PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA
RECUSA DA PETIÇÃO INICIAL
RECUSA DA SECRETARIA
BENS COMUNS DO CASAL
INSOLVÊNCIA
CITAÇÃO
CÔNJUGE NÃO DEVEDOR
Sumário

I - A secretaria pode recusar a petição inicial quando não tenha sido comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário, com a ressalva dos casos de citação urgente nos termos do art. 561º do Cód. de Proc. Civil ou de ocorrência de outra razão de urgência, em que bastará ao autor comprovar que requereu o pedido de apoio judiciário, o qual ainda não foi concedido.
II - Porém, se se constatar que o autor não juntou aos autos documento comprovativo da liquidação da taxa de justiça devida ou do deferimento do apoio judiciário, o juiz não deve declarar extinta a instância, mas antes ordenar a notificação do autor para efetuar o pagamento omitido ou juntar ao processo documento que comprove o deferimento do pedido de apoio judiciário.
III - Os bens comuns dos cônjuges constituem objeto, não de uma relação de compropriedade, mas de uma propriedade coletiva ou de mão comum em que os sujeitos dessa propriedade coletiva são ambos os cônjuges, sem que seja correto falar, enquanto persiste a comunhão, numa divisão de quotas entre eles.
IV - O direito a metade no património comum, que o art. 1730º, nº1 do Cód. Civil atribui a cada cônjuge aquando da sua dissolução, não confere a cada um o direito a metade de cada bem concreto do património comum, mas, tão só, o direito ao valor de metade desse património.
V - Se os cônjuges não possuem uma quota-parte sobre cada um dos bens que fazem parte do património comum, sendo titulares de um único direito, que não suporta divisão, nem mesmo ideal, não será admissível a penhora ou a apreensão do direito à meação em cada um desses bens, por tal direito não existir, enquanto tal, no património de cada um dos cônjuges.
VI - Reconhecendo o administrador da insolvência a natureza comum do imóvel apreendido, deve proceder à citação do ex-cônjuge do insolvente nos termos do art. 740º do Cód. de Proc. Civil e, comprovada a instauração do processo com vista à separação de bens, impõe-se a suspensão da liquidação do imóvel apreendido.
VII - O cumprimento do disposto no art. 740º do Cód. de Proc. Civil pressupõe que quem o cumpre reconhece já o direito do cônjuge não insolvente à separação da sua meação nos bens comuns.

Texto Integral

Proc. nº 2744/19.4T8STS-E.P1

Apelação

Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 7

Recorrente: Massa Insolvente de AA

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadoras Lina Castro Baptista e Anabela Dias da Silva

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

O autor BB, residente na Avenida ..., nº ..., 2º dto., ... Póvoa de Varzim, na qualidade de cônjuge da insolvente AA, veio intentar ação de restituição e separação de bens, nos termos do disposto nos arts. 141º e 146º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE] contra a insolvente AA, a Massa Insolvente de AA e demais credores.

Pretende que se declare ser titular de meação, dos bens comuns do casal – fracção autónoma designada pela letra Y, destinada a habitação, e um quarenta avos indivisos da fração autónoma designada pelas letras AQ, destinada a cave para aparcamento, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número ..., frações Y e AQ, da Freguesia ..., com a separação da mesma, devendo prosseguir a liquidação apenas e só quanto à meação da titularidade da insolvente.

A Massa Insolvente de AA apresentou contestação, na qual invocou as exceções de caducidade da presente ação e de erro na forma de processo. Não procedendo tais exceções, sustentou não haver fundamento legal para a separação da meação pretendida pelo autor.

Efetuou-se audiência prévia, tendo a Mmª Juíza “a quo” proferido o seguinte despacho:

“Entende o Tribunal que, no caso concreto, encontram-se os autos em condições de ser desde já apreciado o mérito da ação, apreciando-se as exceções deduzidas pela Ré na contestação, podendo ser desde já proferida decisão final.

Concede-se, assim, às partes a possibilidade de, querendo, se pronunciarem nesta audiência prévia, nos termos do disposto no artigo 591.º, nº 1, al. b) do CPC, concedendo-se, ainda, a possibilidade de o Autor responder às exceções deduzidas pela Ré na contestação.”

