CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL PERVERSIDADE E CENSURABILIDADE
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
LEGÍTIMA DEFESA
Sumário


I – A enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade feita no Artº 132º do Código Penal não é taxativa, mas exemplificativa, sendo que as enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
II - Para a verificação da qualificativa prevista no Artº 132º, nº 2, al. h), do Código Penal, consistente na utilização de meio particularmente perigoso, a lei exige que ele seja particularmente perigoso. O que significa que o meio utilizado deva revelar uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, não cabendo seguramente neste exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa os revólveres, as pistolas, as facas ou vulgares instrumentos contundentes.
III - Para a perfectibilização da legítima defesa, torna-se necessário que se verifiquem os seguintes predicados ou requisitos:
a) A existência de uma agressão actual, em execução ou iminente, a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro;
b) Que essa agressão seja ilícita ou antijurídica;
c) Que o agente actue com "animus defendendi", ou seja, que aja com o intuito de se defender, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou à agressão iminente;
d) Que o meio empregado seja necessário e racional; e
e) Que o agente esteja impossibilitado de recorrer à força pública.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 2796/22...., do Juízo Central Criminal de Guimarães, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foram submetidos a julgamento os arguidos:
1.1. AA, casado, taxista, filho de BB e de CC, natural de ..., ..., nascido a ../../1958, residente na Travessa ..., em ..., portador do CC nº ...; e
1.2. DD [1], casado, taxista, filho de EE e de FF, natural de ..., nascido a ../../1949, residente na Rua ..., em ..., ..., portador do C.C. nº ....

*
2. Em 29/02/2024 foi proferido o acórdão que consta de fls. 812 / 831 Vº, depositado no mesmo dia, do qual emerge o seguinte dispositivo (transcrição [2]):

“Em conformidade com o exposto, decide este tribunal:
Parte Criminal
--- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º, 22º e 23º, todos do Código Penal, em concurso aparente com o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, absolvendo-o da prática do crime de homicídio na forma qualificada, p. e p. pelo art. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. h), do referido código;
--- Suspender a execução da pena de prisão por igual período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses;
--- Sujeitar a suspensão da pena a regime de prova, a ser elaborado pela DGRSP, e ainda à condição de pagamento de parte da indemnização que infra se fixará a título de indemnização civil, no caso, € 5000,00 (cinco mil euros), quantia essa que deverá ser paga, em duas partes, devendo a primeira parte, no valor de 2000,00 (dois mil euros) ser paga até um ano após o trânsito da presente decisão e os restantes € 3000,00 (três mil euros), até ao final da pena;
*
--- Condenar o arguido DD pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, do Código Penal, na pessoa da ofendida GG, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa;
--- Condenar o arguido DD pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, do Código Penal, na pessoa do arguido AA, na pena de 100 (cem) dias de multa;
--- Condenar o arguido DD, em cúmulo jurídico, na pena única de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), no total de € 1190,00 (mil, cento e noventa euros);
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--- Condenar cada um dos arguidos no pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 512.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do Código de Processo Penal, incluindo os encargos (artigo 513.º do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
*
--- Revogar, de imediato, a medida de coacção aplicada ao arguido AA, nos termos do art. 212º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, por não subsistirem já os pressupostos que levaram à sua aplicação.
--- Determinar a recolha de uma amostra de ADN do arguido AA, a efectuar nos termos do disposto no artigo 8º, nº 2 da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, e na Portaria 270/2009, de 17 de Março, para integrar a base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal.
Parte Cível
--- Condenar o demandado DD no pagamento ao demandado AA da quantia de € 300,00 (trezentos euros), a título de danos morais, acrescida de juros desde a data do presente acórdão, até integral pagamento;
--- Condenar o demandado AA no pagamento ao demandado DD da quantia de € 7500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de danos morais, acrescida tal quantia de juros desde a data da presente decisão, até integral pagamento, e da quantia de € 40, 00 (quarenta euros) a título de danos patrimoniais relativos ao vestuário destruído, acrescida esta quantia de juros desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento;
--- Condenar os demandantes e demandados nas custas processuais, na proporção dos respectivos decaimentos;
--- Fixar o valor do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante AA em € 1500,00 (mil e quinhentos euros);
--- Fixar o valor do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante DD em € 100.150,00 (cem mil e cento e cinquenta euros);
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Solicite, desde já, à Equipa de Vigilância Electrónica, a desinstalação dos meios de vigilância electrónica.
(...)”.
*
3. Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido e assistente DD interpor o presente recurso, nos termos da peça processual junta a fls. 834 / 849 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

1.º
O objeto do presente recurso é impugnar, de facto e de direito, o acórdão de 29 de fevereiro de 2024, na parte criminal e na parte civil, pugnando-se por uma diferente valoração na apreciação da prova e melhor aplicação do direito ao caso concreto.
2.º
Ao invés do que destaca na fundamentação, o Tribunal a quo não logrou analisar de forma clara a efetiva participação de cada um dos sujeitos processuais envolvidos, bem como as efetivas consequências, à luz das regras de experiência comum e da lei.
3.º
O douto acórdão não se pronunciou sobre as razões de direito invocadas pelo recorrente na contestação, designadamente a causa de exclusão de ilicitude e da culpa, ao abrigo do instituto da legítima defesa, conforme dispõe o artigo 31.º, n.º 2, alínea a) e 32.º, do CP, em face da necessidade de o assistente, DD, repelir as agressões atuais e ilícitas, perpetradas pelo arguido AA.
4.º
A decisão recorrida incorre nos vícios de insuficiência da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova a que alude o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, dela resultando a violação do princípio da culpa, na parte criminal e a violação dos requisitos da responsabilidade civil, na parte civil.
5.º
Por via do presente recurso impugna-se os factos provados 1.10., 1.11., 1.17 da pronúncia e o facto provado 1.25. do pedido de indemnização civil, formulado por AA, bem como se impugna os factos não provados 2.4., 2.5., 2.6., da pronúncia e os factos não provados 2.10.,2.11.,2.21.,2.22.,2.28. e 2.29., do pedido de indemnização civil, formulado pelo assistente DD.
6.º
A valoração dos depoimentos testemunhais e dos relatórios médicos em relação à produção dos factos e respetivos danos resulta em conclusões arbitrárias, violadoras das regras da experiência e do preceito do artigo 340.º, n. º1 do CPP.
7.º
O Facto 1.10 da pronúncia deve ser considerado não provado, na medida em que o arguido AA não surgiu com o intuito de separar o ofendido DD e GG, mas que surgiu com o intuito atacar com arma branca, o que conseguiu, cuja factualidade se pode inferir dos depoimentos de HH, ficheiro 2796-22.... (tempos parciais: 00:08:14 a 00:08:55, GG, ficheiro 2796-22....-28_10-02-39 (tempos parciais: 00:09:40 a 00:10:27), II, ficheiro 2796-22....-28_10-42-05 (tempos parciais: 00:03:56 a 00:04:13) e JJ, ficheiro 2796-22....-28_10-57-26, tempos parciais 00:01:32 a 00:02:13, todos gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, Cfr. ata da 1.ª sessão de julgamento de 28/11/2023.
8.º
O Facto 1.11 da pronúncia deve ser julgado não provado, tendo em consideração o encadeamento lógico factual dos acontecimentos, segundo o qual o arguido AA não veio com a intenção de separar, nem o conseguiu, mas veio com a intenção de atacar o assistente com uma faca e foi esse objetivo que conseguiu atingir, Cfr. os depoimentos de II, que teve inicio pelas 10h:42m:06s e o termo pelas 10h:55m:55s, de JJ que teve início pelas 10h:57m:27s e termo pelas 11h:17m:34s e de KK que teve pelas 11h:18m:24s e termo pelas 11h:54m:39s, Cfr. ata da 1.ª sessão de 28/11/2023, quando eles próprios se referem à existência de sangue e foi um deles, o II, que separou os três.
9.º
O Facto 1.17 da pronúncia deve ser considerado não provado, porque o arguido AA não agiu com dolo eventual, mas agiu com dolo direto de provocar a morte ao ofendido, representando o resultado morte e envidando os esforços necessários para conseguir esse fim, tal como se poderá inferir dos depoimentos de II que teve início pelas 10h:42m:06s e termo pelas 10h:55m:55s (tempos parcias:00:05:23 a 00:06:23) e KK que teve início pelas 11h:18m:24s e termo pelas 11h:54m:39s, (tempos parciais:00:10:59 a 00:13:50) Cfr. ata da 1.ª sessão de 28/11/2023, quando se referem ao facto de o arguido ter alguma coisa escondida atrás das costas e que tudo foi muito rápido, bem como o número de golpes descritos no relatório médico de internamento.
10.º
O Facto 1.25 do pedido de indemnização civil formulado por AA deve ser considerado não provado, na medida em que nem são descritas quaisquer lesões, nem elas existiram, consistindo numa conclusão arbitrária do Tribunal a quo, sem qualquer facto conhecido que se refira a lesões corporais descritas em relatório médicos que tenham sido provocadas pelo ofendido DD, sendo que na documentação alusiva a este facto, conforme documentos e relatórios médicos solicitados pela PJ, nada consta; não porque já tinham passado cerca de dois meses, mas porque o arguido não sofreu quaisquer lesões.
11.º
Em relação aos factos não provados, vimos impugnar os factos 2.4., 2.5. e 2.6. da pronúncia e os factos 2.21., 2.22., 2.28., e 2.29., do pedido de indemnização civil, formulado pelo ofendido DD, destacando a discordância da cifra indemnizatória atribuída ao ofendido, tanto no que se refere aos danos morais como no que se refere aos danos materiais.
12.º
O Facto 2.4 da pronúncia deve ser considerado provado dado que o objeto que o arguido utilizou só poderia ser uma faca, instrumento idóneo a produzir os danos letais no assistente, como se pode inferir do teor do relatório de alta médica e dos depoimentos de JJ que teve início pelas 10h:57m:27s e termo pelas 11h:17m:34s e de KK que teve início pelas 11h:18m:24s e termo pelas 11h:54m:39s, Cfr. ata da 1.ª sessão de 28/11/2023.
13.º
O Facto 2.5. da pronúncia deve ser considerado provado, dado que o arguido AA atuou com a intenção de provocar a morte do assistente/arguido DD, conforme se pode inferir do ímpeto do ataque, dos danos corporais causados, conforme relatório médico e caraterísticas do objeto utilizado.
14.º
Em relação ao Facto 2.6. da pronúncia deve ser considerado não provado que o arguido DD se conformou com o resultado, tendo agido em legítima defesa, porém deve ser considerado provado que o arguido AA agiu com objetivo de agredir e conformou-se com o resultado, que tal como consta no depoimento de JJ que teve início pelas 10h:57m:27s e seu termo pelas 11h:17m:34s, ficheiro 2796-22....-28_10-57-26, Cfr. ata da 1.ª sessão de julgamento de 28/11/2023, o qual menciona que o ofendido se defendia como podia (tempos parciais : 00:05:10 a 00:06:26 e 00:18:38 a 00:19:50).
15.º
O Facto 2.10. do pedido formulado pelo assistente DD deve ser julgado provado considerando que as lesões sofridas, o sangue que perdeu, a intervenção da equipa médica de emergência e a subsequente intervenção cirúrgica era propícia a que o assistente temesse pela vida e sentisse medo, não se recompondo de imediato, tal como se poderá inferir dos relatórios médicos e do depoimento de JJ, ata da 1.ª sessão de julgamento de 28/11/2023, quando salienta que o assistente, defendendo-se, parecia debilitado, (tempos parciais: 00:05:10 a 00:06:26 e 00:18:38 a 00:19:50).
16.º
O Facto 2.11. do pedido formulado pelo assistente DD deve ser considerado provado dado que a intervenção da equipa de urgência era necessária e imprescindível e que se não interviesse certamente que o assistente teria morrido, devendo ser reapreciada a prova por via dos relatórios médicos e dos depoimentos de KK, ficheiro 2796-22...., (tempos parciais 00:08:14 a 00:08:55) , de JJ, ficheiro 2796-22....-28_10-57-26 (tempos parciais 00:01:32 a 00:02:13), Cfr. ata da 1.ª sessão de 28/11/2023 e de LL, ficheiro 2796-22....-28_14-41-34 (tempos parciais: 00:00:54 a 00:01:26 e 00:02:30 a 00:03:04), Cfr. ata da 3.ª sessão de julgamento, de 15-01-2024, que se referem ao episódio de o ofendido sangrar.
17.º
O Facto 2.21. do pedido formulado pelo assistente DD deve ser considerado provado, independentemente das situações pontuais que lhe são apontadas, dado que após lhe ser concedida alta hospitalar, teve que efetivamente recuperar fisicamente das lesões corporais, e precisou de tempo para isso, tendo inclusivamente prescrição médica para usar uma cinta abdominal durante três meses, Cfr. relatório de alta médica de 24/10/2022.
18.º
O Facto 2.22. do pedido formulado pelo assistente DD deve ser considerado provado valorizando para o efeito os relatórios médicos e relatórios de alta, que expressamente limitavam as deslocações do assistente, limitavam-lhe o exercício da sua atividade, mexendo-se com dificuldade para evitar que as lesões, graves e permanentes, se agravassem.
19.º
O Facto 2.28. do pedido formulado pelo assistente DD deve ser julgado provado, considerando-se que a factualidade descrita nos autos e os danos sofridos pelo assistente são propícios à quebra de serviço e perda de clientela da qual obviamente não recuperou de imediato, reportando-nos à data da produção dos factos, Cfr. relatório de alta médica.
20.º
O Facto 2.29. do pedido formulado pelo assistente DD deve ser considerado provado por via de um critério casuístico e de equidade, dado que ocorreram prejuízos e quebras de serviço que, não obstante dependam de algumas variáveis, poderiam atingir cerca de 40 000€, as quais o assistente em concreto não tem como provar.
21.º
Em relação à qualificação jurídica e avaliação da especial perversidade e censurabilidade, o acórdão recorrido incorre no vício de erro na apreciação da prova e da qualificação da perigosidade do meio utilizado, com base no desconhecido, defendendo uma desvalorização da perigosidade do meio utilizado, que não se subsume no caso em apreço, estando em desconformidade com as circunstâncias em que o agente atuou.
22.º
Dando relevo a que se desconhece que meio foi utilizado, decide-se pela inexistência de perigosidade, porém desvalorizando que o meio não é conhecido porque o arguido o escondeu e lhe deu sumiço e não desferiu uma facada, mas três consecutivas, uma delas no abdómen, com 5cm de profundidade, que poderia ter sido fatal.
23.º
O acórdão recorrido segue uma posição que não é pacífica na jurisprudência dos tribunais superiores quanto à qualificação dos meios particularmente perigosos, aos exemplos-padrão, para efeito de tipificação da especial perversidade e censurabilidade.
24.º
Ao invés da fundamentação do acórdão recorrido e no seguimento de diversa jurisprudência, e.g. a suprarreferida, as armas brancas (facas, navalhas, punhais, etc, constituem meios particularmente perigosos.
25.º
O Tribunal a quo labora em erro ao não seguir a jurisprudência do STJ e do Tribunal Constitucional e a respetiva abordagem que associa o meio particularmente perigoso ao uso de uma faca, ou arma branca, o qual é igualmente insidioso, porque oculto e traiçoeiro, qualificando, inclusivamente, a conduta criminosa como no padrão da alínea i), atendendo, ao seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, que também se aplica ao caso em apreço.
26.º
No caso em apreço, a atuação do arguido, utilizando um objeto cortante para agredir o ofendido, configura um meio desleal e traiçoeiro, para levar a cabo a agressão, tentando reduzir a margem de defesa do ofendido, revelando especial perversidade e censurabilidade que o Tribunal a quo, em erro desqualifica.
27.º
A especial censurabilidade ou perversidade está latente, nas circunstâncias em que decorreu a agressão, no modo como decorreu a agressão, bem como no meio utilizado, que o tribunal a quo não conhece porque o arguido o escondeu.
28.º
A conduta do arguido AA, também passível de se enquadrar no exemplo padrão da alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, é indubitavelmente subsumível no crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 131º, e 132º, nº 1 e nº 2, alínea h), do Código Penal, em concurso com a prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do mesmo diploma legal.
29.º
Por outro, o arguido DD agiu em legítima defesa, com a intenção de escapar à agressão atual e ilegítima, perpetrada pelo arguido AA, de que era vítima, devendo operar a causa de exclusão de ilicitude e da culpa, ao abrigo do instituto da legítima defesa, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, alínea a) e 32.º, ambos do CP, verificando-se os requisitos objetivos e subjetivos.
30.º
O acórdão recorrido, devido aos vícios de apreciação da prova e do apuramento da verdade material, elabora em erro de julgamento, “pecando” por defeito, no que toca à condenação  do arguido AA, e por excesso no que concerne à condenação do arguido DD, cujos vícios se repercutem no arbitramento da indemnização civil, ficando muito aquém dos danos patrimoniais e não patrimoniais, que de forma notória e inequívoca, o recorrente DD sofreu na sua esfera jurídica.
31.º
Os termos do dispositivo da condenação do arguido viola o princípio da culpa, os preceitos legais do artigo 40.º e do artigo 71.º ambos do CP, escamoteando que o arguido teve necessidade imperiosa de se defender do ataque quase fatal, efetuado pelo arguido AA e que a ofendida GG, pese embora tenha sido despronunciada, participou na contenda ab initio, e que após os atos de injúria por ambos efetuados, agrediu o arguido conforme refere nesta sede o depoimento de KK, (ficheiro 2796-22....) na 1.ª sessão de julgamento de 28/11/2023, (tempos parciais da gravação: minuto 00:07:00 ao minuto 00:07:15).
32.º
Nesta conformidade legal, não impende sobre o recorrente o ónus de indemnizar o ofendido AA, não se verificando os requisitos do artigo 483.º e do 496.º do CC, desde logo pela ausência de culpa, da ilicitude e da imputação do dano ao agente, dado que o agente perpetrador do resultado foi o arguido AA e não o arguido DD.
33.º
O recorrente, na qualidade de ofendido sofreu danos morais e patrimoniais que no acórdão aqui em crise se encontram subavaliados, numa latente discrepância entre os danos que a ação do arguido AA provocou e a respetiva indemnização, baseando-se num juízo de equidade que contraria os factos, as circunstâncias, a culpa do agente, minimizando os danos patrimoniais como se o arguido não tivesse efetuado qualquer despesa, à exceção do polo e claramente menospreza o quantum doloris e o teor do próprio relatório de alta médica.
34.º
A valoração dos factos ora impugnados configura o resultado da violação do princípio da investigação e do artigo 340.º do CPP, não configurando a realidade que devia ser apurada, na busca da verdade material, truncando-a de factos essenciais, relativos à conduta do arguido AA: impulso de ataque de forma traiçoeira, que levariam a decisão diferente.
35.º
O douto acórdão recorrido, ao absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio na forma qualificada, previsto e punido pelo artigo 131º e 132º, nº 1 e 2, al. h), em concurso aparente com o crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, do CP e condená-lo pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 131º, 22º e 23º, do CP, em concurso aparente com o crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º do CP, violou os artigos 13.º, 14.º., 71.º e 132.º, n.º 2, alínea h) do CP.
36.º
De igual forma ao condenar o arguido/ofendido DD, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143º, do Código Penal, na pessoa do arguido AA e da ofendida GG, violou os artigos 40.º, 70.º, 71.º, n.º 2, 77.º, 143.º e artigo 31.º, n.º 2, alínea a) e 32.º, ambos do CP, conjugado com o artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte da CRP pela violação do princípio da presunção de inocência.
37.º
Consequentemente, decorre do erro na apreciação da prova e do error in judicando, uma subsunção dos factos ao direito em violação das disposições do artigo 129.º do CP e dos requisitos do artigo 483º, nº1, do CC, do instituto da responsabilidade civil extracontratual, na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, violando as disposições do artigo 496.º, n.º 1 do CC, relativamente à avaliação dos danos não patrimoniais e do artigo 566.º, também do CC, relativamente à fixação da cifra indemnizatória.

