CONTABILISTA CERTIFICADO
SEGREDO PROFISSIONAL
ESPECIFICAÇÃO DO FUNDAMENTO DO PEDIDO
Sumário

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora)
À semelhança do que sucede com outras profissões (advogados, médicos, etc.), o legislador também previu o dever de confidencialidade para os Contabilistas Certificados como um instrumento de tutela da confiança nas relações que se estabelecem entre o cliente e o seu Contabilista, perante a necessidade social e económica de interesse público, que está pressuposta no estabelecimento dessas relações contratuais.
O sigilo profissional não tem natureza contratual, advém do facto de a profissão ter uma natureza eminentemente pública, constituindo-se como um dever do Contabilista Certificado para com o cliente, a própria classe, a Ordem e para com toda a comunidade em geral.
A violação do dever de segredo constituí infracção disciplinar, punível com suspensão do exercício da actividade até 3 anos (arts. 86° n° 1 al. c) e 89° n° 4 al. d) do EOCC).
Para a decisão sobre qual o interesse que deverá prevalecer – se a manutenção do segredo profissional quanto à revelação dos factos de que obteve conhecimento no exercício das funções correspondentes e por causa delas, ou a investigação dos factos objecto deste processo – importa ter em atenção que, no caso, o Mº. Pº. indicou vários documentos aptos a atestar a existência da obrigação fiscal e o respectivo incumprimento, além de ter arrolado outra testemunha para além daquela cujo depoimento envolve a quebra do segredo profissional em análise, neste incidente.
Por outro lado, não há uma concretização mínima sobre quais sejam afinal os precisos factos sobre que se pretende inquirir a testemunha e do que vem descrito na acusação que delimita os poderes de cognição do Tribunal e o âmbito da decisão a proferir, de acordo com a natureza acusatória do processo penal, sempre se dirá que, estando em causa a demonstração de factos integradores do crime de abuso de confiança fiscal e sendo o pagamento de impostos da exclusiva responsabilidade do sujeito passivo, não fazendo parte da actividade funcional do contabilista certificado, não se descortina interesse algum preponderante que a quebra do sigilo seja apta a garantir.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência:

I – RELATÓRIO
O Mº. Pº. veio suscitar o incidente de levantamento de segredo profissional em relação à testemunha AA, contabilista certificado, indicado como testemunha pelo Mº. Pº., no despacho de acusação.
Para o efeito, alegou, em síntese, que a referida testemunha, chamada a prestar depoimento em audiência de julgamento, veio informar que conhecia os factos em apreciação por força do exercício das suas funções de contabilista e invocar o dever de sigilo profissional;
No caso, o arguido BB encontra-se acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto pelo art. 105.°, n°1, do RGIT.
Foi ouvida a Ordem dos Contabilistas, nos termos e para os efeitos previstos no art. 135º nº 4 do CPP, tendo emitido parecer desfavorável ao levantamento do segredo profissional.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a decisão do presente incidente são os seguintes:
O Mº. Pº. deduziu acusação, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, contra o arguido BB, porque, segundo a descrição contida, nessa acusação:
À data dos factos que infra se descreverão, o arguido CC, titular do número de identificação fiscal 158 291 476, com domicílio fiscal na ..., encontrava-se colectado em sede de IRS pelo exercício da actividade de arquitectura, comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos em estabelecimentos especializados, comércio a retalho de mobiliário e artigos de iluminação, em estabelecimentos especializados e actividades de design, sendo sujeito passivo de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral.
Durante o ano de 2019, o arguido exerceu, de facto, as actividades para as quais se encontrava inscrito tendo, no decorrer das mesmas, emitido facturas das quais foi liquidado IVA aos clientes.
Considerando as transacções que realizou no âmbito da sua actividade, o arguido, após efectuar as deduções a que tinha direito, enviou a declaração de IVA referente ao primeiro trimestre de 2019, sendo IVA Exigível no montante de € 12.857,40, o IVA em falta o de € 9.000,00, a data de envio da declaração a de 15.05.2019 e a data limite de pagamento a de 15.05.2019.
Não obstante, até à data limite de entrega do imposto, ter recebido dos seus clientes IVA no valor de, pelo menos, € 1.1149,58, o arguido não fez acompanhar a declaração que enviou do respectivo meio de pagamento.