O autor pronunciou-se pela improcedência das exceções de caducidade e de erro da forma de processo e pela procedência da ação,

A ré Massa Insolvente reiterou o que aduziu na contestação, nomeadamente, quanto à caducidade e ao erro da forma do processo e ainda que o apoio jurídico do autor não foi requerido e não poderia ter dado entrada à ação, porque não requereu que era urgente e não pagou a taxa de justiça. Por esse motivo, entende que deverá ser desentranhada a petição inicial, sustentando também que, tratando-se de uma dívida comum, porque foi contraída em proveito comum do casal, não há lugar à separação da meação.

Seguidamente foi proferido despacho saneador-sentença, no qual se julgaram improcedentes as exceções arguidas pela ré Massa Insolvente. Mais se julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:

- Reconheceu-se o caráter de bem comum dos bens apreendidos e em causa nos autos - fração autónoma designada pela letra Y, destinada a habitação, e um quarenta avos indivisos da fração autónoma designada pelas letras AQ, destinada a cave para aparcamento, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número ..., frações Y e AQ da Freguesia ..., sendo o aqui autor titular do direito de meação no património comum do casal formado pela insolvente e autor e assistindo-lhe o direito a requerer a sua separação;

- Indeferiu-se o prosseguimento da liquidação do ativo apenas quanto à meação da titularidade da insolvente, devendo ser intentado processo de inventário, por apenso à presente insolvência, para divisão e separação do património comum.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a ré Massa Insolvente, tendo esta finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. NOS TERMOS DO DISPOSTO NA ALÍNEA F), DO ARTIGO 558º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NÃO TENDO SIDO COMPROVADO O PRÉVIO PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA DEVIDA OU A CONCESSÃO DE APOIO JUDICIÁRIO, NÃO SE VERIFICANDO NENHUM DOS CASOS PREVISTOS NO N.º 5 DO ARTIGO 552º, DEVERIA A SECRETARIA TER RECUSADO RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL.

2. DEVE SER RECUSADO O RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL PELO FACTO DE ESTA NÃO VIR ACOMPANHADA DO COMPROVATIVO DA AUTOLIQUIDAÇÃO DA TAXA DE JUSTIÇA DEVIDA OU, EM ALTERNATIVA, DA DECISÃO, PROFERIDA PELA SEGURANÇA SOCIAL, DE DEFERIMENTO DO BENEFÍCIO DE APOIO JUDICIÁRIO NA MODALIDADE DE DISPENSA DE PAGAMENTO DE TAXA DE JUSTIÇA (ARTIGOS 552º N.º 7 E 558º F), AMBOS DO C. P. CIVIL).

3. A RECORRENTE ENTENDE QUE O PASSIVO DA PRESENTE INSOLVÊNCIA É COMUM TAMBÉM AO AQUI RECORRIDO, EM FACE DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1691º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CÓDIGO CIVIL E DO ARTIGO 15º DO CÓDIGO COMERCIAL, PORQUANTO CONTRAÍDA EM PROVEITO COMUM DO CASAL, RAZÃO PELA QUAL NÃO HÁ LUGAR À SEPARAÇÃO DA MEAÇÃO.

4. MAIS, NÃO SE PODE SEQUER ESPERAR QUE SE PROCEDA A PARTILHA, POIS COLOCAR-SE-IA EM CAUSA A CELERIDADE DO PROCESSO, E CONSEQUENTEMENTE A MAIS RÁPIDA SATISFAÇÃO DOS CREDORES (ARTIGO 1º C.I.R.E.).

5. AS DÍVIDAS QUE ONERAM O BEM APREENDIDO SÃO COMUNS, NOS TERMOS DO ARTIGO 1691/1-A) C.C.

6. NÃO HAVENDO DIVÓRCIO, NÃO EXISTE LUGAR À PARTILHA, PELO QUE EXISTE UMA MASSA DE BENS COMUNS AFECTA AO CUMPRIMENTO DE DETERMINADAS DÍVIDAS COMUNS, PARA QUE SÃO CHAMADOS OS CREDORES DE AMBOS OS CÔNJUGES, POR DÍVIDAS CONTRAÍDAS NA PENDÊNCIA DO CASAMENTO E QUE FORAM RELACIONADAS NA PENDÊNCIA DOS AUTOS PRINCIPAIS DE INSOLVÊNCIA.