TERMOS EM QUE,
e nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogado o acórdão recorrido.
                                                                                 
Consequentemente: 

Na qualidade de arguido, o recorrente DD, deve ser absolvido dos crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, do Código Penal, nas pessoas da ofendida GG e do arguido AA, em que foi condenado;

Na qualidade de demandado, o recorrente DD deve ser absolvido do pagamento da quantia de € 300,00 (trezentos euros), arbitrada para pagamento ao demandante AA, a título de danos morais;

Na qualidade de arguido, o recorrido AA deve ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea h), com referência aos artigos 22.º e 23.º, todos do Código Penal, em concurso com a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, todos do CP;

Na qualidade de demandado, o recorrido AA deve ser condenado no pagamento ao demandado DD da quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de danos morais e a quantia de €50.150,00 (cinquenta mil, cento e cinquenta euros) a título de danos patrimoniais num total de €100.150,00 (cem mil, cento e cinquenta euros, em conformidade com o valor da fixação do pedido civil formulado.”.
*
4. Recebido o recurso, através do despacho de 17/04/2024, e cumprido o disposto no Artº 411º, nº 6, do C.P.Penal [3], apresentaram-se a responder a assistente GG e o Ministério Público.
*
4.1. A assistente GG nos termos da peça processual dirigida aos autos no dia 02/05/2024, cuja cópia consta de fls. 850/853, defendendo a improcedência do recurso, e a manutenção do acórdão recorrido, terminando com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“I- Pugna o recorrente pela verificação de vicio de insuficiência da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova,
II- Não padece pois, a douta decisão proferida de nenhum vicio não resulta do acórdão proferido nenhum juízo ilógico, contraditório ou contrário às regras da experiência comum;
III- Tendo sim o juiz de julgamento expressado o seu pensamento de forma clara e coerente.
IV- Acrescenta ainda o recorrente que os factos 1.10, 1.11,1.17, 1.25, 2.6, devem ser considerados não provados e os factos vertidos nos factos, 2.4, 2.5, 2.10, 2.11, 2.21, 2.22, 2.28, 2.29, devem ser considerados provados.
V- Ora, no caso, não existe qualquer contradição entre a fundamentação, uma vez que não existe qualquer antagonismo entre os factos provados e não provados, nem entre esta e a decisão, sendo a primeira perfeitamente consentânea com a segunda, tendo, as considerações expendidas na motivação, servido para se demonstrar o raciocínio lógico que levou a tribunal a considerar credíveis os depoimentos prestados.
VI- Não padece pois, a douta decisão recorrida de qualquer dos vícios apontados, sendo inevitável, concatenados todos os meios de prova produzidos (documental, pericial, testemunhal) em audiência de julgamento e juntos aos autos, devida e criticamente analisados, considerar como provados os factos dados por assentes e a condenação do arguido pela sua prática
VII- Da mesma forma, a decisão recorrida não merece qualquer reparo no que concerne à natureza e dosimetria das penas aplicadas.
VIII- Por tudo o exposto, o douto Acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal.

Deverá assim, o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a douta decisão, assim se fazendo JUSTIÇA.”.
*
4.2. O Ministério Público nos termos da peça processual junta aos autos no dia 20/05/2024, constante de fls. 854/858, considerando que o recurso não merece provimento, com excepção da parte relativa à apreciação da especial censurabilidade da conduta do arguido AA, entendendo que o uso de um instrumento corto perfurante, nas circunstâncias em que ocorreu, impõe a condenação daquele como autor de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos Artºs. 22º, 23º, 131º, 132º, nºs. 1 e 2, al. h), do Código Penal, a qual a Exma. Procuradora da República subscritora termina com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
A - A insuficiência para a decisão da matéria de facto ocorre quando os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão.
B - Não é, com certeza, o que ocorre nos presentes autos, pois do douto acórdão recorrido é possível perceber que o Tribunal, quer seja directamente através do depoimento das testemunhas, quer através de documentos e relatórios periciais, quer seja através do princípio da livre apreciação da prova e segundo as mais elementares regras da lógica e da experiência comum, apurou todos os factos tendentes à decisão, convencendo-se daqueles que deu como provados.
C - De igual forma tais factos afastam necessariamente qualquer actuação do arguido DD, ora recorrente, da actuação em legítima defesa, que pressupõe não só a actuação ao abrigo de uma agressão actual e ilícita, mas que a defesa seja necessária para repelir a agressão e que o agente actue com "animus defendendi", o que, atentos os factos dados como provados, não se verificou.
D - Considera-se que a versão dada como provada tem total apoio na prova testemunhal e documental produzida na audiência de julgamento, está devidamente fundamentada e é, face às regras da experiência comum e à livre convicção do julgador, uma leitura mais do que razoável dessa prova.
E - Para que a agravação do 132º, n.º2, al i) do Código Penal funcione o instrumento utilizado terá de constituir meio particularmente perigoso, considerando-se como tal aquele que pela sua natureza e pelo modo como é usado, além de possuir uma aptidão reforçada para causar a morte, dificulta a defesa da vítima.
F - No caso concreto, atendendo a que o arguido utiliza o dito instrumento corto perfurante por mais do que uma vez, levando-o consigo de modo dissimulado, sem nunca o exibir ao ofendido, surpreendendo-o com a sua actuação e, além do mais, levando-o consigo após os factos praticados, consideramos estar preenchida a especial perigosidade do meio utilizado.

