, configura, um crime de burla. e. Pelo exposto, e considerando que a alegada dívida é de 26/09/2018, data do incumprimento, a mesma encontra-se prescrita. f. Ao no considerar a dívida prescrita, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 310º do Código Civil e 465º do Código de Processo Civil. g. A Mmª Juiz a quo para fundamentar a sua decisão deu como não provado unicamente o seguinte: Que a ré tenha procedido à entrega dos 60 moinhos à autora a 29-09-2018, dia em que o camião da autora veio efetuar a recolha e carregamento do material encomendado, tendo sido emitida e entregue à autora, também para efeito de transporte a fatura nº 2018 a/105 datada de 27.09.2018, no valor de € 3.687,50. h. E e como provado que 12. i. Ora salvo o devido respeito tal quesito deveria ter sido dado como provado, pois que, j. Com o devido respeito a fundamentação supra, sustenta-se num pressuposto errado, pois que como foi alegado e referido pela testemunha da R., (que infra se transcreve) o transporte da mercadoria em causa, foi efetuado, por conta e responsabilidade da A. k. Ora não incumbia à R., desta feita a emissão de qualquer documento de transporte, pois o mesmo só se verifica quando o transporte é feito a seu cargo ou por empresa transportadora a seu pedido. l. Devendo ser a A. quem detém o documento de transporte para além da fatura que lhe foi entregue, se assim o entender. m. De modo que, verifica-se impraticável e impossível à ré obter o documento que é emitido internamente pela A. aquando do levantamento da mercadoria e que face à entrega da respetiva fatura se torne totalmente inútil ou inócuo. n. A prova que a Mmª Juiz pretendia que a R. fizesse é de um facto negativo, sendo impossível de obter. o. Não podendo ser-lhe assacada a responsabilidade comercial de não deter um documento que não possui nem nunca emitiu. p. De modo que, no giro comercial, a emissão da fatura é documento bastante para prova da entrega. q. Ora não se afigura verosímil que numa empresa com contabilidade organizada, se devolva uma nota de crédito, assinada sem ter na sua contabilidade a correspondente fatura. r. Entendendo o aqui recorrente que a Mmª Juiz a quo fez uma errada interpretação da prova, atendendo que ao pressuposto errado em que se baseou. s. Afigurar-se-ia bem mais plausível, que conforme alega a ré, perante a efectiva entregado do material- a cargo e às expensas da própria A. - enviasse esta decorrido um mês sobre o levantamento da mercadoria, a nota de crédito atinente apenas da quantia do transporte, que deveria ser restituído e que o A se comprometeu a devolver. t. Ora salvo o devido respeito a fundamentação da sentença é ambígua e ininteligível pois se o funcionário previsse que a ré ainda iria entregara mercadoria, como sustenta, tal montante não seria creditado, antes pelo contrario. u. E se de facto a mercadoria não tivesse sido entregue, a nota de credito seria assinada da totalidade e não apenas do valor do transporte. v. Acresce que a testemunha arrolada depôs de forma credível e isenta, referindo claramente não se lembrar do nome da empresa, todavia, isso não pode ser aferido como um factor essencial, pois que em tudo o mais coincide com os factos relatados na contestação, na quantidade, no procedimento (cfr. Transcriçao 2: 53 a 2:60; 3:19 a 3:49; 4:31 a 4: 40 e 7:06). w. Refere claramente, que o camião que carregou era Espanhol,- corroborando a verão da Ré de inexistência de CNR´s e ou documentos de transporte-identificou a quantidade de moinhos e que este tipo de procedimento não é usual dai se recordar, pois em regra é o patrão que os entrega no destino. x. Testemunho este que, no humilde entendimento da Ré não foi tido em consideração na sentença do Tribunal a quo. y. Com efeito, ao fundamentar a decisão em causa, o Tribunal a quo, unicamente com a ausência do documento de transporte que não e da sua responsabilidade e na falta de identificação da sociedade no depoimento da testemunha e sustentando no depoimento dos funcionários da A. que não se deslocaram à sede da sociedade Ré, tornam a decisão ambígua e obscura, tornando-a ininteligível. z. Ainda que na duvida, a tese da Autora não deverá, sem mais e com as incongruências supra referidas prevalecer em detrimento da Ré, aa. Devendo a falta documento de transporte ser valorada a favor da ré e não em seu desfavor, como o fez, bb. Não se conformam os RR.com a fundamentação invocada, pelo Tribunal a quo, uma vez que, deu como provado os factos constantes a 12) sem qualquer prova cabal que os sustente cc. Ao decidir como decidiu a Mmª Juiz de Direito do Tribunal anão se baseou na matéria factual e na correta interpretação da sua relevância. dd. Impõe-se assim, a revogação da decisão no sentido serem dado como não provado o 12º e como provado a alínea a) dos factos não provados. ee. A decisão recorrida interpretou erradamente o art.310 CC e 498º e 615 nº 1do CPC e apresenta ambiguidades e obscuridades na fundamentação na efectuando uma correcta aplicação do direito aos factos violando as disposições constantes do art. 615º c) e d) do CPC.
