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PERICIA MEDICA
REQUISITOS
HOMICÍDIO QUALIFICADO
INSÍDIA
Sumário
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora) Nos termos do art. 351º nºs 1 e 3 do CPP, a possibilidade de realização de perícia psiquiátrica para aferir da susceptibilidade de ao arguido ser formulado um juízo de culpa pela morte dá vítima, estava condicionada à verosimilhança, à plausibilidade e consistência das razões invocadas, segundo um mínimo de conhecimentos de cultura geral da ciência médica, ou do que são doenças mentais potencialmente geradoras de anomalia psíquica, para permitir ao Tribunal colocar, pelo menos, alguma dúvida razoável sobre a imputabilidade do arguido, não sendo suficiente, para tal, à luz das mais elementares regras de experiência e de senso comum, os factos de ter bebido cerveja ao jantar, dois licores «beirão», nem de ter ingerido dez ou quinze shots de whisky durante a noite e de ter fumado uma «ganza». A realização de uma perícia acerca da imputabilidade do arguido, para determinar se, mais de sete meses antes, o mesmo tinha álcool e haxixe no organismo, aquando da consumação do crime, não prossegue qualquer efeito útil dada a impossibilidade de obtenção de qualquer resultado minimamente esclarecedor acerca da sua capacidade de avaliação da ilicitude dos seus comportamentos e de se determinar de acordo com essa avaliação, no momento em que cometeu o crime de homicídio. Insidioso é um adjectivo proveniente do latim insidiosus, que significa «que arma insídias, ciladas, sendo sinónimo de aleivoso, traiçoeiro, pérfido» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa, s.v. “insidioso”). Sendo insídia, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a «espera às escondidas do inimigo para investir sobre ele; emboscada, cilada». Como circunstância agravante modificativa do crime de homicídio, refere-se a um subterfúgio, uma forma dissimulada para induzir a vítima em erro e para a tornar mais vulnerável à actuação do agente, através de comportamentos deste como a espera, a emboscada, a traição, a surpresa, um ataque súbito e sorrateiro, ou qualquer fraude dirigidas à vítima e que tenham por efeito retirar-lhe, dificultar especialmente ou diminuir-lhe significativamente as hipóteses de reacção e defesa, sendo equiparável, por via desse carácter enganador e oculto, ao uso de veneno.
Texto Integral
Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
Recurso Interlocutório:
Por despacho proferido em 8 de Março de 2023, no decurso de uma das sessões da audiência de discussão e julgamento, realizada no processo comum colectivo nº 136/22.7PATVD foi indeferido um requerimento apresentado pelo arguido AA, na contestação que apresentou à acusação contra si deduzida, pedindo a realização de perícia psiquiátrica à sua pessoa.
O arguido AA interpôs recurso desta decisão, tendo sintetizado os motivos da sua discordância, nas seguintes conclusões:
1- um processo que não contem tudo quanto é favorável ou desfavorável ao suspeito-arguido-imputado é um processo “manco” que não cura de apurar todas as circunstancias do facto ilícito; as questões filosófico-penais do crime “quando?, onde?, como?, quem?, porquê? e em que circunstâncias? são essenciais a uma avaliação global do facto.
2- se na posse do Ministério Publico o caso não é escalpelizado a montante, carreando todos os indícios do crime, certo é sabido que a jusante o Estado de Direito pode falhar e colocar em causa princípios basilares do processo penal; daí que se imponha o “fair trial” em todas as fases do processo; o MP que ab initio foi contra a realização da Perícia Médico Psiquiátrica ao arguido, solicitada ainda antes do 1º Interrogatório.
3- nas horas que antecederam a morte da inditosa vítima e no momento do crime o arguido estava toldado por consumo de elevada quantidade de álcool e de estupefacientes; todavia,
4- por razões que se ignoram não foi submetido de imediato a teste de despistagem de álcool e drogas logo que detido afim de apurar de todas as circunstancias relevantes sobre o estado psíquico e físico no momento dos factos; na véspera dos factos o arguido jantou com alguns amigos, onde bebeu cerveja e um licor “beirão”; após o jantar e até altas horas da madrugada o arguido consumiu uma pequena porção de cannabis ( vulgo “ganza”) e ingeriu cerca de vinte (20) “shots” ( pequenos copos) de whisky.
5 - o arguido recorda parte dos factos ocorridos até cerca das 02H00 da madrugada de 26-2-2022; todavia não tem memória do hiato temporal desde aquela hora até cerca das 9H00 - 10Horas de sábado 26-2-2022; na verdade, entre as 02H00 e as 9h30-10H00 o arguido esteve toldado pelo álcool e droga sem memória e consciência dos factos; urgia e urge ordenar efectuar perícia médico legal afim de avaliar o estado mental do arguido entre as 02H00 e as 10H00 de 26-2-2022; na verdade,
6-são conhecidos os efeitos altamente nocivos do álcool e drogas; segundo o site: https://clinicaemunah.com.br/combinar-drogas-e-alcool/ “ O efeito da mistura álcool + maconha .. prejudica a capacidade motora do usuário. Por isso, ao misturar maconha e uma quantidade razoável, a pessoa ficará bastante embriagada, perdendo consideravelmente suas capacidades mentais e físicas. O dano aos rins e ao fígado são potencializados….”
7- visando a instrução visa apurar a verdade- art. 291 do CPP- estando em causa apurar da imputabilidade ou inimputabilidade quiçá da imputabilidade diminuída no momento dos factos, a rejeição da Perícia traduz caso não equitativo: o MP conseguiu carrear para o processo tudo quanto é possível para ver o arguido acusado e condenado e a este é recusado um direito de defesa assim violando os arts. 32-1 da CRP, 5º-1, 6º-1 da CEDH e 32º- 1 da Lei Fundamental;
8- a tramitação anómala e desfavorável à defesa em detrimento do direito a ser “avaliado in totum” ao estado em que o arguido se encontrava no momento do trágico desaparecimento da vítima, traduz processo “não equitativo” sob as luzes dos arts 5º-1, 6º-1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 32º -1 da Constituição da Republica e 262 do CPP:
-o arguido requereu Perícia antes do 1º Interrogatório Judicial;
-o MMº Juiz de Instrução Criminal deferiu a Perícia;
-o MP reclamou pois é o “dominus” do Inquérito
-o MMº JIC deu sem efeito a Perícia;
-o arguido reclamou para o Superior Hierárquico que tudo rejeitou
-o arguido requereu Instrução e renovou o pedido de Perícia;
-a MMª. JIC rejeitou o pedido da defesa
-o arguido Contestou e renovou a Perícia;
-o Tribunal Coletivo rejeitou o pedido
9- o arguido deve ser submetido a Perícia médico-legal afim de ser apurado se:
a) - o arguido era consumidor de haxixe e álcool à data dos factos indiciados?
b) - o arguido vivia dependente desse consumo ?
c) - sob o consumo de haxixe e álcool o arguido, em 25 e 26 fevereiro de 2022 padecia de inimputabilidade? ou de imputabilidade diminuída ? – explicite em concreto.
10- sendo o inquérito o conjunto de diligencias que visam investigar a existência de um crime, de determinar a responsabilidade do seu agente - artº 262 do CPP- e podendo - devendo o arguido participar no Inquérito – artº 61º- 1- g) do CPP- não se concebe que sob a imposição do devido processo legal- artº 5º- 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - se rejeite ab initio e em julgamento uma diligencia essencial para defesa….
11-o MP, o JIC em Instrução e agora o Tribunal Coletivo tudo rejeitaram ao arguido; o iter criminis do arguido não foi apurado in totum; o que lhe podia ser favorável- sob a capa da imputabilidade diminuída quiçá inimputabilidade- foi varrido pela rua abaixo; o processo nas fases de Inquérito, Instrução e agora em Julgamento não foi equitativo e deveria tê-lo sido:
“as partes devem ter a mesma oportunidade de acesso, de comentário e de refutação das provas e de outros elementos do processo, assim como idêntica possibilidade de interrogar testemunhas e peritos…” Acórdãos FELDBRUGGE A, 99, UNTERPERTINGUER, de 24-11-1986, A, 110, BARBERÁ, MESSEGUÉ e JABARDO, A 146, págs. 33-34, KOSTOVSKI, A, 166, pág. 19,- Senhor Juiz Ireneu Cabral Barreto, “ A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 5ª Edição, in pág. 172
12-Consta no Inquérito:
“ o AA estava muito embriagado…” fls 73- linha 32
“…AA… muito embriagado..”- fls 73- linha 32- depoimento de BB “…fizeram uma competição de shots..whiskey ..vodka..”
“..o AA terá bebido cerca de vinte shots tendo ficado muito embriagado” fls 77, linhas 28 a 30 - depoimento de CC
“..o AA apesar das.. bebidas que já tinha ingerido, preferiu continuar a beber shots de whisky, tendo acabado…. bastante embriagado..” fls 83- linhas 38 a 40
“…notoriamente embriagado..” fls 87, linha 34- depoimento de DD
“..AA bastante alcoolizado…” fls 320, linha 48- depoimento de EE
“…o AA estava muito embriagado…” fls 322, linha 20-21- FF
13- todas estas testemunhas confirmaram em julgamento os depoimentos que prestaram em sede de Inquérito; a dimensão dos depoimentos sobre o estado etílico do arguido impunha e obriga a realizar a Perícia Médico Psiquiátrica para avaliar do estado de “consciência livre” ou imputabilidade diminuída quiçá inimputabilidade no momento dos factos; trata-se de uma omissão grave por parte do Ministério Publico e uma falha colossal do Tribunal a quo negar ao arguido um simples exame pericial que lhe poderia e é favorável….
Foram violados os artigos 61-1-g) 262 do CPP, 32º- 1 da Lei Fundamental e 6º- 1 da CEDH que é direito positivo Português sob as luzes do artº 8 da CRP.
Deve ser declarado nulo o processado desde a Ata de 8-3-2023, com imposição da feitura da perícia médico legal psiquiátrica, assim se realizando a mais Lídima Justiça!
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual, concluiu:
O indeferimento do Tribunal é absolutamente justificado e fundamentado, e cabe no seu poder decisório entender qual a prova que necessita para ser esclarecido e para firmar a sua convicção – e este exame pericial, mais uma vez se afirma, nada mais de novo iria trazer aos autos.
Ao recusar a realização da perícia psiquiátrica ao arguido, uma vez que esta prova não é, nem essencial, nem imprescindível para que o Tribunal alicerce a sua decisão, não se verificando qualquer violação do artº 61º, nº 1, alínea g), artº 262º do Código de Processo Penal, artº 32º da Constituição da República Portuguesa, artº 6º, nº 1 do CEDH.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na integra a decisão recorrida
Recurso do acórdão condenatório:
Por acórdão proferido em 22 de Março de 2023, neste processo comum colectivo nº 136/22.7PATVD, foi decidido:
Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e i), do Cód. Penal;
Condenar o mesmo arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º, do Cód. Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão:
O arguido AA interpôs recurso deste acórdão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
Recurso intercalar: sob referencia Citius 13528674 o arguido recorreu do douto despacho de 8-3-2023, admitido a 16-3-2023 sob refª.156207657 que deve ser julgado de praevium pois da sua procedência decorre a apreciação da conduta sob
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA, INIMPUTABILIDADE ou SURTO PSICÓTICO;
1- a detenção, acusação, pronuncia e julgamento do arguido constituem meios colocados ao dispor do Estado Português para o perseguir criminalmente; no exercício desses meios o Estado Português pela sua “longa manus” o Ministério Público deve actuar com critérios formais no âmbito da avaliação dos indícios;
2- um processo que não contem tudo quanto é favorável ou desfavorável ao arguido é um caso “coxo”, um processo “manco” pois não curou de apurar todas as circunstancias do facto ilícito; as questões filosófico-penais do crime “quando?, onde?, como?, quem?, porquê? e em que circunstancias? são essenciais a uma avaliação global do facto;
3- se na posse do Ministério Publico o caso não é escalpelizado a montante, carreando todos os indícios do crime, é sabido que a jusante o Estado de Direito pode falhar e colocar em causa princípios basilares do processo penal; daí que se imponha o “fair trial” em todas as fases do processo; o MP ab initio foi contra a realização da Perícia Médico Psiquiátrica ao arguido, solicitada antes do 1º Interrogatório;
4- nas horas que antecederam a morte da inditosa vítima, o arguido estava toldado por consumo de elevada quantidade de álcool e de estupefacientes; por razões que se ignoram mas que só se podem imputar ao MP, não foi submetido de imediato a teste de despistagem de álcool e drogas logo que detido afim de apurar de todas as circunstancias relevantes sobre o estado psíquico no momento dos factos….
5-na véspera dos trágicos factos o arguido jantou com alguns amigos, onde bebeu cerveja e um licor “beirão”; após o jantar e até altas horas da madrugada o arguido consumiu uma pequena porção de cannabis (vulgo “ganza”) e ingeriu vinte (20) “shots” ( pequenos copos) de whisky: facto provado em 14.;
6- o arguido recorda parte dos factos ocorridos até cerca das 02H00 da madrugada de 26-2-2022; todavia não tem memória do hiato temporal desde aquela hora até cerca das 9H00 - 10Horas de sábado 26-2-2022; na verdade, entre as 02H00 e as 9h30-10H00 o arguido esteve toldado pelo álcool e droga sem memória e consciência dos factos;
7- urgia e urge ordenar efectuar perícia médico legal afim de avaliar o estado mental do arguido entre as 02H00 e as 10H00 de 26-2-2022; ao Ministério Público cabia e cabe ordenar todas as diligencias urgentes, necessárias e úteis à descoberta da verdade, de todos os factos desfavoráveis e favoráveis ao arguido;
8- não se alcança que numa vulgar operação de controlo de transito “stop” a GNR/PSP ordene aos automobilistas a submissão ao teste de alcoolémia e, num caso de rixa, ofensas corporais graves e, ou de homicídio, o suspeito não seja de imediato submetido a despistagem de drogas e álcool……
9- ao Ministério Publico sibi imputet a omissão do exame imediato às faculdades mentais do arguido no momento da detenção; o MP entregou a investigação à PJ e pronto! tudo o que fosse indispensável a apurar in totum as circunstancias em que o arguido agiu, quiçá de efeito favorável à defesa, não interessou pois poderia sair “beneficiado”…
10- é no mínimo estranho o caminho que o MP traduz no inquérito; o MMº Juiz de Instrução era favorável à Perícia Médico-psiquiátrica e o MP a torcer pelo “não” !!!!!….e assim vai o processo penal em 2022-2023…;
11- a tramitação processual ab initio em inquérito é anómala com o Senhor Juiz de Instrução a pugnar pela submissão do arguido a Perícia Médica e o MP a torcer pelo “NÃO” talvez porque o resultado da mesma poderia ser favorável a defesa com o apuramento de IMPUTABILIDADE DIMINUIDA quiçá a revelação de um SURTO PSICÓTICO …2
12- veja-se o que ocorreu ab initio nos autos:
2-3-2022: arguido requer Perícia Médica Psiquiátrica imediata
2-3-2022- auto de 1º interrogatório: Juiz de Instrução defere o pedido
3-3-2023 – refª Citius 151842294 o Ministério Publico alega que é livre de exercer a sua competência e, sem súmula, é o dominus do Inquérito
7-3-2022- refª Citius 151873111: JIC dá sem efeito o Despacho a ordenar Perícia
17-3-2022-refª Citius 12097641- arguido renova perícia
18-3-2022- refª Citius 152050361- Ministério Público rejeita
5-4-2022- refª Citius 12179889- arguido reclama para Superior Hierárquico
8-4-2022- refª Citius 152335300- Superior Hierárquico rejeita petição
29-8-2022-refª Citius 12710934- o arguido vem arguir nulidade
17-9-2022-refª 12757376- arguido requer Instrução e pede Perícia
4-10-2022- refª 154220938 - Juiz de Instrução rejeita Perícia e pronuncia
17-10-2022-refª 12895723 –arguido contesta e pede Perícia
13 - em sede de Instrução, Contestação e julgamento foi ostracizada a Perícia; por estas e muitas outras razões “ocultas” há cerca de 20 anos o Senhor Juiz Paulo Pinto Albuquerque, Juiz de Direito no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, dixit em 2 Setembro 2004 que: “Em 30 anos de Democracia ainda não conseguimos por de pé uma politica criminal que cumpra os imperativos constitucionais da igualdade e da Soberania popular. O problema principal da Justiça reside no funcionamento pouco transparente do Ministério Público”- Jornal Público de 2-9-2004- pág. 12
14 - na verdade, porque razão o MP no âmbito da investigação negou sempre algo que pode-poderia e é relevante em termos de grau de culpabilidade ? - são conhecidos os efeitos altamente nocivos do álcool e drogas; segundo o site: https://clinicaemunah.com.br/combinar-drogas-e-alcool/ “ O efeito da mistura álcool + maconha .. prejudica a capacidade motora do usuário. Por isso, ao misturar maconha e uma quantidade razoável, a pessoa ficará bastante embriagada, perdendo consideravelmente suas capacidades mentais e físicas. O dano aos rins e ao fígado são potencializados….”
15- daí a importância de realizar a Perícia; há uns anos, no Circulo Judicial de Torres Vedras num caso de homicídio de uma saudosa Funcionária judicial, a recusa na realização da perícia médico psiquiátrica pelo Tribunal Colectivo, levou a que a Relação Lisboa declarasse nulo o julgamento e ordenasse a perícia: processo 108/02.8...- 1º Juízo Torres Vedras, arguido GG;
16-o Ministério Publico e o Órgão de Soberania Tribunal não cumpriram o “fair trial”; não deram oportunidade ao arguido fazer valer a verdade da sua situação mental anímica no momento do cometimento dos factos; ao rejeitarem uma diligencia essencial para apurar in totum do seu estado anímico e eventual voluntas consciente ou inconsciente, livre ou dominada por factores exógenos, o Tribunal violou o processo equitativo – artº 6º - 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que é direito positivo Português: artº 8º CRP;
17-a prova pericial, sobretudo quando puder influir na apreciação da questão da imputabilidade ou, por outra forma, no juízo de culpa, deve ser realizada, em princípio, nas fases preliminares do processo (n.º 4 do artº 157.º do C. Proc. Penal), podendo ser ordenada, oficiosamente ou a requerimento, no decurso da audiência: artigo 351.º CPP.;
18-os elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido nos pontos 13 e 14 estão em contradição de per si e traduzem NULIDADE do Acórdão:
13- agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente..
14- o arguido consumiu uma porção de cannabis, vulgo ganza e ingeriu cerca de vinte shots de whisky
19- como pode concluir-se que o arguido estava livre e consciente se está viciado em drogas, bebe uns vinte “shots” de whisky ?-está em causa apurar da imputabilidade ou inimputabilidade quiçá da imputabilidade diminuída no momento do cometimento dos factos ou de um surto psicótico que levou à perda de memória!!!
20- o uso patológico de álcool e drogas alucinógenas pode desencadear um surto psicótico; as alterações no cérebro fazem com que os neurónios da região límbica fiquem hiperativos, desorganizando os pensamentos e alterando a percepção das coisas; podem ocorrer sintomas como confusão, alucinações ou delírios ou ainda haver agitação e agressividade, que podem colocar a vida da pessoa em risco.
21- em 9-12-2022- refª Citius 13120371 o arguido enviou carta aos autos a pedir desculpa à vitima e Família; o Tribunal não apreciou nem valorou este documento o que traduz omissão de pronuncia; o documento releva da vontade do arguido em assumir responsabilidade perante o trágico desfecho de uma noite sob influencia do álcool e drogas. “mais valia eu ter partido as pernas e não ter saído de casa. Peço desculpa ao HH, à Família e ao Tribunal” ( sic).
22- a pena de 14 anos numa jaula fria e húmida não contribui para a PAX comunitária; penas longas, exageradas, sob TRATO DESUMANO em clausura e sem REINSERÇÃO SOCIAL não cumprem o desideratum do Estado de Direito
23- Portugal foi condenado na COUR pelo tratamento desumano infligido aos incautos cidadãos que caem nas “malhas” da Justiça; o affaire “PETRESCU” contra Portugal -proc. 23190/17 -.do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem fala por todos, no qual a COUR de Estrasburgo condenou Portugal pelas más condições prisionais sob trato desumano, sobrelotação, ausencia de higiene, péssima alimentação, etc...; este acórdão é de conhecimento oficioso da Procuradoria Geral da Republica e está publicado no sitio de apoio à P.G.R.: https://gddc.ministeriopublico.pt/search/all/Petrescu
24- celas prisionais sem respeito pela condição humana, fome, comida podre, frio, humidade, tráfico de droga, calor intenso nos meses de verão, falta de ventilação, ausência de distanciamento, agressões, suicídios, humilhação e ausencia de higiene...constituem o statu quo das prisões em Portugal; a título de mero exemplo, sobre as 3 refeiçóes por dia por recluso:
-no “Governo PASSOS COELHO” o orçamento era de 3, 30€;
-no “Governo ANTÓNIO COSTA” o Ministério das Finanças “atribui” 1,29€ ( um euro e vinte e nove cêntimos) por dia para as 3 refeições de cada recluso.
