PROVA TESTEMUNHAL
RECUSA DE DEPOIMENTO
CO-ARGUIDO
Sumário


I – O direito de recusa a depor previsto no Artº 134º, do C.P.Penal, justifica-se em nome dos laços familiares, de forma a que a testemunha não sinta a sua consciência violentada por incriminar, por força do seu depoimento, pessoa que lhe é próxima em virtude das ligações de parentesco ou de afinidade, bem como pela protecção das relações de confiança, essenciais na instituição familiar.
II - Nas situações de pluralidade de co-arguidos no mesmo processo só será admissível a recusa quando a responsabilidade do arguido [não parente ou afim] for extensiva ao arguido parente ou afim da testemunha, como ocorre no caso da comparticipação.
III - Efectivamente, nesse caso, as razões subjacentes à faculdade prevista no Artº 134º, do C.P.Penal – a relação de estreita proximidade entre testemunha e arguido, de forma que a sua incriminação por força do depoimento da testemunha pode bulir com a consciência desta, assim como a protecção das relações de confiança inerentes à família – mantém-se, pois ao prestar depoimento em relação ao co-arguido não parente ou afim estende a responsabilidade ao seu parente.
IV - Já o mesmo não sucede quando o arguido não familiar ou afim for julgado no mesmo processo mas por crimes autónomos, dado que o depoimento em nada contende com o parente ou afim.

Texto Integral


Acordam, em audiência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 674/20...., que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de ..., da Procuradoria da República da Comarca de Braga, o Ministério Público, no momento processual a que alude o Artº 276º do C.P.Penal [1], deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo Artº 155º, nº 1, al. a), por referência aos Artºs. 131º e 153º, nº 1, e de um crime de dano, p. e p. pelo Artº 212º, nº 1, todos do Código Penal, por factos ocorridos em data não concretamente apurada, mas compreendida no final do mês de Dezembro de 2020, à tarde, e em que é ofendido BB (também arguido nos autos), sendo que, na parte final dessa peça processual, para além, de outros meios de prova, arrolou o Ministério Público, como testemunhas, CC e DD – cfr. fls. 308/310,

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2. Outrossim, o assistente e arguido BB, por si e em representação de EE, sua mulher, falecida em ../../2021, deduziu acusação particular contra o mesmo arguido, AA, imputando-lhe a prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo Artº 181º, nº 1, do Código Penal, por factos ocorridos entre 20 e 31 de Dezembro de 2020, e em que são ofendidos o próprio e sua falecida esposa [cfr. fls. 210/223], acusação essa que o Ministério Público acompanhou, ao abrigo do disposto no Artº 285º, nº 4, nos termos do despacho de 03/01/2023, constante de fls. 296.
Na parte final dessa peça processual, para além, de outros meios de prova, arrolou o assistente e arguido BB, entre outras testemunhas, os supra mencionados CC e DD.
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3. Por sua vez, o arguido AA, enquanto assistente, deduziu acusação particular contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo Artº 181º, nº 1, do Cód. Penal, por factos ocorridos em 21/10/2020, pelas 18H00, em que ele próprio é ofendido, arrolando como testemunhas FF e GG [cfr. fls. 290/293], acusação essa que também o Ministério Público acompanhou, ao abrigo do disposto no Artº 285º, nº 4, nos termos do despacho de 03/01/2023, constante de fls. 295.
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4. Após várias incidências processuais que ora irrelevam, foram os autos remetidos a tribunal, para julgamento, tendo sido distribuídos ao Juízo de Competência Genérica de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
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5. Pelo despacho de 04/07/2023, foram recebidas as aludidas acusações particulares e pública, tendo em vista o julgamento dos arguidos, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, pelos factos e disposições legais delas constantes.
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6. No dia 30/11/2023 realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo os arguidos AA e BB usado da prerrogativa da não prestaram declarações, fazendo-o apenas relativamente à respectiva situação socio-económica, passando-se, então, de imediato a ouvir as testemunhas indicadas pela acusação pública.
6.1. Chamada a depor a testemunha CC, tendo sido questionada, nos termos do disposto no Artº 348º, nº 3, declarou a mesma ser filha do arguido BB.
6.1.1. Nesse conspecto, foi essa testemunha advertida da faculdade que lhe assistia de se recusar a depor, nos termos do disposto no Artº 134º, tendo a mesma declarado não pretender fazê-lo, razão pela qual de imediato o Mmº Juiz a dispensou.
6.1.2. Nessa sequência, a Digna Procuradora da República pediu a palavra, e no seu uso, disse (transcrição [2]):
“O impedimento funciona relativamente à pessoa com a qual a testemunha tem relação de parentesco; neste caso é o Sr. BB; não tem que prestar declarações quanto aos factos que incriminam o Sr. BB, mas tem relativamente ao Sr. AA; e nesse aspecto, vem arguir essa nulidade.”.
6.1.3. Dada a palavra aos Ilustres Defensores dos arguidos, ambos se pronunciaram pela inexistência da invocada nulidade, por entenderem que à testemunha assiste, efectivamente, o direito de se recusar a depor, sob pena de incriminar o assistente / arguido, que é seu pai.
6.1.4. Apreciando tal questão, o Mmº Juiz proferiu o seguinte despacho (transcrição):
“Os factos em análise no presente julgamento encontram-se interligados.
Existem dois arguidos.
Um deles, relativamente ao Sr. BB, a presente testemunha é sua filha, e encontrando-se os factos interligados e não havendo qualquer divisão legalmente possível, nos termos do disposto no Artº 134º do C.P.Penal, no sentido de se recusando neste caso a filha de um dos arguidos em julgamento a prestar declarações que venha no final a ser obrigada a prestar tais declarações a que validamente recusou fazer-se nos termos do disposto no referido Artº 134º.
Pelo exposto, e tendo a referida testemunha feito uso do Artº 134º, nº 1, do C.P.Penal, tendo-o feito validamente, não é a mesma obrigada a prestar declarações, pelo que inexiste a notada nulidade.”.
