IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário

I - Como se decidiu no AUJ de 17.10.2023 “O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º1, c), do art.º 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas”.
II – “In casu” é de rejeitar “in totum” a reapreciação da matéria de facto uma vez que a apelante nem em sede de alegações, nem de conclusões indica, concretamente, quais os factos, provados e/ou não provados, cuja decisão deve ser alterada.

Texto Integral

Apelação
Processo n.º 634/23.5T8PVZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 6
Recorrente – AA
Recorrido - BB
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Maria da Luz Meneses de Seabra
Desemb. Anabela Andrade Miranda

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – BB instaurou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim a apresente ação declarativa de condenação com processo comum contra AA, e marido CC, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de € 74.925,00, acrescida dos juros que se vencerem desde a citação até efetivo pagamento.
Alegou para tanto e, em síntese, que outorgou à ré mulher uma procuração, atribuindo a esta poderes para o representar na escritura de compra e venda de um imóvel que integrava a herança de sua falecida mulher. A ré mulher interveio, como procuradora do autor efetivamente naquele negócio de compra e venda, e consequentemente, recebeu um cheque no valor de €74.925,00, correspondente à quota parte do preço que nessa venda cabia ao autor. Contudo, não entregou tal valor ao autor, conforme estava obrigada no âmbito da representação que lhe foi conferida. A ré mulher depositou tal cheque numa conta bancária de que é contitular juntamente com o autor, mas exclusivamente por ela movimentada, após o que se apropriou de tal valor, utilizando-o proveito exclusivo de ambos os réus.
Regular e pessoalmente citados, os réus vieram contestar pedindo a improcedência da ação e deduziram pedido reconvencional.
Para tanto, alegaram que foi o autor quem depositou o referido cheque na conta bancária de que é contitular juntamento com a ré mulher, dispondo de cartão bancário da mesma e tendo poderes para a movimentar, sendo, portanto, falso que não tenha acesso aos fundos da mesma conta.
Mais alegaram que tal conta bancária foi criada com o objetivo de solicitar um crédito pessoal em nome do autor, pelo qual a ré mulher assumiu a qualidade de fiadora, com a finalidade de se proceder ao pagamento de dívidas da responsabilidade do autor e de sua falecida mulher. Tendo todo o montante proveniente desse empréstimo sido utilizado para a satisfação dessas dívidas. Mas, como o valor do mesmo não chegou para a sua satisfação integral dessas dívidas, a ré mulher confessou-se solidariamente devedora com o autor do montante de €7.000,00, em dívida à sociedade A..., SA, sendo que durante bastante tempo foram os réus quem procedeu ao pagamento de dívidas de eletricidade, telecomunicações, Autoridade Tributária e Segurança Social da responsabilidade do autor, posto que este tinha como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de €690,00.
Finalmente, alegaram ainda que, em 2.03.2020, o autor doou em vida a sua quota disponível aos réus.
Pelo que terminam pedindo ainda a condenação do autor como litigante de má-fé e a condenação deste no pagamento dos danos que a instauração infundada da presente ação lhes causou e que liquidam em €5.000,00.
O autor apresentou réplica onde impugnou a factualidade constante da contestação/reconvenção, concluindo pela improcedência desta.

Dispensou-se a realização de audiência prévia. Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi julgado inadmissível o pedido reconvencional formulado. Fixou-se o objeto do litígio e elencaram-se os temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta: “Pelo exposto, decide-se julgar a presente ação procedente por provada e consequentemente condenar os réus a pagar ao autor a quantia de €74.925,00, acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, à taxa legal anual de 4%.
Custas pelos réus.
Registe e notifique”.