Nos EP Vale de Judeus, Leiria, Caxias, Paços de Ferreira, EP Lisboa, Alcoentre, etc, entre outros, é usual a refeição ser composta por peixe frito nauseabundo, almondegas podres, sopa sem nutrientes; os banhos colectivos são tomados em balneário comum com apenas 3 ou 4 chuveiros a funcionar com água fria ou morna em pleno Inverno para 100 (cem) reclusos e sem qualquer privacidade...com motoros de exaustão avariados, piso cheio de fungos, falta de higiene, etc.....
25 - escorrem água e humidades pelas paredes das celas, que são “habitadas” por 10 e 11 reclusos amontoados…é este o pequeno retrato do sistema prisional que aplica tratamentos desumanos e degradantes a quem é alvo de justiça “vingativa”; é este, em resumo, o estado de quem vegeta numa cela fria e húmida de 5M2; é esta a situação de ausência de reinserção social e de privação de apoio psicológico que vive o arguido desde que foi preso;
26- confessio in iure pro iudicto est ( = a confissão em Juízo equivale a uma Sentença); o arguido deve ser condenado em 10 anos de prisão; o que faz o arguido com uma pena longa de 14 anos ?
27- o isolamento do arguido, a “sangue frio” no silencio da cela fria e húmida de 5 m2 do EP Caxias, contribuiu sob condições desumanas para que se sinta motivado para encetar uma nova Vida, logo que sair
28 - penas pesadas sem Reinserção Social possível, sem dignidade humana no carcere e sem Proporcionalidade não são justiça! o que satisfaz o Mundo e a comunidade de Torres Vedras ver o arguido com um ser despersonalizado após longos anos de “sequestro-estatal”?
29 - a pena excede a medida da culpa e atenta contra os arts. 1º, 28º, 29º, 32º e 205º da Lei Fundamental; arguido cumpriu até agora um ano e dois meses de prisão; o mal da prisão sofrida serviu de cura para interiorizar o crime.
30 - uma pena de dez (10) anos de prisão servirá os anseios da sociedade e o desideratum da justiça pois representa sempre uma espada de “dâmocles) sobre a pessoa do arguido; na verdade, “..o fim das penas não é atormentar um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido.(…), é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo….” Beccaria, 1764, in dos delitos e das penas, Martins Fontes, 2ª ed, 1996.
“ Não é o rigor do castigo que pode fazer que o criminoso se detenha na encosta fatal da criminalidade mas sim a certeza de que não tem a mínima possibilidade de escapar à sanção, embora moderada”- in o Poder, os Juízes e Os Carrascos, L. Imbert e G. Levasseur, Estudios Cor, pág 368.
31- a REINSERÇÃO SOCIAL em 6-3-2023- Refª CITIUS 134796659 concluiu por um juízo de prognose positivo: AA, de 23 anos, provém de um enquadramento familiar de origem instável, propondo-se um acompanhamento terapêutico direcionado para a gestão emocional e consumos aditivos.. continua a beneficiar do apoio da família e da namorada atual..”
Face ao exposto, ao tempo decorrido, ao circunstancialismo e à idade e impõe-se revogar a pena aplicada e em sua substituição, aplicar uma pena de 10 anos.
Normas violadas:
-Artº 6º-1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: o processo não foi justo nem equitativo, pois ao MP tudo foi permitido e ao arguido foi rejeitada a Pericia; mostra-se violado o “fair trial”
-Artºs: 151º. 157- 4 e 351º do CPP: é essencial a realização da Perícia que o Tribunal e MP rejeitaram;
-Ocorre omissão de pronuncia sobre o requerido em 9-12-2022 – refª13120371;
-verifica-se o vicio do artº 410-2-a) do CPP: insuficiência da matéria de facto por ausência de perícia;
-verifica-se o vicio do artº 410º- 2 b) do CPP: factos 13 e 14 são contraditórios de per si; quem está toldado por whisky e cannabis não age livre e consciente
-Artº 131º- Cod Penal: o Tribunal a quo condenou em 14 anos que excede o meio.
O arguido entende que a pena deve ser de 10 anos face ao arrependimento manifestado em 9-12-2022 e em julgamento; a pena de 14 anos pena excede a medida da culpa e atenta contra os arts. 1º, 28º, 29º, 32º e 205º da Lei Fundamental.
Concedendo provimento ao recurso, determinando o reenvio para novo julgamento ao abrigo do art 426º- 1 do CPP ordenando-se a feitura da Perícia e a pena reduzida para 10 anos de prisão, Vossas Excelências farão a mais Lídima Justiça!
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta a este recurso, no sentido de lhe ser negado provimento.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer aderindo aos fundamentos de facto e de direito apresentados nas respostas aos recursos apresentadas pelo Mº. Pº., em primeira instância e concluiu pela improcedência de ambos os recursos.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, o arguido respondeu, reiterando os dois recursos por si interpostos.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, em 22 de Novembro de 2023, foi proferido acórdão neste Tribunal da Relação que negou provimento aos recursos interpostos pelo arguido e, em consequência, confirmar integralmente, quer a decisão de 8 de Março de 2023 que indeferiu a realização de perícia médico-legal de avaliação psiquiátrica do arguido, quer o acórdão recorrido.
Entretanto, como o Mº. Pº. também havia interposto recurso do acórdão condenatório, restrito às questões de direito referentes ao enquadramento jurídico do crime como homicídio qualificado, p. e p. pelo arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i) do Código Penal e à medida da pena aplicada pela primeira instância, o processo subiu ao Supremo Tribunal de Justiça.
Por decisão proferida pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Relatora foi determinado que este Tribunal profira novo acórdão, que em cumprimento dessa decisão e do disposto no art. 411º nº 8 do CPP, aprecie e decida o recurso que havia sido interposto pelo Mº. Pº. dirigido ao STJ do acórdão condenatório da primeira instância proferido em 22 de Março de 2023.
Cumpre, pois, dar cumprimento a tal decisão e ao preceituado em tal norma legal.
Assim:
No seu recurso, o Mº. Pº. formulou as seguintes conclusões:
I - Insurge-se o Ministério Público contra o Acórdão recorrido pelo errado enquadramento jurídico-penal que se entende ter sido feito em face dos factos que o Tribunal a quo deu como provados, os quais impunham, como adiante se justificará, a condenação do arguido, não pelo cometimento do crime de homicídio simples, como concluiu o Tribunal recorrido, mas sim pelo crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131° e 132°, n°s 1 e 2) alínea i), ambos do Código Penal, nos termos em que vinha acusado e que, entendemos, ter sido dado como provado.
II - Decidindo, como decidiu, entende o Ministério Público que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 131°, e 132°, n°s 1 e 2, alínea i), ambos do Código Penal.
III - O Tribunal deu como provada, com relevância, a seguinte factualidade praticada pelo arguido AA:
"5. Ao se aperceber de que junto ao referido bar caminhava HH, de imediato se dirigiu em passo de corrida na direcção daquele;
"6. Ao se aproximar de HH, sem que este tivesse dito ou feito o que quer que fosse, o arguido, sem lhe dirigir qualquer palavra, começou a empurrá-lo e a desferir-lhe murros, pelo que HH foi obrigado a defender-se acabando ambos por se envolver em agressões mútuas levando a que a dada altura caíssem ambos no chão;
7. Após se levantarem, o arguido continuou a fazer vários avanços e recuos na direcção de HH para o agredir, sendo que numa dessas investidas, de forma dissimulada e sem que aquele se apercebesse, o arguido empunhou a já mencionada faca e espetou-lha por debaixo do mamilo esquerdo atingindo o coração;
8. De imediato HH afastou-se com as mãos no peito, encostou-se à parede e começou a escorregar pela mesma ficando deitado no chão, onde veio a falecer;
12. O arguido agiu com o propósito conseguido de tirar a vida a HH, bem sabendo que ao utilizar a faca supra referida da forma que o fez iria surpreender HH não lhe dando qualquer hipótese de defesa, igualmente sabendo que perfurar-lhe o peito na zona referida era meio adequado a causar-lhe a morte;
15. O arguido foi julgado e condenado:
- por factos de 01.12.2015 e sentença de 17.01.2018, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n°1, alínea a), do Cód. Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com sujeição a deveres, no processo 252/17.7GDTVD, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras - Juiz 2;
- por factos de 03.01.2019 e sentença de 19.09.2019, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n°1, alínea a), e n°2, do Cód. Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com sujeição a regime de prova, no processo 5/19.8GDTVD, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras - Juiz 2;
- à data dos factos, mantinha acompanhamento no âmbito de uma suspensão de execução de pena com regime de prova no processo n° 5/19.8GDTVD, do Juiz 2, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras, no qual foi condenado numa pena de dois anos e oito meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo pela prática de um crime de violência doméstica, no âmbito do qual e segundo relatório intercalar "evidenciou algum esforço em prosseguir a sua vida com normalidade (...) não tendo voltado a importunar a queixosa (...) mostrando ser uma pessoa com uma estrutura de pensamento pouco flexível (...) muito centrado no seu ponto de vista, evidenciando dificuldades do foro psico-emocional(...)não tendo aceite submeter-se a acompanhamento psicológico, não reconhecendo essa necessidade"
IV - Atenta a factualidade dada como provada, entendeu o Tribunal a quo que a conduta do arguido, ao agir como o fez, "não se pode concluir pela integração das imputadas circunstâncias qualificadoras do ilícito, impondo-se sancionar o arguido pela prática do crime de homicídio simples, p.p. pelo art° 131° do Código Penal, do mais se absolvendo
V - O Ministério Público entende que efectivamente em sede de julgamento não se fez prova de se ter verificado a qualificativa prevista na alinea e) do n° 2 do art° 132° do Código Penal, mas entende que se fez prova inequívoca da verificação do "meio insidioso" que qualifica o crime de homicídio, nos termos previsto e punidos pelo art° 132°, n° 1 e n° 2, alínea i) do Código Penal, pugnando que a conduta especialmente censurável do arguido, e nos termos como esta foi dada como provada, deveria ter sido punida como crime de homicídio qualificado, nos termos conjugados do art° 131°, 132°, n° 1, e n° 2, alínea i) , todos do Código Penal.
VI - Estabelece o art° 131° do Código Penal que "quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos."
O direito à vida é o bem protegido com a presente punição, e é, indubitavelmente o maior e mais estimável bem de que o ser humano dispõe.
VII - São elementos tipo deste crime: alguém causar a morte, a outrem, importando para tanto verificar-se o nexo causal entre a conduta praticada pelo autor, e o nexo causal entre aquela e o resultado morte da vitima, sendo que tal conduta pode ser integrada em qualquer das formas de dolo previstas no art° 14° do Código Penal.
VIII - Neste contexto, dúvidas não há, atenta a factualidade dada como provada que, o arguido AA, na sequência de agressões físicas absolutamente infundadas que iniciou contra o corpo da vitima HH, a determinada altura, nesse mesmo contexto e sempre na sequência da sua mesma actuação, e sem que nada o anunciasse ou fizesse prever, muniu-se de uma faca (navalha de abertura manual) que trazia consigo, dissimulada, e espetou-a de imediato contra o peito da vitima, com o propósito nítido de lhe por termo á vida, ciente de que a forma como agia e o instrumento que usava eram idóneos para causar a morte deste último, sem que a vitima tivesse qualquer possibilidade de se defender, resultado que quis e veio a alcançar.
Estão assim, preenchidos, desde logo, e de forma inequívoca, os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio simples, nos termos em que o descreve e prevê o art° 131° do Código Penal.
IX- Em complemento do art° 131°, e como agravante desse, dispõe o art° 132°, n° 1 do Código Penal que, se o resultado morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido de forma agravada, cuja pena de prisão é de 12 a 25 anos.
Diz-nos ainda o n° 2, do art° 132° do Código Penal quais as situações que podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade, nelas se incluindo, entre outras, e para o que o recurso interessa: alínea "i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso"
X - Pese embora na acusação viesse imputada ao arguido AA a prática do crime de homicídio qualificado, nos termos do art° 131°, 132° n° 1 e n° 2 alínea i) do Código Penal, no sentido em que, conforme descreve no art. 12° da acusação: "o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a HH, bem sabendo que ao utilizar a faca supra referida da forma como o fez iria surpreender HH não lhe dando qualquer hipótese de defesa, igualmente sabendo que perfura-lhe o peito na zona referida era meio adequado a causar-lhe a morte", realizado o julgamento, o Tribunal a quo considerou que a conduta do arguido AA apenas integrou a prática do crime de homicídio na sua forma simples, isto é, nos termos apenas em que o prevê, exclusivamente, o art° 131° do Código Penal, absolvendo-o, consequentemente, da prática do crime de homicídio qualificado imputado.
XI - Para fundamentar a posição assumida pelo Tribunal a quo, descreve no que: "Provou-se que, no dia 26.02.2022, durante os festejos do Carnaval de Torres Vedras, antecedido por um jantar de aniversário, após a ingestão de bebidas alcoólicas (desde logo, cerca de vinte shots de whisky), já de manhã, o arguido, encontrando-se à porta de um dos bares, ao se aperceber de HH, de imediato se dirigiu em passo de corrida na direcção daquele e, sem que este tivesse dito ou feito o que quer que fosse, o arguido, sem lhe dirigir qualquer palavra, começou a empurrá-lo e a desferir-lhe murros, pelo que HH foi obrigado a defender-se, acabando ambos por se envolver em agressões mútuas, levando a que a dada altura caíssem ambos no chão." (negrito nosso)
"Após se levantarem, o arguido continuou a fazer vários avanços e recuos na direcção de HH para o agredir, sendo que numa dessas investidas, de forma dissimulada e sem que aquele se apercebesse, o arguido empunhou uma faca, que trazia consigo, e espetou-lha por debaixo do mamilo esquerdo atingindo o coração." (negrito nosso) "Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, HH sentiu dores e sofreu uma ferida na parte inferior do mamilo esquerdo com cerca de 2,6cm de comprimento por 1,4cm de largura a qual foi causa directa da sua morte;"
"Mais, se apurou que o arguido agiu com o propósito conseguido de tirar a vida a HH, bem sabendo que ao utilizar a faca supra referida, da forma que o fez iria surpreender HH não lhe dando qualquer hipótese de defesa, igualmente sabendo que perfurar-lhe o peito na zona referida era meio adequado a causar-lhe a morte, actuando livre, voluntária e conscientemente". (negrito nosso)
XII- Perante esta conclusão e a factualidade supra dada como provada, entendeu o Tribunal a quo afastar a aplicabilidade da qualificativa do art° 132°, n°1 e 2, alínea i) do Código Penal, fundamentando-se para o efeito, da seguinte forma:
"No caso, o arguido faz uso de uma faca, durante um confronto físico que iniciou com a vítima, com troca de socos, não se evidenciando o factor surpresa e a insídia, nos moldes vindos de enunciar, ainda que a vítima haja sido surpreendida pela utilização do objecto cortante (desde logo, porquanto o arguido não o abordou empunhando logo a faca)." negrito nosso) "Ademais, uma faca, como a que foi usada pelo arguido, é um objecto de uso corrente, mas que, como arma branca, que também é, pode ser utilizado, frequentemente, como arma letal de agressão, sem que possa integrar-se no conceito jurídico-penal de «meio insidioso», como visto. " (negrito nosso)
"Assim sendo e sem prejuízo de ponderação da descrita e apurada factualidade na determinação da medida da pena, não se pode concluir pela integração das imputadas circunstâncias qualificadoras do ilícito, impondo-se sancionar o arguido pela prática do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131°, do Cód. Penal, do mais se absolvendo" (negrito nosso)
XIII - Salvo o muito respeito e consideração que se tem pelo Colectivo que integra o Tribunal a quo, não podemos concordar nem nos conformar com a forma como o afastamento da aplicabilidade da qualificativa prevista e punida na alinea i) do n° 2 do art° 132° do Código Penal, foi feita, por entendermos que o meio e modo usado pelo arguido integra, inquestionavelmente, o conceito deste preceito legal, e integra-o, pela forma absolutamente censurável e reprovável como o arguido agiu.
XIV - Relativamente ao conceito "meio insidioso", entendemos que o seu significado compreenderá não só o meio usado, particularmente perigoso, como o é, indubitavelmente a faca (navalha) usada pelo arguido, mas igualmente as especiais e perversas condições em que o arguido, de forma inesperada e traiçoeira a usou, colhendo a vitima absolutamente de surpresa, sem que tenha tido qualquer capacidade ou oportunidade de se defender ou de se aperceber da conduta daquele.
Foi o que sucedeu nos presentes autos, e que aliás decorre de toda a factualidade dada como provada e, em parte, até da fundamentação dada pelo próprio Tribunal para justificar a aplicabilidade da norma do art° 131° do Código Penal aos factos.
XV - A conduta do arguido, ao agir como o fez, revelou-se, em nosso entender, especialmente censurável e especialmente reprovável (art° 132°, n° 1 do Código Penal), uma vez que o mesmo investiu contra o ofendido sem que nada o justificasse, de forma absolutamente inesperada, começando a agredir HH, o que apanhou este último de surpresa. Foi neste contexto e sequência de actos que, também de forma manifestamente inesperada, traiçoeira, e colhendo HH absolutamente vulnerável, desprevenido, e sem qualquer capacidade de se defender, o arguido fez uso da faca que trazia, consigo, dissimulada, espetando-a de forma repentina contra o peito daquele, com intuito manifestamente injustificável de lhe por termo à vida, como de imediato veio a acontecer.
XVI - Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm entendido constituir "meio insidioso", todo aquele cuja forma de actuação sobre a vitima assume características semelhantes ao veneno, no sentido de possuir um caracter sub-reptício, dissimulado, oculto, traiçoeiro, que, por apanhar a vitima absolutamente desprevenida, torna especialmente impossível que aquela tenha possibilidade de se defender. E é precisamente porque os meios usados pelo agressor, deles a vitima não se apercebe, encontrando-se numa situação de especial vulnerabilidade, absolutamente indefesa, que é potenciada, facilitada a conduta ao arguido, que nesse contexto mais facilmente logrou agredir violentamente o ofendido, pois que o factor surpresa nem tão pouco permitiu qualquer possibilidade a este último de reacção.
XVII - O Supremo Tribunal de Justiça, em diversos arestos concluiu que: é meio insidioso "a utilização de meio dissimulado, oculto, em relação ao qual se torna mais precária, ou ténue, uma reacção de defesa por parte da vitima" - vd. Acórdão do STJ de 02-12-2015, Proc. 1730/14.5JAPRT.S1, Acórdão de 02-05-2013, Proc. 1947/11.4JAPRT.L2.S1, e Acórdão de 25-10-2017, Proc. 3080/16.3JAPRT.S1. e Acórdão datado de 26-06-2019, Proc. 763/17.4JALRA.C1.1 e Acórdão datado de 15-04-2021, Proc. 82/19.1PBSTR.E.1.S.
XVIII - Ainda no mesmo sentido, concluiu o Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 26-06-2019, no Proc. 763/17.4JALRA.C1.1 ao referir que "A circunstância qualificativa prevista na alínea i) do n° 2 do art° 132° do Código Penal, segundo a qual é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstancia de o agente utilizar "meio insidioso", entendendo como o meio cuja forma de actuação sobre a vitima torne difícil a sua defesa por assumir características análogas às do veneno, na perspectiva de possuir um caracter enganador, sub- reptício, dissimulado ou oculto. O meio insidioso compreende não somente o meio particularmente perigoso usado pelo agente mas também as condições escolhidas pelo mesmo para utiliza-lo de jeito a que, colocando a vitima em situação incapaz de resistir em face da surpresa, da dissimulação, do engano, da traição, lhe permita retirar vantagem dessa situação de vulnerabilidade"
XIX - O "meio insidioso" não pode subsumir-se, tão só, como o fez o Tribunal a quo, a uma interpretação restritiva que se quede, somente no meio utilizado, à forma como é executado o facto, atendendo tão só à natureza do instrumento usado, no caso dos autos, uma faca, mas antes se impõe fazer uma análise mais abrangente, em que importará apreciar a imagem, a dinâmica global do facto, apreciar a actuação na sua globalidade, analisando a conduta do agressor no seu todo, analisar das suas especiais nuances e, globalmente as circunstâncias fácticas que são submetidas a apreciação. - Importa pois ter presente não só o meio empregue, utilizado, mas igualmente as circunstâncias que acompanham a sua utilização, ou seja, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto objectivo de circunstâncias em que o meio (faca/navalha) foi utilizada como instrumento de agressão, não podendo de deixar de relevar, entre outros, a distância que o agressor tinha da vitima, possibilidade de o agressor em persistir na conduta, caso o ofendido se tentasse defender, a zona do corpo atingida, o momento e local escolhido para a agressão, se havia ou não algo que previsse abordagem do agressor à vitima, se actuou com ou sem emboscada, com ou sem traição, com ou ser perfídia, supressa, dissimulação, distração da vitima, de forma sub- reptícia ou não, de forma imprevista, se com ataque súbito, inesperado, com ou sem possibilidade de a vitima se defender e oferecer resistência, isto é, todo um conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes do evento, determinantes ao evento letal, os quais conjugados, e analisados num todo, permitem concluir que, mais do que o objecto usado, o meio usado, naquele caso, foi particularmente perigoso ou insidioso.