7. O BEM INDICADO DEVE SER ASSIM APREENDIDO, NA SUA TOTALIDADE (E NÃO SOMENTE NA "MEAÇÃO" DA INSOLVENTE) PARA A MASSA INSOLVENTE, OU SEJA, NO PROCESSO PRINCIPAL, AÍ SE REALIZANDO A SUA VENDA, PORQUANTO É A SOLUÇÃO QUE MELHOR SE COADUNA COM O REGIME DAS DÍVIDAS DOS CÔNJUGES.

8. E, TAMBÉM, QUE MELHOR SE COADUNA COM O INTERESSE DO CREDOR NA VENDA JUDICIAL DO BEM (NA SUA TOTALIDADE) NO MESMO PROCESSO, DE FORMA A OPTIMIZAR O VALOR DE VENDA DO MESMO (ALGO QUE NÃO SE OBTÉM COM A VENDA DE "MEAÇÕES" EM PROCESSOS SEPARADOS).

Pretende assim a revogação da sentença recorrida.

Não foi apresentada resposta ao recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


*

FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


*

As questões a decidir são as seguintes:

I. Apurar qual a consequência para os autos em virtude de não ter sido recusado o recebimento da petição inicial pelo facto de esta não vir acompanhada do comprovativo da autoliquidação da taxa de justiça devida ou, em alternativa, da decisão, proferida pela Segurança Social, de deferimento do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça;

II. Apurar se há lugar à separação da meação do autor e se no processo de insolvência se deve proceder à venda (na sua totalidade) dos bens apreendidos.


*

Na sentença recorrida, com relevância, foram considerados assentes os seguintes factos:

1. A ré Massa Insolvente de AA, representada pela sua Administradora de Insolvência, Dra. CC, enviou em 06 de fevereiro de 2024, carta registada para o aqui Autor em que consta o seguinte:

“Assim, encontram-se apreendidos para a massa insolvente, os prédios urbanos atrás identificados, pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 141º numero alínea B) do C.I.R.E., artigo 146º número 2 e artigo 740º número 1 do C.P. Civil e artigo 34º número 4 CRP, notifica-se Vossa Exa. para requerer quando, no prazo de 20 dias, a separação de bens, findo o qual se procederá à venda do imóvel pela totalidade”.

2. Esta carta fora recebida por terceiro a 08.02.2024, conforme Aviso de receção constante dos autos.

3. O autor deduziu a presente ação de restituição e separação de bens, invocando os art.s 141.º e 146.º e ss. CIRE, contra a Massa insolvente, Insolvente e Credores, a 28.02.2024, formulando o seguinte pedido: “Termos em que deve ser julgada procedente a presente ação, nos termos do disposto no artigo 141º e seguintes do CIRE, e resultando ser o Autor [e não Autora, conforme se refere por lapso na Petição Inicial] o titular de meação, dos bens comuns do casal – fração autónoma designada pela letra Y, destinada a habitação, e um quarenta avos indivisos da fração autónoma designada pelas letras AQ, destinada a cave para aparcamento, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número ..., frações Y e AQ, da Freguesia ..., com a separação da mesma, prosseguindo a liquidação apenas e só quanto à meação da titularidade da Insolvente.”

4. Os bens apreendidos - fração autónoma designada pela letra Y, destinada a habitação, e um quarenta avos indivisos da fração autónoma designada pelas letras AQ, destinada a cave para aparcamento, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número ..., fracções Y e AQ, da Freguesia ... – encontram-se registados a favor do autor e insolvente, casados no regime de comunhão de adquiridos pelas AP. ... de 2012/06/04 e AP. ... de 2010/08/17, respetivamente – cfr. certidões de registo predial juntas ao apenso de apreensão de bens.


*

Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I. Apurar qual a consequência para os autos em virtude de não ter sido recusado o recebimento da petição inicial pelo facto de esta não vir acompanhada do comprovativo da autoliquidação da taxa de justiça devida ou, em alternativa, da decisão, proferida pela Segurança Social, de deferimento do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça

1. O art. 552º do Cód. de Proc. Civil, aplicável aos autos por força do disposto no art. 17º, nº 1 do CIRE, estatui o seguinte no seu nº 7:

«O autor deve, com a apresentação da petição inicial, comprovar o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º»

Depois, no seu nº 9 preceitua-se que «[s]endo requerida a citação nos termos do artigo 561.º[1], e faltando, à data da apresentação da petição em juízo, menos de cinco dias para o termo do prazo de caducidade ou ocorrendo outra razão de urgência, deve o autor comprovar que requereu o pedido de apoio judiciário mas este ainda não foi concedido, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º ou, sendo a petição inicial apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, através da junção do respetivo documento comprovativo.»