Inconformada com esta decisão, dela veio a recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que a absolva e ela e ao réu dos pedidos formulados.
A ré/apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1- Diante dessas considerações, os apelantes requerem que seja conhecido o presente recurso com os seus devidos efeitos legais e, quando de seu julgamento, lhes seja dado integral provimento para revogação da sentença recorrida para acolher o pedido realizado na sua contestação.
2- Deverá ser considerado facto provado, que o autor deu o dinheiro peticionado aos réus de livre e espontânea vontade, que sabia que aquele dinheiro iria ser utilizada na compra de uma casa.
3- Da conjugação de toda a prova produzida em audiência, bem como prova documental junta aos autos, resultou claro que o autor deu, doou, o dinheiro peticionado aos réus de livre e espontânea vontade, que sabia que aquele dinheiro iria ser utilizada na compra de uma casa.
4- As partes acordaram e aceitaram que o dinheiro obtido na venda dos imoveis seria utilizado na compra de uma nova casa e para o pagamento das dívidas contraídas e da responsabilidade da mulher, já falecida, do autor.
5- Pelo que ao ter julgado parcialmente procedente a pretensão da ré, andou mal o Tribunal a quo a decidir como decidiu, devendo a sentença por isto ser revogada,
6- Violou o Meritm.º Juiz a quo, por erro de interpretação e de subsunção jurídica o vertido no artigo 45.º do Código de Processo Civil, nos artigos 410.º, 405.º, 398.º, 830.º, 790.º e 795.º do Código Civil.

Não há contra-alegações.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1- Por escritura pública de compra e venda outorgada em 12 de Março de 2021, a aqui requerida, por si e na qualidade de procuradora do ora requerente e de CC, bem como DD e EE, venderam a FF e mulher GG, pelo preço global de €112.500,00 o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o número ... e artigo ... da matriz urbana respetiva;
2- Nessa ocasião, e para pagamento da parte do preço que, nessa venda, cabia ao aqui requerente, a requerida recebeu um cheque no valor de €74.925,00;
3- A ré mulher depositou o cheque recebido na conta número ... do Banco 1..., contitulada por ela própria e pelo aqui autor, no dia 13 de março de 2021;
4- Os réus fizeram seu esse valor, utilizando-o para a aquisição de um imóvel que é atualmente a casa de morada de família destes;
5- O autor nunca recebeu qualquer quantia daqueles €74.925,00 €, não obstante, pelo menos após a concretização da compra referida no item anterior, o ter solicitado aos réus;
6- O autor contraiu um crédito pessoal junto do Banco 1... cuja fiadora foi a ré mulher;
7- O réu marido subscreveu a declaração confessória de dívida, datada de 26 de outubro de 2020, junta como documento 3 da contestação, também ela subscrita pelo autor, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzida;
8- Por documento escrito, datado de 2 de março de 2020 - cuja cópia esta junta como doc. 4 da contestação com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – o autor declarou doar aos réus a sua quota disponível;

Não se julgou provado:
a. O autor dispunha de um cartão de débito da mencionada conta;
b. O autor nunca movimentou a conta bancária supra referida;
c. A conta referida em 3) foi criada com o único objetivo de solicitar o crédito pessoal referido em 6);
d. O crédito mencionado em 6) teve como finalidade o pagamento de elevadíssimas quantias das quais era devedor o autor e a sua falecida mulher;
e. Todo o valor do referido financiamento foi utilizado para pagamento dessas dívidas;
f. Durante bastante tempo foram os requeridos que pagaram as dívidas de eletricidade, telecomunicações, Autoridade Tributária e Segurança Social do autor;
g. O autor tem como único rendimento uma reforma de €690,00 mensais;

III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.

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Ora, visto o teor das alegações do insolvente/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª –Da impugnação da decisão da matéria de facto.
2.ª – De Direito.

