CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA
MENOR COM 17 ANOS DE IDADE
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Sumário


I. A menor é vítima no crime de violência doméstica porque o arguido a terá ofendido, constrangendo-a a assistir aos alegados maus tratos infligidos à sua mãe; e é testemunha porque terá presenciado, naturalmente, alguns desses maus tratos, como resulta, nomeadamente do disposto nos artigos 67º-A, nº 1 a) iii), al. d) nº 3 e 1º al. j), ambos do CPP, conjugados com o vertido no artigo 152º, nº 1 e nº 2 a) do CP.
II. Estando em causa o crime de violência doméstica, como é a situação em apreço, a prestação de declarações para memória futura não é obrigatória.
III. Não será de ordenar a tomada de declarações para memória futura, na hipótese de estar em causa uma menor com 17 anos, já ouvida em inquérito, em que o arguido, ex companheiro da sua mãe, já não faz parte do agregado familiar.
IV. Nesse caso não se verifica a situação de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência. Nessa medida, importará fazer prevalecer os princípios processuais relativos à formação da prova pessoal do julgamento, ou seja, os princípios da imediação, oralidade, concentração e contraditório.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de Braga – Juiz ..., no processo de inquérito nº 2102/23.... (atos jurisdicionais), em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos, com data de 17.04.2024, foi proferido despacho judicial pelo qual foi indeferido o requerimento apresentado pelo Ministério Público no sentido de ser inquirida para memória futura como testemunha de uma menor de 16 anos de idade sobre o seu contexto familiar de violência doméstica com os seus progenitores.
2. Não se conformando com tal despacho, o Ministério Público dele interpôs recurso, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição)[1]:
1. Nos presentes autos investiga-se a prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica, contra a sua companheira BB.
2. A filha da ofendida CC nascida a ../../2007, já inquirida a fls. 192, desde ilícito tem 16 anos de idade, presenciou vários episódios, sendo quem num deles teve necessidade de auxiliar a ofendida.
3. O Ministério Público, em cumprimento da DIRETIVA n.º 5/2019, ponto IV. DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA promoveu que a menor CC fosse ouvida em sede de declarações para memória futura.
4. O M.º JIC indeferiu o pedido de declarações para memória futura com fundamento em suma que: a menor não é vitima de crime; não é testemunha especialmente vulnerável em face da idade, em face dos factos e do circunstancialismo da sua prática e também não é em face das relações presentes com o arguido, tanto que este deixou de viver na mesma residência; é uma testemunha de 16 anos que pode perfeitamente, sem vitimização, depor em julgamento.
5. É desse despacho que vem interposto o presente recurso.
6. Com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos desprovido de fundamento legal o indeferimento do pedido de declarações para memória futura.
7. Em caso de pessoas de vítimas do crime de violência doméstica, tem aplicação o regime previsto na Lei 112/2009, de 16 de setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67º-A e 271º do Código do Processo Penal.
8. De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo pois “vítimas” de tal crime.
9. No caso concreto, a menor CC é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque conta com 16 anos de idade, sendo filha da ofendida, tendo residindo com os intervenientes, assistiu aos factos denunciados suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica contra a sua mãe, o qual reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima.
10. A Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.0, um quase poder de dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo: 981/21.0PCSTB-A.E1, de 24-05-2022, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferidos em 23 de junho de 2020, Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa, Processo: 128/22.6T9VFC-C.L1-5 de 22-02-2023, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa Processo; 141/21.0SXLSB-A.L1-9, de 23 Setembro 2021.
11. Nos termos do artigo 22º, n.º 3 da Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro, que aprova o Estatuto de Vítima, Todas as crianças vítimas têm o direito de ser ouvidas no processo penal, devendo para o efeito ser tomadas em consideração a sua idade e maturidade.

Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a prestação de declaração para memória futura da menor CC atualmente com 16 anos de idade, por este ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto no artigo 2º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro e do artigo 67º-A, n.º 1, alíneas a) i e iii e b) e nº 3 do Código de Processo Penal, devidamente acompanhado por psicóloga do GAV.
V. Exas., porém, farão como for de JUSTIÇA

3. O recurso foi admitido.
4. O arguido o respondeu ao recurso, tendo concluído dizendo dever manter-se incólume o despacho proferido pelo Meritíssimo JIC, negando-se provimento ao recurso interposto pelo MP/Recorrente.
5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual concluiu nos seguintes termos:
Em conclusão: com salvaguarda de melhor e mais avisado saber, entendemos que o recurso do Ministério Público deverá ser julgado improcedente mantendo-se a decisão recorrida, pois que não vemos que haja fundamento legal consistente para que, agora, se tome depoimento para memória futura a CC, pessoa com mais de 16 anos de idade e que se assume como vítima de um crime de violência doméstica e como testemunha de um outro crime de violência doméstica, porquanto à mesma e em data mais próxima dos factos, já foi tomado depoimento no inquérito sobre os crimes em causa, e porque, em qualquer situação não pode escapar a uma vitimização secundária por via da repetição da narração dos factos, então, não se poderão enjeitar os benefícios da imediação e da oralidade próprios da audiência de julgamento, local onde aquela, então, os deverá voltar a explanar.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP e não foi apresentada qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal.
Assim, e tendo presente o disposto no nº 1 do artigo 412º do C.P.P., face às razões de discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, temos que a questão a decidir no caso sub judice consiste em saber se estão ou não preenchidos os pressupostos legais para a prestação de declarações para memória futura da menor identificada nos autos.

2. A decisão recorrida
2.1- O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
Afirmando que se investigam factos que configuram a prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica contra a vítima BB, pretende o MP a tomada de declarações para memória futura a CC, nascida a ../../2007 (com 16 anos), filha daquela, mas que o MP apelida (também) de vítima.
Convoca o MP o disposto nos artigos 67.º-A/1-b) e 3, com referência ao artigo 1.º/-j) do CPP, bem como o artigo 2.º/-b) da Lei 112/2009, de 16/09, ou seja “vítima especialmente vulnerável” e ainda o disposto nos artigos 24.º da Lei 130/2015, de 04/09, e 33.º da Lei 112/2009, de 16/09, no pressuposto de inquirição de vítima, e ainda o artigo 271.º do CPP, no pressuposto de inquirição como testemunha (n.º 1).
E convoca ainda o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei 93/99, de 14/07, ou seja “testemunha especialmente vulnerável
           
Decidindo.
Desconsiderando as “questões a colocar ao menor” que parecem dirigir-se ao OPC e para outro tipo de situações que não a evidenciada nos factos, vistos estes, tal como os fez constar o MP do seu requerimento (e quanto à necessidade da sua elaboração por parte do MP, do qual devem constar os factos sobre os quais deve recair a produção antecipada de prova, pode ver-se o estudo declarações para memória futura - elementos de estudo do senhor Desembargador Cruz Bucho, p. 64 e ss; bem como os acórdãos do TRG de 09/01/2024, relator Desembargador António Teixeira, processo 336/23.2GAVVD-A (não publicado), bem como do TRP, de 02/02/2022, Desembargadora Eduarda Lobo, processo 241/21.7PBAVR-B.P1, dgsi) não se apreende o fundamento para afirmar que a menor CC seja vítima.
Pois em face deles (factos) claramente que não é agente passivo do crime que o MP afirma.
E assim sendo, será testemunha dos factos praticados contra a sua mãe (esta sim vítima directa).
Não sendo vítima directa, será testemunha.
Mas não se vê que seja “testemunha especialmente vulnerável”, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 26.º da Lei 93/99 – lei de protecção de testemunhas. Não é testemunha especialmente vulnerável em face da idade, em face dos factos e do circunstancialismo da sua prática e também não é em face das relações presentes com o arguido, tanto que este deixou de viver na mesma residência (cfr. artigo 26.º/2 da Lei 93/99).
É uma testemunha de 16 anos que pode perfeitamente, sem vitimização, depor em julgamento – se for o caso.
Sabendo-se que não há uma obrigatoriedade na lei para que o JIC defira a tomada de declarações para memória futura nestas situações e apenas por estar em causa criminalidade violenta de que a menor possa ter algum conhecimento (dos factos).
Ademais sem que esteja em causa qualquer situação especifica que importe protecção à testemunha, seja do lado da mesma, seja do lado de fidedignidade do depoimento (v.g., artigo 2.º/-b) da Lei 93/99).
Não pode haver banalização de estatutos, sabendo-se da especificidade da Lei 93/99, de 14/07 (desde logo com a redução para metade dos prazos respeitantes ás decisões nela previstas, nos termos do artigo 3.º)
O que lhe empresta assim uma especificidade que não se vislumbra no caso concreto.
A não ser assim, estando em causa testemunhas menores (ademais com 16 anos), apenas por genericamente afirmadas como especialmente vulneráveis, passo em passo transformamos as declarações para memória futura num acto obrigatório.
E também não se vislumbra que, ao abrigo do n.º1 do artigo 271.º do CPP, deva ser ouvida, porquanto não está em causa qualquer das situações aí previstas.
Assim, neste breve quadro, não se vê fundamento para postergar o princípio da imediação (no julgamento).
Face ao exposto, porquanto não se apreende no caso razões especiais que importem um juízo positivo, do lado da testemunha, para a produção de prova antecipada, indefiro o requerido.
Notifique.