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Devidamente notificado contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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II - FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento destas são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir: a) - saber se o direito da Autora se encontra, ou não, prescrito; b) - saber se a decisão recorrida padece das nulidades que lhe vêm assacadas; c) - saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; d)- decidir em conformidade face ao julgamento da impugnação da matéria de facto.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à produção e comercialização de produtos e equipamentos destinados à indústria pecuária e animais domésticos, tais como comedouros, bebedouros, gaiolas, entre outros acessórios.
2. A ré tem como objeto social o fabrico, comercialização e distribuição de máquinas e de tratores para a agricultura, pecuária e silvicultura.
3. No exercício dessas suas atividades comerciais, e em 07/06/2018, a autora celebrou com a ré um contrato de compra e venda, através do qual a segunda vendeu à primeira, que lhe comprou, 60 moinhos elétricos, pelo preço unitário de Euro 62,50 (sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos).
4. Ficou convencionado que o pagamento do preço referente aos bens adquiridos seria pago pela autora no prazo de 30 dias a contar da data de emissão da fatura.
5. E que, por sua vez, logo que pago o preço dos bens adquiridos e o respetivo transporte, a ré procederia à imediata entrega dos aludidos moinhos.
6. Para pagamento do preço acordado, a ré emitiu e enviou à autora a fatura n.º2018A7/2, datada de 07/06/2018, no valor global de Euro 3.925,00 (três mil novecentos e vinte e cinco euros), sendo €3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros) correspondente ao valor das mercadorias adquiridas; e €175,00 (cento e setenta e cinco euros) correspondente ao custo com o transporte.
7. Por transferência bancária datada de 08/06/2018, e realizada para o IBAN indicado pela ré, a autora procedeu ao pagamento integral do preço dos bens em causa e do respetivo transporte, e no valor total de €3.925,00.
8. A autora solicitou por diversas vezes junto da ré que efetuasse a entrega dos 60 moinhos.
9. Por comunicação eletrónica de 12/06/2018, a ré acusou a receção do valor relativo ao preço indicado e informou a autora que iria promover a entrega das mercadorias por esta adquiridas, informando que as mesmas demorariam cerca de 02 dias úteis a chegar às instalações da autora, mas tal entrega não foi feita.
10. O que se repetiu em todas datas posteriormente indicadas pela ré.
11. Nessa sequência, a autora prontificou-se a levantar os moinhos nas instalações da ré, o que foi aceite por esta última.
12. Em todas as deslocações efetuadas pela autora às instalações da ré para levantar as mercadorias por si encomendadas e pagas, sempre aquela recusou a entrega, ou por não estar presente nas instalações o representante da ré ou porque não tinham as mercadorias preparadas para a entrega, ou porque as instalações da ré encontravam-se encerradas, encontrando-se os 60 moinhos por entregar à autora desde junho de 2018, razão pela qual não mantém interesse que a ré proceda à sua entrega.
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Factos não provados
Não se provou que:
a) Que a ré tenha procedido à entrega dos 60 moinhos à autora a 29.09.2018, dia em que o camião da autora veio efetuar a recolha e carregamento do material encomendado, tendo sido emitida e entregue à autora, também para efeito de transporte, a fatura nº 2018 A/105, datada de 27.09.2018, no valor de € 3.687,50.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em: a) - saber se o direito da autora se encontra, ou não, prescrito.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que a referida prescrição não se verificava.