XX - Concluir como o fez o Tribunal a quo que a circunstância de o arguido AA ter abordado HH, começando, sem mais, a tentar agredi-lo com socos, e a determinada altura ter-se recorrido de uma faca que trazia consigo, espetando a mesma contra o peito da vitima, causando-lhe morte imediata, não evidencia o factor surpresa e a insidia, ainda que a vitima haja sido surpreendida pela utilização do objecto cortante, parece-nos uma contrariedade evidente, e que impunha decisão diversa daquela que foi plasmada no Acórdão de que se recorre.
XXI- Ao contrário da convicção firmada pelo Tribunal a quo, entendemos pois que, quando o arguido surpreende HH, e sem que nada o justificasse se "lança" sobre este tentando atingi-lo com socos, e que só termina a sua conduta após o esfaquear com uma faca que tinha consigo, dissimulada, usando a mesma de forma absolutamente imprevisível, absolutamente traiçoeira, sem que a vitima tivesse qualquer possibilidade de se aperceber que o seu agressor estava munido de uma faca, e sem que por essa razão a vitima tivesse qualquer possibilidade ou oportunidade de se defender ou de reagir, temos que entender toda a conduta do arguido como integrante no conceito de "meio insidioso", conforme o prevê o art° 132°, n° 1 e n° 2, alínea i) do Código Penal
XXII - Mais, se tivermos por assente os diversos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, e que contestam a versão que o arguido apresenta, no sentido de minimizar a sua responsabilidade na forma como foram executados os factos, todos eles referem que, também eles, não se aperceberam em que momento o arguido AA fez o recurso à faca (navalha que trazia consigo), o que redobra e reforça a ideia sobre a forma sub-reptícia, perfídia e traiçoeira como aquele fez o recurso àquele objecto letal, e da forma evidentemente inesperada e imprevisível como o arguido actuou, espetando a faca contra o peito da vitima, que foi surpreendido com tal conduta, e sem qualquer possibilidade de reacção defensiva ou de fuga - Neste sentido saliente-se o descrito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 04-05-2011, no Proc. 1702/09.1JAPRT.P1.S1, que ao referir-se à definição de traição, decorrente da doutrina que ali se socorreu para descrever a integração de tal conceito no "meio insidioso", diz: "que nesta nem a vitima chega a lembrar- se da defesa, não dá pelo ataque senão no momento da sua realização, a surpresa exige uma tal rapidez no ataque que a vitima nem sequer tem tempo para se defender".
XXIII - Não há como não concluir especialmente censurável, perverso, traiçoeiro, pérfido, desleal, impiedoso e cruel o modo de actuação do arguido AA, o elevado e condenável desvalor como actuou, a desmedida desconsideração que o mesmo manifestou perante a vida de HH, a forma dissimulada e sub-reptícia como agiu, o meio como usou a faca, pondo termo à vida da vitima, de forma absolutamente infundada, sem que esta, nem as demais pessoas presentes no local, tivessem tido possibilidade de se aperceber da agressão feita, do uso por parte daquele de uma faca, e sem deixar qualquer margem de defesa a HH.
XXIV - HH assim morreu, inesperadamente, somente porque AA assim o quis.
XXV - A circunstância de o arguido se encontrar embriagado e ter consumido haxixe não pode ter qualquer relevância, nem servir para justificar ou atenuar a extrema gravidade da sua conduta e a culpabilidade com que actuou, pois que o arguido agiu sempre de forma consciente e deliberada, com capacidade de decidir e discernir, com capacidade de se munir da faca que transportava consigo, abrir a lamina, e espetar a mesma contra o peito da vitima, e nesse contexto, por termo à vida de HH, como pretendeu fazer.
XXVI - Assim e em suma, dúvidas não há que, atenta a matéria de facto dada como provada e a própria fundamentação do Tribunal a quo para alicerçar a referida factualidade, impõe-se que o arguido AA seja condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, nos termos conjugados do art° 131°, 132°, n° 1 e n° 2, alínea i), todos do Código Penal, e nesse contexto, que atentas as agravantes que militam contra este, nomeadamente a circunstância de o mesmo ter já averbado no seu CRC duas condenações pela prática de crimes contra as pessoas, e violentos atenta a vulnerabilidade das vitimas - crimes de violência doméstica, a circunstância de ter praticado o presente crime durante o período da suspensão da execução da pena de prisão de um dos crimes, com evidenciada predisposição para a prática de crimes violentos, com fraca adesão, inclusive, ao plano de reinserção para si gizado pela DGRSP, recusando o acompanhamento psicológico, que entendeu não necessitar, bem como a especial frieza que manifestou ao por termo à vida da vitima, igualmente que seja a pena de prisão aplicada alterada, agravada em consequência da qualificação do crime pelo qual pugnamos a sua condenação, vindo, a final, a ser-lhe aplicada pena de prisão próxima dos limites máximos que a lei prevê, e nunca longe dos 20 anos de prisão.
Nestes termos, deverá o presente recurso proceder, e consequentemente, ser alterada a norma aplicada à conduta do arguido, vindo aquele a ser, a final, condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos previstos e punidos pelos art°s 131°, 132°, n° 1 e n° 2, alínea i), todos do Código Penal.
Mais deverá a pena em que o arguido venha a ser condenado ser agravada, fixando-se aquela junto dos vinte anos de prisão.
Admitido o recurso, o arguido AA apresentou resposta, concluindo pela improcedência total do recurso do Ministério Publico pois não existem motivos qualificativos na matéria de facto provada e invocando que os elevados consumos de álcool e estupefaciente no contexto do carnaval torreense implicam pena na ordem dos dez anos de prisão, sob pena de ausência de proporcionalidade na dosimetria penal e despersonalização do arguido.
Remetido este recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, aí foi emitido Parecer pelo Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto, que concluiu pela procedência do recurso do Mº. Pº., face à matéria de facto provada nos pontos 5, 6, 7, e 12, da qual concluiu que «o arguido, ora recorrido, preencheu, pelo seu comportamento, o tipo-de-ilícito de “homicídio qualificado”, p. e p. nas disposições dos arts. 131° e 132°/2-i) do Código Penal» e preconizando a aplicação ao mesmo de uma pena de vinte anos de prisão.
Em sede de exame preliminar, pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Relatora, foi determinado que este recurso fosse julgado também por este Tribunal da Relação, nos termos do disposto no n.º 8 do art. 414.º do CPP segundo o qual “havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”, tendo, sido, nessa decisão dito o seguinte:
«Assim, o presente recurso interposto pelo Ministério Público do acórdão de 1.ª instância deve ser julgado e conhecido pelo mesmo tribunal a quem foi distribuído o recurso interposto pelo arguido desse mesmo acórdão, por ser o Tribunal competente para dele (e de ambos) conhecer, nos termos do art. 414.º, n.º 8, do CPP.
«De tudo se conclui que a Relação é o tribunal competente para conhecer do recurso interposto pelo Ministério Público, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, em conformidade.
«Notifique, e informe a 1.ª instância.»
Colhidos os vistos e realizada a conferência nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
Nos recursos interpostos pelo arguido AA:
Se foi cometida alguma nulidade ou irregularidade, ao indeferir-se a perícia psiquiátrica pedida pelo arguido para avaliar a sua imputabilidade, no momento da prática dos factos e/ou se foram violados o art. 61º nº 1 alínea g), o art. 262º do Código de Processo Penal e o art. 32º da Constituição da República Portuguesa e ainda, se foi violado o princípio do processo justo e equitativo, consagrado no art. 6º nº 1 do CEDH e qual a consequência jurídica dessa violação.
Se o acórdão é nulo por omissão de pronúncia, em virtude de nada ter sido decidido sobre o requerido em 9 de Dezembro de 2022;
Se se verifica o vício da insuficiência da matéria de facto por ausência da perícia psiquiátrica ao arguido, nos termos do art. 410 º nº 2 al. a) do CPP;
Se se verifica o vício da contradição entre a matéria de facto, nos que se refere aos factos provados 1 3 e 14, nos termos do art. 410º nº 2 al. b) do CPP;
Se foi violado o princípio da proporcionalidade na fixação da pena de prisão en se esta excede o grau de culpa do arguido;
Se deve antes ser-lhe aplicada a pena de dez anos de prisão.
No recurso interposto pelo Mº. Pº.:
Se os factos provados impõem a qualificação do comportamento do arguido AA como um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i) do Código Penal.
Se lhe deve ser aplicada uma pena junto dos vinte anos de prisão.
2. 2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na contestação que apresentou em 17 de Outubro de 2022 (referência Citius 12895723), o arguido AA requereu que lhe fosse realizada uma perícia médico legal psiquiátrica para avaliar se:
a) o arguido era consumidor de haxixe e álcool à data dos factos indiciados?
b) o arguido vivia dependente desse consumo ?
c) sob o consumo de haxixe e álcool o arguido, em 25 e 26 fevereiro de 2022 padecia de inimputabilidade? ou de imputabilidade diminuída ? - explicite em concreto.
A decisão recorrida, proferida em 8 de Março de 2023, tem o seguinte teor:
Após deliberação do Coletivo, pela Mm. ª Juiz presidente foi proferido o seguinte:
DESPACHO
“O arguido requereu em sede de contestação a realização de exame pericial pretendendo resposta aos seguintes quesitos:
- O arguido era consumidor de haxixe e álcool à data dos factos indiciados
- O arguido vivia dependente desse consumo.
- Sob o consumo de haxixe e álcool o arguido em 25 e 26 de Fevereiro de 2022 padecia de inimputabilidade? ou de imputabilidade diminuída?
Estabelece o art.º 151º do C.P.Penal que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, o que, na contraposição do objeto definido pela perícia requerida, se afere absolutamente desenquadrado. Não serão peritos ou especiais conhecimentos técnicos ou científicos ou artísticos que poderão responder quanto a factos que, alegadamente, ocorreram no passado dia 25 ou 26 de Fevereiro de 2022, designadamente se o arguido ingeriu ou deixou de ingerir bebidas alcoólicas ou se consumiu ou deixou de consumir haxixe, estando esse conhecimento ou havendo esse conhecimento antes de ser extraído de depoimentos de quem pudesse ter assistido a tais factos e não de quem dotado de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
Ademais, na altura, não foi feita qualquer colheita que pudesse ser examinada de modo que a outras questões pudessem ser apuradas, designadamente relativamente a efeitos eventuais decorrentes de alegados consumos.
Posto o que, por inutilidade e impertinência, face ao exposto, se indefere a requerida perícia. (acta da sessão da audiência de discussão e julgamento de 8 de Março de 2023, com a referência Citius 156081857);
Em 9 de Dezembro de 2022, o arguido fez juntar ao processo uma carta com o seguinte teor (transcrição):
Senhora Doutora Juíza
Sou o AA, preso pela morte do HH.
Estou muito arrependido do que fiz.
Perdi-me na noite com o álcool e o consumo de drogas.
Mais valia eu ter partido as pernas e não ter saído de casa.
Peço desculpa ao HH, à família e ao Tribunal pelo que aconteceu.
AA (referência Citius 13120371);
Por seu turno, o acórdão recorrido (Referência Citius 156283990) contém a seguinte decisão da matéria de facto e exposição dos motivos da convicção (transcrição parcial):
A) Factos provados:
Discutida a causa, com interesse para a boa decisão e com referência ao objecto dos autos, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 25 de Fevereiro de 2022, ao final do dia, o arguido deslocou-se ao restaurante o “Furo”, sito na Rua Bombeiros Voluntários, n.º 10 A, Torres Vedras, para participar num jantar de celebração do aniversário do seu amigo II, onde se encontravam cerca de 15 pessoas;
2. No decurso do jantar, o arguido puxou de uma faca com uma lâmina preta com 9 cm de comprimento e com o cabo preto e rosa com 11 cm de comprimento, que trazia consigo e espetou-a na mesa, após o que a guardou novamente;
3. Após o términus do jantar, cerca das 23h00, o arguido, munido da mencionada faca, dirigiu-se para o centro de Torres Vedras para celebrar o carnaval nos bares aí existentes;
4. Cerca das 8h00 do dia 26, o arguido, após ter tentado encetar desacatos com alguns transeuntes que se encontravam na rua, deslocou-se para o ..., sito na ..., de onde acabou por vir a ser levado para o exterior, dirigindo-se de seguida para a ..., vindo ao seu encontro II e JJ;
5. Ao se aperceber de que junto ao referido bar caminhava HH, de imediato se dirigiu em passo de corrida na direcção daquele;
6. Ao se aproximar de HH, sem que este tivesse dito ou feito o que quer que fosse, o arguido, sem lhe dirigir qualquer palavra, começou a empurrá-lo e a desferir-lhe murros, pelo que HH foi obrigado a defender-se acabando ambos por se envolver em agressões mútuas levando a que a dada altura caíssem ambos no chão;
7. Após se levantarem, o arguido continuou a fazer vários avanços e recuos na direcção de HH para o agredir, sendo que numa dessas investidas, de forma dissimulada e sem que aquele se apercebesse, o arguido empunhou a já mencionada faca e espetou-lha por debaixo do mamilo esquerdo atingindo o coração;
8. De imediato HH afastou-se com as mãos no peito, encostou-se à parede e começou a escorregar pela mesma ficando deitado no chão, onde veio a falecer;
9. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, HH sentiu dores e sofreu uma ferida na parte inferior do mamilo esquerdo com cerca de 2,6cm de comprimento por 1,4cm de largura a qual foi causa directa da sua morte;
10. Acto seguido, o arguido ausentou-se do local, ali deixando a faca;
11. HH e DD nem sequer se conheciam ou falaram nessa ocasião, tendo aquele se juntado ao grupo de pessoas de que esta fazia parte;
12. O arguido agiu com o propósito conseguido de tirar a vida a HH, bem sabendo que ao utilizar a faca supra referida da forma que o fez iria surpreender HH não lhe dando qualquer hipótese de defesa, igualmente sabendo que perfurar-lhe o peito na zona referida era meio adequado a causar-lhe a morte;
13. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei;
Da contestação
14. A dada altura da noite, o arguido consumiu uma porção de cannabis, vulgo ganza, e ingeriu cerca de vinte shots de whisky;
Dos antecedentes criminais
15. O arguido foi julgado e condenado:
- por factos de 01.12.2015 e sentença de 17.01.2018, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, alínea a), do Cód. Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com sujeição a deveres, no processo 252/17.7GDTVD, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras – Juiz 2;
- por factos de 03.01.2019 e sentença de 19.09.2019, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, alínea a), e nº2, do Cód. Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com sujeição a regime de prova, no processo 5/19.8GDTVD, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras – Juiz 2;
Das condições pessoais, sociais e económicas
16. Consta do relatório social referente ao arguido que:
- primeiro de uma fratria de dois, tendo um irmão consanguíneo mais velho, provém de um enquadramento familiar desfavorável marcado pela problemática de estupefacientes e de relacionamento entre as figuras parentais que viria a condicionar negativamente a sua estabilidade psicoemocional ulterior;
- os pais do arguido separaram-se quando ele tinha cerca de 14 anos, na sequência da reclusão do pai e do abandono do agregado constituído por parte da mãe, toxicodependente, tendo ficado aos cuidados dos avós paternos, que tal como o pai, constituíram-se figuras significativas na sua trajetória de vida, não estabelecendo o arguido qualquer interação com a progenitora após a adolescência, demonstrando sentimentos de revolta e de raiva em relação a esta figura parental;
- o arguido fez algumas tentativas de autonomização deste agregado, tendo numa delas coabitado com a, então, namorada, mas viria depois a regressar à habitação dos avós paternos. Nesses períodos de ausência manteve-se laboralmente ativo, obtendo rendimentos que permitiam assegurar a sua subsistência;
- a desestruturação familiar na infância contribuiu para a adoção de comportamentos ilícitos tendo sido sujeito a intervenção tutelar educativa de medida de execução na comunidade, que viria a decorrer com algumas dificuldades decorrentes da adesão do arguido ao cumprimento das ações constantes do projeto educativo, nomeadamente à frequência de consultas de psicologia;
- o percurso escolar do arguido caracterizou-se por instabilidade decorrente das dificuldades de adaptação escolar e baixo rendimento que condicionou várias retenções. Igualmente, manifestou dificuldades comportamentais e no relacionamento interpessoal que motivaram várias sanções disciplinares. Após concluir o sexto ano de escolaridade, aos 17 anos, o arguido ingressou no ensino noturno para se habilitar com o ensino secundário, concluindo o nono ano de escolaridade aos 20 anos, ao mesmo tempo que desenvolvia atividade profissional em área indiferenciada;
- antes da reclusão, o arguido vivia com os avós paternos e com a irmã mais nova, de 17 anos, na localidade de Paul, em Torres Vedras, num contexto relacional de afetividade, laços estendidos à figura paterna e ao agregado constituído deste, que reside em Torres Vedras;
- mantém um relacionamento afetivo com uma namorada há mais de um ano, descrito de forma positiva, sendo anteriormente ambos presença assídua na casa um do outro e na interação com os familiares. Nos tempos de lazer o arguido praticava exercício físico num ginásio e convivia com os familiares, com a namorada e com amigos, sendo referida a sua facilidade na interação social;
- o arguido mantinha-se laboralmente ativo, tendo contrato de manutenção e limpeza de máquinas no stand da BMW, em Torres Vedras, há cerca de um ano. Na sua trajetória anterior o arguido trabalhou como eletricista, no transporte de vigas de ferro, num centro de abate de veículos e na construção civil para entidades patronais diferentes. Tem também um cartão de segurança desde 29/09/2021, após ter-se habilitado com o referido curso;
- a economia do agregado que integrava anteriormente, permitia assegurar a subsistência dos diferentes elementos e dependia dos rendimentos auferidos pelo arguido e pela pensão de reforma dos avós paternos, contando também com o apoio financeiro do pai, que desenvolve funções como madeireiro;
- o arguido tende a oscilar entre um estilo relacional calmo e reativo dependendo do interlocutor, do contexto e do assunto abordado, denotando algumas dificuldades em autorregular os afetos e a impulsividade, assumindo o consumo regular anterior de substâncias aditivas (haxixe e álcool) desde a adolescência;
- à data dos factos, mantinha acompanhamento no âmbito de uma suspensão de execução de pena com regime de prova no processo nº 5/19.8GDTVD, do Juiz 2, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras, no qual foi condenado numa pena de dois anos e oito meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo pela prática de um crime de violência doméstica, no âmbito do qual e segundo relatório intercalar "evidenciou algum esforço em prosseguir a sua vida com normalidade (...) não tendo voltado a importunar a queixosa (...) mostrando ser uma pessoa com uma estrutura de pensamento pouco flexível (...) muito centrado no seu ponto de vista, evidenciando dificuldades do foro psico-emocional (...) não tendo aceite submeter-se a acompanhamento psicológico, não reconhecendo essa necessidade" (sic);
- o arguido encontra-se preso preventivamente desde 22.02.2022, actualmente no Estabelecimento Prisional de Caxias, a ordem destes autos, referindo repercussões negativas, sobretudo nos campos pessoal, sociofamiliar e profissional, decorrentes da situação jurídico-penal atual, nomeadamente pela privação da liberdade, pelo afastamento dos familiares e da namorada e pela interrupção da atividade profissional;
- reconhece de forma crítica a gravidade da ilicitude das circunstâncias que motivaram a atual situação de prisão preventiva e empatia face à vítima e à família deste;
- no contexto prisional, mantém-se inativo em termos formativo-laborais, apresentando um comportamento globalmente adequado, embora registe dois incidentes disciplinares, não tendo ainda sido proferida decisão final num deles, e continua a beneficiar de apoio do exterior, nomeadamente dos familiares, da namorada e de amigos, recebendo visitas regulares por parte destes, que se mostram incondicionalmente disponíveis para lhe prestar todo o apoio, descrevendo-o como um indivíduo "temperamental mas com o melhor coração do mundo, sempre disposto a ajudar os mais desprotegidos"(sic).
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Factos não provados
Da discussão da causa e com relevância para a decisão da mesma, não se provou que:
a) o arguido acabou expulso do ... em virtude de estar a causar distúrbios no interior;
b) HH era pessoa de quem o arguido não gostava, por razões que não se logrou apurar, e caminhava na companhia de DD, ex-namorada do arguido, que se lhe dirigiu sedento por arranjar desacatos e movido por uma crise de ciúmes;
c) o arguido, após o sucedido, colocou-se em fuga;
d) o arguido agiu ainda motivado por ciúmes infundados e pela sua sede de desacatos sem sequer pedir qualquer explicação a HH ou tentar perceber o que se passava e de forma manifestamente excessiva face as circunstâncias que motivaram a sua actuação.