3. Apreciação do recurso
3.1-  No caso em apreço, em primeira instância, o Ministério Público formulou um pedido, perante Juiz de Instrução, de prestação de declarações para memória futura de uma menor, o qual foi indeferido por este.
Segundo o Ministério Público, está em causa a investigação de factos que configuram a prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica em que é ofendida a sua companheira BB.
O Ministério Público pretendia e pretende a tomada de declarações para memória futura a CC, nascida a ../../2007 (que, entretanto, perfez 17 anos de idade), filha daquela, por os factos terem sido praticados, ao menos em parte, na sua presença, sendo esta, nessa medida, também vítima.
  No despacho recorrido, o fundamento do indeferimento da tomada de declarações para memória futura baseou-se, em síntese, na consideração de que a menor não é vítima direta do crime de violência doméstica, sendo, por isso, testemunha. Porém, segundo a lei de proteção de testemunhas, não é testemunha especialmente vulnerável, em face da idade, em face dos factos e do circunstancialismo da sua prática, e também não é em face das relações presentes com o arguido, tanto que este deixou de viver na mesma residência (cfr. artigo 26.º/2 da Lei 93/99). O caso não se apresenta como havendo necessidade de proteção da testemunha ou em que esteja em causa a fidelidade do depoimento. Por outro lado, não se verifica qualquer das situações previstas no nº 1 do artigo 271º do CPP.
As razões de discordância do Ministério Público, ora recorrente, prendem-se, no essencial, com o seguinte:
“Em caso de pessoas de vítimas do crime de violência doméstica, tem aplicação o regime previsto na Lei 112/2009, de 16 de setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67º-A e 271º do Código do Processo Penal; cfr. conc. 7;
“De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo pois “vítimas” de tal crime”, cfr. conc. 8;
“No caso concreto, a menor CC é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque conta com 16 anos de idade, sendo filha da ofendida, tendo residido com os intervenientes, assistiu aos factos denunciados suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica contra a sua mãe, o qual reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima”, cfr. conc. 9;
“A Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.0, um quase poder de dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo: 981/21.0PCSTB-A.E1, de 24-05-2022, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferidos em 23 de junho de 2020, Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa, Processo: 128/22.6T9VFC-C.L1-5 de 22-02-2023, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa Processo; 141/21.0SXLSB-A.L1-9, de 23 Setembro 2021”, cfr. conc. 10.
“Nos termos do artigo 22º, n.º 3 da Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro, que aprova o Estatuto de Vítima, Todas as crianças vítimas têm o direito de ser ouvidas no processo penal, devendo para o efeito ser tomadas em consideração a sua idade e maturidade, cfr. conc. 11..
 
Antes do mais, vejamos o quadro legal que regula questão suscitada.
O artigo 271º, do C.P.Penal, sob a epígrafe “Declarações para memória futura”, estatui:
“1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2. No caso d eprocesso por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
(…)
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364º
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”.

O artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro [diploma legal que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas], que sob a epígrafe “Declarações para memória futura” prescreve:
“1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

O artigo 16º, do mesmo diploma legal, que sob a epígrafe “Direito à audição e à apresentação de provas”, estatui:
“1 - A vítima que se constitua assistente colabora com o Ministério Público de acordo com o estatuto do assistente em processo penal.
2 - As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.”