6.2. Foi de seguida chamado a depor a testemunha DD, o qual, questionado, nos termos do disposto no Artº 348º, nº 3, também declarou ser filho do arguido BB.
6.2.1. Nessas circunstâncias, foi advertido da faculdade que lhe assistia de se recusar a depor, nos termos do disposto no Artº 134º, tendo o mesmo declarado não pretender fazê-lo, razão pela qual de imediato o Mmº Juiz o dispensou.
6.2.2. Nessa sequência, a Digna Procuradora da República pediu a palavra, e no seu uso, deu como reproduzido o anteriormente requerido, atinente à testemunha CC.
6.2.3. Outrossim, dada a palavra aos Ilustres Defensores dos arguidos, ambos se pronunciaram pela inexistência da invocada nulidade, nos moldes anteriormente invocados quanto à testemunha CC.
6.2.4. Pelo que, de seguida o Mmº Juiz deu como reproduzido o despacho anteriormente proferido, supra aludido em 6.1.4., nos seus exactos termos, mas agora dirigido à testemunha DD.
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7. Prosseguindo a audiência, os arguidos prescindiram do depoimento das testemunhas por eles arroladas e, após a prolação das alegações orais, o Mmº Juiz designou o dia 07/12/2023, pelas 9H30, para a leitura da sentença.
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8. E, na realidade, naquela data, foi proferida a respectiva sentença, depositada no mesma dia, a qual de seguida se transcreve [3], na parte que ora interessa considerar:

“(...)
2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1. Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. Do certificado de registo criminal dos arguidos nada consta.
2. EE faleceu em ../../2021.
3. O arguido AA é casado.
4. É encarregado da construção civil e aufere a quantia de € 1200,00.
5. Vive em casa própria, com a mulher, doméstica, um filho de 24 anos, que se encontra empregado, e uma filha de 21 anos, estudante universitária.
6. Completou o 6º ano de escolaridade.
7. O arguido BB é viúvo.
8. Recebe uma pensão de invalidez no valor de € 1300,00 mensais.
9. Vive em casa própria, com os filhos, de 19 e 22 anos de idade, estudantes universitários.
10. Paga 450 euros de mensalidade dos cursos universitários dos filhos.
11. Completou o12º ano de escolaridade.
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2.2. Não se provaram em audiência de julgamento com relevância para a decisão da causa os demais factos constantes das acusações e dos pedidos de indemnização civil, designadamente, que:
(da acusação pública)
- à data dos factos infra, o arguido AA residia, como reside, numa habitação, sita na Rua ..., na União de Freguesias ... e ..., concelho ...;
- por seu turno, ainda à data dos factos infra, BB, casado que foi com EE, falecida em ../../2021, residia, como reside, numa habitação, sita na Rua ..., ..., na União de Freguesias ... e ..., concelho ...;
- as residências acima identificadas são contíguas entre si;
- no confronto entre o logradouro da sua habitação e a habitação pertencente a BB, o arguido AA construiu um canil;
- em data não concretamente apurada, mas compreendida no final do mês de Dezembro de 2020, à tarde, o arguido AA encontrava-se junto ao canil existente na sua habitação, acima identificada;
- por seu turno, BB e EE encontravam-se a trabalhar na horta da sua habitação, acima identificada;
- nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, EE dirigiu-se ao arguido AA e pediu-lhe que retirasse dali os seus animais, atento o mau cheiro, os barulhos provocados pelos animais durante a noite, impeditivos do descanso daquela e dos seus familiares e, ainda, o risco de contaminação da água do poço, com os dejectos dos animais;
- nessa sequência, o arguido AA iniciou uma discussão com EE e BB, no decurso da qual, aquele arguido dirigiu-se a este último e, em tom de voz alto e com foros de seriedade, proferiu a seguinte expressão: “quando tiver oportunidade hei-de dar-te um tiro nos cornos”;
- em acto contínuo, o arguido AA arremessou um balde, seis pedras e três paus na direcção do quintal da habitação de BB, tendo atingido com um dos paus o portão da habitação;
- como consequência directa e necessária da conduta do arguido AA, descrita no artigo 9.º supra, o portão da habitação, pertencente a BB apresenta uma amolgadela, cuja reparação ascende ao valor total de € 109,37 (cento e nove euros e trinta e sete cêntimos);
- o arguido AA ao dirigir-se a BB e proferir a expressão “quando tiver oportunidade hei-de dar-te um tiro nos cornos”, fê-lo com foros de seriedade e, por forma a perturbar o sentimento de segurança daquele e afectá-lo na sua liberdade, o que conseguiu;
- o arguido AA agiu com o intuito de intimidar BB, fazendo-o recear pela sua vida, integridade física e segurança, o que conseguiu;
- o arguido AA agiu com o propósito concretizado de causar medo e inquietação a BB, como efectivamente causou;
- o arguido AA sabia que, o portão da habitação de BB, pertencia a este último;
- mais sabia o arguido AA que, com a sua conduta, descrita no artigo 9.º supra, o identificado portão poderia ser atingido, como foi, e que, desse modo, estragava, como estragou, o mesmo, amolgando-o e causava, como causou, um prejuízo patrimonial a BB;
- o arguido AA sabia que, todos os seus comportamentos, acima descritos, eram proibidos e punidos por lei, mas, apesar de o saber, quis actuar da forma descrita;
- o arguido AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente.
(da acusação particular de fls. 210 e ss.)