Por seu turno, conforme decorre do art. 558º, nº 1, al. f) do Cód. de Proc. Civil, a secretaria poderá recusar a petição inicial quando não tenha sido comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário, com a ressalva do caso previsto no nº 9 do art. 552º do mesmo diploma.

2. No presente caso o autor juntou à petição inicial, que deu entrada em 28.2.2024, documento comprovativo de que requerera proteção jurídica junto da Segurança Social, sendo que esse pedido foi objeto de deferimento em 23.4.2024 na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o que foi comprovado nos autos através de email enviado em 4.6.2024.

Mesmo considerando-se que a secretaria teria à partida fundamento para rejeitar a petição inicial ao abrigo do art. 558º, nº 1, al. f) do Cód. de Proc. Civil, uma vez que o autor não juntara documento que comprovasse a concessão de apoio judiciário, tal não se justificaria por se poder verificar, a nosso ver, a hipótese prevista na parte final deste normativo, acima citado.

Com efeito, o autor alegou o seguinte na sua petição inicial:

“7. Por carta registada com aviso de receção datada de 06-02-2024, a Sra. Administradora notificou o Autor, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 740º n.º 1 do C.P.C., para requerer, querendo, a separação de bens, que se junta sob o doc. n.º 1.

8. O que o Autor vem dar cumprimento, através da presente ação.

9. O Autor pretende salvaguardar a sua meação nos bens comuns do casal, que correspondem, precisamente à fração autónoma designada pela letra Y, destinada a habitação, e um quarenta avos indivisos da fração autónoma designada pelas letras AQ

(…)

15. O Requerido pediu proteção jurídica na modalidade de isenção do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo, conforme comprovativo que se junta.”

Ora, se o autor foi notificado pela Sr.ª Administradora da Insolvência, através de carta registada com aviso de receção datada de 6.2.2024, nos termos do art. 740º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, mais precisamente para requerer, no prazo de 20 dias, a separação de bens, findo o qual se procederá à venda do imóvel pela totalidade, há que reconhecer, face à iminência de esgotamento desse prazo e mesmo não tendo sido requerida a citação urgente dos réus, estarmos perante uma situação de urgência que justificou a instauração da presente ação, em 28.2.2024, sem que se aguardasse a prévia concessão de apoio judiciário, o qual, aliás, só veio a ser concedido em 23.4.2024.

3. No entanto, ainda que não se considerasse verificada a previsão do nº 9 do art. 552º do Cód. do Proc. Civil, nunca a solução poderia ser agora, tal como a ré Massa Insolvente parece propugnar na motivação do seu recurso, a sua absolvição ou a extinção dos autos.

O que se teria imposto, neste caso, constatada a falta verificada em momento processual adequado, seria o convite à parte para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos documento comprovativo da liquidação da taxa de justiça devida ou do deferimento do pedido de proteção jurídica, sob pena de desentranhamento da petição inicial.[2]

De resto, o próprio Acórdão que a recorrente cita na sua motivação (Rel. Lisboa de 1.2.2023, p. 148/22.0 T8SNT.L1-4, disponível in www.dgsi.pt.) se pronuncia em sentido que se pode considerar idêntico a este[3]. Numa situação análoga, mas em que a 1ª Instância não admitiu a petição inicial e declarou extinta a instância, a Relação viria a revogar tal decisão, determinando que “os autos prossigam seus termos, no que será tido em conta que a apelante juntou aos autos comprovativo de que entretanto o Instituto da Segurança Social, I. P. a notificou de despacho de deferimento do pedido de apoio jurídico, na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.”

Muito embora nestes autos não tenha sido proferida qualquer decisão liminar de rejeição da petição inicial, no caso tratado nesse acórdão, tal como aqui sucede, o despacho de concessão de apoio judiciário ao autor por parte da Segurança Social foi entretanto junto aos autos, o que determinou o prosseguimento do processo.

Sendo, a nosso ver, inequívoco que, neste contexto, os presentes autos sempre teriam que prosseguir, até sob pena de flagrante violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 20º da Constituição da República)[4], não se consegue compreender o motivo pelo qual a recorrente continua, em sede recursiva, a sustentar uma hipotética e desajustada extinção dos autos, questão ultrapassada pela junção ao processo do despacho de concessão de apoio judiciário ao autor.