Actuação que manteve, mesmo decorridos noventa dias após o termo do prazo de entrega dos montantes do IVA liquidado, e nos trinta dias seguintes após o dia 20 de Novembro de 2020, data em que foi notificado para proceder ao pagamento do valor em dívida, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima aplicável.
Ao agir da forma descrita, o arguido não entregou integralmente o IVA que liquidou e recebeu dos seus clientes, referente ao período supra identificado, momento em que concebeu as vantagens para a gestão financeira da actividade que exerce de tais procedimentos, integrando na sua esfera jurídica a quantia acima referida, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e deveria assegurar, enquanto mero depositário, a sua detenção para ulterior entrega à Administração Fiscal, lesando desta forma patrimonialmente o Estado e os contribuintes em geral.
Do comportamento descrito resultou para o arguido vantagem patrimonial indevida, consubstanciada no valor da quantia devida, recebida e não entregue à administração fiscal - € 9.000 (nove mil euros).
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, querendo e conseguindo obter benefício patrimonial a que não tinha direito e causando ao Estado o prejuízo correspondente.
Sabia o arguido que a sua conduta era e é proibida e punida por lei e, ainda assim, não se absteve de actuar da forma descrita (acusação com referência Citius 129413400);
Na acusação foi imputada ao mesmo arguido, com base nesta descrição, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105º n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (acusação com referência Citius 129413400);
E, nela, o Mº. Pº. indicou os seguintes meios de prova:
I - Documental:
- auto de notícia, de fls. 2;
- declaração periódica, de fls. 7 a 8;
- Resumo integrado do contribuinte, fls. 9 a 14;
- Lista de documentos comerciais de contribuinte, de fls. 19 a 28;
- Elementos contabilísticos, de fls. 42 a 112, 116 a 129verso e 165 a 186;
- Auto de penhora, de fls.59;
- Listagem de processos executivos, de fls. 59verso;
- Notificação a que alude o artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, de fls. 205;
- Relatório, de fls. 214 a 217 e parecer, de fls. 219;
- Mapa de apuramento do IVA comprovadamente recebido, de fls. 218.
II – Testemunhal:
1) AA, melhor id. a fls. 142;
2) DD, melhor id. a fls. 217 (acusação com referência Citius 129413400);
Na sessão da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 29 de Fevereiro de 2024, o arguido declarou não pretender prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados na acusação deduzida pelo Mº. Pº. (acta da audiência de discussão e julgamento com a referência Citius 149543536);
Na mesma sessão da audiência de discussão e julgamento, deu-se início à inquirição como testemunha de AA, profissão: Contabilista, estado civil: Divorciado, domicílio: ... (acta da audiência de discussão e julgamento com a referência Citius 149543536);
Questionada a testemunha nos termos do art. 348° n° 3 do C. P. Penal, disse conhecer o arguido, uma vez que foi contabilista da sociedade arguida cerca de um ano (acta da audiência de discussão e julgamento com a referência Citius 149543536);
Pela testemunha foi invocado o sigilo profissional, uma vez que os factos sobre os quais vai ser inquirido foram obtidos por força do exercício das suas funções (acta da audiência de discussão e julgamento, sessão de dia 29 de Fevereiro de 2024 com a referência Citius 149543536);
Pelo o Mº. Pº. requereu que, tendo em conta que a testemunha EE agora invoca o sigilo profissional ao abrigo do art. 72º nº 1 al d) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e do art. 10º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, seja suscitado o levantamento do sigilo perante o Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do art. 135 nºs 1 e 3 do CPP, porquanto entende que o interesse na prossecução da justiça deverá prevalecer sobre o dever de sigilo levantado. (acta da audiência de discussão e julgamento, sessão de dia 29 de Fevereiro de 2024 com a referência Citius 149543536);
Pelo Defensor do arguido foi dito "Estranhando de quem deve pugnar pela defesa da legalidade democrática tenha sugerido comunicação à ordem dos contabilistas certificados, por se entender que a recusa da testemunha EE se mostra legitima, consubstanciando, muito mais de um direito, um dever legal que se encontra adstrito, posição que só contribui para que as testemunhas fujam da justiça "como o diabo da cruz", nada a opor ao prosseguimento sugerido pelo Digno Magistrado do M.° P.° a que se refere o art.° 135.° do CPP, não prescindindo a defesa de ser notificada do expediente que vier a constituir o identificado incidente, antes da sua subida ao Tribunal da Relação de Lisboa, de modo a que o arguido possa, querendo, exercer cabal e tempestivamente o exercício do contraditório." (acta da audiência de discussão e julgamento, sessão de dia 29 de Fevereiro de 2024 com a referência Citius 149543536);
Após pela Mma Juiz de Direito foi proferido o seguinte despacho:
Nos presentes autos sob a forma processo comum com intervenção de tribunal Singular, o arguido BB encontra-se acusado pelo M.° P.° pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso de confiança fiscal previsto pelo art. 105° n° 1 do RGIT.