- nos finais de Dezembro de 2020, em dia que o assistente não consegue concretamente precisar, mas sempre entre 20 e 31 de Dezembro, encontrava-se juntamente com a sua falecida esposa e os filhos do casal no exterior da sua casa, no logradouro da mesma;
- estavam os quatro ocupados a colher legumes da horta ao mesmo tempo que limpavam as ervas que nesta cresciam;
- essa horta situa-se perto do muro que delimita o seu prédio do prédio do aqui arguido;
- precisamente contra esse muro, do lado do arguido que tem edificado um canil;
- o assistente não sabe ao certo o número de animais porque o muro é alto, mas eram pelo menos três ou quatro, atendendo ao barulho que faziam quando ladravam;
- o arguido é caçador e utiliza os mesmos na caça, pelo que se tratam de animais com os sentidos ainda mais apurados e que reagem ao mínimo movimento ou barulho, fazendo-o através do latir;
- naquele dia que o arguido não consegue concretamente precisar, mas sempre entre o hiato de tempo já aludido, os canídeos, pressentindo a presença do assistente e da sua família junto ao muro, no seu lado oposto, começaram a latir desenfreadamente, como aliás acontecia por diversas vezes, inclusive durante a noite;
- perante tal, a esposa do aqui assistente subiu para uma zona mais alta do seu prédio, tendo, nesse acto, sido acompanhada pelo aqui assistente;
- vislumbrando a presença do arguido junto ao canil, abeirou-se do muro, debruçando-se sobre o mesmo e, uma vez mais, pediu ao arguido que dali retirasse os animais pois ao latirem com extrema frequência, a qualquer altura do dia ou da noite, faziam um ruído extremamente incomodativo e desagradável que perturbava o descanso e o repouso da família, principalmente dela e do seu marido, o aqui assistente, por o cómodo de repouso do casal ficar muito próximo do muro que separa os dois prédios e consequentemente do canil que está edificado contra este;
- a esposa do aqui assistente aproveitou ainda para lembrar ao arguido do cheiro nauseabundo causado pelos dejectos dos animais e que atraiam até ao local moscas e mosquitos;
- referindo também o seu receio em que os dejectos dos canídeos pudessem inquinar a água do seu poço que se situava e situa a poucos metros da zona do muro onde o canil está edificado;
- o arguido, ao ser abordado pela esposa do aqui assistente nos termos em que o foi, apodou a esposa do aqui assistente de: “Cala-te sua puta, cabra, vaca, vai dar o pito para os Feitos”;
- o assistente, que se encontrava junto à sua esposa, sem que nada fizesse nem tivesse sequer tempo em agir, foi também ele apodado com os seguintes epítetos:
“E tu, filho da puta, cabrão, morto vivo, sua chita, quando tiver oportunidade hei-de darte um tiro nos cornos”;
- logo após ter proferido tais expressões dirigidas ao assistente e à sua falecida esposa, o arguido pegou numa mangueira e jorrou com esta água contra aqueles, fazendo-os retirar-se para a zona mais baixa do seu prédio, onde os filhos daqueles se mantiveram durante todo o supra aludido;
- tais expressões foram proferidas pelo arguido em tom rude e em voz alta, por forma a serem escutadas por quem quer que se encontrasse nas imediações, como na verdade aconteceu, uma vez que conforme ficou dito os dois filhos do casal estavam presentes e ouviram perfeitamente as expressões injuriosas dirigidas aos seus pais;
- com tais expressões, quis o arguido ofender gravemente a honra, dignidade, bom nome e consideração social devidas ao assistente e à sua falecida esposa, por si aqui representada, como efectivamente ofendeu;
- tendo o arguido, com as mesmas, logrado o seu propósito;
- apesar de bem saber que a sua conduta era proibida e punida por lei;
- não se tendo, contudo, coibido de a levar a cabo de forma deliberada, livre e consciente.
(do pedido de indemnização civil de fls. 213 e ss.)
- quer o assistente quer a sua falecida esposa sofreram um fortíssimo abalo psíquico, sobretudo pela vergonha, perturbação e medo, ficando deveras envergonhados, incomodados, vexados, entristecidos e amedrontados com as expressões que lhes foram imputadas, tanto mais que o mesmo aconteceu na presença dos seus filhos;
- pois as mesmas, e no que concerne à esposa do assistente, tinham um forte cariz e estigma sexual, o que a fez sentir-se perante os filhos e marido, o aqui assistente, extremamente envergonha, tendo, inclusive, dificuldade em encará-los nos momentos e dias imediatos ao sucedido, por se sentir enxovalhada e humilhada na sua honra, dignidade, bom nome e consideração como esposa e mãe;
- essa vergonha adveio do conservadorismo da falecida esposa do aqui assistente, que, mesmo na relação com este, era uma senhora muito reservada, tímida, dir-se-ia mesmo bastante púdica no que a assuntos da sua vida íntima diziam respeito;
- jamais a expondo perante os seus filhos, e nem sequer por palavras perante o seu marido, o aqui assistente;
- a falecida esposa do aqui assistente era uma senhora bastante religiosa e crente, o que a fazia ter muito pudor em relação a assuntos relacionados ao sexo atendendo à pecaminosidade que a religião ainda fazia e faz crer a muitos dos seus fiéis sobre o assunto, tendo a falecida esposa do assistente bem incutido essa forma de pensar;
- pelo que ouvir da boca de um homem, as expressões injuriosas que ouviu e com a forte conotação sexual que tinham, provocaram na falecida mulher do assistente um forte abalo psíquico e emocional, pois foi tratada de forma reles e conotada como se de uma prostituta fosse;
- tais palavras foram-lhe dirigidas, ainda por cima, num momento muito difícil da sua vida onde passava por um sério e grave problema de saúde, do qual, aliás, veio a falecer a 27 de Abril de 2021;
- a esposa do aqui demandante acabou por viver os últimos meses de vida acometida pela doença oncológica de que padecia, um cancro do pâncreas em estádio muito avançado, com os efeitos secundários que o tratamento de quimioterapia lhe provocava, ao que acresceu toda a tristeza, desgosto, vergonha, mágoa e ressentimento provocado pelas palavras que o arguido lhe dirigiu e que tanto a feriram pelas razões já expostas;
- o arguido não teve qualquer tipo de consideração, muito menos humanidade perante um ser já de si frágil que, estando já em forte sofrimento físico, psíquico e mental, teve nas palavras do arguido uma sobrecarga a nível emocional muito acentuada que lhe causou ainda mais sofrimento, vergonha, mágoa, tristeza, angústia e ansiedade;
- a ansiedade era-lhe gerada pelo medo que sentia do arguido;
- o que a levava, nas alturas em que tinha que sair de casa a recusar-se a passar em frente à casa do arguido, ainda que o seu destino fosse mais perto seguindo esse percurso, optando sempre pelo lado oposto, fosse a pé ou de carro, pedindo sempre ao aqui demandante que não passasse na frente do prédio do arguido;