Sem deixar de considerar-se que a conduta praticada pelo arguido AA é apta a integrar a qualificativa prevista pelo 131º, n.º2, al h) do Código Penal,

No mais, entende-se que o douto acórdão deverá ser confirmado e a decisão recorrido nenhum outro reparo merece

CONTUDO, V. EX. AS DECIDIRÃO CONFORME FOR DE JUSTIÇA”.
*
5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal da Relação emitiu o seu douto parecer, nos termos que constam de fls. 860/ 870 Vº, defendendo a improcedência do recurso, tese em abono da qual adianta pertinentes considerações jurídicas.
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6. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, vieram responder a assistente GG e o arguido e recorrente DD.
6.1. A assistente GG nos termos que constam de fls. 871/872, concordando integralmente com aquele parecer do Exmo. PGA.
6.2. O arguido e recorrente DD nos termos que constam de fls. 873 /  881 Vº, manifestando “(...) a sua veemente discordância em relação” ao mesmo parecer.
*
7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
8. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2 [4].
Assim sendo, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões que a este tribunal basicamente importa dirimir:
- Saber se se verificam os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova, previstos no Artº 410º, nº 2, als. a) e c), respectivamente;
- Saber se existe erro e julgamento no que tange à factualidade dada como provada sob os pontos nºs. 1.10., 1,11., 1.17. e 1.25., e bem assim no que diz respeito aos factos dados como não provados sob os pontos 2.4., 2.5., 2.6., 2.10., 2.11., 2.21., 2.22., 2.28. e 2.29.;
- Saber se existe errada subsunção jurídico-penal no que tange aos factos perpetrados pelo arguido AA;
- Saber se o arguido e recorrente DD actuou em legítima defesa e, concomitantemente, se deve ser absolvido quer da prática dos dois crimes de ofensa à integridade física que lhe foram imputados, quer da obrigação de indemnizar o demandante AA; e
- Saber se são exíguos os montantes arbitrados ao recorrente a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
*
2. Mas, para uma melhor compreensão das questões colocadas pelo recorrente, e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e não provados, e bem assim a fundamentação acerca de tal factualidade.

2.1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
Da pronúncia
1.1. Os arguidos AA, GG e DD exercem a profissão de taxistas no concelho ....
1.2. Por motivos relacionados com o exercício desta profissão e outros, os arguidos mantêm, entre si, uma relação conflituosa há bastantes anos;
1.3. O arguido AA manteve uma relação amorosa com a referida GG, a qual terminou mesmo antes do nascimento do filho de ambos – MM – ocorrido a 19-05-2008;
1.4. Na manhã do dia 22 de Setembro de 2022, no exercício da sua profissão e conduzindo os respectivos táxis na Rua ..., em ..., ..., o arguido DD e GG desentenderam-se no trânsito;
1.5. Nesse mesmo dia, cerca das 13h45m, GG estacionou o seu veículo (táxi) de matrícula ..-..-XD, marca “...”, na praça de táxis situada na Rua ..., em ..., e veio para o exterior, sentando-se num muro em granito ali existente, junto às escadas de acesso à casa de banho pública, e a alguns metros de KK, a qual também se encontrava no local;
1.6. À frente do táxi de GG estava estacionado o táxi do arguido AA, de matrícula ..-XA-.., marca “...”, encontrando-se o mesmo no seu interior, no lugar do condutor;
1.7. Por essa altura, chegou ao local o arguido DD, o qual também estacionou o seu táxi de matrícula ..-..-LB, marca “...”, modelo ..., naquela praça, e dirigiu-se para a casa de banho pública acima mencionada;
1.8. De seguida, o arguido DD empurrou a GG colocando as suas mãos na zona do peito da ofendida, agarrando-a de seguida pelo pescoço, para tentar levá-la até ao local onde os táxis estavam estacionados;
1.9. Em consequência direta e necessária dos factos descritos, o arguido DD causou à GG: - várias escoriações punctiformes e pericentimétricas, com fundo vermelho acastanhado, dispersas pela face lateral direita do pescoço; - várias escoriações punctiformes e pericentimétricas, com fundo vermelho acastanhado, dispersas pelo terço superior das faces laterais e posteriores dos membros superiores esquerdo e direito; resultando assim traumatismo de natureza contundente que determinou à arguida um período de sete dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional;
1.10. Nesse momento, e com a contenda ainda em curso, surgiu o arguido AA, que se colocou entre os referidos DD e GG, conseguindo separá- los;
1.11. De seguida, o arguido AA e DD envolveram-se em agressões físicas, desferindo murros e pontapés por todo o corpo, de forma mútua, que resultaram em dores e escoriações;
1.12. Acto contínuo, o arguido AA munido de um objecto corto- perfurante, desferiu um golpe no antebraço esquerdo e pelo menos dois golpes na região abdominal superior do arguido DD;
1.13. Tais agressões com o referido objecto corto-perfurante infligidas pelo arguido AA cessaram com a intervenção de II, que se colocou entre ambos, conseguindo separá-los;
1.14. Em consequência do manuseamento e por ter desferido diversos golpes com o dito objecto corto-perfurante, o arguido AA sofreu um corte na face interna/lateral da falange do dedo indicador da mão esquerda, lesão esta característica de má utilização de faca, que quando exercida força contrária, o gume, que normalmente se encontra fora da zona de empunhadura, retrai e corta a zona superior/lateral do dedo indicador.
1.15. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido AA, o arguido DD sofreu: - uma laceração no antebraço esquerdo, de pequenas dimensões (cerca de 1,5 cm) e superficial, a qual foi produzida por um objecto cortante, ou actuando como tal; - uma ferida perfurante abdominal, na região abdominal superior, com cerca de 5 cm de extensão e bastante profunda, com sinais evidentes de correspondência com dois ferimentos sobrepostos; - apresentando também no abdómen, posteriormente, uma cicatriz rosada e linear, estendendo-se entre a linha média desde o epigastro até à região umbilical, com 16,5 cm; e uma cicatriz rosada transversal, na região epigástrica (cruzando com a cicatriz antes mencionada), medindo 4 cm; e uma cicatriz rosada, em forma de V de vértice súpero-lateral, na região epigástrica, medindo 3 cm;
1.16. Nesse mesmo dia, o arguido DD foi sujeito a uma TAC e necessitou de intervenção cirúrgica de no bloco operatório, realizada no Hospital ..., em Guimarães;
1.17. O arguido AA, ao actuar da forma supra descrita, utilizando um instrumento cortoperfurante, admitiu como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do assistente/arguido DD, bem sabendo que ao desferir golpes com tal objecto na zona abdominal superior do ofendido, muito próxima do ponto onde se alojam órgãos importantes do corpo humano, os quais se atingidos podem causar a morte, praticava um acto idóneo a provocar tal desfecho, e conformou-se com essa possibilidade.
1.18. Agiu, ainda, nessa circunstância, o arguido AA de forma livre e deliberada;
1.19. Com as condutas descritas agiram ainda os arguidos, AA e DD livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de afectarem a saúde física dos ofendidos um do outro e ainda, no caso do arguido DD, da ofendida GG, bem sabendo que das suas condutas resultariam as lesões acima referidas,
1.20. Sabiam ainda os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Do pedido de indemnização civil do DD
1.21. Como consequência direta dos atos praticados pelo demandado, conforme descrito nos relatórios médicos, o demandante foi submetido a uma TAC, nesse mesmo dia, e necessitou de uma intervenção cirúrgica, a qual foi realizada no Hospital ..., em Guimarães;
1.22. Em consequência do sucedido o demandante sentiu-se abatido;
1.23. Acresce que ao agredir o demandante, o demandado cortou o polo que trazia vestido;

Pedido de indemnização civil do AA
1.24. O demandante é pessoa estimada em ...;
1.25. Em consequência do sucedido, o demandante sofreu dores;

Das condições de vida e antecedentes criminais do arguido AA
1.26. No período a que se reportam os factos descritos na acusação, AA residia com a esposa em habitação propriedade do cônjuge, situada em área semirrural do concelho ...;
1.27. O arguido auferia um salário variável de € 500 a € 800, da sua atividade laboral como taxista, sendo a sua esposa doméstica;
1.28. O agregado familiar constituído pelo próprio e o cônjuge, apresentava como despesas fixas as referentes aos consumos de abastecimento doméstico alusivas a água, luz e TV, num valor variável de € 140 mensais e pensão de alimentos de € 195, referente ao filho menor, fruto de uma outra relação;
1.29. As rotinas do arguido centravam-se, essencialmente, na atividade laboral que desenvolvia como taxista no concelho ..., atividade exercida de forma regular e consistente, permitindo assim uma situação económica equilibrada;
1.30. A nível laboral a esposa do arguido, assumiu a atividade de taxista anteriormente realizada pelo arguido, para fazer face as despesas do agregado;
1.31. O arguido mantém um relacionamento familiar afetuoso e de entreajuda quer em termos afetivos, quer em termos materiais;
1.32. Beneficia de apoio por parte da família de origem e dos dois filhos do casal, adultos e autonomizados;
1.33. Este agregado familiar conta ainda com a presença do filho do arguido e da ofendida GG, aos fins de semana e períodos de férias;
1.34. AA nasceu no seio de uma família de condição socioeconómica modesta, sendo um dos cinco filhos do casal;
1.35. A dinâmica familiar foi caracterizada como tendo sido harmoniosa e equilibrada;
1.36. O percurso escolar do arguido, segundo indica, decorreu de forma regular até à conclusão do 4º ano;
1.37. Paralelamente, começou a trabalhar ajudando os pais nas atividades agrícolas, para comparticipar as despesas do seu agregado de origem;
1.38. Por volta dos 16 anos iniciou atividade laboral numa fábrica de fibrocimento no ..., passando também por uma oficina de automóveis e construção civil antes de emigrar para os ..., onde desempenhou funções numa primeira fase num lar de idosos e posteriormente na construção civil;
1.39. Por volta de 1990 decide regressar a Portugal, onde se estabeleceu como taxista, exercendo essa função até à data dos factos;
1.40. No presente processo esteve inicialmente preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ..., entre ../../2022 e ../../2023;
1.41. Desde ../../2023, ficou sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada com vigilância eletrónica, adotando, uma conduta adaptada às regras subjacentes à medida de coação aplicada.
1.42. AA encara a sua constituição como arguido no presente processo com um sentimento de injustiça, manifestando, contudo, preocupação quanto ao desfecho do mesmo.
1.43. Os familiares e amigos contactados têm conhecimento da existência deste processo judicial, situação que lhes terá causado surpresa, por não atribuírem ao arguido a prática de comportamentos agressivos e violentos.
1.44. Socialmente o arguido detém uma imagem positiva, sendo referenciado como uma pessoa de conduta normativa e socialmente integrada.
1.45. O arguido AA não tem antecedentes criminais;
Das condições de vida e antecedentes criminais do arguido DD
1.46. DD cresceu integrado no agregado de origem, composto pelos progenitores e por mais três irmãos;
1.47. Os progenitores, ambos agricultores, eram quem mantinha o agregado.
1.48. A dinâmica familiar foi descrita como coesa e solidária;
1.49. A habitação, de caraterísticas rurais, tinha as condições necessárias;
1.50. O arguido frequentou o sistema de ensino até à conclusão do 4. º ano de escolaridade, abandonando o ensino por decisão dos progenitores;
1.51. Aos 10 anos, começou o seu percurso laboral, na área da agricultura, de modo a contribuir para a economia familiar;
1.52. Trabalhou na área da construção civil, e em 1973 decidiu aceitar uma proposta de trabalho na ..., onde esteve durante 11 anos;
1.53. Em 1984, após o seu regresso, comprou um táxi e iniciou o seu trajeto profissional como “taxista” que manteve até aos dias de hoje, apesar de já se encontrar reformado;
1.54. Em 1982, contraiu matrimónio e dessa união, tem uma descendente, com 40 anos de idade;
1.55. A esposa sempre trabalhou como doméstica;
1.56. À data dos factos, DD, residia com o cônjuge em habitação própria, de tipologia T3, com condições adequadas de habitabilidade e conforto, situado em freguesia rural do concelho ...;
1.57. Preserva um bom relacionamento com o conjugue e com os restantes familiares, com quem mantém convívio;
1.58. No meio residencial, mostra-se bem integrado e possui imagem positiva, embora detenha um relacionamento circunstancial com a comunidade vicinal;
1.59. Em termos económicos, a situação é estável, auferindo o arguido DD pensão no valor de 470€ e a esposa uma pensão no valor de € 370;
1.60. Sendo-lhe possível receber a totalidade dos descontos efetuados na ..., optou por trazer consigo esse montante, que corresponderia a uma reforma mensal, tendo investido na compra de um alvará de táxi, e continuar desta forma ativo laboralmente;
1.61. As despesas do agregado são principalmente referentes às despesas fixas da manutenção da habitação, que rondam os € 100 mensais;
1.62. Não foram notórias alterações significativas no seu quotidiano (continua a ir à caça e a dedicar-se à jardinagem), decorrentes diretamente da sua situação jurídico-penal atual;
1.63. Em termos familiares continua a beneficiar do apoio / suporte da sua família;
1.64. Em termos sociais o processo não causou impacto sobre a imagem do arguido, designadamente, pela atividade que ainda desenvolve;
1.65. O arguido DD não tem antecedentes criminais;
Mais se provou:
1.66. O arguido/assistente DD, em seguida aos factos supra descritos, levantou-se, entrou no seu carro e conduziu até ao Posto da GNR, para apresentar queixa;”.
*
2.2. Considerou não provado:
Da pronúncia
2.1. Que os arguidos, de forma pontual, troquem insultos;
2.2. Que o arguido AA estivesse, nas circunstâncias descritas em 1.6. com a respectiva porta aberta;
2.3. Que o arguido AA tenha gritado “eu mato-o” antes de se envolver em agressões com o arguido DD;
2.4. Que o objecto que o arguido AA usou fosse uma faca;
2.5. Que o arguido AA tenha actuado com a intenção de provocar a morte do assistente/arguido DD;
2.6. Que o os arguidos DD e AA tenham agido, em relação às agressões mútuas, conformando com esse resultado, que representaram.