1.ªquestão –Da impugnação da decisão da matéria de facto.
Como se vê vem a ré/apelante insurgir-se contra o teor da sentença que condenou os réus no pedido formulado pelo autor, no pagamento da quantia de €74.925,00, acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento à taxa legal anual de 4%.
Para tanto e, expressamente, alega a ré/apelante que “Da conjugação de toda a prova produzida em audiência, bem como prova documental junta aos autos, resultou claro que ambas as partes terão acordado o pagamento das dividas contraídas e da responsabilidade do Autor e de sua falecida mulher, com o dinheiro recebido pela venda do imóvel e usar esse dinheiro na compra de uma moradia para residirem as partes com melhores condições, tendo o Autor doado aos Réus o dinheiro”. Mais alega que “Nos termos do disposto no artigo 662.º do CPC, os Recorrentes impugnam desde logo, a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto julgada como provada, com vista à sua reapreciação e modificação pelo Tribunal ad quem”.
E, por fim, conclui que do teor das declarações de parte do autor resulta que: “Deste depoimento resulta sem dúvidas que o Autor deu o dinheiro peticionado aos Réus.
Da conjugação de toda a prova produzida em audiência, bem como prova documental junta aos autos, resultou claro que o dinheiro foi dado aos Réus para a compra do imóvel e para o pagamento de dividas avultadas…. Ora não se compreende porque foi dado credibilidade ao depoimento das testemunhas, que em nada presenciaram a doação entre o Autor e Réus.” pelo que chama à colação a reapreciação de tais declarações do autor que transcreve, em parte, sem a situar concretamente em sede de tempo de gravação.
1.1 – Da reapreciação da prova.
Como se sabe, no que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil. E como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta exceções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada. Sendo que os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Mas não nos podemos olvidar que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto direto, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reações do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”.
Estando hoje legalmente consagrado o dever deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Ou seja, deve o Tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica”, corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
Sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o citado art.º 640.º dispõe, no seu n.º 1, o seguinte: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No n.º 2 regula a forma como se deve proceder quanto à especificação dos meios probatórios.
Atento o que preceitua o referido art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
i) - especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
ii) - indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto;
iii) - indique com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição;
iv) -devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável e,
v) – indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Neste âmbito e como é jurisprudência segura e robusta do STJustiça, cfr. Ac. de 29.10.2015, in www.dgsi.pt, é possível distinguir dois tipos de ónus - “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes” e consta do transcrito n.º 1 do art.º 640.º; e “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”, previsto no n.º 2 do mesmo preceito.
O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas als a), b) e c) do n.º 1 do referido art.º 640.º, visando fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.
Por seu turno, o ónus secundário consiste na exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, a que se refere a al. a) do n.º 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Como acima já se deixou consignado, o objeto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), portanto, o supra referido ónus primário tem de constar da conclusões recursórias, devendo constar das alegações do recurso, necessariamente por ser matéria de maior desenvolvimento e extensão expressiva, a indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição e ainda a análise crítica dessas provas que chama à colação, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.
Consta do sumário do Ac. do STJ de 16.05.2018, in www.dgsi que: “I - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.
II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640.º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do n.º 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.
III - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte”.
E mais recentemente proferiu-se, a 17.10.2023, o AUJ segundo o qual “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, sendo que em fundamentação de tal aresto pode ler-se que: “Em síntese, decorre do art.º 640.º, n.º1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.
O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º1, c), do art.º 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas”.
Depois destas considerações processuais, e analisando o teor das conclusões da presente apelação, acima transcritas na totalidade, e ainda o que consta das respetivas alegações, ou seja, “Sucede que, no depoimento de parte, prestado pelo autor, pai do réu, este confessou que tinha dado aos réus, o dinheiro da venda da casa para que estes comprassem outra casa, pois já residiam juntos e assim mudavam-se para outra casa, omitindo deliberadamente o Tribunal a quo na sentença esta confissão que, apesar da ligação ao réu, prestou depoimento que facilmente se comprova de verdadeiro, pelo modo como depôs, de forma espontânea e sem contradições aparentes, e que no que diz respeito à factualidade controvertida referiu, em suma, por fim, aludiu a troca de correspondência eletrónica e ao recebimento de faturas; confirmou que só após o conflito
de fevereiro é que foram emitidas as faturas”, temos de concluir que a ré/apelante não cumpriu minimamente aqueles ónus, primário e secundário, que sobre a mesma recaia à luz do preceituado no art.º 640.º do C.P.Civil, sendo, aliás, impercetível o que a este título a mesma pretende, pois não indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados. Sendo que na realidade, em parte alguma da sua contestação os réus alegam, como o fazem agora, que o autor lhes “deu” “doou” a quantia obtida com a venda do imóvel, dizendo tão só que a mesma foi por eles utilizada para o pagamento de dívidas do autor. E assim sendo, consequentemente, tal questão de facto não era e, não foi, sequer objeto de prova nestes autos.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos rejeita-se “in totum” a impugnação da decisão da matéria de facto pretendida pela ré/apelante.
Improcedem as respetivas conclusões.

2.ªquestão – De Direito
Por fim dir-se-á ainda que a ré/apelante pretende a revogação da sentença recorrida tão só com fundamento na alteração da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância. Ora, tendo-se rejeitado a pretendida impugnação, manifesto é de concluir que o presente recurso tem de improceder “in totum”.
Improcedem as derradeiras conclusões da ré/apelante.

Sumário
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela ré/apelante.

Porto, 2024.09.24
Anabela Dias da Silva
Maria da Luz Seabra
Anabela Miranda