- no interior da sua residência a falecida esposa do assistente ora tinha comportamento de isolamento com profundos silêncios perturbadores, sinais de total ausência e de completa apatia, ora tinha crises compulsivas de choro com manifestações de desistência da vida, onde em ambas as situações se recusava a alimentar e a descansar e repousar em condições, condições essas imperativas na tentativa do processo de cura em que se encontrava, face as sessões de quimioterapia que levava a cabo no Instituto Português de Oncologia, na cidade ...;
- com o episódio de injúrias de que foi vítima por parte do aqui demandado, esses estados de espírito tornaram-se cada vez mais recorrentes, prologando-se até ao dia da sua vida;
- o facto de não conseguir dormir em condições durante a noite e repousar durante o dia, conforme expressas indicações médicas, em muito se deveu ao ruído feito pelos animais do arguido que latiam com bastante frequência quer de dia quer de noite, até por se tratar de animais de caça, por si só muito reactivos a quaisquer movimentações ou barulhos;
- tudo isso o arguido/demandado ignorou, pois era do seu pleno conhecimento que a falecida esposa do assistente era doente oncológica, demonstrando frieza e total falta de compaixão e humanidade pelo estado de saúde de que padecia a esposa do aqui assistente/demandante;
- a esposa do aqui assistente tinha também bastante receio de fazer a sua higiene com a água do seu poço, em razão da proximidade daquele ao canil;
- o receio na utilização da água potável do seu poço advinha da possibilidade da infiltração dos dejectos dos animais nas terras e águas do subsolo, e que nessa medida viessem a contaminar a água que, até os animais para ali irem, sempre fora própria para o consumo de qualquer espécie;
- era com bastante receio que e por indicação médica que fazia a sua higiene com a água do seu poço, pois, a utilização da água da rede pública em nada beneficiava o seu estado de saúde;
- a falecida esposa do assistente era pessoa educada, respeitadora, sensível e recatada;
- o assistente, também ele, é uma pessoa educada, respeitadora, pacata e que à data dos factos se encontrava extremamente fragilizado pela doença que sabia acometer a sua esposa, até pela sua gravidade, a qual se veio a confirmar com o desfecho da sua morte;
- o assistente, ao ouvir a sua esposa ser injuriada com as expressões supra referidas, sentiu-se triste, ofendido, desgostoso, vexado e desrespeitado por ver tais expressões serem dirigidas à sua falecida esposa e mãe dos seus filhos, para além de ser uma pessoa educada, respeitadora, bondosa e recatada;
- sentiu, de igual modo, uma grande revolta por ver uma pessoa de bem ser assim tão seriamente ofendida na sua honra, bom nome, dignidade e consideração, ao ser totalmente enxovalhada à sua frente e á frente dos filhos;
- bem sabendo o impacto negativo que tais expressões teriam sobre a sua esposa a nível emocional, por se tratar de uma pessoa já de si muito tímida e reservada da sua vida privada e íntima, mesmo em relação a si mesmo, o marido;
- tendo-se visto ali, naquele momento, totalmente exposta perante terceiros como se
se tratasse de uma profissional do sexo;
- tudo isso acrescido da árdua luta que, à data, travava contra um cancro no pâncreas, o que em si mesmo já a trazia bastante abatida, fez com que a partir do momento que foi injuriada pelo arguido tenha ficado muito mais abalada física, psíquica, mental e emocionalmente;
- tais expressões ofenderam a honra, dignidade, bom nome do assistente/demandante e consideração que lhe é merecida;
- o assistente sentiu-se triste, desgostoso, envergonhado, humilhado e amedrontado face a tais expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido;
- tanto mais que o foram na presença da sua esposa e dois seus dois filhos;
- o seu estado de saúde deteriorou-se ainda mais, sobretudo a nível psicológico, com a parte mental e emocional a reflectir constantemente esse episódio, o qual passava na sua cabeça vezes infinitas como se fosse um filme, deixando-o cansado, agastado, envergonhado, humilhado, nervoso e ansioso;
- com um grande sentimento de revolta, face às expressões dirigidas pelo demandado quer a si quer à sua falecida esposa;
- o medo passou a dominá-lo não só a si como a todo o seu clã, pois o arguido é caçador e anda muitas vezes com a arma ao ombro no interior do seu prédio;
- face a tais expressões dirigidas ao demandado, este e a sua família passaram a fazer uma vida muito mais caseira, não desfrutando, sequer, tanto do exterior do seu prédio para não correrem tanto risco de avistarem ou serem avistados pelo arguido;
- só os filhos mantiveram uma vida normal devido á escola, apenas com as condicionantes que a Covid 19 impôs no início do ano de 2021;
- o demandante e a sua falecida esposa, por si aqui representada, apenas se deslocavam ao IPO – Instituto Português de Oncologia, no ..., ao Centro de Saúde ..., à farmácia, à igreja e a casa de familiares, evitando outros locais públicos;
- não só com receio pelas expressões ameaçatórias proferidas pelo demandado, as quais causaram grande apreensão ao demandante como à sua falecida esposa, pois esta tinha no seu marido o seu único suporte e pilar perante a doença de que padecia;
- a esposa do aqui demandante, não só receava não se curar como passou também a ter a preocupação e o medo de que algo de mau acontecesse ao seu marido, o aqui demandante, tudo face às expressões ameaçadoras e atentatórias à vida do seu marido, proferidas pelo demandado;
- e que os filhos do casal pudessem ficar órfãos de pai e mãe por diferentes motivos;
- esse pensamento abalava o frágil estado de saúde da esposa do demandante, que se via em simultâneo com uma série de problemas;
- enfrentava e lutava contra uma doença oncológica no pâncreas, fazia sessões de quimioterapia com os efeitos secundários que esse tratamento causa, como vómitos, náuseas, diarreias, perda do cabelo, anemia, cansaço extremo, dores por todo o corpo, entre outros, sintomatologia essa da qual a falecida esposa do demandante sofreu;
- todo o seu sistema nervoso estava totalmente afectado, vivendo um permanente estado de ansiedade e por vezes sofrendo de ataques de pânico, onde tremia e suava muito, sem conseguir expressar-se;
- o demandante vivia e continua a viver uma vida caracterizada por um forte medo e intranquilidade, uma vez que o demandado é seu vizinho e continua a passear-se no terreno do seu prédio com a arma ao ombro, seja em época de caça ou fora dela, em claros e notórios actos de intimidação;
- face à expressão “…quando tiver oportunidade hei-de dar-te um tiro nos cornos” e à expressão dirigida pelo demandado à mulher do demandante “cala-te sua puta, cabra, vaca, vai dar o pito para os Feitos”, o demandante padece de ansiedade severa, sendo necessário estar medicado para combater essa doença e poder tentar levar uma vida o mais normal possível;
- sabendo e tendo a perfeita noção que apesar da vergonha, do desgosto, da tristeza, da humilhação e do medo que lhe causaram as expressões proferidas pelo demandado, tem que se aguentar dentro das suas debilidades físicas e psicológicas, estas últimas em muito causadas pelo demandado, uma vez que é o único suporte para os seus filhos, cuidando-os e sustentando sozinho o agregado familiar.