Deste modo, improcede, nesta parte, o recurso interposto pela ré Massa Insolvente.


*

II. Apurar se há lugar à separação da meação do autor e se no processo de insolvência se deve proceder à venda (na sua totalidade) dos bens apreendidos

1. A recorrente Massa Insolvente sustenta no seu recurso que o passivo da presente insolvência é comum também ao aqui autor, em face do disposto nos arts. 1691º, nº 1, als. a) e d) do Cód. Civil e 15º do Cód. Comercial, porque contraída em proveito comum do casal, razão pela qual não há lugar à separação da meação.

O bem indicado deve, por isso, ser apreendido na sua totalidade – e não somente na meação da insolvente – para a massa insolvente, ou seja, no processo principal, aí se realizando a sua venda, porquanto é a solução que melhor se coaduna com o regime das dívidas dos cônjuges. E também a que melhor se coaduna com o interesse do credor na venda judicial do bem - na sua totalidade - no mesmo processo, de forma a otimizar o valor de venda do mesmo - algo que não se obtém com a venda de "meações" em processos separados.

Refere ainda a recorrente que não se pode esperar que se proceda a partilha, pois tal colocaria em causa a celeridade do processo e, por consequência, a mais rápida satisfação dos credores.

2. O art. 740º do Cód. de Proc. Civil, aplicável “in casu” com as necessárias adaptações por força do disposto no art. 17º do CIRE, estatui o seguinte:

1 - Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.

2 - Apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha; se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.

Tal como se alcança dos autos a Sr.ª Administradora da Insolvência enviou carta registada ao autor, datada de 6.2.2024, na qual procedeu à citação do cônjuge da insolvente nos termos do art. 740º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, notificando-o para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens, findo o qual se procederá à venda do imóvel apreendido pela totalidade.

Nessa carta não se invocou o carácter comum das dívidas reconhecidas sobre a insolvência. Aliás, o presente processo de insolvência tem como único devedor a aqui insolvente e, conforme refere a Mmª Juíza “a quo”, “consultada a base de dados deste Tribunal, não se vislumbra a pendência de processos executivos nesta Comarca contra o cônjuge da insolvente e aqui autor, nem fora alegada a pendência de processos executivos contra o aqui autor, nem processos de insolvência referentes ao autor.

É certo que consta na Lista do art. 129.º CIRE que o crédito do credor Banco 1... tem proveniência numa livrança subscrita pela devedora e marido emitida em 06/10/2009 com vencimento a 10/07/2012. Porém, o credor Banco 1... não veio exigir esse crédito contra o aqui autor, desconhecendo o tribunal se se verificam todos os pressupostos da exigibilidade daquela dívida em relação ao aqui autor. Acresce que o aqui autor não é parte no apenso de reclamação de créditos, pelo que o crédito reconhecido na Lista do art. 129.º CIRE não lhe é oponível.”

Prosseguindo, é de salientar que não foi invocada a comunicabilidade da dívida por qualquer credor da insolvência, tal como essa comunicabilidade também não foi invocada pela Sr.ª Administradora da Insolvência na carta que remeteu ao autor, cônjuge da insolvente, onde apenas referenciou o art. 740º do Cód. de Proc. Civil, fixando-lhe o prazo de 20 dias para requerer a separação de bens.

Neste contexto, não se nos afigura que a Massa Insolvente, representada pela Sr.ª Administradora da Insolvência possa vir agora alegar a existência de proveito comum do casal ou o carácter comum do passivo reconhecido sobre a insolvência. De resto, nesta posição da Sr.ª Administradora da Insolvência visualiza-se até alguma contraditoriedade, pois esta na carta remetida ao autor reconheceu-lhe expressamente a faculdade de requerer a separação de bens nos termos do art. 740º do Cód. de Proc. Civil para agora defender que afinal este não pode requerer tal separação de bens, devendo a liquidação prosseguir com a venda da totalidade do bem.[5]

3. A massa insolvente abrange todo o património de devedor e deve ser objeto de apreensão pelo administrador de insolvência, mesmo que os bens que o integram tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer criminal, quer de mera ordenação social – cfr. arts. 46º, nº 1 e 149º, nº 1 do CIRE.

No caso dos autos, como resultado do casamento celebrado no regime de comunhão de adquiridos, os imóveis apreendidos, por terem sido adquiridos na constância do matrimónio, têm a natureza de bens comuns – cfr. art. 1724º, al. b) do Cód. Civil.