No despacho de acusação foi arrolada como testemunha AA, contabilista certificado.
Em sede de audiência de julgamento, veio a referida testemunha informar que conhece os factos ora em apreciação em virtude do exercício das suas funções e que desempenhou funções de contabilista para o aqui arguido, tendo invocado o sigilo profissional.
Ora, conforme resulta da acusação e atendendo aos documentos que se encontram juntos aos autos, resulta que os mesmos foram obtidos junto da contabilidade e que a referida testemunha tem conhecimento dos factos em apreço exclusivamente por força das suas funções profissionais.
Assim, na perspectiva do Tribunal, mostra-se legítima a recusa da testemunha EE em depor na presente audiência de julgamento, sendo certo que nem o M.° P.°, nem o ilustre defensor do arguido põem em causa que os factos ora em apreço estejam sujeitos a sigilo profissional.
Ora determina o art. 72.°, n.° 1 al d) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados.
" Nas suas relações com as entidades a que prestem serviços, constituem deveres dos contabilistas certificados: (... d) Guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho diretivo da Ordem",
Por sua vez, o art. 10° do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados refere que:
“1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda. 2-0 sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. 3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções. 4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho diretivo, em casos devidamente justificados.
Por outro lado, o art. 417º do CPC aplicado no caso concreto por força do art. 4º do CPP, dispõe que:
1- Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. 2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.° 2 do artigo 344° do Código Civil. 3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.° 4, 4- Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado."
Temos, pois, que tal norma consagra genericamente o dever de cooperação para a descoberta da verdade.
Contudo, ressalva a legitimidade da recusa de prestação de colaboração em situações que levem à violação do sigilo profissional.
Quando é deduzida escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre aplicar com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
O artigo 135° do CPP dispõe:
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3- O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5- O disposto nos nºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso”
Face ao exposto, considerando a prova arrolada pelo M.° P.° nos presentes autos e, bem assim, a declaração prestada pela testemunha no sentido de que os factos sobre os quais tem conhecimento foram obtidos por força do exercício das suas funções, o Tribunal decide que se terá que aplicar o regime do art. 135º do CPP, determinando-se a remessa ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa do presente incidente para que o mesmo seja decidido.
Notifique e DN (devendo o presente incidente ser instruído com cópia da acusação e da presente acta) (acta da audiência de discussão e julgamento, sessão de dia 29 de Fevereiro de 2024 com a referência Citius 149543536);
Foi ouvida a Ordem dos Contabilistas, nos termos e para os efeitos previstos no art. 135º nº 4 do CPP, tendo emitido parecer desfavorável ao levantamento do segredo profissional, concluindo que:
« Assim, o sigilo profissional não sendo absoluto, o seu levantamento também não deve ser banalizado, de tal modo que se pretende obter junto do contabilista certificado para que se pudesse aferir se a mesma podia ou não ser obtida de outra forma, esvazie o seu sentido útil, pelo que só deve ocorrer em condições especiais, em situações em que a violação do mesmo, supera, em muito larga medida, a manutenção do segredo.
«Tendo presente o exposto, somos do entendimento que não se descortina a essencialidade da inquirição da testemunha arrolada para a descoberta da verdade material, pelo que não deve ser levantado o sigilo profissional» (parecer entrado em Juízo em 9 de Abril de 2024).
APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO INCIDENTE
O dever de testemunhar envolve o de responder e com verdade às perguntas sobre os factos que a testemunha tenha presenciado ou dos quais tomou conhecimento por outra via, pois, em princípio, não se pode recusar a depor e tem a obrigação de falar com verdade (cfr. artigo 132º nº 1 al. d) do CPP), sob pena de incorrer em responsabilidade criminal (crime de desobediência p. p. pelo art. 348º ou de falsas declarações, p. p. pelo artigo 360º, ambos do Código Penal).
Entronca no dever de colaboração com a administração da justiça penal, a qual por seu turno, prossegue o interesse público no exercício do direito de punir, consagrado nos arts. 29º, 32º e 205º da CRP.
Um dos limites ao dever de testemunhar permitindo à testemunha invocar determinada prerrogativa prevista na lei e, deste modo, recusar válida e eficazmente prestar o seu depoimento é o que resulta do segredo profissional.
O segredo profissional traduz-se num direito-dever da testemunha a não prestar declarações sobre factos relativos à vida privada de alguém, que lhe chegaram ao conhecimento no exercício e por causa da actividade que exerce.
No âmbito do segredo profissional a regra geral é que o mesmo abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 961).
Define-se «como a proibição de revelar, factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional» (Henriques Gaspar e Santos Cabral et. al., Código de Processo Penal Comentado, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, p. 443).
«O conceito de segredo integra três elementos (…). A saber: a) Factos conhecidos de um número circunscrito de pessoas; b) A vontade de que os factos continuem sob reserva; c) A existência de um interesse legítimo, razoável ou justificado na reserva» (Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 1126).
Visa a protecção simultânea do direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa) e um interesse supra individual, associado ao carácter de ordem pública que reveste o exercício de determinadas profissões, concretamente as que vêm mencionadas no art. 135º do CPP.
Com efeito, além da salvaguarda do interesse dos profissionais que recebem possíveis informações confidenciais, assim como o daqueles que possam beneficiar da respectiva conservação em segredo (como instrumento da preservação de certos direitos fundamentais, como por exemplo, a reserva da intimidade da vida privada e da vida familiar, da honra e da reputação e imagem das pessoas), os deveres de confidencialidade que caracterizam determinadas profissões também prosseguem um interesse social de confiança que deve reger as relações contratuais entre as pessoas que recorrem às actividades em que vigoram esses deveres de confidencialidade e aquelas que as desenvolvem, bem como de garantia da própria liberdade profissional da actividade que estiver em causa.
A quebra do segredo profissional só poderá, pois, ser imposta se e quando se constitua como uma providência necessária, entre outras finalidades pertinentes ao Estado de Direito Democrático, à defesa da ordem e à prevenção do crime, sendo certo que, como consagrado no art. 202º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, «na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados».
E por isso é que, nos termos do artigo 135° n° 3 do CPP, aplicável ex vi do artigo 182° n° 2, do mesmo diploma legal, «o tribunal [...] pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos».
Todavia, o nº 3 do artigo 135º do C.P.P. só é aplicável nos casos em que o tribunal de primeira instância reconheça a legitimidade da recusa a depor, determinando a prestação de depoimento se a entender ilegítima, nos termos do nº 2 da mesma norma.
Portanto, a apreciação do incidente de quebra de segredo profissional depende, desde logo, da análise da licitude da escusa a depor: uma vez reconhecida a existência de um dever profissional de sigilo e considerada legítima a escusa é que poderá verificar-se a quebra do mesmo.
Depois, é precisa a verificação cumulativa do interesse preponderante, avaliado por referência à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção de bens jurídicos.
«Há-de, …, ter-se presente o critério material adoptado pelo legislador e segundo o qual o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante» (Manuel da Costa Andrade, In Comentário Conimbricense do Código Penal, I, págs. 795 e 796).