Contra este entendimento insurge-se a apelante, alegando que a sua suposta atuação ao receber a quantia e ao não entregar a mercadoria, configura, um crime de burla e, como tal, já decorreu o prazo de 3 anos.
Qui iuris?
Importa, desde logo, salientar que as alegações recursivas não primam pela clareza, sendo manifestamente confusas, sem que delas, em certos segmentos, se possa apreender o desiderato pretendido pela apelante.
Repare-se o que alega a apelante na sua contestação relativamente a invocada exceção: “1. A. peticiona nos presentes autos a restituição da quantia de €3.925,00 paga ao R., em 07/06/2018. 2. Todavia, A vem exigir/reclamar tal pagamento, decorridos mais de 4 anos, desde a encomenda/pagamento da mercadoria em causa. 3. Com efeito, a tratar-se, quer de responsabilidade contratual, quer da figura específica do enriquecimento sem causa, o prazo prescricional previsto na lei é de 3 anos. 4. Pois que não se afigura plausível que a A. venha reclamar a sua restituição decorrido o período em causa. 5. Assim, o direito à restituição daquilo que for indevidamente recebido em virtude de causa que não se verificou, prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa responsável. 6. O que, no caso em apreço é inequívoco, encontrando-se o direito que a A. se pretende fazer valer prescrito.”
Portanto, em nenhures desta peça processual a apelante configura a invocada exceção pelo prisma da sua atuação constituir qualquer crime, antes pelo contrário, perspetivou tal invocação no âmbito da responsabilidade contratual ou, subsidiariamente, no instituto do enriquecimento sem causa.
Ora, constituindo a prescrição um facto extintivo do direito, o ónus de alegar e de provar a prescrição do direito recai sobre o devedor, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, e do artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Destarte, no caso presente era a apelante quem tinha o ónus de alegar na sua contestação e depois provar, os factos materiais consubstanciadores da prescrição do direito da Autora apelada.
Acontece que, nada disso provou a apelante, como o demonstra o quadro factual que o tribunal recorrido deu como provado e isto independentemente da impugnação do ponto 12. dos factos provados e da al. a) da resenha dos factos não provados impetrada pela apelante que, seja qual a for a decisão que sobre a mesma venha a recair, não altera a a solução que de seguida se dará a invocada exceção perentória.
Com efeito, tal como vinha estruturada a causa de pedir e agora o demonstra a fundamentação factual supratranscrita, dúvidas não existem de que nos situamos no âmbito da responsabilidade contratual e, concretamente, no incumprimento de um contrato de compra e venda que a Autora apelada imputa à Ré apelante.
Ora, o prazo de prescrição previsto no art. 498.º do Código Civil[1], curto na sua duração-03 anos-, é apenas aplicável à responsabilidade civil extracontratual[2] e não à responsabilidade contratual, sendo que para esta o prazo de prescrição convocável é o prazo ordinário de 20 anos, previsto no art. 309.º do Código Civil, prazo esse que, no caso concreto, como é manifesto, ainda não decorreu tendo em conta que a relação contratual entre as partes se estabeleceu em 07/06/2018.
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Aliás, diga-se que não se divisa o propósito da invocação da figura do crime de burla para sustentar a aplicação do prazo de prescrição de 03 anos, quando como resulta do nº 3 do citado artigo 498.º do CCivil, essa invocação apenas faria sentido se o prazo de prescrição do eventual crime fosse mais longo, como o é, no crime de burla [cf. artigos 118.º, nº 1 als. b) e c), 217.º e 218.º do CPenal] e lhe aproveitasse à apelante.
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Improcedem, assim, as conclusões a) e f) formuladas pela apelante.
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As restantes conclusões formuladas pela apelante são como já acima se referiu também elas confusas sem que, em retas contas, se saiba o que com elas pretende a apelante.
Com efeito, ora se impugna a decisão da matéria de facto, ora se afirma que a sentença padece das nulidades constantes das als. c) e d) do nº 1 do artigo 615.º do CPCivil.
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Ainda assim, vamos então por partes.
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b) - a questão das nulidades
Alega a apelante que a decisão recorrida apresenta ambiguidades e obscuridades na fundamentação na efetuando uma correta aplicação do direito.