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Motivação da decisão de facto:
A convicção do tribunal fundou-se nas declarações do arguido, bem como nos depoimentos prestados pelas testemunhas KK e LL, ambos inspectores da Polícia Judiciária, MM, agente da PSP, NN, CC, OO, PP, QQ (irmã da vítima), RR (ex-namorada do arguido), SS e FF, em conjugação com:
- o relatório fotográfico de fls. 13/25 e 27/29, integrante de auto de inspecção judiciária;
- os autos de apreensão de fls. 100 (pela Polícia Judiciária, na sequência da inspecção judiciária) e 166 (do telemóvel e da roupa trajada pela vítima, e da faca de abertura manual, encontrada no chão, junto à entrada do ...), com termo de entrega à Polícia Judiciária, a fls. 165;
- os relatórios de exames periciais de fls. 257/298 e 394/395v (pesquisa de vestígios biológicos, análise de ADN e estudo comparativo, segundo o qual foram detetados vestígios de sangue no cabo da faca/navalha apreendida, nas mãos do arguido e na roupa que lhe foi apreendida, sendo que, de acordo com a análise de ADN, no cabo da navalha, na t-shirt e nas calças que trajava se obtiveram perfis de mistura de mais de um indivíduo, dos quais não podem ser excluídos o arguido e HH; e da lâmina da navalha se obteve um perfil de mistura de mais de um indivíduo, da qual não pode ser excluído HH); e
- o relatório de autópsia de fls. 453/458v. (segundo o qual a morte de HH foi devida às lesões traumáticas torácicas descritas – ferida cortante, no quadrante infero-medial da região mamária esquerda, medindo vinte e seis milímetros de comprimento por catorze milímetros de afastamento de bordos -, que constituíram causa adequada de morte e que denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza perfuro-cortante ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a agressão por arma branca, como consta da informação, sendo o trajeto do instrumento da frente para trás, ligeiramente da esquerda para a direita e de baixo para cima, o ferimento compatível com instrumento com apenas um bordo cortante e o conjunto destes elementos plenamente concordante com a etiologia homicida referida na informação, ou seja agressão por arma branca na via pública, no dia 26/02/2022).
Precisando, o arguido disse corresponder à verdade ter-se deslocado ao restaurante o “Furo”, ao final do dia 25.02.2022, para participar do jantar de aniversário do amigo II, onde se encontravam cerca de 15 pessoas, e o mais levado aos pontos 1 a 4 dos factos provados (este último, quanto à deslocação para o ...), com excepção de ter puxado, no decurso do jantar, de uma faca com uma lâmina preta, com 9cm de comprimento, e com o cabo rosa, com 11cm de comprimento, que trazia consigo e que espetou na mesa.
Isto o arguido negou, dizendo, em audiência de julgamento (numa variante do que declarou perante juiz de instrução), que a faca estava junto à bandeja da entremeada, que perguntou se era de alguém e ninguém disse nada, após o que a guardou numa bolsa preta.
A este propósito, despuseram as testemunhas NN, CC e OO, que estiveram no jantar, sendo este último, o aniversariante. Além de confirmarem todos o levado aos pontos 1, 3 e 4, dos factos provados, nenhum referiu ter dado conta de o arguido ter perguntado de quem era a faca/navalha, sendo que a testemunha JJ disse ter chegado mais tarde ao jantar. Mais, a testemunha BB foi claro e peremptório ao afirmar lembrar-se de o arguido ter uma navalha na mão e de a espetar na mesa, quando ainda estavam sóbrios e tinha acabado de chegar, e que o arguido era um pouco excêntrico e exibicionista, na altura.
Não só a versão que o arguido carece de sentido e de corroboração, como inexistem razões para duvidar do declarado pela testemunha BB, daí o levado ao ponto 2 dos factos provados.
Quanto ao mais que se passou, após o jantar (em que disse ter fumado haxixe, com os amigos e ingerido bebidas alcoólicas) e o périplo pelos bares, com a ingestão de bebidas alcoólicas, que o arguido disse vir desde o dia anterior, o arguido disse não se recordar. Após o ..., o arguido declarou apenas recordar-se de estar no café da sua terra (café “Moderno”), para onde terá sido levado pela testemunha DD, sua ex-namorada, a beber um sumo e a comer um bolo, quando passou o TT (o dono do ..., e seu amigo) e lhe começa a dizer “não sei como é que estás assim”, “o que é que foste fazer?”, “estragaste a tua vida”, “não acreditas em mim?” “Vai ao Hospital; deste uma facada no HH; olha para ti”, altura em que olhou para si e estava cheio de sangue e pediu-lhe para o levar às urgências do Hospital, onde as enfermeiras lhe disseram que ia ficar tudo bem, os médicos correram com ele e a polícia veio e fez a detenção.
Que o arguido se deslocou às urgências do Hospital de Torres Vedras, assim o confirmaram, entre o mais, as testemunhas QQ e SS, irmã e amigo da vítima, respectivamente, e cujo depoimento se cingiu a este segmento, com esta última testemunha a reportar, ainda, ter sido ele a chamar a polícia e que o arguido estava muito agressivo e que parecia que não estava a acreditar no que tinha feito.
E, bem assim, que foi levado para o Paúl pela testemunha DD, sua ex-namorada, pois tanto esta o confirmou, no seu depoimento.
Já o mais, se torna mais incompreensível, desde logo a afirmação do arguido de ter olhado para si e se ter visto cheio de sangue. Basta atentar nas fotos de fls. 27 e 284/286, referentes à t-shirt branca que trazia vestida, em que se visualizam poucas e pequenas manchas hemáticas, para tal, no mínimo, estranhar.
O arguido, ainda, negou que tivesse problemas com a vítima, pessoa que conhecia e a quem falava normalmente, desde que começou a sair à noite, sendo as suas famílias muito amigas. Também, não fazia ideia se a DD e a vítima se davam, nem tal lhe interessava, sendo que ficou uma amizade do relacionamento, tóxico, que manteve com aquela, durante cerca de 4 anos, e à data dos factos, namorava com outra pessoa desde há 3/4 meses.
Apesar de não se recordar de ter tirado a vida ao HH, está muito arrependido: viu a família chorar, está preso há um ano, como é que não se arrepende?, disse.
Na declarada ausência de memória do arguido, foram as testemunhas NN, CC, OO a melhor esclarecer a dinâmica do sucedido e levado aos pontos 4 a 8 dos factos provados.
Estas testemunhas que, em grande medida, acompanharam o arguido pelo jantar de aniversário, primeiro, e pela noite de carnaval, depois, com algumas diferenças de pormenor, atestaram o consumo de bebidas alcoólicas noite dentro e fora, o concurso de shots de whisky, o comportamento do arguido (essencialmente as duas últimas), sendo que o primeiro, BB, já só saiu do ... depois de alguém dizer que havia confusão, altura em que viu o UU e a vítima envolvidos, bem como esta a recuar e o arguido sempre a ir para cima do VV, que trocaram socos, foram ao chão, estando os dois perdidos de bêbados e a não acertar muito um no outro, até que vê o HH (vítima) com a mão no peito e a dizer “o puto já me fodeu”, e a cair ao chão, com o arguido ainda a querer ir para cima dele, completamente cego.
Não tendo assistido ao início da contenda, nada soube avançar sobre as razões da mesma, sendo certo que não se recorda de ver lá a DD e não imagina o HH a andar com a loira, e que o arguido sempre foi um bocado mais conflituoso. Também, confirmou o assumido consumo de haxixe pelo arguido (tal como levado ao ponto 14 dos factos provados).
As testemunhas JJ e II, por seu turno, acompanhando mais o arguido, presenciaram o concurso de shots e o ser levado para o exterior do ..., e corroboraram a dinâmica dos factos descrita pela testemunha BB, ainda que somente o II tenha dito assistir ao início de tudo.
A testemunha JJ, num depoimento algo comprometido, numa primeira fase, de modo a que foi confrontado com as declarações prestadas em inquérito, acabou por confirmar estas, segundo as quais estava no interior do ..., quando começou a ouvir gritos e, saindo para o exterior, vê o arguido e o HH envolvidos em confronto físico, que eles estavam de tal forma embriagados que não conseguiam acertar um soco um no outro, acabando a desferir socos no ar, que foram ao chão, que o HH se conseguiu libertar e o arguido voltou a tentar atacar o VV, indo para cima dele, que não ouvia ninguém. Até que, a dado momento, se apercebe que a camisola do HH estava ensopada em sangue. Não tendo visto o que originou o ferimento, o conflito era só entre o arguido e o HH e o ferimento surgiu no decurso deste.
Ele e o … tentaram prestar assistência e estancar o sangue com uma t-shirt, pedindo que ligassem para o 112.
A testemunha II, confirmando tudo isto, pôde esclarecer mais que, estando o arguido sentado no exterior do ..., chega um grupo em que estavam o HH, a DD, o EE e a WW, tendo o arguido ido em direcção ao HH e feito o gesto de dar um soco, ao que o HH ripostou, sem que acertassem um no outro, com o arguido a ir para cima do Morgado. Que, a dada altura, estão os dois embrulhados, no chão, e que, quando chega junto aos dois, já está o HH a pedir ajuda, caído, encostado à parede, com a mão na zona da barriga, tendo visto logo a ferida e chamado a ambulância.
Ficou preocupado com a vítima e deixou de ver o arguido. Não viu qualquer faca, mas só o arguido é que tocou ou esteve perto do corpo do HH.
Também, não percebeu como e porque é que tudo começou, sendo que o arguido estava muito alcoolizado, tendo bebido a garrafa toda de whisky.
As restantes testemunhas que estiveram no local, na altura dos factos, foram PP, RR (ex-namorada do arguido) e FF e, também, não conseguiram avançar e/ou esclarecer o que esteve na origem do confronto.
Segundo estas testemunhas, já de manhã, andavam em busca do after, e dirigiram-se ao ..., para um último copo, tendo o HH acompanhado o grupo, embora não fizesse parte do mesmo, não sendo sequer conhecido das raparigas (daí o levado ao ponto 11, dos factos provados). Ainda viram o arguido ir direito ao HH – dizendo a testemunha DD que para lhe dar um murro, mas que falhou, como falhou o VV na resposta -, não se apercebendo de nada que tenha sido dito, e foram para o interior do bar, até que ouviram falar em confusão a sério/chamem a ambulância, e saíram para o exterior do bar.
Aí, a testemunha EE disse ter visto o JJ e o II a ajudar o HH, que estava no chão, encostado à parede, e ter deixado de ver as raparigas, sendo que estavam todos bêbados. A testemunha DD disse que viu o HH de costas, no chão, encostado à parede, não se tendo apercebido ou sabido que tinha sido esfaqueado e que pegou no UU, que estava a ser estrangulado e pontapeado por toda a gente, e o levou para casa, não tendo trocado palavra durante o trajecto. E a testemunha WW, que viu o HH, encolhido, deitado, com o II a tentar mantê-lo acordado. Ouviu dizer que “o AA deu uma facada”, vendo o arguido em pé, apático, sem reacção no olhar, tendo a DD levado o mesmo a casa.
De todos os depoimentos mencionados extrai-se, pois, o que foi levado aos pontos 4 a 8 dos factos provados, sendo certo que, ninguém afirmando ter visto desferir o golpe, ou até mesmo a faca/navalha, não restam dúvidas de que era o arguido quem estava a tentar atingir o corpo da vítima e envolvido com esta em confronto físico, e é no decurso deste que a vítima surge com o ferimento de faca, cai ao chão, onde fica com o II a tentar estancar o sangue. Só o arguido, que admitiu ter uma faca/navalha na sua posse (mesmo que dizendo tê-la encontrado, durante o jantar, junto à bandeja da entremeada, reconheceu tê-la guardado numa sua bolsa) é que teve a oportunidade e pôde desferir o golpe que esteve na origem da lesão causal à morte de II.
Aditando à descrita dinâmica as conclusões do relatório de autópsia de fls. 453/458 v., já consignadas, e dos relatórios de exames periciais de fls. 257/298 e 394/395 v – com deteção de vestígios de sangue no cabo da faca/navalha apreendida, nas mãos do arguido e na roupa que lhe foi apreendida, sendo que, de acordo com a análise de ADN, no cabo da navalha, na t-shirt e nas calças que trajava se obtiveram perfis de mistura de mais de um indivíduo, dos quais não podem ser excluídos o arguido e HH; e da lâmina da navalha se obteve um perfil de mistura de mais de um indivíduo, da qual não pode ser excluído HH -, mais não se pode concluir de que, numa das investidas sobre HH, o arguido empunhou a referida faca/navalha e a espetou por debaixo do mamilo esquerdo, provocando-lhe dores e as descritas lesões (ferida com cerca de 2,6cm de comprimento por 1,4cm de largura), que foram a causa directa da sua morte. – vd. ponto 9 dos factos provados.
De igual modo, permitiram as declarações do arguido e dos depoimentos mencionados, assentar em que o arguido, após o desferir da facada, se ausentou do local (conforme ponto 10, dos factos provados), onde ficou a faca/navalha, que, ali, veio a ser detectada e apreendida pelo agente da PSP, XX, conforme auto de apreensão de fls. 166.
O depoimento deste e das testemunhas KK e LL, inspectores da Polícia Judiciária, que se deslocaram ao local onde ocorreram os factos, deram a compreender o modo como foi tratado o local, a recolha de vestígios, feitas as apreensões, confirmando o teor dos autos elaborados e juntos aos autos, já referidos supra, importando destacar, do depoimento da testemunha YY, que a t-shirt que o arguido trazia vestida e lhe foi apreendida tinha vestígios de sangue de projecção e não de transferência (o que se coaduna com a dinâmica descrita pelas testemunhas presenciais e apurada).
O que já não se logrou apurar, na decorrência, foi que o arguido, após o sucedido, se colocou em fuga, que tenha sido expulso do ... em virtude de estar a causar distúrbios no interior, que HH era pessoa de quem o arguido não gostava, por razões que não se logrou apurar, e caminhava na companhia de DD, ex-namorada do arguido, que se lhe dirigiu sedento por arranjar desacatos e movido por uma crise de ciúmes e que o arguido agiu motivado por ciúmes infundados e pela sua sede de desacatos sem sequer pedir qualquer explicação a HH ou tentar perceber o que se passava e de forma manifestamente excessiva face as circunstâncias que motivaram a sua actuação [alíneas a) a d), dos factos não provados].
Na verdade, nada se apurou quanto a sentimentos que o arguido nutrisse ou deixasse de nutrir quanto a HH (ou até mesmo relativamente à sua ex-namorada, relativamente à qual referiu amizade residual, sendo certo que é ela quem acaba por o levar do local) ou o que haja estado subjacente à conduta do arguido (de nada se aperceberam as testemunhas no local e o arguido diz nada recordar).
No mais, ao lançar mão de uma faca/navalha, que tinha levado consigo, e ao desferir um golpe na zona do corpo em que o fez (junto ao mamilo esquerdo), o arguido não pode ter deixado de o fazer com o propósito de tirar a vida a HH, como conseguiu, tal como levado ao ponto 12, dos factos provados, nada se tendo aventado ou apurado com a virtualidade de toldar a liberdade de actuação do arguido (para tanto não servindo a alegada ingestão, voluntária, de bebidas alcoólicas, e o consumo de uma ganza de haxixe), que, de igual sorte, não pode desconhecer que o tirar a vida a outrem é punido por lei penal.
Ademais, os antecedentes criminais do arguido extraíram-se do respectivo certificado de registo criminal, a fls. 608v/610 (sempre do suporte físico) e o levado ao ponto 16 dos factos provados consta do relatório social elaborado pela DGRSP (a fls. 661v./664) e foi confirmado pelo arguido.
A finalizar, refira-se que, no seu exame crítico o tribunal conjugou e ponderou toda a informação avançada, fazendo o seu escrutínio numa perspectiva lógica e de harmonia com as regras da experiência comum (vd. art. 127º, do Cód. de Proc. Penal), deste modo se apurando os factos provados, nos moldes enunciados, e resultando os factos não provados assim em consequência do exposto e da ausência de prova produzida quanto aos mesmos.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DOS RECURSOS
Recurso Interlocutório:
O arguido pretende que a realização da perícia médico psiquiátrica à sua pessoa teria sido um importantíssimo meio de prova que teria permitido demonstrar a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, quando matou HH, no dia 26 de Fevereiro de 2022 e centra a fonte de seu invocado surto psicótico ou perda de consciência da realidade, nas circunstâncias de ter ingerido uma grande dose de álcool e de ter consumido drogas, em simultâneo, ou estar sob a influência dessas duas diferentes substâncias, aquando da prática do crime de homicídio por que foi condenado.
Nos termos do art. 61º nº 1 al. g) do CPP, contam-se entre os direitos que integram o estatuto jurídico processual do arguido, o de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias e não há nenhuma dúvida de que este direito é uma das várias manifestações das garantias de defesa e do direito a um processo justo e equitativo que se encontram consagrados no art. 6º da CEDH e também nos arts. 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Tal não significa, porém, que o arguido possa por seu livre arbítrio, de forma unilateral e absoluta, produzir todas as provas que entender, sem qualquer controlo jurisdicional, ou sem quaisquer limites seja de espécies de meios de prova e de meios de obtenção de prova, seja de pertinência ou relevância das concretas provas pretendidas obter ou realizar, seja de duração da actividade probatória e, por consequência, da própria marcha do processo.
O art. 340º nº 1 do CPP consagra um princípio da investigação ou da verdade material que configura como um poder-dever atribuído ao tribunal de, por sua iniciativa e com autonomia relativamente às iniciativas da acusação e da defesa, portanto, sem qualquer limitação resultante dos meios de prova constantes da acusação, da contestação ou da pronúncia, determinar a realização de todas as diligências probatórias que entender necessárias e pertinentes para o esclarecimento dos factos e para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
Este princípio sofre, contudo, várias restrições: a primeira de todas, decorre da necessidade de se compatibilizar com a estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente assumida e as restantes são impostas pelos princípios da necessidade – só são admissíveis os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade – da legalidade – só são admissíveis os meios de prova não proibidos por lei – e da adequação – não são admissíveis os meios de prova notoriamente irrelevantes, inadequados ou dilatórios.
Nos termos do art. 340 nºs 1 e 2 do CPP, o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, aqui se contendo a principal manifestação do princípio da investigação que, como é consensualmente reconhecido, mitiga a estrutura acusatória do processo penal português (cfr. art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa e Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 1955, p. 49; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 72, Marques Ferreira, Meios de Prova, in CEJ, Jornadas de Direito Processual Penal - O novo Código de Processo penal, Coimbra 1988, págs. 231-232, Costa Pimenta, Introdução ao Processo Penal, Coimbra, 1989, págs. 142-148, Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal, 2º vol., Lisboa, 1996, págs. 280-281, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol, I, 4ª ed. 2000, págs. 78-79 e 85-86, vol. II, 3ªed. rev., 2002, págs. 112-115, III, 2ªed., rev., 2000, págs. 251-252, Gil Moreira dos Santos, O Direito Processual Penal, Porto, 2003, págs. 260-262, e v.g. os Acs. do Tribunal Constitucional n.º e 584/96 e 137/2002, in www.tribunalconstitucional.pt).
A estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente consagrada no art. 32º nº 5 da CRP, envolve a proibição da realização de julgamento pela prática de crime sem precedência de acusação por esse crime, a exigência de que a acusação seja deduzida por órgão distinto do julgador e a atribuição à acusação das funções de condição e limite do julgamento, concretamente, a fixação do objecto do processo e a definição vinculativa do âmbito dos poderes de cognição do tribunal (Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, p. 522 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora Lda., 1984 – reimpressão, pp. 136, 137 e 144).
Em complemento, o princípio constitucional da plenitude das garantias de defesa, a que se refere o art. 32º nº 1 da Constituição, postula a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos cuja autoria lhe é atribuída, para que os possa rebater, apresentado provas, prestando declarações, em suma, organizando a sua defesa.
Mas, a realização da justiça penal vive do princípio da livre apreciação da prova e do seu critério essencial e orientador, que é o da descoberta da verdade material, admitindo como passíveis de alicerçar a convicção do Tribunal, na fixação dos factos, todas as provas que não forem legalmente proibidas, sem qualquer valor pré-estabelecido ou hierarquia entre elas, por regra, mas cuja avaliação tem de ser objectivável em critérios de lógica e razoabilidade humana, regras de experiência comum e conhecimentos técnicos e científicos que possam ser sindicados, e eventualmente corrigidos, em via de recurso – arts. 125º a 127º do CPP e 32º nº 8 da CRP.
Nos termos do art. 327º nº 2 do CPP, todos os meios de prova apresentados na audiência de discussão e julgamento, ainda que a sua produção tenha partido da iniciativa oficiosa do Tribunal estão sujeitos ao princípio do contraditório.