«A dispensa do sigilo profissional é desde logo uma situação excepcional e por consequência sujeita a apreciação casuística e segundo critérios restritivos; por outro lado, que ela apenas se justifica se for necessária (por ser de utilidade manifesta para o apuramento dos factos) e proporcional (quer relativamente à relevância do litígio, quer relativamente ao sacrifício imposto aos valores protegidos pelo segredo, num balanceamento dos interesses em conflito que deverá compor (…) uma concordância prática entre eles, tendo como limite referencial o núcleo essencial de todos esses interesses» (Ac. da Relação de Lisboa de 29.11.2016, proc. 2050/13.8TVLSB-A.L1-1. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra, de 22.11.2017, proc. 172/15.0GTLRA-A.C1, da Relação de Lisboa de 18.12.2018 proc. 1928/18.7T9SNT-A.L1, da Relação de Évora de 7.05.2019, proc. 248/12.5TAELV-B.E1, da Relação de Guimarães de 31.10.2019, proc. 106/18.0T8MAC-A.G1, da Relação de Lisboa de 23.09.2021, proc. 1172/21.6T8AMD.L1-2, in http://www.dgsi.pt).
A imprescindibilidade de um depoimento significa que a descoberta da verdade pode ser alcançada de forma substancialmente mais fácil, ou mais directa, ou mais cabal e aprofundada, através dos esclarecimentos que a pessoa que o possa e deva prestar tenha a fazer sobre os factos abrangidos pelo segredo e deve ser analisada casuisticamente por referência à acusação deduzida, ao pedido formulado e aos fundamentos factuais e probatórios aduzidos pelo requerente.
«Tudo em consonância com os princípios a observar em caso de colisão de direitos (art.º 335.º do Código Civil), segundo os quais, se forem da mesma espécie, os respetivos titulares deverão ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, devendo prevalecer, no caso de direitos desiguais ou de espécie diferente, o que for considerado superior. Sendo certo que as restrições aos direitos, liberdades e garantias, quando admitidas, deverão “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.º 2 do art.º 18.º da CRP)» (Ac. da Relação de Lisboa de 12.04.2018, proc. 18479/16.7T8LSB-A.L1-2. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 09.02.2017, proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2, de 06.02.2020, proc. 18479/16.7T8LSB-B.L1-2, da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 6414/16.7T8VIS-A.C1, da Relação de Lisboa de 09.05.2019, proc. 1331/19.1T9LSB-A.L1-9 in http://www.dgsi.pt).
Não parece que a avaliação do interesse preponderante só possa pender para a primazia do valor da descoberta da verdade e da administração da justiça penal, se e quando o depoimento da testemunha obrigada a segredo profissional for único meio de prova disponível com a virtualidade de esclarecer as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o crime foi praticado, ou sobre a identidade do seu autor.
Mas é imperioso que se revele, em concreto, necessário e determinante para o desfecho da decisão final de condenação ou de absolvição.
Se o depoimento só tem aptidão para relatar assuntos genéricos ainda que relacionados com o cometimento do crime em discussão no julgamento, ou se apenas irá incidir sobre circunstâncias meramente colaterais, sem uma íntima conexão com a matéria de facto que importa esclarecer de forma concreta e especificada referida aos pressupostos do crime e da sua punição, então, a integridade do segredo profissional deverá prevalecer.
«Naturalmente que a análise a efectuar por este tribunal não pode assentar numa pesquisa da prova a produzir em confronto com toda a prova já produzida ou constante dos autos em documentos ou perícias, que esse seria um julgamento da causa.
«A análise da imprescindibilidade da prova só pode ser feita, tendo em mente a acusação deduzida, o pedido formulado e os fundamentos factuais aduzidos pelo (…) Ministério Público requerente» (Ac. da Relação de Évora de 7.05.2019, proc. 248/12.5TAELV-B.E1 in http://www.dgsi.pt).
«Se da análise da factualidade relativamente à qual é pedido o depoimento com quebra de sigilo se concluir que o depoimento pretendido não apresenta a característica de imprescindibilidade, v.g. por não ser o exclusivo meio de prova, não deve ser afastada a regra da confidencialidade que preside ao entendimento de que o sigilo profissional é o primeiro direito e o primeiro dever» (Ac. da Relação de Guimarães de 28.10.2019, proc. 2.360/13.4TABRG-G.L1, in http://www.dgsi.pt).
Quanto à gravidade do crime, a sua aferição faz-se, desde logo, espécie de pena aplicável e pelos limites mínimo e máximo da moldura pena abstracta insertos na norma incriminadora e ainda pela natureza do bem jurídico protegido e, eventualmente, pelos dados estatísticos e sociológicos conhecidos, por exemplo, a partir dos Relatórios Anuais de Segurança Interna, quanto à natureza e índices de criminalidade preponderantes em Portugal, em cada ano.