Do pedido de indemnização civil do demandante AA
2.7. Que em consequência do sucedido o demandante AA tenha sofrido vergonha e humilhação, desgosto e tristeza;

Do pedido de indemnização civil do assistente DD
2.8. Que o valor da roupa do demandante, inutilizada em consequência da actuação do arguido AA, tivesse o valor de € 150;
2.9. Que o assistente tenha despendido em medicamentos e tratamentos necessários à sua recuperação € 10.000,00;
2.10. Que o assistente tenha temido pela vida, que ainda hoje sinta medo e que ainda não se recompôs do sucedido;
2.11. Que só a pronta intervenção da equipa médica de urgência o tenha salvado da morte;
2.12. Que o assistente tenha necessitado de acompanhamento psicológico;
2.13. Que se sinta apossado de um estado de perturbação constante e estende, inevitavelmente, essa perturbação àqueles que com ele convivem;
2.14. Que em consequência da conduta do arguido, o assistente tenha dores de cabeça e não se consiga alimentar convenientemente;
2.15. Que em consequência da conduta do arguido, o assistente queira ficar em casa, fechado, sem falar com ninguém, pela vergonha, estado depressivo crónico, apatia, desinteresse, irritabilidade, e diminuição de memória, e pelos sintomas de Síndrome Pós-Traumático dos quais ainda se não refez;
2.16. Que desde a data de produção dos factos, o demandante sofra imensamente, tendo-lhe sido arrebatada a paz de espírito e a alegria de viver;
2.17. Que em consequência da conduta do arguido, o assistente sinta medo e insegurança permanente;
2.18. Que o assistente tema deparar com outra situação idêntica à anteriormente vivida;
2.19. Que o assistente tenha cada vez mais receio em sair à rua, sentindo-se desprotegido;
2.20. Que viva num estado de ansiedade permanente;
2.21. Que, após lhe ser concedida alta hospitalar, tenha ficado dois meses inativo, para recuperar fisicamente das lesões corporais que lhe foram infligidas pelo demandado;
2.22. Que não podia deslocar-se, nem exercer a sua atividade e mexia-se com dificuldade para evitar que as lesões, graves e permanentes, se agravassem;
2.23. Que, após aquele período em que a recuperação física se consolidava, se tenha agravado o seu estado psicológico;
2.24. Que não conseguia dormir, tinha dificuldade em conciliar o sono e quando dormia era dominado por pesadelos e um sono agitado;
2.25. Que cada dia que acordava e se sentia mais cansado, exausto, desejava não se ter deitado na noite anterior e tentava esquecer o que lhe tinha sucedido;
2.26. Que se sentia incapaz de regressar àquele local, queria esquecê-lo e deixar de sofrer a vergonha, inquietude e o medo inexplicável de que, apesar de o arguido se encontrar em prisão domiciliária algo de semelhante pudesse ocorrer;
2.27. Que tenha estado cerca de quatro meses sem exercer a sua atividade e sem coordenar a gestão dos táxis a seu cargo;
2.28. Que tenha tido, por isso, quebra de serviço e perda de clientela, a qual ainda não conseguiu recuperar;
2.29. Que os prejuízos daí decorrentes se cifrem em € 40 000,00;”.
*
2.3. E motivou essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):
“O tribunal fundou a sua convicção na análise da prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, analisada à luz das regras da experiência e da lei.
Foram analisados e levados em conta os autos de notícia de fls. 10 e 11, 20 a 23, 29 a 30, 145 a 146, 157 a 158, 172 a 173; o auto de notícia de fls. 3 e 4 do apenso A; o auto de notícia de fls. 4 e 5 do apenso B; relatório de diligências de fls. 12 a 19, 36 a 37; os registos clínicos de fls. 108 a 110, 134 a 142, 163 a 167, 249, 306 a 315, 452; fotografias de fls. 54 a 74; Auto de apreensão de fls. 39, 83.
Os arguidos, AA e DD, recusaram-se, ambos, validamente, a prestar declarações nos autos, usando do direito que a lei lhes concede ao silêncio.
Na ausência das versões dos arguidos, que eram, simultaneamente, ofendidos, o tribunal apenas pode apurar as circunstâncias do sucedido, por recurso às declarações das testemunhas presentes no local.
A factualidade inserta em 1.1. foi genericamente afirmada por todas as testemunhas ouvidas, as quais, conhecem os arguidos/ofendidos AA e DD e a ofendida GG, precisamente, por causa dessa sua actividade.
Foi também dos depoimentos da generalidade das testemunhas ouvidas, nomeadamente, da testemunha JJ, única que o afirmou sem pudor, que a relação entre os arguidos/ofendidos era tensa, entre o mais que não se apurou, por causa do facto de o arguido DD ter o hábito de estacionar o seu táxi na Praça de Táxis referida na acusação sem que fosse titular de licença para tal (facto 1.2.).
O facto descrito em 1.3. resultou das declarações da ofendida GG, que confirmou ter tido um relacionamento com o arguido AA, confirmando ainda ter tido um filho com o mesmo, o que se deu como provado com base na certidão de nascimento junta aos autos, relativa ao menor MM.
No que concerne à restante matéria dada como provada, o tribunal atentou, desde logo, nas declarações da testemunha e ofendida GG, que relatou ter tido, na manhã do dia dos factos, um desentendimento no trânsito com o arguido DD (a quem todas as testemunhas se referiam por JJ, por ser a alcunha pela qual é conhecido) e que, da parte, da tarde, esse mesmo arguido se dirigiu a ela, cuspiu-lhe na cara e agrediu-a com um murro no peito, pontapés e lhe apertou o pescoço, junto às casas de banho da praça de táxis. Disse, ainda, que se defendeu do arguido e que, o arguido AA, vendo o sucedido veio e separou-os, tendo-se ambos envolvido, depois, em contenda física.
Começou por afirmar que era possível o arguido AA ter uma faca na mão, mas negou ter visto efectivamente um tal objecto ou outro nas mãos do dito arguido ou do outro arguido. Confirmou, no entanto, que no final da contenda, depois de terem sido apartados pela testemunha II, o arguido/assistente DD sangrava da barriga.
Disse que o arguido DD, depois, ainda a tentou agredir novamente.
A testemunha II, que trabalhava ali perto, confirmou, de forma que se nos afigurou isenta e sincera, ter ouvido confusão e ter visto os arguidos “pegados”, tendo ido apartá-los, o que conseguiu. Disse, ainda, que viu qualquer coisa (escura) na mão do arguido AA e que este escondeu tal objecto atrás das costas. Quanto ao arguido DD, estava a sangrar da barriga, já quando se dirigiu a eles para os separar. A ofendida GG, estava perto e o arguido DD ainda lhe tentou chegar, depois de cessar as agressões com o arguido AA.
JJ, taxista em ..., estava a dormir no seu carro, na praça de táxis em causa, quando acordou com a gritaria. Disse que viu uma mulher e dois homens a esbracejar e o senhor da bomba (testemunha II) a separá-los. Não viu qualquer objecto nas mãos de nenhum dos arguidos, mas viu o arguido/assistente DD a sangrar da barriga, na sequência do sucedido.
A testemunha HH, que à data dos factos era cantoneira da Câmara ..., descreveu que estava a fazer uma pausa no seu trabalho, sentada no muro ao pé da praça de táxis, ao lado da ofendida GG. Relatou que, a certa altura, chegou o arguido DD, que cuspiu em cima da GG, tendo-se insultado ambos, respectivamente, de filho/a da puta. Disse que se pontapearam e, depois, viu o arguido DD agarrá-la pelo pescoço. Relatou, depois, que o arguido AA chegou e separou-os um do outro dizendo “larga, larga” e, depois, de já os ter separado, entrou ele próprio em confronto com o arguido DD, atingindo-se, respetivamente, com murros. Apesar de afirmar só ter visto murros, a testemunha, confirmou que final da contenda pode ver o arguido/assistente DD a sangrar da barriga. Disse que viu o que acha ser um telemóvel, nas mãos do AA, mas sem certeza e que o arguido DD, não obstante, ferido, ainda tentou atingir a GG, novamente, tendo depois entrado no seu táxi e ido embora a conduzir.
Os depoimentos das referidas testemunhas, além de não nos terem suscitado quaisquer reservas quanto à sua credibilidade e veracidade, foram todos congruentes e consentâneos entre si, não sendo de relevar algumas discrepâncias pontuais, facilmente, explicáveis pela percepção pessoal de cada um, do seu posicionamento perante os factos e ainda do tempo decorrido e da eventual contaminação dos depoimentos decorrente de falatórios subsequentes ao sucedido.
Ficou assim evidente da prova testemunhal produzida, conjugada com as fotos de fls. 58 (em baixo) e 59 e do teor do relatório da perícia médico-legal efectuada à pessoa da ofendida, GG (cfr. fls. 192 a 194), que esta foi agredida, nos termos dados como provados, pelo arguido DD, tendo resultado de tal agressão as lesões constantes do facto provado 1.9.
Provado ficou, ainda, que após a dita agressão à ofendida GG ter cessado, os arguidos AA e DD encetaram agressões mútuas, o que as testemunhas, supra referidas, confirmaram de forma unânime. É certo que da perícia médico-legal efectuada ao arguido AA, não resultou a existência de lesões (cfr. relatório constante de fls. 349 a 350), mas tal perícia apenas foi realizada quase dois meses depois dos factos, a 16-11-2022, o que invalida o seu relevo probatório, no caso.
O que o tribunal também não teve dúvidas foi que, nesse confronto, entre o arguido DD e o arguido AA, este usou um instrumento corto-perfurante para atingir o primeiro.
Chegámos a esta conclusão pelos seguintes motivos: desde logo é inquestionável que o arguido DD saiu da contenda que teve com o arguido AA com uma laceração no braço (de 2 cm) e outra barriga (com 5 cm e bastante profunda), conforme afirmaram as testemunhas ouvidas e resulta, ainda com mais clareza, das fotos de fls. 71 e 72, tiradas em seguida aos factos, no Hospital ..., em Guimarães. As características das lesões são evidenciadas nas informações clínicas de fls. 109 a 110, 135 a 142, 310 a 315 e no teor dos relatórios das perícias médico-legais de fls. 251 a 253 e 455 a 459.
Dos referidos relatórios das perícias médico-legais efectuada à pessoa do assistente/arguido DD resulta que as lesões que o mesmo apresentava são compatíveis com um traumatismo de natureza cortoperfurante (cfr. fls. 459 verso).
Do relatório efectuado pela Polícia Judiciária resulta que o arguido AA tinha um ferimento na mão compatível com manuseamento de objecto cortante (cfr. fls. 67 dos autos).
Duas testemunhas viram um objecto na mão do arguido AA, tendo uma dessas testemunhas (II) dito, inclusivamente, que o referido arguido escondeu esse objecto atrás das costas, após a agressão, o que se mostra consentâneo com o facto de se tratar da arma do crime. A percepção da testemunha HH de que seria um telemóvel não nos afasta, obviamente, da nossa conclusão, já que um telemóvel não provocaria as lesões verificadas no corpo do assistente/arguido DD e nem teria de ser escondido da vista de ninguém.
Todas estas circunstâncias conjugadas permitem concluir, com a necessária segurança, que o arguido AA usou um objecto cortoperfurante na contenda entre si o arguido DD, atingindo-o com o mesmo, no braço e na zona abdominal superior, nesta por duas vezes, como resulta dos elementos clínicos e do relatório médico-legal.
Nenhuma outra explicação minimente plausível existe para as lesões verificadas no corpo do arguido/assistente DD, ocorridas naquelas circunstâncias, nem nenhuma explicação foi sequer aventada fosse por quem fosse.
Não se apurou que objecto, em concreto, foi usado, daí ter-se dado como não provado que se tratasse de uma faca, como constava da acusação.
Quanto ao dolo do arguido AA, não resultou de nenhuma circunstância dos autos que o mesmo tivesse actuado com a intenção de matar o arguido DD, designadamente, que tenha anunciado tal intenção, conforme constava da acusação (facto não provado). O que resultou foi que, numa contenda em que decorriam agressões mútuas, o arguido AA decidiu usar um instrumento cortoperfurante para agredir o arguido DD na zona abdominal do mesmo e, nesse momento, terá representado (como representaria qualquer homem médio colocado naquela circunstância) que podia atingir fatalmente o mesmo, situação com a qual se conformou, pois prosseguiu com o uso do dito objecto contra o assistente.
O dolo directo do arguido DD nas agressões que perpetrou sobre a ofendida GG e sobre o ofendido AA, resultou das suas condutas objectivas, dadas como provadas, das quais se extrai, sem dúvida, uma intencionalidade dirigida a atingir a integridade física dos mesmos.
Também o dolo (directo) do arguido AA, no que toca às agressões com murros ao assistente/arguido DD, se extraiu nos mesmos termos, acima descritos, das suas condutas dirigidas à integridade física do mesmo.
As testemunhas NN, OO e PP, todas cantoneiras da CM..., nada assistiram com relevo para os factos em discussão, com excepção de terem visto sangue no dia e no local onde os factos se passaram.
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Quanto aos factos do pedido de indemnização civil do ofendido AA, apenas se deu como provado que o mesmo sofreu dores, em consequência da agressão do arguido DD. A vergonha, tristeza e humilhação que alega ter sentido, não só não foi reportada por ninguém, como na verdade, a terem existido tais sentimentos, resultaram seguramente mais da sua própria atuação, aqui provada, do que da agressão de que foi vítima. Por este motivo, foram dados como não provados todos os demais factos descritos como consequência da agressão de que foi vítima.
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Os factos relativos ao pedido de indemnização civil do assistente DD, foram, na sua larga maioria dados como não provados, por absoluta falta de prova a respeito e, ainda, por existirem elementos nos autos que infirmam muitas das alegadas consequências que o assistente afirma ter sofrido em consequência da agressão de que foi vítima.
Começando, desde logo, pelos factos alegados no pedido de indemnização civil, relativos a ter estado o assistente às portas da morte e quase a esvair-se em sangue, cumpre dizer que, não obstante a gravidade da situação, que aqui de forma alguma se pretende escamotear, a verdade é que em momento algum o assistente esteve em perigo de vida, como, aliás, afirma o relatório da perícia médico-legal, constante de fls. 459.
O facto de o assistente, imediatamente após a agressão de que foi vítima, ter conduzido o seu carro até à GNR para, antes de tudo o mais, nomeadamente, tratar da ferida que lhe foi infligida, fazer queixa, denota, também, que o próprio assistente, não temeu pela sua vida, caso contrário, teria pedido socorro ou ido para o hospital.
Quanto ao período em que o assistente ficou impossibilitado de trabalhar – conduzir o táxi e coordenar a gestão dos seus outros táxis - não se deu como provada tal factualidade, desde logo, porque nenhuma testemunha foi capaz de, em concreto, afirmar quanto tempo o assistente esteve sem trabalhar. QQ, amigo do assistente, nada sabia a respeito; RR, também taxista, falou em 1 mês, mas disse também que no dia seguinte aos factos, ainda no hospital, o assistente lhe ligou a pedir para lhe fazer um serviço, como antes já fazia; SS, que trabalha para o assistente falou em duas semanas, sem trabalhar, mas sem qualquer certeza a respeito. Acresce que, as testemunhas TT e UU, militares da GNR (testemunhas do arguido AA), afirmaram, pelo contrário, à semelhança de outras testemunhas da acusação, que viram o assistente a conduzir o seu táxi, ainda em Setembro de 2022 e no início de Outubro do mesmo ano, o que viemos a confirmar (pelo menos parcialmente) através do auto de contraordenação junto aos autos por determinação do tribunal, no qual se constata que a 01-10-2022, o assistente conduzia o seu táxi e estava aparcado no mesmo local onde os factos tinham sucedido.
Em face deste auto e do seu teor, ficaram não só infirmadas as alegações de que esteve sem trabalhar 4 meses, por não se poder deslocar e nem mexer – dois dias depois já encomendava serviços a outros taxistas e, nem 10 dias passados, já conduzia o seu táxi – como ficaram infirmadas as alegações do assistente relativas ao medo, ao pânico e à vergonha que sentiu por voltar ao local do crime, de se deparar com uma situação idêntica, de recordar o sucedido e tudo o mais que alega a esse propósito, já que aparcou o seu carro na mesma praça onde aconteceram os factos.
Acresce dizer que a prova dos prejuízos alegados (€ 40.000,00) sempre teria de ser efectuada com prova documental, nomeadamente, com a junção das declarações de IRS do assistente (ou outros) que atestassem a alegada quebra de rendimentos do assistente.
Não provado, por total ausência de prova a respeito – nem um docuemtno e nenhuma menção a respeito foi feita por nenhuma testemunha – que o assistente tenha despendido a quantia de € 10.000,00, ou outra, em medicamentos e tratamentos.
Provado ficou que o assistente foi sujeito a uma cirurgia, no mesmo dia dos factos, no Hospital ..., em consequência da agressão sofrida e que sofreu dores, evidentes do relatório médico (as físicas) e que afectariam qualquer pessoa (as emocionais), mesmo as mais resistentes, como parece ser o caso do assistente, nas circunstâncias em causa.
No sentido de ter o assistente ficado abatido, depuseram as testemunhas do pedido de indemnização civil, VV, WW, QQ, RR, XX, YY e ZZ, que afirmaram que sentiram o assistente abatido e triste, nos tempos que se seguiram aos factos, o que não nos parece de duvidar, não obstante tudo quanto supra dissemos a respeito das demais sequelas psicológicas alegadas e não provadas.
Provado, ainda ficou, que o polo que o assistente envergava ficou inutilizado, mas não o seu valor (cfr. fls. 74) e nem a demais roupa que envergava, por ausência de prova a respeito.
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As condições de vida dos arguidos retiraram-se dos respectivos relatórios sociais juntos aos autos, nos quais se confiou, pela metodologia evidenciada e fontes consultadas e que se conjugaram com as declarações das testemunhas a este propósito, nomeadamente, quanto ao arguido AA, os depoimentos das testemunhas abonatórias por ele trazidas, nomeadamente, AAA (médico de família do arguido), TT (militar da GNR), LL (militar da GNR), BBB (taxista e amigo), CCC (amigo), DDD (amiga) e GG (amiga), as quais afirmaram que o mesmo é pessoa correcta e educada e que muito estranharam ter-se envolvido numa tal confusão. Não se consideraram os juízos de índole conclusiva que extravasam o âmbito de análise que se pretende seja realizada no relatório social.
A ausência de antecedentes criminais registados dos arguidos apurou-se com base no respectivos certificados de registo criminal junto aos autos.”.
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3. Posto isto, passemos, então, à análise das concretas questões supra enunciadas, suscitadas pelo arguido e recorrente DD no seu recurso.
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3.1. Dos vícios decisórios a que alude o Artº 410º, nº 2, als. a) e c)
Nas suas conclusões assaca o recorrente à decisão recorrida a existência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.