(da acusação particular de fls. 290 e ss.)
- no dia 21 de Outubro de 2020, pelas 18:00 horas, o assistente encontrava-se no logradouro da sua moradia sita na Rua ..., em ..., ...;
- o arguido por sua vez, encontrava-se no logradouro, da moradia contígua, sita na Rua ..., em ..., ..., onde, munido de uma mangueira, começou a jorrar água para o logradouro do assistente procurando dessa forma molhar os canídeos que o assistente possuía e ali se encontravam;
- quando avistou o assistente, o arguido dirigiu-se a ele e de forma exaltada, em alta voz e por um número indeterminado de vezes, dirigiu-lhe as seguintes expressões. "és um filho da puta", "porco";
- as expressões que o arguido dirigiu ao assistente são manifestamente ofensivas da
honra e consideração social do assistente e muito o ofenderam e desgostaram;
- o arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, com o propósito de ofender o assistente na sua honra e consideração social, sabendo perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(do pedido de indemnização civil de fls. 291 e ss.)
- com a sua actuação, o arguido/demandado ofendeu o demandante na sua honra;
- o demandante é uma pessoa bastante respeitada na comunidade onde vive e para além dela, e conotado como pessoa íntegra;
- o demandante sentiu-se profundamente ofendido e envergonhado com as palavras ofensivas proferidas pelo demandado.
(do pedido de indemnização civil de fls. 343 e ss.)
- o demandante tem medo e receio justificados de que o demandado possa concretizar a ameaça que lhe dirigiu, nos finais de Dezembro de 2020, altura em que aquele lhe dirigiu a seguinte expressão: “quando tiver oportunidade hei-de dar-te um tiro nos cornos”;
- o demandado teve essa atitude porque o demandante saiu em defesa da sua falecida mulher, a qual estava a ser injuriada pelo arguido/demandado, apenas e só porque tinha pedido, uma vez mais, ao demandado que dali retirasse os cães que tinha no canil que construiu junto ao muro que delimita os dois prédios, dos quais as aqui partes são proprietários;
- esse pedido surgiu porque dia e noite era frequente os cães ladrarem muito, e tratando-se, como se tratam de cães de caça, mais alerta estão a sons e movimentações, reagindo sob a forma de latidos;
- esse barulho, quer durante o dia, quer durante a noite, perturbava s o repouso e descanso de toda da família do demandante, pois a sua casa de habitação e, sobretudo, o cómodo onde o casal dormia, era o local da casa mais próximo do ponto onde do outro lado do muro se situava e situa o canil;
- além de verem o seu repouso e descanso a ser posto em causa, temiam ainda que face ao ambiente nauseabundo que vinha do canil devido ao mau cheiro dos dejectos dos animais, e que atraía ao local muitos mosquitos, os mesmos se entranhassem no solo e viessem a contaminar a água do poço que se situava e situa junto ao aludido muro, no prédio do demandante;
- o arguido/demandado não aceitou de bom grado, muito pelo contrário, a interpelação feita pela falecida mulher do demandante, tendo reagido no que concerne à ameaça agravada conforme o que ficou dito no ponto segundo desta peça processual;
- o demandante sentia-se e sente-se intimidado, assustado e angustiado, face à expressão ameaçadora proferida pelo arguido/demandado, a qual lhe causou e continua a causar justo receio de que a sua vida esteja a correr perigo;
- passou a dormir mal e a precisar de medicação, mais concretamente, o Diazepam a 5mg, mais conhecido por Vallium, para sanar ou atenuar esse problema;
- embora haja dias em que nem a medicação funciona e sofra de insónias;
- também é frequente ter pesadelos onde o seu subconsciente vai buscar essa ameaça recalcada e acordar sobressaltado a meio da noite, suado e com uma grande sensação de peso no peito;
- o demandante, face ao medo angústia e temor, passou a fazer uma vida muito mais caseira, recolhendo-se muito no interior da sua habitação, até porque o arguido/demandado, por algumas vezes foi visto pelo demandante, pela sua falecida mulher e pelos filhos do então casal, a deambular no interior do seu prédio de arma ao ombro, de um lado para o outro, mas sempre perto do canil e consequentemente do muro que divide os dois prédios;
- o demandante deixou de passear tanto no logradouro do seu prédio e dedicar-se tanto à limpeza e plantação de produtos agrícolas na sua horta, inibindo-se, por medo, de levar a cabo uma actividade ao ar livre, a qual lhe dava imenso prazer, permitindo-lhe não só desanuviar e relaxar um pouco dos problemas que enfrentava com a doença da sua mulher, bem como espairecer e dedicar-se a algo que ela gostava, após a morte daquela;
- o trabalho na horta era algo que faziam em família, ainda antes da doença da mulher do demandante, quando a ajudavam a trabalhar a terra, pois aquela, posteriormente, colhia e vendia esses produtos hortícolas, semanalmente, na feira de ...;
- era uma actividade que dava prazer ao demandante e à família, e que, em virtude da ameaça proferida pelo arguido/demandado, passaram a coibir-se de a praticar por receio de que a vida do demandante estivesse em perigo;
- vir para o exterior e trabalhar a horta era uma forma de o demandante trazer a sua falecida para respirar ar puro e apanhar algum sol, recomendações importantes segundo orientações da equipa médica que a seguia no Instituto Português de Oncologia;