Trata-se de uma princípio que «constitui uma das garantias de defesa, tem consagração constitucional (art. 32º, n.º5 da CRP) e processual penal e consiste no direito que, quer a acusação, quer a defesa, têm de se pronunciar sobre os actos processuais da iniciativa de cada um deles, por forma que a audiência e os actos instrutórios revistam a forma de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, parificando o mais possível o respectivo posicionamento jurídico ao longo do processo, o qual deve ter uma estrutura basicamente acusatória mitigada pelo princípio da investigação» (Vinício Ribeiro, o princípio do contraditório, Código de Processo Penal –Notas e Comentários, Coimbra. 2008, pág. 678).
As normas contidas no art. 340º do CPP são, por excelência, um dos exemplos de como o processo penal vive em constante tensão e necessidade de equilíbrio entre a os valores da realização da justiça penal, como instrumento de pacificação social e o de garantir a todos o acesso a um processo justo e equitativo (art. 20º nº 4 da CRP) que, quando transposta para o direito penal e processual penal, postula a exigência de assegurar aos suspeitos da prática de crimes reais garantias de defesa, concretamente, todas as que se mostrem compatíveis com os princípios da presunção de inocência e do contraditório (cfr. artigos 32º nºs 1 e 2 da CRP).
Ora, em concretização do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º nº 2 da Constituição, a harmonização entre direitos liberdades e garantias dos cidadãos perseguidos criminalmente e a reconstituição histórica de factos legalmente qualificados como crimes e a punição dos respectivos autores em que se insere o dever punitivo do Estado, envolve as restrições necessárias de uns para salvaguardar outros, solução que deve determinar tanto as soluções legislativas como a sua interpretação (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda – Rui Medeiros, Tomo I, em anotação ao citado preceito).
É por isso que, na actividade probatória, o art. 340º do CPP regula a propósito da audiência de discussão e julgamento, tal como a sua inserção sistemática no código sugere, mas, dada a sua razão de ser, é aplicável a todas as fases do processo penal (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do CPP”, Univ. C.P., 3ª Ed., pág. 806).
É também por isso que esse ponto de equilíbrio radica na necessidade das provas ou dos meios de obtenção de prova para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
E é, ainda, por isso que, em contrapartida, nos termos do mesmo artigo 340º do Código de Processo Penal devem ser indeferidos, entre o mais, os requerimentos de prova, relativamente a diligências probatórias que não se afigurem necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa (nº 1) provas ou meios de prova legalmente inadmissíveis (nº 3) e as provas ou meios de prova que notoriamente são irrelevantes ou supérfluos, inadequados, de obtenção impossível ou muito duvidosa ou que tenham finalidade meramente dilatória (nº 4 als. a) a d)).
De resto, a alteração operada pela Lei 20/2013, de 21/2, ao art. 340º do CPP, introduzindo a nova al. a) do n.º 4, no sentido de que as provas que já podiam ter sido indicadas na acusação e na contestação, só deverão ser admitidas se se mostrarem indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa, ilustra como o legislador pretendeu densificar o princípio da necessidade já consagrado no nº 1 do mesmo preceito legal.
«A prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando é inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demonstrar ou, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com finalidade meramente dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência» (Oliveira Mendes, Comentário ao Código de Processo Penal, 2016, 2ª edição, p. 1049.).
Ora, se é em função de um juízo de necessidade ou desnecessidade para o apuramento dos factos que integram o objecto do processo, que se desenvolvem todos os poderes de disciplina da actividade probatória de todos os sujeitos processuais que estão reconhecidos ao Juiz, pelo art. 340º do CPP, estando o indeferimento da produção de meios de prova condicionada pela notoriedade do seu carácter irrelevante ou supérfluo, inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou, ainda, da sua finalidade meramente dilatória, ou carácter proibido, não há qualquer violação das garantias de defesa do arguido.
O direito de defesa só é legítimo, se exercido com base em meios de prova que sejam realmente necessários ou indispensáveis à descoberta da verdade, já não podendo afirmar-se a existência desse direito, sem essa característica da relevância para a demonstração dos factos da acusação ou da pronúncia (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº 171/2005 de 31 de Março de 2005, DR, II Série de 6-05-2005).
Por outro lado, uma das manifestações de um processo justo e equitativo é que o julgamento e a decisão dos factos ocorra em tempo útil, o que não aconteceria se fosse possível a eternização dos processos através de uma infindável e ilimitada possibilidade de indicar e produzir todos os meios de prova e de obtenção de prova indicados pelas partes, como aconteceria se ao juiz não fosse atribuído um poder de direcção do processo, na fase de produção de prova, que lhe permitisse rejeitar liminarmente as diligências probatórias notoriamente irrelevantes, supérfluas, inadequadas ou meramente dilatórias.
O princípio da necessidade é, por conseguinte, o fim e o limite do princípio da livre investigação, tal como resulta da sua configuração nos nºs 1 e 2 e das restrições consagradas nos nºs 3 e 4 do art. 340º do CPP.
«Como não se pode vislumbrar o exercício efectivo do direito de defesa em provas não necessárias à descoberta da verdade, cremos ser manifesto que o preceito citado na interpretação pugnada não atenta contra o disposto no artigo 32º da CRP, nomeadamente o disposto no seu nº 1 quando consagra que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.
«Aliás, o nº 2 do mesmo artigo estipula que o arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com o exercício do direito de defesa, numa clara manifestação constitucional de que não se pode vislumbrar o exercício do direito de defesa no requerimento de provas não necessárias à descoberta da verdade e que tenham como única virtualidade retardar o julgamento» (Ac. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 204/14.9JAGRD.C1. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 3.12.2008, proc. 140/06.2JAPRT.C1; de 07.10.2015, proc. 174/13.0GAVZL.C1, de 13.11.2019, proc. 253/17.5JALRA.C1; Acs. da Relação do Porto de 12.02.2014, proc. 93/08.2GASJP.P1 e de 25.05.2016, proc. 9786/13.1TDPRT.P1; Acs. da Relação de Guimarães de 7.11.2016, proc. 121/15.5T9BRG.G1 e de 23.10.2017, proc. 52/15.9T8BGC.G1; Ac. da Relação de Lisboa de 3.10.2018, proc. 5/11.6IDFUN.L1-3; de 26.02.2019, proc. 906/17.8PTLSB.L1-5, de 24.04.2019, proc. 2068/16.9TDLSB-A.L1-3, in http://www.dgsi.pt).
A não realização de diligências probatórias que venham a revelar-se essenciais para a descoberta da verdade material, verificado o circunstancialismo previsto no art. 340º do CPP, consubstancia uma nulidade relativa, portanto, dependente de arguição até ao final da audiência de julgamento (art.120º nº2 al. d) e nº 3 al. a) do CPP), na própria diligência judicial, porque o sujeito processual interessado na sua produção assistiu ao acto em que ela foi cometida (cfr. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, 2ª edição atualizada, pág. 856 e Oliveira Mendes, Comentário ao Código de Processo Penal, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, 2016, 2.ª edição, p. 1049).
Mas, além da possibilidade de arguir a nulidade relativa, a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase da audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340º do CPP também pode ser impugnada por via de recurso, na medida em que a sua recorribilidade não está afastada pelo art. 399º do CPP.
«1. O despacho que no decurso da audiência de discussão e julgamento indefere, na sequência de requerimento só então apresentado, expressa ou implicitamente a coberto do artigo 340.º do CPP, a audição, na qualidade de testemunha, de uma pessoa é sindicável por via de recurso – pois que corresponde ao exercício de um poder vinculado, que não discricionário, não se mostrando legalmente excluída a respetiva recorribilidade, colhendo, assim, aplicação o princípio geral enunciado no artigo 399.º do CPP - e não já por intermédio da arguição da nulidade do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP;
«2. Se o sujeito processual interessado, na sequência de tal despacho de indeferimento, do mesmo nunca recorre, limitando-se a arguir a respetiva nulidade [artigo 120º, n.º 2, alínea d) do CPP], deixando-o transitar, por via do caso julgado, entretanto formado, fica o tribunal de recurso impedido de o sindicar; (…).» (Ac. da Relação de Coimbra de 7.10.2015, processo 174/13.0GAVZL.C1, in http://www.dgsi.pt).
«A omissão de produção de meio de prova necessário, no sentido de essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa constitui nulidade relativa, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º.
«Se a produção do meio de prova não tiver sido requerida, o interessado na sua produção – que o tribunal deveria ter ordenado oficiosamente - deve arguir a nulidade até ao encerramento da audiência, nos termos do artigo 120.º, n.º 3, alínea a), sob pena de sanação. No caso de não obter deferimento, cabe recurso da decisão.
«Porém, se a produção do meio de prova tiver sido requerida e o tribunal indeferir por despacho tal requerimento, a impugnação deve ser feita por via de interposição de recurso desse despacho, não havendo razão para impor ao interessado a prévia arguição de vício» (Ac. da Relação de Lisboa de 26.02.2019, processo 906/17.8PTLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Feito este ponto de ordem, cumpre dizer que o despacho proferido, neste processo, na sessão da audiência de discussão e julgamento do dia 8 de Março de 2023 está totalmente correcto, sendo flagrante e notória a total inutilidade da realização da perícia psiquiátrica pretendida pelo arguido e isto, por várias ordens de razões.
Segundo o disposto no art. 388º do CC, «a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial».
Esses factos são os factos presentes, não factos passados. Esse é, aliás, um dos aspectos em que se distingue o perito da testemunha. Esta depõe sobre factos pretéritos, com base na sua especial posição, normalmente, acidental, perante o facto concreto, ao passo que o perito relata as suas apreciações, mas também as suas percepções sobre factos presentes, usando os conhecimentos especiais de que dispõe, em razão da profissão que exerce (neste sentido, Antunes Varela, Manual do Processo Civil, p. 579).
De harmonia com estes princípios gerais, também o art. 151º do CPP, define a prova pericial como aquela que envolve a formulação de juízo técnico, científico ou artístico, como condição essencial de apreensão de determinados factos.
«A perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» ( Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, 4ª Edição revista e actualizada, Editorial Verbo, 2008, página 215), ou noutra formulação de sentido idêntico, um meio de prova «em que a percepção ou apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos de especialidade» (Maia Gonçalves, Código de processo penal anotado, 17ª edição, revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2009- comentário ao artigo 151º).
Ora, a demonstração sobre se o arguido era consumidor de haxixe e álcool à data dos factos indiciados, que foi a primeira pergunta proposta pelo arguido como objecto da prova pericial, não requer nenhum tipo de conhecimento técnico, nem científico especializado, nem artístico, sem o qual o Tribunal, com recurso à prova documental ou testemunhal, ficasse impossibilitado de concluir sobre ela.
Tanto mais, que no ponto 14. da matéria de facto provada, ficou demonstrado que «a dada altura da noite, o arguido consumiu uma porção de cannabis, vulgo ganza, e ingeriu cerca de vinte shots de whisky», precisamente porque assim o esclareceram, o arguido e as testemunhas NN, CC e OO, sendo que estas duas últimas testemunhas presenciaram inclusive uma espécie de concurso de shots de whisky protagonizado pelo arguido e de que resultou, segundo os mesmos depoimentos testemunhais, que o mesmo estava muito alcoolizado.
Em segundo lugar, porque tendo decorrido vários meses entre a data da prática dos factos objecto do processo – 26 de Fevereiro de 2022 – e a data em que foi requerida a sua submissão a perícia psiquiátrica ou seja, em 17 de Outubro de 2022, mais de sete meses depois (e neste conspecto só releva a data da contestação sobre a qual se pronunciou a decisão recorrida e não todas as restantes vicissitudes da marcha do processo que não são, nem podem ser apreciadas, neste recurso, porque não integram o seu objecto, já que quanto a outras decisões de indeferimento da perícia pretendida e anteriormente tomadas, não há notícia de que tenham sido impugnadas por via de recurso) – jamais seria possível aferir da TAS no sangue do arguido ou da existência de substâncias estupefacientes no seu organismo, naquele dia 26 de Fevereiro de 2022.
No que se refere ao princípio activo THC a sua presença e permanência no organismo humano é, naturalmente, muito diferente, conforme a vulnerabilidade genética de cada consumidor, os seus hábitos de consumo, as quantidades consumidas, a forma como são consumidas e a qualidade das substâncias.
Assim, a média é de catorze dias, se o exame de despistagem do THC for feito ao sangue, entre sete e trinta dias se o teste for feito à urina e de noventa dias, se for examinado o cabelo (cfr. https://www.clinicadereabilitacaosp.com.br/cidades-atendidas/parana/sulina/quanto-tempo-leva-para-desintoxicar-o-organismo-de-drogas; https://problemascomdrogas.com.br/quanto-tempo-leva-para-desintoxicar-o-corpo-das-drogas/; https://clinicascita.com/adiccion-al-cannabis-tratamiento/cuanto-dura-cannabis-en-organismo/; https://americanaddictioncenters.org/marijuana-rehab/how-long-system-body/esp).
No que se refere ao álcool, o tempo médio de duração dos seus efeitos no organismo humano é de entre duas e três horas, mas a sua permanência em taxas superiores a 0,8 gr/litro pode acontecer até 12 horas depois do consumo, no sangue; na urina de 12 a 24 horas e, se o consumo for elevado, por mais de 72 horas; na saliva em até 12h e no cabelo até 90 dias (cfr. http://www.ansr.pt/SegurancaRodoviaria/Informacao/Documents/Brochuras/%C3%81LCOOL%20-%20BROCHURA%20ANSR%20FECTRANS.pdf).
Aliás, nunca seria um exame médico psiquiátrico que iria permitir detectar se o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas e se havia consumido haxixe, nos dias 25 e 26 de Fevereiro de 2022. Essa é tarefa de outro tipo de exames médicos que envolvem a recolha de vestígios biológicos, como o ar expirado, o sangue, a urina, ou o cabelo, não de avaliação psicológica ou psiquiátrica.
E não há notícia de que tais testes hajam sido alguma vez feitos, neste processo.
Por fim e em terceiro lugar, mesmo que o arguido tivesse sido submetido ao teste de pesquisa quantitativa e qualitativa de álcool no sangue e a exames para detectar a presença de substâncias estupefacientes, a pergunta que incumbe fazer é qual seria, afinal, o impacto da ingestão de bebidas alcoólicas e de drogas, na liberdade de decisão e acção, no discernimento e vontade do arguido ?
Não seria, certamente, a declaração da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída, ao contrário do que pretende no presente recurso.
Nos termos do art. 20º nº1 do Código Penal, é inimputável o agente que, em virtude de anomalia psíquica, é incapaz de avaliar a ilicitude do facto, no momento da prática do mesmo, tal como também o será o agente que, face à anomalia psíquica, no momento da prática do facto, é incapaz de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude do facto, abrangendo, pois, quer a situação em que a doença mental afecta ou neutraliza a própria capacidade de discernimento e entendimento, quer a hipótese em que o problema do agente, aquando da prática do facto ilícito-típico, não se situa no elemento intelectual, mas antes, no elemento volitivo direccionado ao facto (Carlota Pizarro de Almeida, in “Modelos de inimputabilidade”, Almedina ed. 2000, pág. 76).
Ponto é que resulte comprovada a anomalia psíquica e a sua aptidão para destruir as «as conexões reais e objectivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente», ou seja, que a origem da incapacidade de discernimento e/ou da ausência de liberdade da vontade que impedem a formulação do juízo de culpabilidade e a aplicação da pena previstas para o crime, se projecte na conduta, num «triângulo probatório cujos lados são: o facto, a anomalia psíquica e o nexo que os junta numa mesma unidade de sentido» (Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de Inimputáveis e «in dubio pro reo»”, pág. 125).
«Um acto para ser voluntário deve derivar não só de uma deliberação da vontade, mas também de um prévio conhecimento da inteligência; de modo que o acto da vontade contém tanta bondade ou malícia, quanta foi conhecida pela inteligência. - Por isso, se a inteligência, por qualquer causa ou acidente, for perturbada a ponto de não poder apreciar a bondade ou a malícia do acto, este não é voluntário, e quem o praticou não é responsável por ele, nem deve ser punido» (Thiago Sinibaldi, Elementos de Filosofia, vol. II, p. 158).
A inimputabilidade pressupõe um substracto «biopsicológico» que inclui tanto as doenças mentais, como tal classificadas pela medicina, como certas perturbações de consciência, desde que de intensidade suficiente para excluir aquelas capacidades de discernimento e de auto-determinação e liga-se ao efeito normativo, de que é indício a incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas ou a «destruição da conexão objectiva no sentido do comportamento do agente que pode ser causalmente explicado, mas não pode ser espiritualmente compreendido e imputado à personalidade do agente» (Figueiredo Dias, in Jornadas de Direito Criminal, Pressupostos da Punição, CEJ, I, p. 76. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 19.12.2012, proc. 127/10.0S3LSB-A.S1, de 16.10.2013, proc. 36/11.6PJOER.L1.S1, de 23.11.2017, proc. 146/14.8GTCSC.S1; de 27.10.2021, proc. 55/19.4SWLSB.L1.S1 in http://www.dgsi.pt).
À luz da teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas, a culpa é avaliada, sob a dupla perspectiva de culpa pelo facto e pela personalidade do agente e é um dos critérios fundamentais da responsabilização penal com expressa consagração no Código Penal, como resulta, entre outras, da norma contida no art. 71º nº 2 al. f).
A imputabilidade, é, pois, condição «sine qua non» da culpa e ambas exigem do agente do facto a capacidade de avaliação da ilicitude da sua conduta e a auto-determinação para poder agir de acordo com o direito.
Importa sublinhar que a inimputabilidade não é um estado, como o são, a incapacidade jurídica e a incapacidade judiciária, na medida em que a inimputabilidade se reporta de forma atomizada ao momento da prática do facto com tutela penal, individualizadamente considerado (Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 34/2016 de 02.03.2017 in https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/2128. No mesmo sentido, Figueiredo Dias, Direito penal português — As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas / Editorial Notícias, 1993, p. 469; Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 125; Maria João Antunes, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 469).
«A declaração judicial de inimputabilidade penal não opera fora do processo onde foi proferida, não valendo para qualquer outro crime, anterior ou posteriormente cometido pelo arguido.
«A inimputabilidade criminal em virtude de anomalia psíquica não é um «estado».
«No processo penal, a avaliação da anomalia psíquica reporta-se ao facto concreto e somente a este e, essencialmente, ao momento da sua prática, visando indagar se o agente tinha capacidade de avaliação da ilicitude do facto e de determinação para, nesse preciso momento, - em vez de adotar comportamento de acordo com o direito -, decidir-se por cometer aquele crime concreto» (Ac. do STJ de 16.06.2021, proc. 35/20.7PJOER.L1.S1, in http://www.dgsi.pt).
O art. 20º nº 2 estabelece que «pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída», esclarecendo o n.º 3 que «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior».
Um dos factores que pode afectar a capacidade de culpa são as perturbações psíquicas que o CP contempla no referido art. 20º, fazendo apelo a dois pressupostos: o biológico e o psicológico.
O primeiro consubstancia-se na existência de uma qualquer anomalia psíquica e o segundo na circunstância de terem ficado afectadas faculdades decisivas para a formação da vontade do homem.
É exactamente aqui que entronca a questão de a anomalia psíquica de que o arguido é portador ter como efeito normativo, não a sua incapacidade para avaliar a ilicitude do facto, mas a sua capacidade de determinação de acordo com essa avaliação, ou seja, uma capacidade ainda subsistente mas em grau sensivelmente diminuído.
Ou seja: sempre que a capacidade do agente para avaliar a ilicitude e se determinar por ela está muito diminuída, embora seja ainda possível um juízo de censura, este é substituído por um juízo de perigosidade, substrato da aplicação de uma medida de segurança (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, pág. 157).
A questão da imputabilidade diminuída não tem tratamento legislativo próprio, podendo e devendo ser resolvida, tanto à luz da culpa, como da inimputabilidade, conforme os casos:
«Se, nos casos de imputabilidade diminuída, as conexões objectivas de sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e aquele deve, por isso, ser considerado imputável, então as qualidades especiais do seu carácter entram no objecto do juízo de culpa e por ela tem o agente de responder. Se essas qualidades forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante, elas fundamentarão – ao contrário do que sucederia numa perspectiva tradicional – uma agravação da culpa e um (eventual) aumento de pena; se, pelo contrário, elas fizerem com que o facto se revele mais digno de tolerância e de aceitação jurídico-penal, poderá justificar-se uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena» (Figueiredo Dias Direito Penal – Parte Geral, I, pág, 585).
Sempre que a capacidade do agente para avaliar a ilicitude e se determinar por ela está muito diminuída, embora seja ainda possível um juízo de censura, este é substituído por um juízo de perigosidade, substrato da aplicação de uma medida de segurança (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, pág. 157).