Vejamos.
Sob a epígrafe “Fundamentos do recurso”, prescreve o Artº 410º:
“(...)
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
(...)
c) O erro notório na apreciação da prova.
(...)”.
Como logo flui do transcrito preceito legal, neste âmbito dos vícios da decisão [que são do conhecimento oficioso, conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19/10/1995, já supra citado], não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Com efeito, os vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, pressupõem uma outra evidência na justa medida em que correspondem a deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna [5].
Em termos breves, tomemos em consideração cada um dos aludidos vícios.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a decisão proferida não cabe, não se ajusta aos factos (àqueles factos) dados como provados, ou, num sentido mais amplo, quando ocorre um vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que torna impossível uma decisão logicamente correcta, justa e conforme à lei e, assim, na justa medida em que a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.
Como se expendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06/10/2011, proferido no âmbito do Proc. nº 88/09.9PESNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410º, nº 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados.”
Exige-se, então, uma omissão de pronúncia, pelo tribunal, relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão, como será dizer, ainda, o tribunal não dá como “provado” nem como “não provado” algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, tornando-se necessário que a matéria de facto tida por provada não permite uma decisão de direito, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para tal.
Consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. É algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efectivamente, seja outra, em sentido diferente.
Nesse conspecto, impõe-se, pois, ao recorrente que invoque este vício convencer o tribunal de recurso que faltam factos (os quais deve identificar), necessários (fundamentando esta necessidade) para a decisão e que não foi levada a cabo a indagação a respeito deles (fundamentando).
Ora, na situação em apreço, que factos é que faltam, segundo o recorrente?
Quais são os factos sobre os quais o tribunal omitiu um juízo de censura de provado ou não provado e que seriam necessários para se proferir uma decisão de direito adequada ao âmbito da causa?
Que factos é que o tribunal não indagou e conheceu e que podia e devia tendo em vista uma decisão justa a proferir de harmonia com o objecto do processo?
Salvo o devido respeito, o recorrente não os revelou, nem este tribunal os vislumbra.
Na verdade, no caso vertente, o recorrente, pese embora traga à liça o vício em apreço, não alegou que factos concretos é que fazendo parte do objecto de processo - vertidos na acusação / pronúncia, alegados na contestação ou resultantes da discussão da causa - não foram indagados nem conhecidos pelo tribunal a quo e, consequentemente, em que medida é que os vertidos no acórdão recorrido são insuficientes para a sua condenação. 
Ou seja, e dito de outro modo, analisadas quer a motivação, quer as conclusões de recurso, constata-se que o arguido/recorrente não concretizou, a partir do texto da decisão sob recurso, a existência de um qualquer fundamento para se poder dizer que a decisão proferida não cabe, não se ajusta aos factos dados como provados ou não provados, para se poder dizer, enfim, que uma tal decisão padece de uma insuficiência e/ou de uma qualquer ilogicidade intrínseca que torna impossível uma decisão justa e conforme à lei.
Resultando, isso sim, da sua peça recursória, que a invocada insuficiência resulta da circunstância de, na sua perspectiva, na decisão recorrida o tribunal a quo não se ter pronunciado ou não ter acolhido uma questão de direito que o mesmo aduziu na sua contestação, segundo a qual actuou em legítima defesa, alegação essa que, salvo o devido respeito, não configura, de modo algum, o vício em apreço.
A respeito do vício a que alude a citada alínea c), do nº 2, entende-se que ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que normalmente e/ou notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou quando usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou quando, ainda, as provas revelam claramente um sentido e a decisão extraiu ilação contrária, impossível.
Trata-se, nas palavras do Exmo. Conselheiro Pereira Madeira (ibidem, pág. 1275), do erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, na decorrência da norma ínsita no Artº 410º do C.P.Penal, não se olvide que o erro na apreciação da prova só é considerado notório quando, contra o que resulte de elementos que constem dos autos, cuja força probatória não haja sido infirmada, ou de dados de conhecimento generalizado, se emite um juízo sobre a verificação, ou não, de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.
Outrossim, tal como se referiu relativamente aos demais vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, cumpre assinalar que o erro notório na apreciação da prova não tem a ver com a eventual desconformidade/discordância entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente.
Ora, no caso vertente o recorrente limita-se a alegar o vício em causa, não explicando de forma clara e objectiva o raciocínio que o levou a concluir no sentido de que o acórdão recorrida padece de erro notório na apreciação da prova.
Ou seja, o recorrente não se ateve ao texto da decisão recorrida para, a partir daí, demonstrar que da mera leitura da mesma resulta que o Tribunal a quo incorreu em erro ao dar como provados ou não provados determinados factos, designadamente os que indica no seu recurso,  como se impunha que fizesse, o que afasta liminarmente a existência de tal vício decisório.
Tudo se resumindo, afinal, a uma mera divergência de análise da prova produzida por banda do arguido, visando este colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência, e substituir essa convicção pela sua própria convicção.
De todo o modo, uma vez que os vícios previstos no Artº 410º, nº 2, são do conhecimento oficioso, sempre diremos que, do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do invocado erro notório na apreciação da prova, porquanto não se detecta ostensivamente que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência comum ou feito uma apreciação da prova manifestamente incorrecta, desadequada, ilógica, arbitrária ou contraditória, o que afasta a existência de qualquer vício de raciocínio nessa apreciação, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão.
Não resulta, pois, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que o tribunal recorrido tenha dado como provado algo que não podia ter acontecido ou como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido ou ainda que tenha retirado de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Na perspectiva da lógica interna da decisão e em face do respectivo texto, os factos dados como provados, e que a sustentaram, têm perfeito suporte na prova elencada na motivação da decisão de facto, e na valoração que dela foi feita.
Pelo exposto, improcede este segmento do recurso.
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3.2. Da impugnação da matéria de facto / do erro de julgamento
Como se sabe, os poderes conferidos às Relações em termos da matéria de facto apurada em 1ª instância não se traduzem num conhecimento ilimitado dessa mesma factualidade.
Para isso concorre, basicamente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como "remédio jurídico" para os vícios de julgamento ou, noutra perspectiva, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como "novos julgamentos", e ainda as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no Artº 127º do C.P.Penal, segundo o qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente”.
Ademais, devemos sublinhar que, ao apreciar a matéria de facto, o tribunal da Relação está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão, sendo certo que os princípios da oralidade e da imediação [6] permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido e com os demais intervenientes processuais, nomeadamente com as testemunhas, permitindo-lhe uma melhor avaliação da credibilidade das declarações e depoimentos prestados.
E exactamente porque o tribunal da Relação não beneficia destes princípios (da oralidade e da imediação) - e, nesta medida, escapa-lhe, por insindicável, toda uma panóplia de informações não verbais e não documentadas, imprescindíveis para a valoração da prova produzida -, entende-se que a reapreciação das provas gravadas só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância caso se constate que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas produzidas.
Nesta perspectiva, o tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 1ª instância nem pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do conjunto dos elementos de prova produzida, mas tão-somente o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e bem assim das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, traduzindo-se, pois, numa reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um “remédio” a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inquestionavelmente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância, e já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando dos já supra aludidos princípios da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou em parte de cada uma delas) que se apresentou como mais plausível e coerente.
Sublinhe-se, por outro lado, que não raras vezes os recursos, quanto a esta questão concreta, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, ilegítimo, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, a que já se aludiu, exercício este que, face ao transcrito Artº 127º do C.P.Penal, apenas ao tribunal incumbe.
O que não é legítimo é a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
Evidentemente que, como sublinha o mencionado Mestre, [7] o princípio da livre apreciação da prova não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imutável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida.
Com efeito – diz –, se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (como já dissemos que a tem toda a discricionariedade jurídica) os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, possa embora a lei renunciar à motivação e o controlo efectivos.
Noutra vertente, há que relembrar que a matéria de facto pode ser sindicada junto dos Tribunais da Relação por duas vias: a primeira, no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; e a segunda através da “impugnação ampla” da matéria de facto, a que alude o Artº 412º, nºs. 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Ora, no primeiro caso, e como já vimos anteriormente, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do citado Artº 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
Ao passo que, na segunda situação, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs. 3 e 4 do citado Artº 412º.
Acresce que, nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Ou seja, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, pois, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa [8].
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, conforme determina o Artº 412º, nº 3, do C.P.Penal:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
Ora, a especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
Ao passo que a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida.
E, finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. Artº 430º do C.P.Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente um outro ónus: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs. 4 e 6 do Artº 412.º do C.P.Penal).
E, para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente de especificar quais os pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, quais os segmentos dos depoimentos que impõem decisão diversa da recorrida e quais os suportes técnicos em que eles se encontram, com referência às concretas passagens gravadas.
No caso vertente, de acordo com as conclusões do recorrente, para além de invocar os vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, als. a) e c) – questões já tratadas anteriormente – , o arguido recorrente traz também à colação o erro de julgamento a que alude o Artº 412º, n.ºs 3 e 4, traduzido numa errónea valoração das provas produzidas em julgamento no que tange à matéria dada como provada constante dos pontos nºs. 1.10., 1,11., 1.17. e 1.25., e bem assim no que diz respeito aos factos dados como não provados sob os pontos 2.4., 2.5., 2.6., 2.10., 2.11., 2.21., 2.22., 2.28. e 2.29..
Sendo que, quanto às concretas provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa e que concretizou por referência aos respectivos minutos das passagens das declarações, trouxe o recorrente à liça, no essencial, pequenos excertos dos depoimentos das testemunhas KK, II e JJ.
Porém, salvo o devido respeito, toda a alegação do recorrente ao longo das considerações que vai adiantando e repisando em abono da sua tese resume-se à sua discordância relativamente à forma como o tribunal a quo valorou a prova, limitando-se a avançar a sua ponderação acerca da prova produzida, notoriamente distinta daquela que ficou estabelecida no acórdão recorrido, visando que este tribunal a adopte.
Dito de outro modo, o que o recorrente pretende é, no fundo, que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento acerca de tais factos, analisando toda a prova produzida na primeira instância a fim de fixar depois a matéria de facto de acordo com a convicção do próprio recorrente, considerando os factos em causa como não provados.
E olvidando que, para que este tribunal de recurso pudesse levar a cabo a pretendida alteração da matéria de facto, tornava-se necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse uma tal alteração, mas antes impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto [9].
Sendo certo que, como assertivamente se refere no acórdão da Relação de Évora de 19/05/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 441/10.5TABJA.E2, disponível in www.dgsi.pt, “Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela.”.
Não obstante isso, há que referir que, tendo este tribunal procedido à audição da gravação da prova na sua integralidade, nos termos do disposto no Artº 412º, nº 6, e não apenas à audição dos segmentos assinalados pelo recorrente, e analisada e concatenada a demais prova produzida, de índole documental e pericial, concluiu-se que a motivação da decisão de facto constante do acórdão recorrido reproduz genericamente tudo quanto se desenrolou em audiência de discussão e julgamento.
Na verdade, a análise de toda a prova (gravada, documental e pericial) não nos dá qualquer indício de que aquele tribunal decidiu mal. Antes pelo contrário, confirma o raciocínio coerente, lógico e racional prosseguido pelo tribunal a quo para dar como provados e não provados os factos em discussão.
Facilmente se percebendo, da leitura do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, que a mesma é escorreita, devida e suficientemente fundamentada - maxime no que tange à concreta intervenção de ambos os arguidos e da assistente GG nos factos em apreço -, e os juízos e a análise crítica que ali é expendida são apreendidos pelo leitor comum, isto é, são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.
É certo que ao recorrente assistia o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à defesa da sua tese, o que fez nos termos que constam das conclusões recursórias.
Porém, em bom rigor, o recorrente, ao alegar em tais moldes, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos, socorrendo-se de pormenores desgarrados da visão global que sempre deve existir, e desprezando toda a demais prova produzida, em boa verdade o recorrente está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aquela adquiriu em julgamento, olvidando a regra da livre apreciação da prova ínsita no Artº 127º do C.P.Penal.
Pelo que, não se detectando na decisão recorrida qualquer vício e ou violação de nenhuma das aludidas normas legais, ou nulidades que não se encontrem sanadas, tem-se a matéria de facto definitivamente assente, soçobrando o recurso, neste segmento.
Nestas circunstâncias, soçobra o recurso, neste segmento.
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3.3. Da qualificação jurídica dos factos perpetrados pelo arguido AA
Como emana dos autos, no libelo acusatório oportunamente deduzido [a fls. 468/479] imputou o Ministério Público ao arguido AA a prática, em autoria material, e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos Artºs. 22º, 23º, 131º, e 132º, nºs. 1 e 2, alínea h), do Código Penal, em concurso com a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo Artº 143º, nº 1, do mesmo diploma legal, imputação essa que foi mantida pelo Mmº JIC na decisão instrutória proferida a fls. 670/680.
Sucede que, na decisão recorrida, o tribunal a quo acabou por condenar o mencionado arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos Artºs. 131º, 22º e 23º, todos do Código Penal, em concurso aparente com o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo Artº 143º, do Código Penal, absolvendo-o da prática do crime de homicídio na forma qualificada, p. e p. pelos Artºs. 131º e 132º, nº 1 e 2, al. h), do referido Código.
Porém, o recorrente DD não se conforma com tal enquadramento jurídico-penal levado a cabo pelo tribunal a quo, defendendo estar verificada a agravação a que alude o Artº 132º, nº 2, al. h), do Código Penal, e dever o arguido AA ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos Artºs. 131º e 132º, nº 1 e 2, alínea h), com referência aos Artºs. 22º e 23º, todos do Código Penal, em concurso com a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo Artº 143º, do mesmo diploma legal.
Apreciando, atentemos, antes de mais, no que a este propósito se expendeu na decisão recorrida (transcrição):
“Vem o arguido AA acusado de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art. 131.º, 132.º, nº 1 e 2, al. h), com referência aos art. 22.º e 23.º, todos do Código Penal, em concurso com a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, do mesmo código.
Dispõe o art. 131.º do Código Penal, sob a epígrafe, “Homicídio”, que:
Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.”
O tipo legal fundamental matricial do crime de homicídio está aqui consagrado, protegendo-se o bem jurídico vida.
O tipo objectivo consiste em matar outra pessoa.
No plano subjectivo, trata-se de um crime doloso, abrangendo o dolo em qualquer das suas modalidades (directo, necessário e eventual) – art. 13º e 14º do Código Penal.
O crime de homicídio é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de resultado, quanto ao objecto da acção.
Há tentativa, quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se - artº 22º, nº 1, do Código Penal.
E explicita o n.º 2 do mesmo normativo o que são actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
Prescreve, ainda, com interesse para o caso dos autos, o artigo 132.º do mesmo código, sob a epígrafe “Homicídio qualificado”, no que ao caso concreto releva, que:
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
 (…)
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
(…)
Sinteticamente dir-se-á que a técnica utilizada no artigo 132.º foi a dos exemplos- padrão, permitindo, por um lado, que o tribunal rejeite a subsunção ao tipo “qualificado” de uma situação de vida formalmente subsumível a alguma das alíneas do nº 2 deste artigo, mas que não revela a especial censurabilidade pressuposta pela “qualificação” e, por outro, subsuma ao tipo “qualificado” situações da vida semelhantes às nele previstas desde que reveladoras daquela especial censurabilidade. [assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição actualizada, p. 400].
À “especial censurabilidade” pretendeu o legislador imputar «aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» [Jorge de Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág.29, Coimbra Editora 1999].
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Face à factualidade provada, não há dúvida que o arguido AA com a sua conduta, preencheu a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º do Código Penal, na forma tentada.
Com efeito, o arguido, praticou actos de execução do crime de homicídio, idóneos a produzir o resultado morte, na pessoa do assistente DD, desferindo-lhe dois golpes com um instrumento cortoperfurante, na zona abdominal superior, que sabia tratar-se de zona que aloja orgãos vitais.
Não obstante as graves lesões sofridas pelo assistente, o resultado morte não se verificou, designadamente, em razão da assistência hospitalar que lhe foi prestada e a intervenção cirúrgica a que foi submetido de urgência.
Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, ciente do caracter proibido da sua conduta, admitindo como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do assistente DD, bem sabendo que golpear o mesmo com um objecto corto contundente na zona abdominal superior, era um acto idóneo a provocar tal resultado.
Agiu, por conseguinte, o arguido, com dolo eventual, i.e., na definição legal contida no art. 14º, nº 3, representando como consequência possível da sua conduta a morte do arguido, actuando do modo descrito, conformando-se com tal resultado.
Perante esta factualidade, e uma vez que o resultado morte, com o qual o arguido se havia conformado, se não verificou, estão preenchidos o elemento subjectivo e actos de execução atinentes aos elementos objectivos do tipo legal p. e p. pelo art. 131º do Código Penal.
A este respeito importa assinalar que a admissão do dolo eventual como forma de comissão do crime doloso, na sua forma tentada, é posição acolhida pela nossa doutrina e jurisprudência – cf. entre outros.. Eduardo Correia, Direito Criminal II, 240, Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 4.ª ed., 404, Germano Marques da Silva, Direito Criminal II, 241, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gest Legal, Tomo I, Outubro de 2019, pág. 814/815 e, exemplificativamente, Ac. RG de 25.03.2019, Acs RP de 28.10.2020 e de 20.10.04, Ac. STJ de 12.03.2009, Ac do STJ de 21.11.84, Ac. do STJ de 8.03.2006 e os Ac. do STJ neste último aresto citados.
Como se escreve no mencionado Acórdão do STJ de 21.11.84: “pelo facto de no dolo eventual não existir uma intenção directamente dirigida à consumação do crime nem por isso se pode dizer que o agente não tomou uma decisão sobre o crime. O acto de conformação com a realização de facto criminoso representado (…) vale essa decisão indubitavelmente, ao contrário do que acontece com a negligência
Também de acordo com Fernanda Palma, in Tentativa Possível em Direito Penal, Almedina, 2006, 79 e ss, citada no referido Ac. da R G de 25.03.2019: “ o dolo eventual é ainda uma forma de decisão da realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, uma vez que na situação de dolo eventual o agente ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele – artigo 14º, nº 3 do CP), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação, nos fundamentos da decisão e opta pela lesão do bem jurídico”.
Concluiu-se, assim, que o arguido praticou, em autoria material, um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º do Código Penal.
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Cumpre agora avaliar se se verifica a circunstância qualificativa de tal crime imputada ao arguido.
Para tanto, cumpre primeiramente analisar se se verificam as circunstâncias enunciadas no nº 2, do art 132º, designadamente a referida na pronúncia e, de seguida, aferir se a mesma revela, no caso concreto em apreciação, a especial censurabilidade ou perversidade prevista no nº 1 do mesmo normativo.
O arguido AA usou um objecto cortoperfurante para desferir dois golpes na parte superior do abdómen do assistente, estando por isso acusado de ter usado um meio particularmente perigoso para a prática do crime de homicídio.
A propósito do que consubstancia um meio particularmente perigoso, para efeitos do citado artigo, diz Figueiredo Dias - In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 37., a propósito do crime de homicídio, a exigência legal de que o meio seja particularmente perigoso determina, por um lado, que ele revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar – não cabendo no exemplo padrão e na sua estrutura valorativa os revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes – e por outro, é necessário determinar, com particular rigor, se da natureza do meio utilizado – e não de outras circunstâncias coexistentes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Tal meio (instrumento, método ou processo), para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, tem de ser suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cfr., v. g., o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241).
Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.
Não se tendo apurado em concreto qual o instrumento do crime, sabendo-se apenas que se tratava de um objecto cortoperfurante, não podemos concluir que se tratava de um objecto particularmente perigoso, mas sim de um comum instrumento de agressão.
Assim sendo, consideramos que não se verifica, no caso, a circunstância prevista na alínea h), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal.
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O arguido deverá, pois, a final, ser absolvido da forma qualificada do crime de homicídio e ser condenado, como autor de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º, nº1 e 2, al. b) e 23.º, nº 1, ambos do Código Penal.
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Ao arguido AA vem imputada ainda, em concurso, a prática sobre o mesmo assistente de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal.
Considerando que as agressões praticadas pelo arguido sobre o assistente ocorreram nas mesmas circunstâncias espácio-temporais dos factos supra referidos e que consubstanciaram a prática de um crime de homicídio, sendo a conduta que integrou o crime de homicídio mera continuação das agressões que a precederam, cremos que, no caso concreto, ter-se-á de considerar que há concurso aparente, na modalidade de consunção, entre os referidos crimes.
Tal conclusão implicará, naturalmente, seja excluída a punição da conduta que integraria a prática do crime de ofensa à integridade física imputado ao arguido.”.
Ora, face ao trecho do acórdão recorrido, acabado de transcrever, cujos fundamentos, por economia processual, se subscrevem inteiramente, entendemos que o tribunal a quo subsumiu correctamente os factos dados como provados ao direito aplicável, enquadrando a conduta do arguido AA no ilícito penal pelo qual veio a ser condenado.
Não colhendo, salvo o devido respeito, a tese do recorrente, segundo a qual, a actuação do arguido AA, utilizando um objecto cortante para o agredir, é apta a ilustrar um meio particularmente perigoso, nos termos em que tal situação é prevista na al. h), do nº 2, do Artº 132º, do Código Penal, revelando especial perversidade e censurabilidade.
Na verdade, cumpre salientar, antes de mais, na esteira da posição do Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves [10], que a enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade feita no Artº 132º não é taxativa, mas exemplificativa, e que as enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
No mesmo sentido pronuncia-se, unanimemente, desde há muito, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/12/1997, in BMJ 472-154, onde claramente se afirma:
“As circunstâncias previstas, por forma não taxativa, no nº 2 do artigo 132º do Código Penal não operam automaticamente, sendo indispensável determinar se, no caso concreto, aquelas preenchem o elemento qualificante da especial censurabilidade ou perversidade e justificam uma sanção que não cabe na moldura incriminadora do homicídio simples”.
Daí que, como sugestivamente afirmam os Exmos. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos [11], o nº 2 do Artº 132º sirva apenas como enunciador de índices – de alguns dos mais incisivos – susceptíveis de orientar o julgador na caracterização da especial censurabilidade ou perversidade da conduta criminosa.
Por isso – dizem – esta tem de ser medida em cada caso concreto.
E como? Perguntam aqueles insignes Autores.