- o mesmo se passou em relação à limpeza e cultivo da horta, que foi deixando de acontecer com a regularidade que era habitual, não permitindo ao demandante praticar uma cultura biológica de produtos hortícolas para usar na dieta alimentar da sua mulher, que, também, segundo a equipa médica que a acompanhava no Instituto Português de Oncologia, era algo bastante benéfico para a sua alimentação na fase em que aquela se encontrava, pois com as defesas imunitárias muito baixas em razão dos fortes tratamentos a que estava sujeita, os produtos biológicos, por serem limpos de adubos ou outros fertilizantes, era os mais recomendáveis para evitar a inflamação do organismo, mais concretamente do sistema digestivo;
- ao coibir-se de vir para o exterior da casa às vezes que pretendia e ao não levar a cabo a cultura biológica dos produtos hortícolas conforme era necessário, o demandante acabava por não cumprir com as recomendações médicas supra referidas, sentindo-se frustrado e revoltado com a situação, que, na sua óptica, o punha em falta com a sua mulher;
- o demandante sentiu e continua a sentir-se intimidado, assustado e angustiado, face à expressão proferida pelo arguido/demandado;
- o arguido/demandado procura o conflito na busca da oportunidade para concretizar a ameaça que lhe fez;
- nada impedindo que venha também a atentar contra a vida ou integridade física do demandante,
- o demandante temeu e teme pela sua vida pois se alguma coisa lhe acontece, a família, actualmente já só composta pelos seus filhos, perde-o, o que significa perder o grande e único pilar que tem;
- não lhes sendo possível assegurar o tipo de vida que o demandante ainda lhes consegue proporcionar, mormente na sua formação numa altura em que a filha já se encontra no ensino superior e o filho concluirá este ano o 3º. ciclo e seguirá as pisadas da irmã;
- tendo ambos que deixar os estudos e procurar um emprego para se sustentar;
- o que, só de perspectivar, traria grande desgosto e desilusão para ao demandante pois sabe que os seus filhos têm capacidades intelectuais para terem um bom emprego e querem singrar na vida, pelo que se encontram reunidos os requisitos para que haja sucesso quanto a este aspecto:
- a própria mulher do demandante, enquanto viva, ao ter ouvido a ameaça dirigia ao seu marido ficou muito nervosa, assustada, angustiada, pois sabia da gravidade da doença que padecia e do baixíssimo grau de sobrevivência que lhe estava associada;
- o arguido/demandado ainda arremessou com um balde, seis pedras e três paus na direcção da casa do demandante, tendo um dos paus acertado no portão da habitação, causando-lhe uma amolgadela;
- a reparação do aludido dano no portão ascende ao valor total de € 109,37 (cento e nove euros e trinta e sete cêntimos).
*
2.3. Motivação

A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do Código de Processo Penal), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do Código de Processo Penal.
No que concerne à realidade não demonstrada a convicção do tribunal resulta da ausência de produção de qualquer prova capaz de convencer da sua realidade, inexistindo declarações dos arguidos/assistentes quanto aos factos, perante o uso do direito ao silêncio, e a recusa em depor das testemunhas CC e DD, filhos do arguido BB, que fizeram uso do direito que legalmente lhes assiste.
Quanto aos antecedentes criminais, considerou-se o certificado de registo criminal junto aos autos.
Consideraram-se os documentos juntos aos autos e as declarações dos arguidos quanto à sua situação económico-social.
3. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
O arguido AA encontra-se acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de ameaça agravado, p.p., pelo art. 155º, nº 1, e da prática de um crime de dano, p. p. pelo art. 212º, nº 1, ambos do Código Penal.
Foi-lhe, ainda, imputada a prática de dois crimes de injúria, p. p. pelo art. 181º, nº 1 do Código Penal.
Ao arguido BB foi imputada a prática de um crime de injúria, p. p. pelo art. 181º, nº 1 do Código Penal.
*
Constituem elementos objectivos do crime de ameaça o anúncio de um mal que constitua crime contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual, ou bens patrimoniais de valor considerável, adequado a provocar, na pessoa a quem se dirige, receio ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
No caso do crime de ameaça agravado, quando os factos previstos nos arts. 153º e 154º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos (al. a), o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do art. 153º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do nº 1 do art. 154º.
Além do elemento objectivo supra referidos, o crime em causa pressupõe ainda o elemento subjectivo do dolo em qualquer uma das suas formas – cfr. art. 14.º do Código Penal.
Dispõe o artigo 212º, nº 1 do Código Penal, relativo ao crime de dano, que:
“Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.
O bem jurídico protegido pelo tipo legal é a propriedade. A incriminação do dano protege a propriedade (alheia) contra agressões que atingem directamente a existência ou a integridade do estado da coisa. Deve, contudo, precisar-se que – salvo nos casos extremados de destruição da coisa – o direito de propriedade “qua tale” não é atingido. O que é atingida é apenas a dimensão ou direito decorrente daquele: o domínio exclusivo sobre a coisa, isto é, o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa o que quiser, retirando dela, em todo ou em parte, as utilidades que ela pode oferecer.