Nos restantes casos, em que o agente podia agir doutra maneira, se for «maior a tendência do agente para o crime (e portanto menor a sua culpa referida ao facto), (...) mais clara consciência terá ele do seu dever de a corrigir e portanto mais censurável será a sua omissão e maior a sua culpa na preparação da personalidade» (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pág. 358), o que justifica a aplicação duma pena sempre que, apesar da anomalia, o agente pode dominar os seus efeitos, sendo censurado por o não ter feito.
Por conseguinte, se a anomalia de que o arguido sofre não é de tal gravidade ou intensidade que o impeça de dominar os seus efeitos de forma a dever ser considerado perigoso, tal exclui a sua inimputabilidade. Deste modo, terá de ser responsabilizado pelos traços do seu carácter, especialmente os desvaliosos do ponto de vista jurídico-penal, sendo-lhe aplicada uma pena (e já não uma medida de segurança).
E «(…) pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isso sucederá do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g. em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos (…).» (Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, CEJ, I, pág. 77).
A averiguação dos factos geradores da inimputabilidade relevam, pois, exclusivamente, para a decisão sobre a culpabilidade (art. 368º nº 2 do CPP e art. 20º do CP), e também para a pena – determinação da sanção (art. 71º do CP), ou da medida de segurança (art. 91º do CP).
O estado de embriaguez e sob efeito de estupefacientes em que AA se encontrava à data dos factos, não corresponde a nenhum dos estados psíquicos potencialmente geradores de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, pela simples razão de que não são doenças de foro psiquiátrico, nem surtos psicóticos, nem são aptos a retirar a capacidade de discernimento e vontade, nem a liberdade de decisão e acção, apesar dos efeitos nocivos para o organismo humano resultantes da sua ingestão.
«Em primeiro lugar, é necessário ressalvar a distinção entre a prática de factos típicos em estado de embriaguez (acidental) – a qual só poderá fundamentar uma declaração de inimputabilidade nos termos do n.º 1 do art. 20.º, uma vez que não preenche o pressuposto da não acidentalidade da anomalia psíquica contemplado no n.º 2 – e os casos em que a referida intoxicação se insere num contexto de alcoolismo – em que a solução jurídica poderá originar a afirmação de inimputabilidade nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 20.º (ainda que «compensada» com o regime disposto no art. 195.º do CP); ou a classificação do agente como imputável, podendo ser a sua culpa agravada (à qual poderá corresponder, se conjugada com elevadas exigências de prevenção geral e especial, à aplicação de uma pena próxima do limite máximo previsto na respectiva moldura legal) ou atenuada (considerada, quer para efeitos de atenuação especial da pena nos termos do art. 72.º, quer como impedimento da qualificação de certos crimes, (…)).» (Rita Alexandre do Rosário, A «Imputabilidade Diminuída» no Direito Penal Português, 2019, p. 207-208, in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/41965/1/ulfd140979_tese.pdf).
Esta distinção é também assumida no DSM ao estabelecer diferenças entre os grupos dos transtornos induzidos por substância e o dos transtornos por uso de substância (cfr. DSM-V, 2014, p. 483 e seguintes).
Ora, é de um alegado transtorno isolado, ocasional e temporário, induzido pelo consumo de uma «ganza» de haxixe e de uma garrafa de whisky ou de vários shots de tal bebida alcoólica e exclusivamente desses consumos excessivos, durante a noite de 25 para 26 de Fevereiro de 2022, que o arguido AA faz depender a sua pretensão de ser declarado inimputável.
Acontece, porém, que além de nada se saber, nem ser já possível determinar qual seria a TAS ou o índice de THC existentes no organismo do arguido, aquando da prática dos factos objecto deste processo, não há como aferir, a esta distância temporal, quais teriam sido os efeitos de tais substâncias tóxicas no seu autodomínio da vontade e da capacidade de avaliação dos seus comportamentos e de adequação dos mesmos, segundo essa avaliação.
Por outro lado, todas as circunstâncias que resultaram provadas acerca do seu modo de vida e do seu trajecto pessoal, social, laboral e familiar, revelam características de personalidade associadas a impulsividade e comportamentos aditivos, é certo («dificuldades em autorregular os afetos e a impulsividade, assumindo o consumo regular anterior de substâncias aditivas (haxixe e álcool) desde a adolescência»), mas não a uma dependência alcoólica ou a um nível de toxicodependência de que possa sequer suspeitar-se alguma doença psiquiátrica incapacitante, no todo ou em parte, susceptível de qualificação como «anomalia psíquica».
Com efeito, tal como descrito na matéria de facto provada, no acórdão recorrido que, nessa parte não foi impugnada, o arguido mantém um relacionamento afectivo com uma namorada há mais de um ano, descrito de forma positiva, sendo anteriormente ambos presença assídua na casa um do outro e na interação com os familiares, nos tempos de lazer, o arguido praticava exercício físico num ginásio e convivia com os familiares, com a namorada e com amigos, sendo referida a sua facilidade na interação social; mantinha-se laboralmente activo, tendo contrato de manutenção e limpeza de máquinas no stand da BMW, em Torres Vedras, há cerca de um ano.
Na sua trajectória anterior o arguido trabalhou como eletricista, no transporte de vigas de ferro, num centro de abate de veículos e na construção civil para entidades patronais diferentes. Tem também um cartão de segurança desde 29/09/2021, após ter-se habilitado com o referido curso.
Portanto, o modo de vida do arguido antes de preso, era a de um cidadão dedicado ao trabalho, socialmente inserido, vivendo com autonomia e com liberdade de discernimento, de decisão e acção, logo, imputável, como de resto, também avulta de forma evidente, do teor das suas declarações prestadas no debate instrutório de dia 4 de Outubro de 2022 e na sessão da audiência de discussão e julgamento de dia 18 de Janeiro de 2023, perante o seu discurso totalmente articulado, coerente e lógico, assinalando-se as declarações da audiência em que começou logo por pedir desculpa ao tribunal e à família da vítima e quando confrontado sobre se era verdade o que lhe era imputado na acusação, começou por responder «infelizmente sim», apesar de depois ter dito não se recordar do que aconteceu depois de ter entrado no ... bar, só tendo retomado a memória quando já estava na sua terra, no Paúl.
Ora, nos termos do art. 351º nºs 1 e 3 do CPP, a possibilidade de realização de perícia psiquiátrica para aferir da susceptibilidade de ao arguido ser formulado um juízo de culpa pela morte de HH, estava condicionada à verosimilhança, à plausibilidade e consistência das razões invocadas, segundo um mínimo de conhecimentos de cultura geral da ciência médica, ou do que são doenças mentais potencialmente geradoras de anomalia psíquica, para permitir ao Tribunal colocar, pelo menos, alguma dúvida razoável sobre a imputabilidade do arguido, não sendo suficiente, para tal, à luz das mais elementares regras de experiência e de senso comum, os factos de ter bebido cerveja ao jantar, dois licores «beirão», ao jantar, de ter ingerido dez ou quinze shots de whisky durante a noite e de ter fumado uma «ganza».
Por fim, no que concerne às circunstâncias de se encontrar embriagado e de ter consumido haxixe, são ainda frutos de actos de vontade livre e consciente assumidos pelo arguido, no uso pleno das suas faculdades mentais, como, de resto, por ele próprio foi explicado e também resultou dos depoimentos das testemunhas que presenciaram os factos e o que aconteceu antes deles, especialmente durante o jantar de aniversário de II e ao longo da noite de 25 para 26 de Fevereiro de 2022.
A decisão recorrida foi proferida com fundamento na inaptidão do exame médico legal de perícia psiquiátrica para responder à pergunta formulada em c) da contestação, sobre se «sob o consumo de haxixe e álcool o arguido, em 25 e 26 fevereiro de 2022 padecia de inimputabilidade? ou de imputabilidade diminuída ?», ou seja, para determinar se, mais de sete meses antes, o arguido tinha álcool e haxixe no organismo e foi também alicerçada na impossibilidade de obtenção de qualquer resultado minimamente esclarecedor acerca da sua capacidade de avaliação da ilicitude dos seus comportamentos e de se determinar de acordo com essa avaliação, no momento em que cometeu o crime de homicídio.
Em face de tudo o que ficou exposto, a decisão recorrida ao indeferir a realização da perícia psiquiátrica merece, pelo seu acerto, total concordância deste Tribunal.
É que não podem confundir-se o princípio constitucional do processo justo e equitativo, as garantias de defesa em processo penal ou o exercício do direito de intervir no processo rebatendo os argumentos de facto e de direito aduzidos por outros intervenientes processuais e requerendo e produção de provas e juntando provas, com a possibilidade de produzir todas as provas que aprouverem ao arguido independentemente da sua real possibilidade, da sua relevância ou necessidade para a descoberta da verdade material, dado que nem se tratam de direitos absolutos, nem as garantias de defesa consagradas no art. 32º da CRP ou o direito previsto no art. 61º nº 1 al. g) do CPP desoneram os Juízes dos seus poderes de direcção e condução da marcha do processo e de ao abrigo desses poderes, determinarem as diligências probatórias que devem ser levadas a cabo pela sua importância para decisão da causa e aquelas que, por se mostrarem manifestamente dilatórias, irrelevantes ou de resultados impossíveis de obter (como seria o caso, nos presentes autos), não podem ser realizadas, por redundarem em actos inúteis que nada acrescentam nem às questões da subsunção dos factos ao direito, do enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, da sua culpabilidade e das escolhas a fazer em termos de sanções penais entre penas ou medidas de segurança e da sua espécie e dosimetria concreta.
É, justamente, nessa confusão que assenta o recurso interlocutório, que não merece, pois, provimento.
Quanto ao recurso do acórdão condenatório.
A questão da nulidade por omissão de pronúncia quanto ao requerimento de 9.12.2022.
Nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do CPP, a sentença é nula, sempre que se verifique a ausência de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
Esta sanção da nulidade, exclusivamente prevista para as sentenças (atento o princípio da legalidade em matéria de nulidades, ínsito no art. 118º nºs 1 e 2 do CPP), visa garantir a completude ou exaustividade da decisão, de acordo com o qual, uma sentença deve conter, de forma esgotante, a apreciação dos factos e o respectivo enquadramento jurídico, em estreita coerência com o que foi alegado pelos sujeitos processuais; com a prova produzida e com o direito aplicável, segundo as várias soluções jurídicas possíveis e segundo os seus poderes de cognição, resultantes das regras do processo ou dos temas pertinentes à decisão de mérito sobre o objecto do processo ou sobre a tramitação do mesmo, que tenham sido colocadas à apreciação do tribunal, pelos sujeitos processuais.
Trata-se de assegurar a coincidência significativa entre o que é pedido e o que é julgado.
De acordo com o preceituado no nº 2 do artigo 608º do Código Processo Civil, aplicável, ex vi do art. 4º do CPP, o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
A expressão questões que devesse apreciar «deve ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pág. 142).
«O juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado» (Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 704).
E também «não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito ( art. 511º/1 ), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ( art. 664º ) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora reimp, 1984, pág. 143).
É, pois, neste sentido, que deve ser interpretada a palavra «questões» incluída na previsão do art. 379º nº 1 al. c) do CPP, sentido este, que não se confunde com os simples argumentos, teses doutrinárias ou jurisprudenciais, razões, ou opiniões invocados pelos sujeitos processuais para sustentar a sua pretensão, reconduzindo-se antes a problemas concretos com incidência e influência directa no desfecho do processo, esteja em causa uma decisão de mérito sobre o seu objecto, ou apenas a aplicação de normas de direito adjectivo que obstem ao conhecimento do fundo da causa.
«A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art. 379.°), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.» Ac. do STJ de 09.02.2012, processo 131/11.1YFLSB, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 24.10.2012, processo 2965/06.0TBLLE.E1; de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB; de 17.06.2015 processo 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1; de 02.05.2018, processo 736/03.4TOPRT.P2.S1; de 05.06.2019, processo 8741/08.8TDPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt e Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182).
Também não se verifica esta nulidade se, porventura, a falta de tomada de posição pelo Tribunal se deve à resolução de uma questão prévia ou prejudicial que torna inútil ou impossível qualquer decisão sobre aquela que não foi contemplada expressamente na decisão.
O arguido pretende encontrar uma lacuna de tomada de posição do Tribunal sobre um requerimento seu, entrado em Juízo em 9 de Dezembro de 2022.
Este requerimento é uma carta escrita e assinada pelo próprio arguido, dirigida ao Tribunal, na qual o arguido afirma estar muito arrependido do que fez, pedindo desculpa à vítima HH, à família deste e ao Tribunal pelo que aconteceu, ou seja, pela morte do referido HH em resultado das facadas que o arguido lhe desferiu, no dia 26 de Fevereiro de 2022.
Para além de este pedido de desculpa e de manifestação de arrependimento não serem qualquer questão a decidir, mas antes circunstâncias concretas, objectivas a considerar na decisão de facto, pelo que jamais poderiam gerar uma nulidade por omissão de pronúncia, mesmo que dela não constassem, a verdade é que o Tribunal exarou, na matéria de facto provada, no acórdão recorrido, que o arguido «reconhece de forma crítica a gravidade da ilicitude das circunstâncias que motivaram a atual situação de prisão preventiva e empatia face à vítima e à família deste».
Razões, pelas quais o recurso também improcede, nesta parte.
Quanto aos vícios decisórios:
O art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Nesta vertente do recurso, o arguido invocou a insuficiência da matéria de facto para a decisão e a contradição da matéria de facto, concretamente entre os factos 13 e 14 da matéria de facto provada.
Quanto ao vício da insuficiência:
A insuficiência da matéria de facto para a decisão, verifica-se sempre que a conclusão extravase as premissas, em virtude de a matéria de facto provada e não provada ser insuficiente para fundamentar decisão, segundo as diversas soluções de direito potencialmente aplicáveis e de essa insuficiência ser resultante da inobservância dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, ou seja, quando após o julgamento e por não se encontrarem esgotadas todas as possibilidades de investigação dos factos relevantes para a decisão final, persista uma incerteza sobre se os factos que resultaram exarados no texto da decisão preenchem ou não a descrição típica de um crime, ou de uma circunstância modificativa agravante ou atenuante, de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, de circunstâncias relevantes para a escolha e determinação concreta da pena, ou antes, se alicerçam um estado de dúvida gerador de uma absolvição, por aplicação do princípio in dubio pro reo (que assenta na insuficiência da prova produzida, mas não da actividade de investigação e recolha dessa prova, pois que pressupõe a plena observância do princípio da descoberta da verdade material quanto aos factos que integram o objecto do processo, logo, a realização de todas as diligências probatórias pertinentes e admissíveis).
«Quanto ao vício previsto pela al. a), do n.º 2, do art. 410.º, do CPP - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - este só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.» (Ac. do STJ de 12.04.2018, processo 140/15.1T9FNC.L1.S1, in http://www.dgsi.pt).
«A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada tem lugar quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado» (Ac. da Relação de Coimbra de 24.04.2018, processo 1086/17.4T9FIG.C1, in http://www.dgsi.pt).
«Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal». (Ac. da Relação de Coimbra de 12.06.2019, processo 1/19.5GDCBR.C1. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 15.07.2020, processo 189/17.0PAAMD.L1-3, de 20.02.2021, processo 18/17.4PESXL.L1.-3 e de 03.03.2021, processo 257/18.0GCMTJ.L1-3, todos, in http://www.dgsi.pt).
É, mais uma vez, na omissão da realização da perícia médico legal às faculdades mentais do arguido que este centra a insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Sobre a desnecessidade, a irrelevância e até a inexequibilidade desse meio de prova já tudo se disse, pelo que sem necessidade mais argumentos, cumpre apenas concluir que, não existindo qualquer insuficiência, também nesta parte, o recurso improcede.
Quanto ao vício da contradição:
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, corresponde, genericamente, à afirmação simultânea de uma coisa e do seu contrário, vale por dizer, quando se considera provado e não provado o mesmo facto, ou quando se dão como provados factos antagónicos ou quando esse antagonismo intrínseco e inultrapassável se estabelece na fundamentação probatória da matéria de facto, ou entre a fundamentação e a decisão, a ponto de se tornar evidente, a partir da simples leitura do texto que dessa fundamentação deveria resultar decisão oposta àquela que foi tomada.
«Para os fins do preceito (al. b) do nº 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência. As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de ser decretada a renovação da prova são somente as contradições internas, rectius intrínsecas da própria decisão considerada como peça autónoma» (Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, pág. 739).
Verificar-se-á sempre que «(…) no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito» (Ac. do STJ de 12.03.2015, processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.9.2017, proc. 596/12.4JABRG.G2.S1; de 5.09.2018, proc. 2175/11.4TDLSB.L1.S1, de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1, de 25.09.2019, proc. 60/2017.5 JAFAR.E1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Pode, pois, existir contradição insanável, não só, entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto e a decisão (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 325).
«A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja suprível pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. (…) A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados («provado que disparou», «não provado que disparou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal, ou vice-versa.
Por vezes a contradição surpreende-se até no modo como se apresenta a fundamentação da matéria de facto, quando essa fundamentação resulta contraditória com a solução de facto encontrada.» (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, cit., 2.ª ed., 2016, a págs. 1274-1275, em anotação ao artigo 410.º).
O arguido recorrente pretende que exista uma contradição entre os factos provados 13 e 14 segundo os quais, respectivamente, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e o arguido consumiu uma porção de cannabis, vulgo ganza e ingeriu cerca de vinte shots de whisky.
Ora, a circunstância de o arguido ter consumido álcool e cannabis não neutraliza, nem excluí que tivesse agido de forma livre, deliberada e consciente, quando desferiu as facadas no corpo de HH das quais resultou a morte do mesmo, naquele dia 26 de Fevereiro de 2022.
Não existe elemento de informação algum no processo de que resulte que o arguido sofra ou sofresse de algum transtorno de dependência alcoólica que lhe retirasse o domínio da vontade, a sua capacidade de avaliação da ilicitude dos seus actos e a sua liberdade de conformação do modo de actuar, de acordo com essa reflexão e, ao contrário, de toda a descrição factual contida no acórdão recorrido, o que resulta é um consumo circunstancial de substâncias estupefacientes e uma ingestão igualmente ocasional de bebidas alcoólicas que coincidiu com o dia em que os factos foram cometidos, mas que em nada interfere com o juízo de culpa de que o arguido deve ser sujeito, pois que dessa mesma descrição factual, consta evidenciada a imputabilidade do arguido, a integridade da sua liberdade de acção e decisão e das suas faculdades mentais e cognitivas.
Os dois factos provados nos artigos 13 e 14 são perfeitamente compatíveis entre si, resultam da prova produzida e deles não se retira qualquer incompatibilidade, pelo que também não se verifica o vício da contradição insanável entre a matéria de facto invocado pelo recorrente.
Não havendo alterações a introduzir à matéria de facto, importa agora fazer um ponto de ordem que se prende com a circunstância de as questões suscitadas no recurso interposto pelo Mº. Pº. e que obrigam à sua análise e decisão, neste preciso momento, pois que além do mais, são antecedentes lógicos da última questão posta no recurso interposto pelo arguido que é a de saber se a pena aplicada na primeira instância deve ser reduzida para dez anos, como pretende o arguido, ou deverá ser fixada em vinte anos como pretende o Mº. Pº. , especialmente, quanto a saber se o crime cometido pelo arguido é de homicídio simples como decidido no acórdão recorrido, ou se é um crime de homicídio qualificado à luz da circunstância agravante modificativa contida no art. 132º nºs 1 e 2 al. i) do CP, como preconizado no recurso interposto pelo Mº.Pº.
Quanto ao recurso do Mº. Pº.
Está em causa saber se se verifica a circunstância agravante modificativa prevista no art. 132º nº 2 al. i) do Código Penal, segundo a qual se a utilização de meio insidioso, na consumação da morte de outrem, ocorrer em circunstâncias reveladoras de especial perversidade ou censurabilidade, a moldura penal abstracta prevista para o crime de homicídio que passa a ser punível na forma qualificada é de doze a vinte e cinco anos de prisão.
O art. 131º contém o tipo incriminador base dos crimes contra a vida humana, sendo a partir dele que a lei tipifica os restantes crimes contra o mesmo bem jurídico, ora qualificando-o, como faz no art. 132º, ora privilegiando-o, como acontece nas previsões contidas nos arts. 133º; 134º e 136º, ou introduzindo especificidades quanto ao modo de execução da morte de outrem, nos arts. 135º; 138º e 139º e, ainda, especializando o tipo subjectivo de ilícito, com a incriminação da negligência contida no art. 137º, todos do Código Penal.
O crime de homicídio consuma-se com a verificação do resultado morte, o que pressupõe retirar a vida a uma pessoa já nascida e ainda viva (tornando-se, a este nível, fundamental aferir quais os momentos do começo e do fim da vida, relevando, a este propósito, quanto ao momento em que começa a vida, as teses acerca do início do acto do nascimento ou, em alternativa, a do nascimento completo e com vida, importada do Direito Civil – art. 66º do CC e, quanto àquele em que a vida já não existe, a da chamada morte cerebral).