Dando de imediato a resposta:
“Sopesando-se caso a caso as circunstâncias de modo, tempo e lugar do evento, os motivos do agente, a sua vida pregressa, enfim, todo o sem número de referências que permitam explicar, perante o Direito, se o autor da conduta a levou a cabo por forma a merecer maior censura e reprovação. Isto é, se foi mais além do que o vulgar criminoso ou do que o criminoso de ocasião, comportando-se como um delinquente frio, calculista, sem respeito pela condição humana da vítima ou pela qualidade em que estiver investida”.
Na situação em apreço estava em causa, como se viu, a qualificativa prevista na supra citada alínea h), consistente na utilização de meio particularmente perigoso, a qual o tribunal afastou.
O que, na nossa perspectiva, fez correctamente, como já dissemos.
Com efeito, na esteira da doutrina mais avalizada, como é o caso do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, pág. 37, aliás invocado na decisão recorrida, também somos de opinião de que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos ou mesmo muito perigosos. Porém, para a verificação da agravativa em causa, a lei exige que eles sejam particularmente perigosos. O que significa que o meio utilizado deva revelar uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, não cabendo seguramente neste exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa os revólveres, as pistolas, as facas ou vulgares instrumentos contundentes.
Por outro lado, como salienta aquele Autor, torna-se “(...) indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma – aqui sim! -, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso.”.
No mesmo sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o acórdão de 23/02/2012, proferido no âmbito do Proc. nº 123/11.0JAAVR.S1, in www.dgsi.pt,  no qual lapidarmente se afirma:
“… este Tribunal, por diversas vezes, se tem debruçado sobre o exemplo-padrão consistente na utilização de meio particularmente perigoso, tendo vindo a afirmar, de acordo, aliás, com a doutrina, que essa circunstância se há-de traduzir no uso de um instrumento que, pelas suas características, se traduza num perigo acentuado, qualitativamente superior ao perigo inerente a qualquer meio usado para causar a morte de outrem. Qualquer instrumento que seja idóneo para matar é perigoso: uma faca, um sacho ou uma sachola usados com a parte cortante, uma arma de fogo, etc. Para a qualificar o crime a lei exige, todavia, que esse instrumento seja invulgarmente perigoso, sendo havido como tal, pela jurisprudência, aquele meio que acarreta dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitui perigo para outros bens jurídicos pessoais”.
Ou, mais recentemente, o acórdão daquele Alto Tribunal, de 29/06/2023, proferido no âmbito do Proc. nº 15/11.3PEALM.L5.S1, também disponível in www.dgsi.pt, segundo o qual “(...) um meio particularmente perigoso há de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente, estando, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.”.
Ora, no caso vertente, como se provou, o arguido AA, no sequência do envolvimento havido com o arguido DD, nos termos descritos no ponto 1.11. dos factos dados como assentes, munido de um objecto corto- perfurante, desferiu um golpe no antebraço esquerdo e pelo menos dois golpes na região abdominal superior do DD, agressões essas que cessaram com a intervenção de II, que se colocou entre ambos, conseguindo separá-los.
Sucede que, como se referiu na decisão recorrida, e como bem sublinha o Exmo. PGA no seu douto parecer, não foi encontrado ou apreendido o dito instrumento que o arguido AA utilizou para provocar os ferimentos no recorrente DD, desconhecendo-se, pois, as características do mesmo, no tocante à dimensão, formato e demais aspectos que permitam uma cabal definição do meio utlizado, não se podendo presumir que se tratava de uma faca, como aventa o recorrente na conclusão 22ª.
Concordando-se também com o Exmo. PGA quando a este propósito afirma:
“A circunstância do referido instrumento corto perfurante ter sido utilizado no desenvolvimento de uma contenda de luta corpo a corpo, o facto de ter o ofendido sido atingido pelo menos 2 vezes, a circunstância dos ferimentos se terem localizado no antebraço e na região abdominal superior, por si só, não permitem configurar que o meio empregue se apresentava como particularmente perigoso.
Com efeito um meio particularmente perigoso define-se como aquele que se apresenta com potencialidade e aptidão para causar a morte ou ferimentos graves.
Desconhecendo-se as características do objecto fica inviabilizada a possibilidade de o aferir e classificar como meio particularmente perigoso, sendo certo que as circunstâncias que rodearam a sua utilização, por si só, não se mostram suficientes para fundamentar um juízo de perversidade ou especial censurabilidade.”.
Estando, pois, afastada a agravativa que ao arguido AA era imputada, prevista no Artº 132º, nº 2, al. h), do Código Penal, bem andou o tribunal a quo em condená-lo pela prática de um homicídio simples, na forma tentada.
Não merecendo também qualquer censura a conclusão a que o tribunal colectivo chegou quando considerou existir uma situação de concurso aparente entre o crime de homicídio e o crime de ofensa à integridade física simples que igualmente era imputado ao arguido AA, cuja fundamentação se sanciona.
Pelo que, não merecendo qualquer reparo o enquadramento jurídico-penal levado a cabo pelo tribunal a quo relativamente ao ilícito criminal imputado ao arguido AA, cujos elementos objectivos e subjectivos se mostram inteiramente preenchidos, improcede também o recurso do arguido DD, nesta parte.
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3.4. Actuou o arguido DD em legítima defesa e, concomitantemente, deve o mesmo ser absolvido da prática dos dois crimes de ofensa à integridade física que lhe foram imputados?
Como se viu, neste âmbito preconiza o recorrente DD ter agido em legítima defesa, com a intenção de escapar à agressão actual e ilegítima de que era vítima, perpetrada pelo arguido AA, devendo operar a causa de exclusão de ilicitude e da culpa, ao abrigo do instituto da legítima defesa, nos termos dos Artºs. 31º, nº 2, al. a), e 32º, do Código Penal, cujos requisitos se verificam e, consequentemente, ser absolvido dos dois crimes de ofensa à integridade física que lhe foram imputados.
Refira-se, antes de mais, que, como emerge da sua peça recursória, esta pretensão do recorrente assentou claramente no pressuposto de que mereceria provimento o recurso no segmento atinente à impugnação da matéria de facto, o que, como vimos, não sucedeu.
Não obstante, face à posição do recorrente, importa apurar se se verificam, ou não, no caso concreto, os requisitos da legítima defesa.
A legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude, constitui o exercício de um direito constitucionalmente consagrado (cfr. Artº 21º da Constituição da República), o qual, de igual modo, se encontra previsto, para efeitos penais, nos Artºs. 31º e 32° do Código Penal, invocados pelo recorrente.