Respeitando o processo principal apenas à insolvência de AA, cumpre reconhecer o carácter comum dos bens apreendidos em causa nos autos, sendo o aqui autor BB titular do direito de meação no património comum do casal formado por ele e pela insolvente.

Sabido é que a meação não incide sobre metade de cada um dos bens que integra o património comum, configurando-se antes como um direito do cônjuge sobre todo o património comum.

Tal como bem se assinala na sentença recorrida, o cônjuge tem o direito a separar a sua meação nos bens comuns de acordo com o disposto nos arts. 141º, nº1, al. b) e 146.º do CIRE, o que implica o reconhecimento do direito atribuído ao cônjuge de fazer separar a sua meação do património comum, com a consequente suspensão da liquidação relativamente a tais bens, separação que será exercitada posteriormente através do procedimento de inventário previsto no nº 1 do art. 1135º do Cód. do Proc. Civil.

Os bens comuns dos cônjuges constituem objeto, não de uma relação de compropriedade, mas de uma propriedade coletiva (a que se dá a designação de propriedade/contitularidade de mão comum), em que os sujeitos dessa propriedade coletiva são ambos os cônjuges, sem que seja correto falar, enquanto persiste a comunhão, numa divisão de quotas entre eles, em que há a contitularidade de duas pessoas (os cônjuges) num único direito, em que os sujeitos da comunhão conjugal são titulares de um único direito sobre o chamado bem comum, razão pela qual a comunhão conjugal, enquanto propriedade coletiva, é uma comunhão una, indivisível e sem quotas.[6] [7]

O direito a metade no património comum, que o art. 1730º, nº1 do Cód. Civil atribui a cada cônjuge aquando da sua dissolução, não confere a cada um o direito a metade de cada bem concreto do património comum, mas, tão só, o direito ao valor de metade desse património.

Assim, o direito à meação, de que cada um dos cônjuges é idealmente titular, só ganha consistência, a ponto de se tornar exequível, depois de finda a sociedade conjugal e, como consequência de tudo isto, surge o disposto nos arts. 740º a 742º do Cód. de Proc. Civil, que não são mais do que a devida e inevitável adjetivação do que resulta do recorte substantivo do regime dos bens comuns na sociedade conjugal.[8]

Ora, se os cônjuges não possuem uma quota-parte sobre cada um dos bens que fazem parte do património comum, sendo titulares de um único direito, que não suporta divisão, nem mesmo ideal, não será admissível a penhora ou a apreensão do direito à meação em cada um desses bens, por tal direito não existir, enquanto tal, no património de cada um dos cônjuges.

Não pode assim a liquidação prosseguir com a venda de um direito à meação.

4. Sobre esta questão, quanto ao caminho a seguir do ponto de vista processual, referiu-se com pertinência na sentença recorrida o Ac. Rel. Lisboa de 25.01.2022 (p. 3016/17.4T8SNT-D.L1-1, disponível in www.dgsi.pt), cujo sumário aqui se deixa transcrito na íntegra e que merece a nossa concordância:

“1. Tendo sido declarada a insolvência de cônjuge divorciado e constatando o administrador da insolvência a existência de bem imóvel comum do dissolvido casal, deve proceder à apreensão do imóvel que integra a comunhão conjugal e que responde pelas dívidas comuns e não o direito à meação do ex-cônjuge não insolvente.

2. A procedência da ação intentada pelo ex-cônjuge, por apenso ao processo de insolvência e ao abrigo do art. 141º, nº 1, al. b) do CIRE implica apenas o mero reconhecimento da natureza comum dos bens em causa, atingidos pela diligência realizada no processo de insolvência e o consequente direito à separação de bens; não dispensa a ex-cônjuge de posterior concretização da partilha no processo adequado, que não a aludida ação instaurada por apenso à insolvência, que não serve esse propósito.

3. Reconhecendo o administrador da insolvência a natureza comum do imóvel apreendido, deve proceder à citação do ex-cônjuge do insolvente nos termos do art. 740º do CPC, preceito aplicável à insolvência (art. 17º do CIRE), que é configurada como uma execução universal; comprovada a instauração do processo com vista à separação de bens, impõe-se a suspensão da liquidação do imóvel apreendido.