Os artigos 26º e 28º da Lei nº 93/99, de 14 de julho [diploma legal que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal]:
No artigo 26º, sob a epígrafe “Testemunhas especialmente vulneráveis”:
“1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, i(…)ndependentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
O artigo 28º, sob a epígrafe “Intervenção no inquérito”:
“1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

O artigo 67º-A do CPP, com a epígrafe “Vítima”, na parte relevante para o caso, tem a seguinte redação:
“1 - Considera-se:
a) 'Vítima':
(…)
iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;
(…)
d) 'Criança ou jovem', uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos.

3 - As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.
(…)
O artigo 1º, al. j) do CPP define “criminalidade violenta” as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;”.
A Lei nº 130/2015, de 04.09, que define o estatuto da vítima, no seu artigo 17º, prescreve que “1 - A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.”
2 - A inquirição da vítima e a sua eventual submissão a exame médico devem ter lugar, sem atrasos injustificados, após a aquisição da notícia do crime, apenas quando sejam estritamente necessárias às finalidades do inquérito e do processo penal e deve ser evitada a sua repetição.
Por último, o artigo 22º, nº 1 da referida lei estabelece que “1 - Todas as crianças vítimas têm o direito de ser ouvidas no processo penal, devendo para o efeito ser tomadas em consideração a sua idade e maturidade.”
Este conjunto de normas complementa-se e, como bem refere Paulo Dá Mesquita, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 970, “…resultou de uma evolução gradual das fontes de prova protegidas: numa primeira fase vítimas de crimes sexuais, despois testemunha particularmente vulneráveis (artigo 28º/2LPT) depois, de uma forma geral, vítimas de crime de tráfico de pessoas,  visando na componente protetiva da (que se cumula à da probatória) salvaguardá-las do confronto e tensão da audiência de julgamento, obstando ao reviver sucessivo de uma experiência traumática e/ou limitar os perigos de perseguição por criminosos. Na revisão de 2007 do CPP acentuou-se a dimensão prescritiva no caso de vítima menor de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual ao impor como regra a sua audição em declarações para memória futura (art. 271º, nº 2). Processo de alargamento progressivo também expresso na revisão de 2008 da LPT, essencialmente determinada por obrigações internacionais do Estado português, através da ampliação do espectro de crimes, tornando-se ainda inequívoco que a diminuta ou avançada idade, o estado de saúde ou o facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência são apenas exemplos padrão da especial vulnerabilidade da testemunha (art. 26 LPT, a ênfase no caráter meramente exemplificativo desse tipo de razões foi alcançado através da introdução do advérbio “nomeadamente” na revisão de 2008 do art. 26º/2). A previsão no art. 271º/1 das vítimas de crime de tráfico de órgãos humanos foi introduzida pela L 102/2019 – sobre a evolução das politicas processuais nesta matéria em face da jurisprudência do TEDH, cf. Dá Mesquita, 2019, 1104-1119; 20220, pp 2316-2332.
Conforme refere MAIA COSTA, in, Código de Processo Penal Comentado, 2022, 4.ª Edição Revista, Almedina), «[i]nicialmente pensado pelo legislador como meio preventivo de recolha de prova suscetível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, o âmbito de recolha das declarações para memória futura foi posteriormente ampliado, já não para prevenir o perigo de perda da prova, mas para proteção das vítimas, especialmente das menores», sublinhando que «[n]os crimes de tráfico órgãos humanos, de tráfico de pessoas e contra a liberdade e autodeterminação sexual, a recolha antecipada de declarações funciona como meio de proteção da vítima, procedendo-se portanto a essa recolha mesmo que não seja previsível a impossibilidade de comparência das vítimas em audiência de julgamento. Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a antecipação das declarações de vítima menor de 18 anos, nos termos deste artigo, é sempre obrigatória (n.º 2). (…) A norma é evidentemente ditada por uma especial preocupação do legislador na proteção da vítima menor» (pp. 926-927).
O instituto das declarações para memória futura visa a conservação da prova e a proteção das próprias fontes de prova. Neste sentido, vide Paulo Dá Mesquita, ob  e loc. cit.