Efectivamente, sob a epígrafe “Exclusão da ilicitude”, prescreve o Artº 31º do Código Penal:
“1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
a) Em legítima defesa;
(...).

Encontrando-se a noção de “legítima defesa” na norma subsequente, Artº 32º do mesmo diploma legal, nos seguintes termos:
“Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”.

A propósito desta figura jurídica, e dos seus fundamentos, ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 405:
“(...) são dois os fundamentos da força justificativa da legítima defesa. Por um lado a necessidade de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão; se justificará que, numa palavra, a legítima defesa não esteja limitada por uma ideia de proporcionalidade (...). Mas por outro lado também a necessidade de protecção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Afirmando este duplo fundamento, porém, não desejamos ficar numa postura de “não só, mas também”. Antes pensamos que os dois fundamentos se ligam e interpenetram através da ideia - muito justamente formulada por Stratenwerth - de que na legítima defesa se trata em último termo de uma preservação do Direito na pessoa do agredido (...). Mas também inversamente: não há fundamento para uma acção de legítima defesa quando, no caso, se verifique um interesse na preservação do Direito, mas inexista a necessidade de protecção do bem jurídico (...). À defesa de um bem jurídico acresce sempre o propósito da preservação do Direito na esfera da liberdade pessoal do agredido, tanto mais quanto a ameaça resulta de comportamento ilícito de outrem (...)”.

Como é comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, para a perfectibilização desta figura jurídica torna-se necessário que se verifiquem os seguintes predicados ou requisitos:
a) A existência de uma agressão actual, em execução ou iminente, a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro;
b) Que essa agressão seja ilícita ou antijurídica;
c) Que o agente actue com "animus defendendi", ou seja, que aja com o intuito de se defender, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou à agressão iminente;
d) Que o meio empregado seja necessário e racional; e
e) Que o agente esteja impossibilitado de recorrer à força pública.

Requisitos esses que o Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves lapidarmente sintetiza em anotação ao Artº 32º do seu “Código Penal Português”, 14ª Edição, Almedina, 2001, pág. 149, nos seguintes termos:
"Do que ficou exposto se deduz que são requisitos da legítima defesa:
a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro;
b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se do afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontra em posição de o poder fazer, sendo a força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela CRP.
c) Animus defendendi, ou seja o intuito de defesa por parte do defendente.”.