São, deste modo, elementos objectivos do tipo de ilícito ora em análise a destruição, total ou parcial, a danificação, a desfiguração ou o tornar não utilizável coisa alheia.
O conceito de coisa é aqui mais restrito do que em direito civil (artigo 202º do Código Civil), uma vez que só as coisas corpóreas podem ser objecto de dano.
A “corporeidade” deve entender-se no sentido de coisa materialmente apreensível.
Para além de corpórea, terá de tratar-se de coisa autónoma, isto é, terá de constituir objecto autónomo de relação jurídica.
A qualificação da coisa como alheia é determinada pelos princípios, categorias e normas da lei civil. A exigência de se tratar de coisa alheia exclui as coisas insusceptíveis de apropriação e as coisas de propriedade exclusiva do agente.
A incriminação prevê quatro modalidades de acção típica:
- destruir: neste caso, a coisa, mesmo quando não desaparece a matéria de que é composta, deixa de manter a sua individualidade anterior. A destruição parcial é equiparada à destruição total, quando acarrete a completa imprestabilidade da coisa;
- danificar: uma coisa danifica-se quando, sem perder totalmente a sua integridade, sofre um estrago substancial com a consequente diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica (Leal Henriques/Simas Santos, CP anotado vol 2º p. 510);
- desfigurar: consiste em ofender irremediavelmente a estética da coisa;
- tornar não utilizável: é tornar uma coisa, mesmo que temporariamente, inadequada ao fim a que estava destinada, sem que perca a sua individualidade.
O crime de dano só é punível sob a forma de dolo, sendo bastante o dolo eventual.
Para haver dolo, o agente tem, nos termos gerais, de representar que a sua acção sacrifica coisa alheia. Por vias disso, só são imputáveis ao dolo do agente os efeitos nocivos que são do seu conhecimento.
Por sua vez, dispõe o art. 181º do Código Penal, no seu nº 1, que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido (...)”.
Diz-nos António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, in “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, pág. 31, que “a palavra injúria tem as suas raízes no vocábulo latino “injuria” ou “iniuria”, o qual se decompõe nos elementos in e iuris. O prefixo in significa negação quando utilizado antes de adjectivos ou advérbios, enquanto que a raiz iuris é sinónimo de justiça, direito. Assim, injuria ou iniuria tem o sentido de injustiça, prejuízo, agravo, ofensa, lesão, mal, dano, severidade excessiva.
Foi também com esse significado que a palavra foi introduzida na nossa língua e é esse o sentido e significado que a mesma actualmente mantém, qual seja o de afronta, ultraje, agravo, acção que ofende outrem”.
Trata-se, consabidamente de, no plano criminal, estabelecer uma específica área de protecção do bem jurídico honra e consideração, consagrados que estão, constitucionalmente, o direito ao bom nome e reputação.
Honra que, na concepção dominante – por todos, cfr. Faria Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, pág. 607; Figueiredo Dias, in Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português, RLJ, 115º, pág. 100 e ss; Manuel da Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, pág. 76 e ss -, é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que se protege “é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade” – Faria Costa, in ob. cit..
Conforme se pugna no Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Novembro de 1992, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 1996, in CJSTJ, Ano IV, tomo III, pág. 149:
“A honra de cada um traduz-se na afeição, no amor que lhe merece a sua própria pessoa, e tem a ver com a integridade moral, referida à probidade, ao carácter, à rectidão, por parte da essência da personalidade humana.
A consideração traduz-se no conceito em que se é tido na sociedade no meio em que se vive e refere-se à reputação social, ao nome, ao crédito e à confiança adquiridos.
A injúria concretiza-se num ataque directo, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido”.
Quanto ao tipo subjectivo, o referido crime é doloso, não sendo punível a negligência.
O tipo subjectivo do actual artigo 181º do Código Penal exige tão-só o dolo genérico, bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém (neste sentido, Simas Santos e Leal - Henriques, in Código Penal Anotado, pág. 318).
Não se exige, pois, o dolo específico, ou seja, a consciência e o propósito de ofender.
Tal não significa, no entanto, que o preenchimento do tipo se baste com os elementos objectivos referidos. Com efeito, é, ainda, necessário que o agente actue com dolo, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14º, do Código Penal, isto é, que tenha consciência de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém e que o agente, com tal comportamento, queira ofender a honra e consideração de alguém, ou preveja essa ofensa, de modo a que a mesma lhe possa ser imputada dolosamente (cfr. neste sentido Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado, 7ª edição, 1997, pág. 444).
Conforme escreve Faria Costa (in ob. cit, pág. 604): “...entre nós, BELEZA DOS SANTOS: “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”
No caso dos autos, não se provaram o elemento objectivo e subjectivo dos crimes imputados aos arguidos – ameaça agravado, dano e injúria no caso do arguido AA -, e do crime de injúria no caso do arguido BB – ou seja, não se provaram os factos descritos nas acusações pública e particulares.
Nestes termos, importa, sem necessidade de ulteriores considerações, julgar não provadas e improcedentes as acusações pública e acusações particulares.
*
4. PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Importa agora apreciar as pretensões indemnizatórias deduzidas pelos demandantes.
De acordo com o art. 129º do Código Penal a indemnização dos danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Significa isto, além do mais, que a indemnização a atribuir ao ofendido respeita apenas aos danos emergentes da prática dos factos imputados na acusação (que delimita o âmbito temático do procedimento) e não aos emergentes de quaisquer outros factos que se mostrem susceptíveis de integrar outra/ou diversa conduta ilícita típica ali não descrita.
Em conformidade com o que supra se disse há, então, que verificar se em concreto se encontram provados factos susceptíveis de integrar os pressupostos da existência da obrigação de indemnizar dos demandados, emergentes da responsabilidade por factos ilícitos, a que se refere o art. 483º do Código Civil.