4. Concretizada a partilha dos bens do casal no processo de inventário, só então deve prosseguir a liquidação no processo de insolvência, com a venda do imóvel no caso de o quinhão do insolvente ser preenchido com essa verba; se, ao invés, o imóvel for adjudicado à ex-cônjuge mulher, necessariamente fica inviabilizada a venda do imóvel apreendido no processo de insolvência.”

Consequentemente, mostra-se correto o decidido pela 1ª Instância ao reconhecer o carácter de bem comum dos bens apreendidos e em causa nos autos e ao indeferir o prosseguimento da liquidação do ativo apenas quanto à meação da titularidade da insolvente, devendo ser intentado processo de inventário, por apenso à insolvência, para divisão e separação do património comum.

Aliás, em sentido idêntico aponta, inclusive, o já mencionado Ac. Rel. Porto de 19.11.2020, referido nas alegações de recurso, onde se escreveu que “… se forem apreendidos bens comuns do casal, a liquidação não poderá prosseguir contra os mesmos sem que ao respectivo cônjuge seja dada oportunidade de intervir na acção, devendo proceder-se à sua citação para exercer os seus direitos relativamente a tais bens”, acrescentando-se depois que tendo sido instaurado processo de inventário deverá a liquidação do bem imóvel ficar suspensa até ao termo da partilha.

Neste contexto, não merece acolhimento a posição sustentada pela recorrente Massa Insolvente, por não ter sustento legal a sua pretensão no sentido de no processo de insolvência se proceder à venda, na sua totalidade, dos bens apreendidos.

Quanto ao argumento da celeridade do processo de insolvência que também é avançado pela recorrente contra o decidido, sempre se dirá, em linha com a Mmª Juíza “a quo”, que não pode ser atendido, porquanto o interesse da celeridade, bem como o interesse dos credores da insolvência em obter a maior receita possível não pode postergar o direito de terceiros aos seus bens ou mesmo o direito do cônjuge da insolvente à sua meação nos bens comuns e a requerer a separação de bens e divisão do património conjugal.

Impõe-se assim a confirmação da sentença recorrida, o que implicará a improcedência do presente recurso.


*

Sumário (art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

………………………………

………………………………

………………………………


*

DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré Massa Insolvente de AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas do presente recurso, pelo seu decaimento, a cargo da recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário.


Porto, 24.9.2024
Rodrigues Pires
Lina Baptista
Anabela Dias da Silva
_________________
[1] Onde se prevê a citação urgente.
[2] Cfr., por ex., Ac. TCA Norte de 24.9.2021, p. 01972/20.4BEPRT, disponível in www.dgsi.pt.
[3] De notar que o recorrente apenas citou o ponto I do respetivo sumário, ignorando o II e o III que têm a seguinte redação:” II – Recebendo-o, o juiz não deve declarar extinta a instância, por impossibilidade legal da lide, mas sim determinar a notificação do A. para efectuar o pagamento omitido, com multa; III – Só no caso do A. não pagar a taxa de justiça e a multa deve o juiz mandar desentranhar a petição inicial.”
[4] O princípio da tutela jurisdicional efetiva sempre deve ser tido em conta na interpretação de normas como sejam os nºs 7 e 9 do art. 552º do Cód. de Proc. Civil - cfr. Ac. Rel. Lisboa de 20.2.2020, p. 16026/19.8T8LSB-L1-2, disponível in www.dgsi.pt.
[5] A este propósito cfr. Ac. Rel. Lisboa de 21.5.2024 (p. 3516/18.9T8BRR-Q.L1-1, disponível in www.dgsi.pt.), no qual se escreveu “que a citação nos termos do art. 740º do CPC pressupõe que quem a cumpre reconhece já o direito do cônjuge não insolvente à separação da sua meação nos bens comuns…”
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto de 19.11.2020, p. 96/20.9T8OAZ-D.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Sobre a natureza da comunhão conjugal, cfr. também o Ac. Rel. Coimbra de 8.11.2011 (p. 4931/10.1TBLRA.C1disponível in www.dgsi.pt.), onde, com apoio em Pires de Lima, Enciclopédia Verbo, comunhão [vol. V, págs. 1169/1170) e Ac. da RP de 19.04.83, CJ VII, II, pág. 259, se escreveu o seguinte: “A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de os direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente. Na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respectivos titulares apenas têm direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objecto da partilha. O que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património.”
[8] Cfr. o já referido Ac. Rel. Porto de 19.11.2020.