Trata-se de um crime de resultado, pelo que qualquer acto ou omissão desde que ligada ao resultado, por um nexo de imputação, à luz da teoria da causalidade adequada, nos termos do art. 10º do Código Penal, é susceptível de conduzir à sua verificação, do ponto de vista objectivo.
A nível subjectivo, a imputação do resultado ao seu autor faz-se com base no dolo, em qualquer das modalidades, directo, necessário ou eventual, a que alude o art. 14º do citado diploma.
Ora não havendo qualquer
As normas incriminadoras contidas no art. 132º do Código Penal, preveem formas qualificadas do crime de homicídio, fazendo-o com recurso à combinação entre uma cláusula geral extensiva e assente em conceitos indeterminados – a especial censurabilidade ou a especial perversidade –, no seu nº 1 e entre os exemplos-padrão, nas diversas alíneas do nº 2 do mesmo normativo, que mais não são do que circunstâncias cuja verificação objectiva é indiciadora dessa especial perversidade ou censurabilidade, referindo-se umas aos factos, outras ao seu autor, mas em qualquer das hipóteses, sendo determinantes de um especial tipo de culpa.
Com efeito, «especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta a qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere a formas especialmente graves de execução do crime.
«Parece ser (...) o pensamento da lei (...) o de pretender imputar à "especial censurabilidade" aquelas condutas que em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, pág. 29).
Haverá especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores», podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às «componentes da culpa relativas ao facto», fundando-se, pois, «naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude». Haverá especial perversidade quando se esteja perante «uma atitude profundamente rejeitável», no sentido de «constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade», estando aqui em causa as «componentes da culpa relativas ao agente» (Teresa Serra Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, páginas 63 e 64. No mesmo sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes Contra as Pessoas, págs. 48 e ss.; Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, 1979, pág. 25).
«O que motiva a agravação … tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples» (Figueiredo Dias, Homicídio qualificado», Colectânea de Jurisprudência, ano XII – 1987, tomo 4, pág. 52).
Trata-se, pois, de uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples.
Essa diferença de grau tem, necessariamente, repercussões na agravação do desvalor da conduta, em sede de ilicitude. Mas é a existência de um especial tipo de culpa que constituí a matriz da agravação, que justifica também o não funcionamento automático dos exemplos-padrão.
É preciso ter presente que o tipo simples previsto no art. 131º do CP já é de acentuada gravidade, por atentar contra o bem jurídico mais valioso que é a vida humana e por ser motivado por sentimentos e razões que quase nunca merecem uma valoração positiva ou sequer aceitável.
As circunstâncias agravantes modificativas não são de funcionamento automático, como resulta da inclusão da expressão «é susceptível», no mesmo preceito.
Por outro lado, a introdução da expressão «entre outras» no nº 2 do art. 132º do CP, parece implicar, desde logo, que a enumeração de circunstâncias aí contida não é taxativa, mas meramente exemplificativa, apesar de o Tribunal Constitucional ter declarado «inconstitucional a norma retirada do nº 1 do art. 132º do CP, na relação deste com o nº 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do nº 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo art. 29º da Constituição» (Acórdão do TC nº 852/2014 de 10.12.2014, publicado no DR, 2ª Série, de 10.3.2015).
Este acórdão, porém, não pode ser interpretado no sentido da inadmissibilidade legal do assim denominado crime de homicídio qualificado atípico, já que é o próprio texto do mencionado art. 132º do CP que o admite, de resto, partindo da constatação de que podem concorrer circunstâncias envolventes da consumação do homicídio que, apesar de formalmente não preencherem qualquer dos exemplos-padrão enumerados nas diversas alíneas do nº 2, comungam, no entanto, de uma estrutura axiológica ou valorativa afim, semelhante ou equivalente, de uma proximidade ou analogia substancial, de idêntico ou equivalente grau de gravidade, que impõem a mesma agravação.
Mas, a contrapartida do reconhecimento feito pelo legislador penal das limitações na sua capacidade de previsão no que tange a enumerar circunstâncias indiciadoras de especial perversidade e de especial censurabilidade e do propósito expresso de não pretender esgotar todas as possibilidades de agravação do homicídio com o elenco inserto nas várias alíneas do nº 2, tem de ser um especial rigor e severidade na qualificação jurídica dos factos como crime de homicídio qualificado, quando as circunstâncias do facto criminoso não correspondam literalmente a qualquer daquelas alíneas, mas sejam substancialmente análogas a alguma delas, sendo-lhe valorativa e axiologicamente equivalentes.
«Nesta compreensão só podem punir-se por homicídio qualificado atípico as condutas que, embora não correspondendo ao teor expresso de qualquer dos exemplos-padrão, seja, todavia, possível, por via de interpretação extensiva (assente numa indiscutível comunicabilidade teleológico-axiológica) incluir no “tipo orientador” de ilícito (danosidade social/desvalor de ação) e de culpa de um dos exemplos-padrão. Só depois de uma prévia, e necessariamente positiva, resposta às exigências de um exemplos-padrão será admissível, num segundo momento, questionar a especial censurabilidade ou perversidade». Isto porque «as noções de especial perversidade e censurabilidade, desapoiadas de qualquer elemento concretizador extraído de uma das alíneas do nº2 do artigo 132º, ficam à mercê das pré-compreensões do legislador, construídas com base nas suas convicções, morais, sociais, culturais, filosóficas, religiosas, etc, introduzindo um fator de incerteza intolerável na lei penal» (Acórdão do TC nº 852/2014 de 10.12.2014, publicado no DR, 2ª Série, de 10.3.2015. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 02.04.2008, proc. 07P4730, de 14.10.2010, proc. 494/09.9GDTVD.L1.S1., de 12.09.2013, proc. 680/11.1GDALM.L1.S1, de 12.03.2015, proc. 40/11.4JAAR.C2, de 4.11.2015, proc. 122/14.0GABNV.E1.S1, de 30.03.2016, proc. 158/14.1PBSXL.L1, de 26.06.2019, proc. 763/17.4JALRA.C1.S1, in http://dgsi.pt).
Assim, o que se exige, de harmonia com o princípio da legalidade em Direito Penal, na vertente da tipicidade, é que a qualificação do crime de homicídio resulte sempre da conjugação dos dois números 1 e 2 do art. 132º, nos seguintes termos: em primeiro lugar, é indispensável que os factos se subsumam directamente a algum (ou a vários) dos exemplos-padrão, no seu literalismo, ou que se verifique uma, algumas, ou várias circunstâncias que correspondam à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de algum dos exemplos padrão; em segundo lugar, depois de analisadas à luz da cláusula geral da especial perversidade e/ou da especial censurabilidade do nº 1, é preciso que revelem formas particularmente desvaliosas de realização do facto pelo agente, ou a existência de qualidades especialmente desvaliosas na sua personalidade e, precisamente por efeito dessa conjugação, uma imagem global do facto especialmente agravada, um plus de culpa do agente, aos quais a moldura penal abstracta do tipo simples não dá resposta adequada nem suficiente, nem assegura os fins das penas, pelo que seria materialmente injusto, não as incluir na agravação.
É preciso, pois que essa imagem global do facto seja aferida à luz dos dois números do art. 132º funcionando conjugadamente. Nem será suficiente o mero preenchimento das alíneas do arts. 132º nº 2 do CP, nem a verificação da existência da especial censurabilidade ou da especial perversidade exigidas no nº 1, se desligadas da ocorrência de um exemplo padrão, ou de alguma circunstância de grau de gravidade equivalente, ou de estrutura valorativa ou axiológica semelhante.
Se o modo de execução do homicídio nem sequer integrar algum exemplo-padrão ou situação substancialmente análoga, mesmo que indicie uma especial censurabilidade ou perversidade, jamais poderá dar origem à qualificação como homicídio qualificado, sendo desnecessário averiguar da especial censurabilidade ou da especial perversidade.
Assim sendo, se nem sempre a prova de factos integradores de alguma das circunstâncias expressamente previstas no nº 2 do art. 132º desencadeará a agravação, também da não verificação de qualquer delas, não se segue que não possam descortinar-se outras que justifiquem a qualificação do homicídio.
Tudo depende da valoração que puder ser realizada a partir da chamada imagem global do facto e da interpretação comparativa e conjugada da cláusula geral do nº 1 com os exemplos padrão do nº 2 do art. 132º do CP.
Esta é a única solução que permite salvaguardar o equilíbrio entre as razões de justiça material e de proporcionalidade das penas à gravidade dos crimes e ao grau de culpa dos seus autores que justificam a enumeração meramente exemplificativa das alíneas do art. 132º nº 2, por um lado, e os princípios da tipicidade e da legalidade vigentes em Direito Penal, por outro lado, de harmonia com os quais é imperioso prevenir que a qualificação do homicídio se converta, contra o sentido e a razão de ser da Lei, em modalidade regra de consumação, esbatendo e ilidindo as diferenças entre o tipo simples e as suas formas agravadas e banalizando estas últimas.
«O que o aplicador tem de fazer é partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente» (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, pág. 43).
«Qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º, no caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado “Leitbild” dos exemplos-padrão, que, de alguma maneira, faz com que o caso deva ser considerado como pertencente a um grupo de valoração estratificado a partir do tipo fundamental» (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, pág. 64.).
«Ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do nº 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão», sendo «absolutamente vedado o recurso ao chamado homicídio qualificado atípico sem passar por nenhum dos exemplos-padrão do nº2» (Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª ed., revista e atualizada, ed. da AAFDL, Lisboa, 2007, págs. 25 e 26).
«A aceitação de outras circunstâncias agravantes, não expressamente previstas na lei, depende da possibilidade de vislumbrar, nova situação, o grau de desvalor e a estrutura valorativa de algum dos exemplos-padrão», não podendo o juiz «apelar diretamente à cláusula geral do º1 para afirmar um homicídio qualificado atípico nem acrescentar novas alíneas ao nº2 do artigo 132º. Só lhe é permitido identificar um homicídio qualificado atípico, por via de uma conclusão por analogia do caso em apreço com um dos exemplo-padrão da lei» (Teresa Quintela de Brito In, “O Homicídio Qualificado (art. 132º), Direito Penal-Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pág. 178).
Em suma, os exemplos padrão encerram, pois, circunstâncias que, além de meramente exemplificativas e de funcionamento não automático, são elementos constitutivos de um tipo de culpa agravado (Neste sentido, além dos autores citados, ainda, Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191; Cristina Monteiro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, 122 e seguintes; Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes Contra as Pessoas, p. 48 e ss; Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, págs. 40 e 41; Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, págs. 24 e 29. Na Jurisprudência, Acs. do STJ de 14.10.2010, proc. 494/09.9GDTVD.L1.S1, de 17.04.2013, proc. 237/11.7JASTB.L1.S1, de 30.10.2013, proc. 40/11.4JAAVR.C2.S1, de 24.09.2014, proc. 994/12.3PBAMD.L1.S1, de 18.03.2015, proc. 351/13.4JAFAR.E1.S1, de 25.03.2015, proc. 866/13.4GBGMR.S1, de 04.11.2015, proc. 122/14.0GABNV.E1.S1, de 05.07.2017, proc. 1074/16.8JAPRT.P1, de 20.06.2018, proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2, de 12.07.2018 proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, de 15.01.2019, proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, de 27.03.2019, proc. 316/17JAFUN.L1.S1, de 27.05.2020, proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1, in http://www.dgsi.pt).
«O entendimento de que é essencialmente no conteúdo dos exemplos-padrão elencados pelo legislador no n.º 2 do artigo 132.º do CP que se joga a conformidade do nosso modelo de qualificação do homicídio com o imperativo de determinabilidade da lei penal afigura-se, de resto, correto. Constitui entendimento pacífico – embora com nuances em construções doutrinárias diferentes – que: (i) a verificação de um exemplo-padrão, por si só, não conduz à qualificação, sendo necessário que a circunstância nele descrita seja ponderada à luz da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade; e que (ii) a qualificação também não se produz com base direta e exclusiva na referida cláusula geral, sendo necessário que esta se ache indiciada por circunstâncias subsumíveis num exemplo-padrão (ou, pelo menos, análogas na sua «estrutura axiológica» a circunstâncias subsumíveis num exemplo-padrão – cf. o Acórdão n.º 852/2014). A fórmula «não só nem sempre» exprime concisamente estes postulados (AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes contra a vida e a integridade física, AAFDL, 2007, p. 24).
«Justifica-se sublinhar que, diversamente do que ocorre em outros ordenamentos jurídicos, este modelo de qualificação não é, portanto, um puro modelo de exemplos-padrão: justamente porque da verificação de um exemplo-padrão não resulta imediatamente a qualificação do crime (vd. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, “Artigo 132.º – Homicídio Qualificado”, in Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I, Coimbra Editora, 2012, p. 49). A conjugação dos dois números do artigo 132.º do CP produz um «resultado qualitativamente novo» e é ela que assegura a «inteira compatibilidade» do modelo com o princípio da legalidade (TERESA SERRA, Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2003, p. 122 e 127).
«Sem embargo, a finalidade primacial de cada um daqueles elementos dentro do modelo de qualificação afigura-se distinta. De facto, no âmbito do tipo legal do homicídio qualificado pode discernir-se que: (i) é primacialmente à cláusula geral da especial perversidade ou censurabilidade que cabe exprimir o fundamento da qualificação (de uma «cláusula agravante determinada e suficientemente descrita» fala, neste sentido, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português. Parte Geral. II. As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1993, p. 204), pois de outro modo, por um lado, as circunstâncias subsumíveis nos exemplos-padrão não teriam de ser submetidas ainda a esse crivo e, por outro, jamais poderia admitir-se que circunstâncias axiologicamente análogas às que são expressamente descritas nos exemplos-padrão pudessem conduzir à qualificação; e que (ii) é principalmente aos exemplos-padrão que cabe assegurar a suficiente determinação do tipo exigida pelo princípio da legalidade. Não fosse esta exigência, a cláusula geral, ao expressar já bastantemente a razão de ser da qualificação, seria autossuficiente, dispensando a simultânea previsão de hipóteses dotadas de maior concretude. De facto, por si só, a cláusula geral permitiria já avaliar, desde logo, a conformidade do tipo legal do homicídio qualificado com os princípios do bem jurídico e da subsidiariedade da intervenção penal (ainda que uma tal avaliação saia tanto mais beneficiada quanto mais detalhado for tipo legal: cf. Acórdão n.º 377/2015). No entanto, por si só, a cláusula geral já não satisfaria o princípio da tipicidade e a exigência de determinabilidade que ele postula.» (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 20/2019, proc. n.º 776/16, 3.ª Secção de 09.01.2019, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Insidioso é um adjectivo proveniente do latim insidiosus, que significa «que arma insídias, ciladas, sendo sinónimo de aleivoso, traiçoeiro, pérfido» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa, s.v. “insidioso”). Sendo insídia, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a «espera às escondidas do inimigo para investir sobre ele; emboscada, cilada».
Como circunstância agravante modificativa do crime de homicídio, refere-se a um subterfúgio, uma forma dissimulada para induzir a vítima em erro e para a tornar mais vulnerável à actuação do agente, através de comportamentos deste como a espera, a emboscada, a traição, a surpresa, um ataque súbito e sorrateiro, ou qualquer fraude dirigidas à vítima e que tenham por efeito retirar-lhe, dificultar especialmente ou diminuir-lhe significativamente as hipóteses de reacção e defesa, sendo insidioso, «todo o meio cuja forma assuma características análogas às do veneno, do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto» (Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, p. 38 e 39).
«Na insídia o agente aproveita a distracção da vítima para actuar; age enganando-a, cria uma situação que a coloca em posição de não poder resistir como em circunstâncias normais sucederia» (Maria Margarida Silva Pereira, Textos – Direito Penal II – Os Homicídios, Vol. II– AAFDL, 1998, p. 42).
«A noção de meio insidioso abrange não apenas meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desprotecção da vítima em relação ao agressor: é o caso da facada traiçoeira pelas costas ou do disparo de arma de fogo em emboscada, meios que retiram à vítima qualquer capacidade de protecção. Aliás, o fundamento da qualificação contida nesta alínea reconduz-se precisamente à utilização de meios pelo agente, por forma a aproveitar-se dessa desprotecção da vítima» (Teresa Serra, in Homicídios em Série, conferência integrada em Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 1995), CEJ, 1998, volume II, págs. 153-154, e Jornadas sobre a revisão do Código Penal, em edição da AAFDL, 1998, págs. 131-132 133).
«Trair é aproveitar distracção, enganar a vítima, criar uma situação que a coloque em posição de não poder resistir com a mesma facilidade» (Maria Margarida Silva Pereira, in Textos, Direito Penal II. Os Homicídios, volume II, AAFDL, 1998, pág. 42).
«Está em causa o modo de execução do crime, nomeadamente através de uma actuação insidiosa. Ou seja, o agente utiliza um meio traiçoeiro, enganador, que expõe a vítima para que se reduzam as suas possibilidades de defesa. A vítima desconhece que o agente está a empreender um processo casual com vista à produção da sua morte, por isso torna-se numa “presa” fácil e desprotegida, sem hipótese de defesa. (…) A pedra de toque que nesta circunstância faz pressupor a maior censurabilidade é a traição, por esse motivo o envenenamento da vítima surge apenas para demonstrar o espírito que a norma pretende alcançar, abrindo a hipótese de utilização de outros meios insidiosos. (…)» (Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, Quid Juris, 2008, pág. 79).
O uso de meio insidioso pode traduzir múltiplos comportamentos «desde que de natureza e/ou efeitos valorativamente análogos à utilização do veneno, nomeadamente quanto ao modo sub-reptício, inesperado, traiçoeiro de atuação/utilização, capaz de deixar a vítima totalmente desprotegida perante a agressão imprevista e imprevisível, instantânea ou prolongada de que seja alvo, apta a pôr a sua vida em perigo ou mesmo a matá-la, e sem qualquer hipótese de defesa, um simples esboçar que seja dela, se daí, desse exemplo padrão, puder indiciar-se ou extrair-se o tipo especial de culpa reclamado pela cláusula geral do n.º 1 do artigo 132º do CP, que se reconduz à possibilidade de, sobre o autor do crime de homicídio, pela sua conduta ilícita particularmente desvaliosa e atitude ou personalidade desviante por ela revelada, formular um particular e acentuado juízo de censura e/ou de perversidade» (Ac. do STJ de 31.01.2024, proc. 2540/22.1JAPRT.P1.S1. No mesmo sentido: Acs. do STJ de 27.05.2010, proc. 58/08.4JAGRD.C1.S1, de 09.07.2014, proc. 38/05.1SVLSB.L2.S1, de 25.10.2017, proc. 3080/16.3JAPRT.S1, de 15.01.2019, proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, de 26.06.2019, proc. 763/17.4JALRA.C1.S1, de 14.05.2020, proc. 407/18.7JALRA.C1.S1, de 15.04.2021, proc. 82/19.1PBSTR.E1.S1, de 14.10.2021, proc. 255/19.7GAVFX.L1.S1, de 10.11.2022, proc. 324/21.3JAVRL.G1.S1, todos in http://www.dgsi.pt).
Em face da matéria de facto provada, nenhuma dúvida resta que foi a actuação do arguido sobre a vítima, naquele dia 26 de Fevereiro de 2022, melhor descrita sob os pontos 4 a 9 da matéria de facto provada, que determinou a morte de HH, nesse mesmo dia.
Com efeito, nesse dia, cerca das 8 horas, ao ver a vítima a caminhar na rua, nas imediações do ..., dirigiu-se ao mesmo, iniciando um confronto físico em que ambos se envolveram e em cujo decurso o arguido utilizando uma faca que já tinha na sua posse desferiu um golpe contra o corpo de HH espetando-lha por debaixo do mamilo esquerdo e atingindo o coração, causando-lhe a a ferida na parte inferior do mamilo esquerdo com cerca de 2,6cm de comprimento por 1,4cm de largura que determinou a morte de HH.
E, na medida em que, como resulta dos pontos 12. e 13., o arguido quis matar a vítima, conhecendo o carácter proibido e punível pela Lei Penal da sua conduta, constituiu-se autor material de um crime de homicídio, posto que se mostram verificados todos os elementos constitutivos do tipo e não concorrem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
O Colectivo que realizou o julgamento e proferiu o acórdão recorrido considerou que (transcrição parcial):
« No caso, o arguido faz uso de uma faca, durante um confronto físico que iniciou com a vítima, com troca de socos, não se evidenciando o factor surpresa e a insídia, nos moldes vindos de enunciar, ainda que a vítima haja sido surpreendida pela utilização do objecto cortante (desde logo, porquanto o arguido não o abordou empunhando logo a faca). Ademais, uma faca, como a que foi usada pelo arguido, é um objecto de uso corrente, mas que, como arma branca, que também é, pode ser utilizado, frequentemente, como arma letal de agressão, sem que possa integrar-se no conceito jurídico-penal de «meio insidioso», como visto.
«Assim sendo e sem prejuízo de ponderação da descrita e apurada factualidade na determinação da medida da pena, não se pode concluir pela integração das imputadas circunstâncias qualificadoras do ilícito, impondo-se sancionar o arguido pela prática do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131°, do Cód. Penal, do mais se absolvendo.»