A confidencialidade é uma das características da actividade profissional desenvolvida pelos contabilistas certificados da qual resulta o dever de segredo sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda. O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. A obrigatoriedade de sigilo não se encontra limitada no tempo, mantendo-se o sigilo mesmo após a cessação de funções, tal como previsto no Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas e no Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pela Lei 139/2015, de 7 de Setembro (cfr. arts. 28º nº 3 al. d), 71º n° 2 e 72º nº 1 al. d) do EOCC e 3º nº 1 al. f), 10º e 16º nº 6 do CDTOC).
À semelhança do que sucede com outras profissões (advogados, médicos, etc.), o legislador também previu o dever de confidencialidade para os Contabilistas Certificados como um instrumento de tutela da confiança nas relações que se estabelecem entre o cliente e o seu Contabilista, perante a necessidade social e económica de interesse público, que está pressuposta no estabelecimento dessas relações contratuais
O sigilo profissional não tem natureza contratual, advém do facto de a profissão ter uma natureza eminentemente pública, constituindo-se como um dever do Contabilista Certificado para com o cliente, a própria classe, a Ordem e para com toda a comunidade em geral.
O dever de segredo profissional impõe-se também em relação ao contabilista estagiário ou candidato a Contabilista Certificado, nos termos art. 28º n° 3 al. d), do EOCC, por factos e documentos de que tome conhecimento através do seu patrono, que lhe dá acesso a informação e documentação para a sua aprendizagem.
Outras manifestações deste segredo referem-se à proibição de publicidade da qual constem informações de que o contabilista certificado presta serviços a um determinado cliente ou pratica determinado preço (art. 71º n° 2 do EOCC) e ao cumprimento do dever de lealdade entre colegas de profissão, pois o art. 16° n° 6 do CDTOC, refere que: «sempre que um contabilista certificado seja solicitado a apreciar o trabalho de outro contabilista certificado, deve comunicar-lhe os seus pontos de divergência, sem prejuízo do respeito pela obrigação de sigilo profissional».
A violação do dever de segredo constituí infracção disciplinar, punível com suspensão do exercício da actividade até 3 anos (arts. 86° n° 1 al. c) e 89° n° 4 al. d) do EOCC).
Para a decisão sobre qual o interesse que deverá prevalecer – se a manutenção do segredo profissional quanto à revelação dos factos de que obteve conhecimento no exercício das funções correspondentes e por causa delas, ou a investigação dos factos objecto deste processo – importa ter em atenção que, no caso, o Mº. Pº. indicou vários documentos aptos a atestar a existência da obrigação fiscal e o respectivo incumprimento, além de ter arrolado outra testemunha para além daquela cujo depoimento envolve a quebra do segredo profissional em análise, neste incidente.
Por outro lado, não há uma concretização mínima sobre quais sejam afinal os precisos factos sobre que se pretende inquirir a testemunha e do que vem descrito na acusação que delimita os poderes de cognição do Tribunal e o âmbito da decisão a proferir, de acordo com a natureza acusatória do processo penal, sempre se dirá que, tal como sublinhado pela Ordem dos Contabilistas Certificados, no seu parecer, «compete ao contabilista certificado a execução da contabilidade de acordo, com as normas legais e técnicas em vigor e o envio das declarações fiscais para as entidades públicas competentes, cfr. artigo 10°, n° 1 e 3 do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados.
«No caso, as declarações periódicas de IVA terão sido entregues, mas não foi feito o pagamento da prestação tributária devida por parte do sujeito passivo, sendo que a AT tem conhecimento desse incumprimento.
«O pagamento de impostos é da exclusiva responsabilidade do sujeito passivo, não fazendo parte da actividade funcional do contabilista certificado, pelo que não se descortina o pretendido com a quebra do sigilo».
O que é quanto basta para afastar a imprescindibilidade ou, até mesmo a necessidade de inquirir como testemunha o contabilista do arguido, AA.
DECISÃO
Termos em que decidem julgar o presente incidente não provado e improcedente e, em consequência, indeferem o incidente de quebra do segredo profissional da testemunha AA.
Sem Custas.
Notifique.
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Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 22 de Maio de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Rosa Vasconcelos
Rui Miguel Teixeira