No mesmo sentido a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/09/2008, proferido no âmbito do Proc. nº 08P2491, disponível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:
“X - Segundo a definição mais clássica de legítima defesa – acção necessária para repelir por si mesma um ataque actual e antijurídico, que, essencialmente, vem aceite no art. 32.º do CP –, a situação de defesa pressupõe e tem de ser desencadeada por uma agressão actual e ilícita contra o agente ou terceiro, afectando bem jurídico susceptível de ser protegido através de defesa. Deve, pois, existir uma agressão – que significa toda a lesão ou a iminência de lesão (perigo imediato) – de um interesse juridicamente protegido do agente ou de terceiro, desde que o comportamento do agressor se apresente com um mínimo de causalidade de acção.
XI - Para o efeito de integração dos pressupostos da situação de legítima defesa, a agressão deve ser actual, no sentido de que está em execução ou iminente, porque o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado. A agressão está iminente quando, embora ainda não iniciada, numa aproximação analógica aos elementos da tentativa, se deva seguir imediatamente, segundo a leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente. Ou seja, para determinar a iminência ou a actualidade é decisivo o prognóstico objectivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjectiva deste. A mera intenção, sem ser exteriormente accionada, não constitui iminência de agressão (cf., v.g., Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo 1, 2.ª edição, págs. 411-412, e Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, ob. cit., pág. 366). A iminência da agressão estará presente nas situações em que se saiba antecipadamente, com certeza ou com elevado grau de probabilidade, que terá lugar.
XII - Perante uma agressão actual e antijurídica pode ter lugar a defesa necessária. A legítima defesa, como defesa necessária, supõe, porém, uma vontade de defesa, não no sentido de exclusão, pois desde que exista tal vontade, podem concorrer, para além desta, outros motivos (v.g., ódio, indignação, vingança), mas com tratamento específico quando, perante o animus deffendendi, sobrelevem a necessidade de defesa. A necessidade (art. 32.º do CP: “meio necessário”) da acção defensiva para repelir o ataque constitui, assim, um pressuposto da situação de legítima defesa.
XIII - Mas a actuação com vontade de defesa depende dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Existindo o conhecimento de uma situação objectiva de legítima defesa, não tem sentido a exigência adicional, como se fosse autónoma, de uma co-motivação de defesa (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 438, e Roxin, ob. cit., pág. 667).
XIV - A exigência da necessidade que qualifica os meios de defesa admissíveis traduz-se na escolha do meio menos gravoso para o agressor, de acordo com o juízo do momento, mas com natureza ex ante, avaliando objectivamente toda a dinâmica do acontecimento. A necessidade da acção defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para afastar e repelir eficazmente a agressão – princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos; por isso, quem defende deve escolher de entre os meios eficazes de defesa que estejam, em concreto, à sua disposição, aquele que resulte menos perigoso e que cause menor dano.
XV - Assim, a acção defensiva necessária é a que é idónea para a defesa e constitui o meio menos prejudicial para o agressor. A avaliação da necessidade depende do conjunto de circunstâncias nas quais ocorre a agressão e a reacção – especialmente a intensidade do concreto meio ofensivo e da ofensa, as características pessoais do agressor em contraposição com as características pessoais do defendente (idade, compleição, experiência em situações de confronto, perigosidade e modo de actuação), bem como dos meios disponíveis para a defesa – e deve valorar-se sob uma perspectiva objectiva, isto é, tal como um homem médio colocado na posição do agredido teria valorado as circunstâncias da agressão.
XVI - A necessidade liga-se ao próprio fundamento teleológico da causa de exclusão da ilicitude – não ceder perante o ilícito; a acção defensiva não será necessária quando, por exemplo, se verifique uma «crassa desproporção» entre a natureza, qualidade ou intensidade da agressão e a gravidade das consequências da reacção. Agressões irrelevantes não poderão ser repelidas causando a morte; não pode existir, analisada caso a caso, uma desproporção intolerável entre a natureza da agressão e a gravidade das consequências da reacção (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 430, e Claus Roxin, ob. cit., pág. 663).
XVII - A ponderação da necessidade (menor lesividade) tem, porém, de ser compreendida nas circunstâncias do caso: a defesa pode ser intensa para fazer terminar rápida e completamente a agressão ou a eliminação do perigo, não sendo exigível que o agredido apenas utilize tímidos intentos de defesa que podem fazer correr o risco de continuação ou de intensificação da agressão.
XVIII - A interpretação da exigência de “necessidade” deve conduzir ao resultado político-criminalmente desejável de que os erros objectivamente insuperáveis sobre a necessidade do meio defensivo sejam tomados em prejuízo do agressor.
XIX - Na ponderação sobre a necessidade dos meios não deve, porém, entrar-se em linha de conta com a possibilidade de fuga; escapar não é repelir a agressão (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 419, e Claus Roxin, ob. cit., pág. 631-633).
XX - A necessidade e o exame sobre a necessidade surgem ex ante e não supõem uma ponderação de proporcionalidade dos bens jurídicos implicados. É esta a posição maioritária na doutrina nacional, que nos últimos cinquenta anos não parece atender ou considerar a exigência de proporcionalidade dos bens, fundamentando-se, para tanto, no princípio de que «o direito não tem que ceder ao ilícito» (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 428, Américo A. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, 1995, págs. 423-424, e, sobre as diversas posições na questão, Teresa Quintela de Brito, Homicídio Justificado em Legítima Defesa e em Estado de Necessidade, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, pág. 185 e ss.).
XXI - O uso de um meio não necessário constitui excesso de meios ou excesso intensivo que não exclui a ilicitude do facto defensivo – art. 33.º do CP.”.
É certo que a exigência do requisito do animus defendendi não acolhe unanimidade na doutrina, existindo a posição de que tal pressuposto se satisfaz com o conhecimento da “situação de legítima defesa", ou seja, conhecimento de todos os elementos ou pressupostos objectivos da justificação por legítima defesa» - cfr. neste sentido, Américo Taipa de Carvalho, in “Direito Penal”, Parte Geral, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 398/399.
Quanto a nós subscrevemos o entendimento de que a vontade de defesa (animus deffendendi) constitui um requisito da causa exclusória da ilicitude em apreço.
Pois, como salientam os Exmos. Conselheiros Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, a defesa tem de restringir-se a uma mera defesa, que, de resto, está claramente expressa na lei, quando o legislador se refere a «...facto praticado como meio necessário para repelir a agressão» - Cfr. “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., Rei dos Livros, pág. 91.
Também o Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves, ibidem, não deixa de salientar “… que se exige agora, por forma mais expressiva, o animus deffendendi, ou seja o intuito de defesa por parte do defendente. A substituição de meio necessário à defesa por como meio necessário (de defesa) teve o propósito de vincar a necessidade de tal requisito”.
No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 27/11/2013, proferido no âmbito do Proc. nº 2239/11.4JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:
“V -  O elemento ou requisito essencial da legítima defesa é a ocorrência de animus deffendendi, ou seja, a vontade ou intenção de defesa, muito embora com essa vontade possam convergir outras razões. O elemento subjectivo da acção de legítima defesa refere-se à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a consagração de um direito e na circunstância de o sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado mais valioso, a significar que em face de uma agressão actual e ilícita se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa.”.
Ora, tendo em conta o teor da norma legal em causa, bem como os descritos contributos doutrinários e jurisprudenciais, e vista a factualidade dada como assente no acórdão recorrido, cremos que a mesma não permite concluir por uma situação de legítima defesa por banda do recorrente.
Efectivamente, tal como assertivamente refere o Ministério Público na sua resposta “(…), ao contrário do que invoca o recorrente, resultou evidente, designadamente do depoimento das testemunhas presenciais GG, HH e II a ocorrência de agressões mútuas entre o recorrente e a GG, em primeira linha, e entre o recorrente e o arguido AA, num segundo momento.
Mais resultou provado o tipo de agressões que o recorrente e AA se infligiram mutuamente – pontapés e murros – as áreas do corpo atingidas e as consequências que implicaram para a saúde de cada um e, bem assim, o momento da contenda em que as mesmas ocorreram - que as mesmas ocorreram depois da agressão à ofendida GG ter cessado e em momento prévio à utilização de instrumento potenciador da agressão por parte do AA.
Assim, a testemunha e ofendida GG relatou as agressões que lhe infligiu o DD e disse, ainda, que se defendeu do arguido e que, o arguido AA, vendo o sucedido veio e separou-os, tendo-se ambos envolvido, depois, em contenda física.
Também a testemunha HH, que à data dos factos era cantoneira da Câmara ..., descreveu que estava a fazer uma pausa no seu trabalho, sentada no muro ao pé da praça de táxis, ao lado da ofendida GG. Relatou que, a certa altura, chegou o arguido DD, que cuspiu em cima da GG. Disse que se pontapearam e, depois, viu o arguido DD agarrá-la pelo pescoço. Relatou, depois, que o arguido AA chegou e separou-os um do outro dizendo “larga, larga” e, depois, de já os ter separado, entrou ele próprio em confronto com o arguido DD, atingindo-se, respectivamente, com murros. Apesar de afirmar só ter visto murros, a testemunha, confirmou que final da contenda pode ver o arguido/assistente DD a sangrar da barriga. Disse que viu o que acha ser um telemóvel, nas mãos do AA, mas sem certeza e que o arguido DD, não obstante, ferido, ainda tentou atingir a GG, novamente, tendo depois entrado no seu táxi e ido embora a conduzir.
Finalmente, a testemunha II, disse ter ouvido confusão e ter visto os arguidos “pegados”, tendo ido apartá-los, o que conseguiu. Disse, ainda, que viu qualquer coisa (escura) na mão do arguido AA e que este escondeu tal objecto atrás das costas. Quanto ao arguido DD, estava a sangrar da barriga, já quando se dirigiu a eles para os separar. A ofendida GG, estava perto e o arguido DD ainda lhe tentou chegar, depois de cessar as agressões com o arguido AA.
O dolo directo do arguido DD nas agressões que perpetrou sobre a ofendida GG e sobre o ofendido AA, resultou das suas condutas objectivas, dadas como provadas, das quais se extrai, sem dúvida, uma intencionalidade dirigida a atingir a integridade física dos mesmos.”.
Conclui-se, pois, que, da factualidade dada como assente no acórdão recorrido não se evidencia qualquer situação susceptível de configurar a existência de legitima defesa por parte do recorrente DD.
Constatando-se, pelo contrário, que o mesmo teve a iniciativa de agredir a assistente GG e, em seguida, envolver-se em confronto físico com o arguido AA, que acorrera para fazer cessar a agressão que aquela estava a sofrer.
Ora, esta factualidade é manifestamente insuficiente para configurar ou preencher os supra requisitos da figura jurídica em causa, com especial relevo para o requisito da vontade de defesa, ou seja, do animus deffendendi, que não está minimamente comprovado.
Não sendo despiciendo frisar que, pelo contrário, tal intuito defensivo está completa e definitivamente infirmado pela factualidade dada como assente nos pontos 1.18. e 1.19. dos factos provados, segundo os quais “Com as condutas descritas agiram ainda os arguidos, AA e DD livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de afectarem a saúde física dos ofendidos um do outro e ainda, no caso do arguido DD, da ofendida GG, bem sabendo que das suas condutas resultariam as lesões acima referidas” e “Sabiam ainda os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”.
Tanto basta para se concluir, também, pela improcedência desta questão recursória.
Sendo certo que, em face desta conclusão, torna-se manifesta e evidente a falência da pretensão do recorrente quando preconiza a sua absolvição, quer da prática dos dois crimes de ofensa à integridade física simples que lhe foram imputados, quer da obrigação de ressarcir o demandante AA pelos danos não patrimoniais que lhe provocou, nos termos decretados no acórdão recorrido.
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3.5. Do montante indemnizatório arbitrado ao recorrente pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos
Neste âmbito, defende o recorrente que o arbitramento a seu favor da indemnização civil ficou muito aquém dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, os quais foram subavaliados pelo tribunal a quo.
Tal pretensão do recorrente pressupunha, uma vez mais, a procedência do recurso no que tange à impugnação da matéria de facto, o que não sucedeu, sendo certo que vários dos factos dados como não provados no acórdão recorrido relacionados com essa matéria nem sequer foram questionados [impugnados, entenda-se] pelo recorrente.
Não obstante, há que dizer que não lhe assiste qualquer razão.
Na verdade, como facilmente se colhe do acórdão recorrido, nele o tribunal colectivo analisou de forma correcta e assertiva a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, nos termos do disposto no Artº 483º do Código Civil, arbitrando ao ofendido e demandante DD a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos por virtude da actuação do demandado AA, tendo obviamente em conta a pertinente factualidade dada como assente [note-se que a quase totalidade dos factos que o demandante alegou a este propósito consignou-se nos factos não provados, o que o tribunal colectivo justificou devidamente, como emana da respectiva motivação, supra transcrita, para a qual se remete], e o que a propósito se prescreve nos Artºs. 562º, 563º, 566º e 496º do mesmo diploma legal.
Considerando-se equilibrado, justo e equitativo o montante que atribuiu ao ofendido DD a título de danos não patrimoniais, quantia essa que se reputa conforme aos critérios legais, e que tem apoio na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores sobre a matéria.
Consequentemente, não se vislumbrando motivo para censura aos montantes fixados a título de compensação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais pelo mesmo sofridos, terá forçosamente de soçobrar o recurso, nesta parte.
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Assim, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, conclui-se que não foi violada nenhuma das normas legais invocadas pelo recorrente, nem qualquer outra, e que nenhuma censura nos merece o douto acórdão recorrido, que se confirma, improcedendo in totum o presente recurso.
           
III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e assistente DD, confirmando-se, consequentemente, o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente DD, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
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Guimarães, 10 de Setembro de 2024

Os Juízes Desembargadores:
António Teixeira (Relator)
Isilda Maria Correia de Pinho (1ª Adjunta)
Paulo Correia Serafim (2º Adjunto)


[1] Que igualmente tem a qualidade de assistente, estatuto que lhe foi conferido pelo despacho de 02/12/2022, exarado a fls. 341.
[2] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[3] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[4] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
[5] Como impressivamente refere o Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 1272/1273 -, porque aqui se trata (na detecção dos vícios do Artº 410º, do C.P.Penal), essencialmente, de uma tarefa de direito, os tribunais superiores procedem oficiosamente a essa indagação de vícios na matéria de facto, provada e não provada, atendo-se imperativamente, apenas e só, ao teor do texto da decisão recorrida e, se necessário, também às regras da experiência comum, nunca a outro tipo de provas.
[6] Como relembra o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, a págs. 229 e sgts., a oralidade e a imediação são dois princípios gerais do processo penal, sendo considerados como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual português. Acrescentando que o processo é dominado pelo princípio da oralidade quando o juiz profere a decisão com base em uma audiência de discussão oral da matéria a considerar, e consistindo a imediação como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
[7] Ibidem, pág. 201 e sgts..
[8] Sobre estas questões, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J., de 23/05/2007, proferido no âmbito do Proc. nº  07P1498 (relatado pelo Exmo. Conselheiro Henriques Gaspar), disponível in www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, também, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como o atestam, v.g., o acórdão de 25/03/2010, proferido no âmbito do Proc. nº 427/08...., disponível in www.dgsi.pt, quando, a propósito da possibilidade de sindicância da matéria de facto pelos tribunais da Relação, afirma: “- há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento integral, mas antes um reexame necessariamente segmentado, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo;
- e a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.” (sublinhado nosso).
[10]  In “Código Penal Português” Anotado e Comentado - 14ª Edição - 2001 - pág. 444 e sgts.
[11]  In “O Código penal de 1982”, Vol. 2, 1986, em anotação ao Artº 132º.