Ora este excerto não merece concordância deste Tribunal, no que se refere à agravação pelo recurso a meio insidioso.
O Mº. Pº. alicerçou a sua discordância em relação ao enquadramento jurídico penal feito no acórdão recorrido, nos factos provados 5 a 7 e 12.
Relembrando o que delas consta, resultou demonstrado que:
5. Ao se aperceber de que junto ao referido bar caminhava HH, de imediato se dirigiu em passo de corrida na direcção daquele;
6. Ao se aproximar de HH, sem que este tivesse dito ou feito o que quer que fosse, o arguido, sem lhe dirigir qualquer palavra, começou a empurrá-lo e a desferir-lhe murros, pelo que HH foi obrigado a defender-se acabando ambos por se envolver em agressões mútuas levando a que a dada altura caíssem ambos no chão;
7. Após se levantarem, o arguido continuou a fazer vários avanços e recuos na direcção de HH para o agredir, sendo que numa dessas investidas, de forma dissimulada e sem que aquele se apercebesse, o arguido empunhou a já mencionada faca e espetou-lha por debaixo do mamilo esquerdo atingindo o coração;
12. 0 arguido agiu com o propósito conseguido de tirar a vida a HH, bem sabendo que ao utilizar a faca supra referida da forma que o fez iria surpreender HH não lhe dando qualquer hipótese de defesa, igualmente sabendo que perfurar-lhe o peito na zona referida era meio adequado a causar-lhe a morte;
Ora, desta factualidade retira-se sem qualquer dúvida que o arguido, num ambiente de festa generalizada como é o Carnaval de Torres Vedras, sem qualquer contexto factual antecedente de algum tipo de hostilidade ou contenda com a vítima, que nem sequer conhecia, portanto, contra todas as expectativas possivelmente imagináveis e sem que nada o explicasse, agrediu a vítima com uma faca, que já trazia escondida, tanto assim que, como se refere no ponto 7, o arguido desferiu o golpe de faca por debaixo do mamilo esquerdo do corpo de HH «de forma dissimulada e sem que o mesmo se apercebesse».
É que o primeiro momento em que houve agressões físicas recíprocas entre o arguido e a vítima, caindo ambos ao chão, nem sequer é apto a criar a possibilidade de a vítima antecipar o comportamento do arguido de o atingir mortalmente com uma faca, quer, porque à luz de regras básicas de senso e experiência comum, de um confronto físico, para mais iniciado pelo próprio arguido sem que antes houvesse qualquer conflito, divergência ou hostilidade entre ambos, tal desfecho jamais seria de esperar, quer, porque naquele circunstancialismo concreto, ao manter a faca escondida e só a mostrando, no preciso momento em que atingiu HH no coração e quando ambos estavam envolvidos em confrontos físicos, aliás, desencadeados pelo próprio arguido, sem que algo o fizesse prever, retirou a HH qualquer capacidade de antever que o arguido o poderia agredir com uma faca.
Portanto, não é do uso da faca que emerge a especial censurabilidade do comportamento do arguido: as facas, pelas suas características intrínsecas são meios naturalmente adequados a ferir e a matar, pelo que matar alguém com uma faca corresponde por via de regra, à execução do crime de homicídio, dentro dos padrões de tipicidade, ilicitude e culpa do tipo simples contido no art. 131º do CP.
O que densifica, no caso subjudice, o comportamento do arguido e o faz entrar no âmbito da previsão do art. 132º nºs 1 e 2 al. i) do Código Penal, é a forma concreta como o arguido decidiu retirar a vida a HH e concretizou esse seu propósito criminoso – num ambiente de festa e alguma euforia, com milhares de pessoas nas ruas, mesmo àquela hora da manhã e elevados índices de ruído, como é próprio do Carnaval de Torres Vedras, apostando no factor surpresa, correndo na direcção da vítima logo que a viu e, apanhando-a desprevenida, começando a agredi-la no seu corpo e saúde, sem sequer lhe dar a perceber que tinha consigo uma faca, portanto, coarctando-lhe qualquer possibilidade de fugir do local, ou pedir auxílio a quem estivesse por perto, caso o conseguisse ouvir, naquele específico contexto, a fim de conter as investidas do arguido que o atingiu, logo na zona do coração, não dando a HH qualquer possibilidade de defesa em relação ao dito golpe desferido com tal instrumento. O meio usado é, assim, insidioso e é índice revelador de maior censurabilidade e perversidade do arguido porque a utilização de tal objecto cortante de que se muniu para consumar a agressão e a morte, configurou, no caso concreto, um meio desleal e traiçoeiro na medida que neutralizou toda a margem de defesa ou de reacção da vítima, até pelo inusitado das circunstâncias que rodearam o cometimento do crime, contra todas as expectativas que a alegria e o convívio normalmente associados aos festejos do Carnaval geram de descontracção e sentimentos de segurança e partilha entre as pessoas, para mais, num encontro meramente causal, em que a vítima vinha tão-só a caminhar pela rua ao mesmo tempo que o arguido e sem que se tenha descortinado neste crime motivo algum, relevante ou irrelevante, torpe, ou fútil, cometido, pois, com grande frieza, eficácia e determinação, de resto, ilustrada pelas circunstâncias que se extraem da matéria de facto provada de que o arguido antes de matar HH andou várias horas munido da faca, de forma dissimulada – cfr. factos 1, 2 e 7, além do comportamento do arguido que, no exacto momento em que viu a vítima ter investido sobre ela, de forma súbita, desferindo-lhe agressões no corpo e saúde, também estas adequadas a neutralizar a possibilidade de a vítima resistir às suas investidas ou tão só fugir do local.
Estão, pois, verificados todos os elementos necessários à punição do arguido pela circunstância agravante qualificativa mencionada na al. i) do n.º 2 do art. 132º do CP.
Quanto às questões da pena concreta aplicada suscitadas no recurso do arguido e no recurso do Mº Pº.
Dos fins das penas anunciados no art. 40º do Código Penal e do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (na sua tripla vertente, necessidade da pena, adequação e proporcionalidade em sentido estrito e nas suas manifestações de proibição do excesso e de proibição de protecção deficiente), as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes:
As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa;
A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena;
Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada;
Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais, negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.).
É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito.
Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência.
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25).
No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de penas, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197; Acs. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1 in http://www.dgsi.pt).
«Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar» (Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Ac. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).
«A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
O acórdão recorrido aplicou ao recorrente a pena de catorze anos de prisão, com fundamento na prática, pelo mesmo de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do CP, por não ter considerado verificadas as circunstâncias qualificativas previstas nas alíneas e) e i), do n° 2, do art. 132°, do Cód. Penal.
Ora, em face da qualificação do crime cometido pelo arguido como um crime de homicídio qualificado, a espécie de pena e a moldura penal abstracta prevista para o crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i) do CP, cometido pelo arguido AA é a pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, doze e vinte e cinco anos.
A pena de dez anos que o arguido recorrente pretende ver-lhe aplicada padece de uma total falta de fundamento legal, desde logo, por se encontrar abaixo do limiar mínimo da moldura penal abstracta realmente aplicável aos factos objecto deste processo.
Do mesmo modo a pena de catorze anos aplicada pela primeira instância não pode de modo algum manter-se por ser desproporcional, na dimensão de proibição de protecção deficiente, à gravidade dos factos, ao grau de culpa do arguido e aos fins das penas anunciados no art. 40º do Código Penal.
Nos termos do art. 40º nº 1 do CP, é função da pena, salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas e acrescentando, no seu nº 2, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (concepção ético-preventiva da culpa).
Este art. 40º veio, pois, concretizar no âmbito do Direito Penal e em matéria de escolha e dosimetria das penas, os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrados no artigo 18º nº 2 da CRP.
Por seu turno, o art. 71º nº 1 do CP impõe que a determinação da pena seja realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Com efeito, «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena» (Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194).
Assim, as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes:
As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa;
A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena;
Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada.
Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais, negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.).
É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito.
Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência.
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, pág. 25).
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas.
Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).
De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.
«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção» (Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322).
Culpa e prevenção geral são, por conseguinte, os dois grandes limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena, prosseguindo a necessidade de assegurar o equilíbrio entre a medida óptima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229). À prevenção especial de socialização competirá fazer oscilar o quantum da pena no sentido da aproximação de um ou de outro daqueles dois limites.
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas» (Anabela Miranda Rodrigues, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182).
«V - No vigente regime penal, a função primordial da pena é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos.
VI - A culpa, de fundamento, passou a “teto” acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente, assumindo, assim, a “função politico-criminal de garantia dos cidadãos e não mais do que isso”» (Ac. do STJ de 6.10.2021, proc. 401/20.8PAVNF.S1, in http://www.dgsi.pt).
«Dentro da moldura penal, o limite mínimo inultrapassável da dosimetria da pena concreta é dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos violados ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, “do quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 242). E o limite máximo pela medida da culpa - nulla poena sine culpa. A prevenção especial de socialização pode, sem interferir naqueles limites, fazer oscilar o quantum da pena no sentido de se aproximar de um dos limites.
«A pena concreta que se comporte nestes limites é uma pena necessária, imposta em defesa do ordenamento jurídico-criminal. Pena única em medida inferior colocaria em causa “a crença da comunidade na validade das normas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais”.
«Comportando-se nos estritos limites da culpa, que é a salvaguarda ética e da dignidade humana do agente, será uma pena proporcional.
«É uma pena em medida ótima se satisfizer as exigências de prevenção geral positiva e ao mesmo tempo assegurar a reintegração social do agente habilitando-o a respeitar os bens jurídicos criminalmente tutelados (sem, todavia, lhe impor a interiorização de um determinado modelo ou ordem de valores).
«As exigências de prevenção geral podem variar em função do tipo de crime e variam as necessidades de prevenção especial de socialização em razão das circunstâncias do concreto agente e da personalidade que revela no cometimento dos factos.» (Ac. do STJ de 19.01.2022, proc. 327/17.2T9OBR.S1, in http://www.dgsi.pt).
O art. 71º do Código Penal enumera as circunstâncias que contribuem para agravar ou atenuar a responsabilidade, a que o Tribunal deverá atender, para tal efeito.
Dispõe este preceito, no nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 do mesmo artigo enumera, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender, dispondo o nº 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, em correspondência com o artigo 375º nº 1 do CPP, que impõe que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Nessa enumeração exemplificativa vislumbram-se critérios, tanto associados à prevenção geral, como é o caso da natureza e do grau de ilicitude do facto (que impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como relacionados com exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Com efeito, esses critérios referem-se, uns, à execução do facto – als. a), b), c) e e), parte final, como é o caso do grau de ilicitude do facto, do modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência e os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; outros, à personalidade do agente, como sejam as suas condições de vida e a sua preparação ou falta dela, para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – als. d) e f) – e, outros, ainda, à conduta anterior e posterior ao facto – al. e) - especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Mas estas circunstâncias a que se refere o mencionado nº 2 do art. 71º, são aquelas que não integram os elementos constitutivos do tipo, sob pena de violação do princípio do «ne bis in idem», embora, na parte em que a sua intensidade concreta ultrapasse os limites necessários que a lei considera no tipo incriminador para a determinação da moldura penal abstracta, devam ser consideradas na fixação concreta dessa moldura.
As exigências de prevenção geral são fortíssimas, quer atendendo à natureza do bem jurídico violado – a vida humana – que é, entre todos os que integram a escala de valores individuais e comunitários que o Direito Penal visa proteger, o mais valioso, quer à indesejável e preocupante proliferação de crimes contra a vida, quer ainda, em virtude do alarme social que crimes tão graves como o praticado naquele dia 26 de Fevereiro de 2022, na pessoa de HH são adequados a desencadear, fruto da facilidade com que este arguido tirou a vida à vítima, quer em razão do específico contexto em que tal aconteceu, num ambiente de festa de Carnaval, propício à alegria e ao convívio de milhares de pessoas que acorrem a Torres Vedras, muitas vezes em grupos de amigos e em família, onde convivem pessoas de todas as idades e para quem a notícia de que crimes de homicídio como o que é objecto deste processo potencia sentimentos de insegurança, de revolta e de profunda reprovação.
As exigências de reposição dos índices de confiança comunitária, na validade e eficácia das normas incriminadoras contidas nos arts. 131º e 132º do Código Penal, são, por conseguinte, fortíssimas.
Como intensíssimo é igualmente o dolo. O arguido agiu com dolo directo que é, entre as três modalidades previstas no art. 14º do CP, a mais intensa, do mesmo modo que é muito elevada a ilicitude do comportamento, quer do ponto de vista do desvalor da acção – dada a eficácia, premeditação com que o arguido tirou a vida a HH e por motivo nenhum, de forma totalmente escusada e gratuita, atingindo-o mortalmente e deixando-o entregue à sua própria sorte, não providenciando por socorro ainda que por outrem – quer do ponto de vista do resultado, que foi a perda de uma vida humana.
A postura assumida pelo arguido perante os factos objecto deste processo, aliás, patente também nos argumentos invocados no presente recurso, revela um total desprezo pelo valor da vida humana e um grande à vontade com o uso de violência sobre terceiras pessoas, sem o mínimo de ressonância crítica ou de capacidade de autocensura perante a exponencial gravidade e censurabilidade do crime de homicídio que cometeu, como o revela, desde logo, a sua pretensão de que lhe seja aplicada apenas uma pena de dez anos de prisão e a ligeireza com que, para tanto, veio invocar, como que para justificar o injustificável, os consumos de álcool e de estupefacientes que costumam acontecer durante o Carnaval, como se fosse algo normal ou sequer frequente que as pessoas sob o efeito de ingestão excessiva de álcool ou de consumo de substâncias estupefacientes andassem por aí a desferir facadas a outrem.
O arguido também não tem bom comportamento social anterior.
Além da falta de arrependimento sincero, reconhecendo a gravidade do crime e os prejuízos dele resultantes para a família da vítima, não por empatia, mas pelo sofrimento que a reclusão lhe provoca, as suas condenações anteriores por crimes de violência doméstica, tendo cometido o crime de homicídio objecto deste processo quando estava em cumprimento de um regime de prova imposto como condição da suspensão da execução de uma pena de prisão imposta or um crime de violência doméstica praticado em 2019, revelam bem a sua impreparação para assumir, de forma consistente um comportamento socialmente responsável, associados por um trajecto de vida pautado por um inserção familiar disfuncional e comportamentos aditivos também intensificam as exigências de prevenção especial.
Com efeito, resultou provado que:
- o arguido é o primeiro de uma fratria de dois, tendo um irmão consanguíneo mais velho, provém de um enquadramento familiar desfavorável marcado pela problemática de estupefacientes e de relacionamento entre as figuras parentais que viria a condicionar negativamente a sua estabilidade psicoemocional ulterior, tendo os seus pais se separado quando ele tinha cerca de 14 anos, na sequência da reclusão do pai e do abandono do agregado constituído por parte da mãe, toxicodependente, ficando o arguido aos cuidados dos avós paternos;
- a desestruturação familiar na infância contribuiu para a adopção de comportamentos ilícitos tendo sido sujeito a intervenção tutelar educativa;
- o percurso escolar do arguido caracterizou-se por instabilidade decorrente das dificuldades de adaptação escolar e baixo rendimento que condicionou várias retenções. Igualmente, manifestou dificuldades comportamentais e no relacionamento interpessoal que motivaram várias sanções disciplinares. Após concluir o sexto ano de escolaridade, aos 17 anos, o arguido ingressou no ensino noturno para se habilitar com o ensino secundário, concluindo o nono ano de escolaridade aos 20 anos, ao mesmo tempo que desenvolvia atividade profissional em área indiferenciada;
- antes da reclusão, o arguido vivia com os avós paternos e com a irmã mais nova, de 17 anos, na localidade de Paúl, em Torres Vedras, num contexto relacional de afectividade, laços estendidos à figura paterna e ao agregado constituído deste, que reside em Torres Vedras;
- mantém um relacionamento afectivo com uma namorada há mais de um ano, descrito de forma positiva, sendo anteriormente ambos presença assídua na casa um do outro e na interação com os familiares. Nos tempos de lazer o arguido praticava exercício físico num ginásio e convivia com os familiares, com a namorada e com amigos, sendo referida a sua facilidade na interação social;
- o arguido mantinha-se laboralmente ativo, tendo contrato de manutenção e limpeza de máquinas no stand da BMW, em Torres Vedras, há cerca de um ano. Na sua trajetória anterior o arguido trabalhou como eletricista, no transporte de vigas de ferro, num centro de abate de veículos e na construção civil para entidades patronais diferentes. Tem também um cartão de segurança desde 29/09/2021, após ter-se habilitado com o referido curso;
- a economia do agregado que integrava anteriormente, permitia assegurar a subsistência dos diferentes elementos e dependia dos rendimentos auferidos pelo arguido e pela pensão de reforma dos avós paternos, contando também com o apoio financeiro do pai, que desenvolve funções como madeireiro;
- o arguido tende a oscilar entre um estilo relacional calmo e reativo dependendo do interlocutor, do contexto e do assunto abordado, denotando algumas dificuldades em autorregular os afectos e a impulsividade, assumindo o consumo regular anterior de substâncias aditivas (haxixe e álcool) desde a adolescência;
- à data dos factos, mantinha acompanhamento no âmbito de uma suspensão de execução de pena com regime de prova, no processo n° 5/19.8GDTVD, do Juiz 2, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras, no qual foi condenado numa pena de dois anos e oito meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo pela prática de um crime de violência doméstica, no âmbito do qual e segundo relatório intercalar "evidenciou algum esforço em prosseguir a sua vida com normalidade (...) não tendo voltado a importunar a queixosa (...) mostrando ser uma pessoa com uma estrutura de pensamento pouco flexível (...) muito centrado no seu ponto de vista, evidenciando dificuldades do foro psico-emocional (...) não tendo aceite submeter-se a acompanhamento psicológico, não reconhecendo essa necessidade' (sic);
- o arguido encontra-se preso preventivamente desde 22.02.2022, actualmente no Estabelecimento Prisional de Caxias, a ordem destes autos, referindo repercussões negativas, sobretudo nos campos pessoal, sociofamiliar e profissional, decorrentes da situação jurídico- penal atual, nomeadamente pela privação da liberdade, pelo afastamento dos familiares e da namorada e pela interrupção da atividade profissional;
- no contexto prisional, mantém-se inativo em termos formativo-laborais, apresentando um comportamento globalmente adequado, embora registe dois incidentes disciplinares, não tendo ainda sido proferida decisão final num deles, e continua a beneficiar de apoio do exterior, nomeadamente dos familiares, da namorada e de amigos, recebendo visitas regulares por parte destes, que se mostram incondicionalmente disponíveis para lhe prestar todo o apoio, descrevendo-o como um indivíduo "temperamental mas com o melhor coração do mundo, sempre disposto a ajudar os mais desprotegidos"(sic);
- já foi julgado e condenado, por duas vezes, pela prática de crimes de violência doméstica, sempre em pena de prisão, suspensa na sua execução, por factos de 2015 e 2019, situando-se estes factos no período da última suspensão (de uma pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com sujeição a regime de prova - processo 5/19.8GDTVD, do Juízo Local Criminal de Torres Vedras - Juiz 2).
O elevado grau de ilicitude do facto, aferido pelo seu modo de execução, o dolo intenso e directo, tendo o arguido agido livre, voluntária e conscientemente no propósito concretizado de desferir um golpe no coração da vítima (zona vital do corpo) com uma faca, não dando à mesma qualquer possibilidade de defesa conduta esta de que resultou direta e necessariamente a morte.
Perante um comportamento tão grave, é inquestionável que a medida da culpa, assim como grau de ilicitude, o dolo intenso e directo com que o arguido agiu, as qualidades da sua personalidade manifestadas no facto, reveladoras de uma intensa desconformidade com o direito, a evidente desconsideração e falta de respeito pela vida humana, as exigências de prevenção geral e as exigências de prevenção especial, mostra-se ajustada e proporcional ao grau de culpa do arguido e aos fins das penas, a pena de vinte anos de prisão.
O recurso improcede, na totalidade.
III – DECISÃO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido AA e, em consequência, confirmar integralmente, quer a decisão de 8 de Março de 2023 que indeferiu a realização de perícia médico-legal de avaliação psiquiátrica do arguido.
Custas a cargo do arguido, fixando a Taxa de Justiça em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Julgar o recurso interposto pelo Mº.Pº. procedente e, em consequência:
Revogar parcialmente o acórdão recorrido, na parte em que qualificou os factos como crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º do CP e em que, com base nessa qualificação jurídica, aplicou ao arguido AA a pena de catorze anos de prisão;
Condenar o mesmo arguido AA como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i) do Código Penal, na pena de vinte anos de prisão.
Sem custas – art. 522º do CPP.
Notifique.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 22 de Maio de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Ana Paramés
Maria Antónia Dias Rodrigues Andrade