Nos termos do artigo 615.º, nº 1 al. c) do CPCivil a sentença é nula quando: “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Considera-se que a sentença é obscura quando enferma de “ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade”.
Verifica-se a ambiguidade quando de um vocábulo, de uma expressão ou de uma asserção é possível extrair uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido querido ou prevalecente.
Na primeira situação, não é possível ficar a saber o que o juiz quis dizer; na segunda, hesita-se entre dois sentidos diferentes e, porventura, opostos. A sentença mostra-se equívoca quando o sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal.
Ocorre obscuridade quando não se pode retirar sentido algum, quando um termo ou uma frase usados no texto da decisão não tenham um sentido percetível, determinável.
Contudo, este vício apenas determina a nulidade da sentença se a decisão for ininteligível ou incompreensível.[3] A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória prevista neste normativo se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas.
A ininteligibilidade da decisão corresponde à falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido na petição inicial [artigo 186.º, nº 2 a) CPC].[4]
Ora, lendo a decisão recorrida não se descortina onde se materializa tal vício, já que a mesma é perfeitamente inteligível e compreensível para qualquer cidadão que empreenda a sua leitura.
Diga-se, aliás, que a apelante não concretiza em que se traduz tal vício que assaca à decisão recorrida, pois que, seguramente, tal vício nada tem que ver com o julgamento da matéria de facto como parece aquela pressupor.
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Nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do citado artigo 615.º do CPCivil a sentença é nula sempre que “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infração ao disposto no artigo 608.º, nº 2, do mesmo diploma legal. Ou seja, a nulidade prevista na alínea d) está diretamente relacionada com o nº 2 do artigo 608.º, referido, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Conforme este princípio, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, impondo-se ao juiz o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões por aquelas suscitadas, não podendo, por regra, ocupar-se de outras questões.
Mas, importa precisar o que deve entender-se por “questões” cujo conhecimento ou não conhecimento integra nulidade por excesso ou falta de pronúncia.
Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras “questões” de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade em causa.
Há, assim, que distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes.
Num caso como no outro não está em causa omissão ou excesso de pronúncia.
No que concerne à falta de pronúncia dizia Alberto dos Reis[5] que “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Dentro deste raciocínio do ilustre mestre se poderá acrescentar que, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas partes não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.
Do que se conclui que apenas as questões essenciais, questões que decidem do mérito do pleito ou, convenhamos, de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, é que constituem os temas de que o julgador tem de conhecer, quando colocados pelas partes, ou não deve conhecer na hipótese inversa, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por falta de pronúncia ou excesso de pronúncia.
Obviamente, sempre, salvaguardadas as situações onde seja admissível o conhecimento oficioso do tribunal.
Acontece que, a apelante não concretiza, nos moldes supra expostos, em que se traduz o invocado vício imputado à decisão recorrida.
Na verdade, a apelante limita-se a invocar o normativo citado sem explicitar, por qualquer forma, onde estriba a nulidade invocada.
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c)- a questão da impugnação da matéria de facto
Pretende a apelante que deve ser dada como provada al. a) dos factos não provados e dado como não provado o ponto 12. dos factos provados.
O ponto 12. Dos factos provados tem a seguinte redação:
“Em todas as deslocações efetuadas pela autora às instalações da ré para levantar as mercadorias por si encomendadas e pagas, sempre aquela recusou a entrega, ou por não estar presente nas instalações o representante da ré ou porque não tinham as mercadorias preparadas para a entrega, ou porque as instalações da ré encontravam-se encerradas, encontrando-se os 60 moinhos por entregar à autora desde junho de 2018, razão pela qual não mantém interesse que a ré proceda à sua entrega”.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido e sobre o ponto concreto discorreu do seguinte modo:
“Quanto aos factos dados como provados em 8. a 12., o Tribunal valorou, sobremaneira, a prova documental junta pela autora, como seja, a correspondência eletrónica trocada entre autora e ré, demonstrativa dos constrangimentos verificados na entrega do equipamento mesmo após o recebimento do preço pela ré. A par desta prova, as testemunhas arroladas pela autora, de forma singela e coerente, explicaram que perante a não entrega do equipamento pela ré, a autora assumiu efetuar a recolha em Portugal, deparando-se, contudo, com o encerramento das instalações da ré ou a não preparação do material para entregar. A testemunha AA esclareceu que em outubro de 2018 a ré enviou uma nota de crédito atinente ao valor do transporte–dado que seria a autora a tratar do transporte de mercadorias -, documento esse que a autora assinou como sendo válido porque acreditava ainda que o equipamento seria entregue pela ré ou que esta procederia à restituição do restante preço pago, em caso de impossibilidade de entrega dos objetos. Negou ter recebido qualquer fatura em setembro de 2018, tão só a nota de crédito. Idêntico depoimento foi prestado por BB.