Uma vez realizado este enquadramento, adianta-se que concordamos com o parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, designadamente quando refere que “No caso em apreciação, é evidente que o desenho da situação de facto apresentada pelo Ministério Público ao M.mo JIC considera a menor CC não só como vítima do crime de violência doméstica, como testemunha de um outro crime de violência doméstica.
É vítima porque o arguido a terá ofendido, constrangendo-a a assistir aos alegados maus-tratos infligidos a BB, mãe daquela; e é testemunha porque, efectivamente, terá presenciado, naturalmente, alguns maus-tratos por aquele levados a cabo sobre a dita BB.”
A consideração da menor como vítima resulta, nomeadamente do disposto nos artigos 67º-A, nº 1 a) iii), al. d) nº 3 e 1º al. j), ambos do CPP, conjugados com o vertido no artigo 152º, nº 1 e nº 2 a) do CP.  
Como é sabido, no caso de estar em causa o crime de violência doméstica, como é a situação em apreço, a prestação de declarações para memória futura não é obrigatória.
Como quer que seja, a memória humana do ocorrido vai-se diluindo gradualmente com o passar do tempo. Por isso, os depoimentos devem ser realizados o mais próximo possível do evento, por forma a fazer diminuir a possibilidade de erro.
No caso vertente, a admitir-se que a menor para além de vítima, possa ser considerada testemunha especialmente vulnerável, verifica-se que ela já prestou depoimento em inquérito, tendo assim sido cumprido o disposto o acima transcrito artigo 28º, nº 1 da Lei de Proteção de Testemunhas, o qual prescreve que “Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.”.
Por outro lado, como decorre dos próprios fundamentos do recurso, importa acautelar a chamada vitimização secundária. Todavia, como refere o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, porque a menor já prestou depoimento em inquérito, quer preste declarações para memória futura, quer preste depoimento em audiência de julgamento, a vitimização secundária acontecerá. É certo, porém, que a revitimização é naturalmente maior no caso de o depoimento ser prestado em audiência de julgamento, atenta, nomeadamente, a natureza solene desta diligência e natural tensão daí decorrente.    
Outrossim, concorda-se com a ideia de que quanto mais jovem for o menor maior é a necessidade de prestação de declarações para memória futura, “…. pois a criança deve ficar protegida e resguardada do ambiente e de tudo o que envolve uma audiência de julgamento, bem como de quaisquer pressões que possam surgir do confronto com o agressor, que é uma pessoa dele próxima. Deve ser ouvida no ambiente mais confortável possível, que permita o favorecimento da prestação de declarações verdadeiras, sinceras e espontâneas.”, cfr. Beatriz Pires Santos Lopes, “O Menor Vítima do Crime de Violência Doméstica – Aspetos Materiais e Processuais”, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito UCP, Lisboa 2021,citada pelo Exmo. PGA no seu parecer.
Todavia, o caso presente assume natureza particular, uma vez que, para além de a menor já ter prestado depoimento em inquérito, o arguido já não reside com a progenitora da menor, dispondo esta, por isso, de um contexto familiar e social autónomo do arguido, e  a menor tem neste momento 17anos de idade, aproximando-se da maioridade civil, tendo adquirido maior maturidade.  Acresce que não se verifica a situação de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.
 De forma que, face ao quadro descrito, importará fazer prevalecer os princípios processuais relativos à formação da prova pessoal do julgamento, ou seja, os princípios da imediação, oralidade, concentração e contraditório.
 Por conseguinte, e sem mais considerandos, por desnecessários, somos levados a concluir no sentido de que não existem fundamentos suficientemente fortes e válidos para colocar em crise o despacho recorrido, o qual, por via disso se decide manter.

III- DISPOSITIVO  

Nos termos e pelos fundamentos exposto, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido.
Sem custas.
Texto integralmente elaborado pelo seu relator e revisto pelos seus signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Notifique.

Guimarães, 10.09.2024

Os Juízes Desembargadores
Armando Azevedo (Relator)
Anabela Varizo Martins (1º Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)



[1] Nas transcrições das peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original.
[2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr.  Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”