Tendo por presente que, de acordo com as regras do ónus da prova, competia à autora alegar e demonstrar os factos constitutivos do seu Direito–da relação contratual estabelecida, em concreto, do montante a liquidar e a concretização do seu pagamento, do prazo de entrega; competia à ré, ao invés, alegar e provar os factos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito da autora, em particular, a efetiva entrega da mercadoria contratada. Ora, neste domínio, a ré não logrou provar que a mercadoria foi efetivamente entregue.
De facto, imputou a ré à autora a obrigação de conservar os documentos de recebimento da mercadoria solicitado, o que não faz sentido perante a alegação da autora em como não recebeu a mercadoria. Como assim, competia à ré, enquanto vendedora, apresentar os documentos comprovativos da venda dos bens e as guias de transporte, por estar obrigada à conservação destes documentos, sobretudo, por se tratar de transporte internacional de mercadorias. E perante a alegação de não entrega de bens, apenas os aludidos documentos permitiriam derrubar a argumentação da autora, o que não aconteceu. Observa-se que a testemunha CC mencionou apenas ter efetuado a montagem, embalamento e carga de bens para um destinatário espanhol, não se recordando se coincidia ou não com a aqui autora.
Por outro lado, a fatura junta com a contestação não demonstra que o equipamento foi entregue, porquanto, nela não contém qualquer informação fidedigna quanto à entrega à autora e quem ficou encarregue do transporte, mais acrescendo que data de 27.09.2018, estabelecendo um prazo de vencimento para o pagamento até 27.10.2018, quando a ré já havia recebido o pagamento do preço da mercadoria em junho. A fatura não demonstra a entrega e transporte de mercadoria”.
Ora, acompanha-se, na íntegra, a fundamentação supratranscrita e que apelante não infirma, convocando qualquer elemento probatório constante dos autos pois que, o depoimento da testemunha CC é irrelevante no sentido de dar como não provado o citado ponto.
Com efeito, o que se retira, das transcritas passagens do depoimento da referida testemunha, são meras afirmações sem qualquer elemento objetivante que lhe possa dar consistência, limitando-se a dar respostas vagas e imprecisas sobre um suposto carregamento de um camião espanhol.
Repare-se que, num primeiro momento, a indicada testemunha diz que não tem qualquer conhecimento sobre a existência de ter havido algum problema com a entrega de 60 moinhos, para só depois, no desenvolvimento da instância, fazer então alusão ao tal carregamento de um camião espanhol.
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Como assim, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que a apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ela expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter o tribunal recorrido captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objetiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, refletindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão.
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Deve, pois, permanecer no elenco dos factos provados o ponto 12. da fundamentação factual e continuar a constar na resenha dos factos não provados a citada al. a).
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Perante a inalteração da base factual nos termos preconizados pela apelante, nada temos a censurar a subsunção jurídica que dela fez o tribunal recorrido, havendo, assim, que confirmar a decisão prolatada.
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Improcedem, desta forma, as conclusões g) a ee) formuladas pela recorrente e, com elas, o respetivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela Ré apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 23/9/2024.
Dr. Manuel Domingos Fernandes
Dr. José Nuno Duarte
Dr. António Mendes Coelho
__________________________ [1] Certamente é a esse que a apelante se quer referir quando fala num prazo prescricional de 3 anos. [2] E que o tribunal não acolheu na sua decisão ao contrário do que alega a apelante. [3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, pág. 369. [4] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, obra cit. pág. 369, nota 744. [5] In “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume V, pág. 143.