Decorre do preceituado neste dispositivo legal, que tal responsabilidade depende da prática pelo agente de um facto reputado como ilícito, que esse facto lhe seja imputável a título de culpa, e que dele tenha resultado, de forma necessária e adequada, a produção de um dano.
Ora, atenta a factualidade apurada, conclui-se que em concreto tais pressupostos se não mostram preenchidos – na verdade, desde logo não se provou a prática pelos demandados dos factos ilícitos descritos nas acusações pública e particulares, causadores dos danos cujas indemnizações se pretende.
Assim sendo, visto que não se provou a existência de factos ilícitos, importa sem mais julgar improcedentes os pedidos de indemnização civil formulados pelos demandantes.
*
5. DECISÃO

Por todo o exposto, decide-se:
5.1. Julgar a acusação pública não provada e improcedente e, consequentemente:
5.1.1. absolver o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de ameaça agravado, p. p. pelo art. 155º, nº 1, al. a), e de um crime de dano, p. p. pelo art. 212º, nº 1, ambos do Código Penal.
5.2. Julgar as acusações particulares não provadas e improcedente e, consequentemente:
5.2.1. absolver o arguido AA da prática de dois crimes de injúria, p. p. pelo art. 181º, nº 1 do Código Penal;
5.2.2. absolver o arguido BB da prática de um crime de injúria, p. p. pelo art. 181º, nº 1 do Código Penal.
5.2.3. Custas a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
5.3. Julgar os pedidos de indemnização civil formulados a fls. 213 e ss., 291 e ss. e 343 e ss não provados e improcedentes e, consequentemente:
5.3.1. absolver o demandado AA dos pedidos de indemnização civil formulados por BB.
5.3.2. absolver o demandado BB do pedido de indemnização civil formulado por AA.
5.3.3. Custas dos pedidos cíveis a cargo dos demandantes.
(...)”.
*
9. Inconformado com tais decisões [ou seja, com os despachos proferidos em audiência de discussão e julgamento, supra aludidos em 6.1.4. e 6.2.4., e bem assim com a sentença final], delas veio o Ministério Público interpor o presente recurso, cuja motivação a Exma. Procuradora da República subscritora remata com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

I- Os factos em apreciação nos autos, vertidos nas acusações pública e particulares, foram praticados reciprocamente pelos arguidos AA e BB, tratando-se de crimes autónomos, pelo que a responsabilidade do arguido AA não é extensível ao arguido BB, de quem são filhos as testemunhas CC e DD.
II- O direito de recusa de depoimento previsto no art.º 134.º do Cód. Processo Penal tem subjacente a protecção das relações de confiança existentes no seio familiar, na medida em que se pretende evitar que a testemunha seja obrigada a depor, assim incriminando o arguido que lhe é próximo por via dessa relação de parentesco ou afinidade.
Pretende, ainda, evitar que, obrigada a testemunha a depor, o não faça com verdade para favorecer a pessoa que lhe é próxima, sujeitando-se às respectivas consequências penais dessa conduta.
III- As testemunhas CC e DD não podiam recusar-se a depor relativamente aos factos que nos autos são imputados ao arguido AA, com o qual não possuem qualquer relação de parentesco ou afinidade.
IV- Ao aceitar a recusa de depoimento de tais testemunhas quanto a matérias que extravasam o âmbito de protecção da norma do art.º 134.º do Cód. Processo Penal, dado que dizem respeito ao outro arguido que, com as testemunhas, não se encontra numa das relações ali previstas, e não integram qualquer forma de comparticipação com o arguido de que são parentes, o Tribunal omitiu uma diligência essencial para a descoberta da verdade material, de que resultou parte da sentença absolutória proferida nos autos.
V- A aceitação da recusa de depoimento das referidas testemunhas e consequente omissão de uma diligência essencial para a descoberta da verdade material, configura uma nulidade, nos termos do disposto no art.º 120.º n.º 2 al. d) do Cód. Processo Penal.
VI- A decisão documentada em Acta recorrida deve ser anulada, assim como, e em consequência, a sentença absolutória proferida na parte em que absolveu o arguido AA dos crimes que lhe vinham imputados, tomando-se os depoimentos das testemunhas CC e DD acerca dos factos de que é acusado o arguido AA.
Assim se fazendo JUSTIÇA!”.
*
10. Cumprido o disposto no Artº 411º, nº 6, nenhum dos arguidos [que também têm a qualidade de assistentes, como se viu] se apresentou a responder.
*
11. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal da Relação emitiu o seu parecer, acompanhando e subscrevendo a posição do Ministério Público em primeira instância, terminando a sua douta peça processual nos seguintes termos (transcrição):
Em conclusão: os recursos do Ministério Público cuja pertinente e cuidada argumentação se persegue, deverão ser julgados providos por se constar um errado emprego do regime previsto no art.º 134 do CPPenal no despacho recorrido, e por se verificar uma concreta nulidade tempestivamente arguida, por omissão de realização de uma diligência essencial para a descoberta da verdade – al. d), n.º2 art.º 120 do mesmo CPPenal.”.
*
12. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, não foi apresentada qualquer resposta.
*
13. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal [4].
Assim sendo, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão que basicamente importa dirimir é a de saber se a aceitação da recusa de prestação de depoimento, em audiência de discussão e julgamento, por banda das testemunhas CC e DD, filhos do arguido BB, configura a nulidade prevista no Artº 120º, nº 2, al. d), do C.P.Penal, por omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade material.
Ora, adiantando a nossa posição, cremos que a razão está do lado do recorrente.

Vejamos.

Atentando-se, antes de mais, no que a propósito prescreve o Artº 134º, sob a epígrafe “Recusa de depoimento”:

“1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
2 - A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.”.

O transcrito preceito legal concede às pessoas mencionadas no nº 1 – e, como claramente se extrai da norma legal em apreciação, os titulares do direito  ali contemplado são as pessoas identificadas nas alíneas a) e b) – a faculdade de recusarem o depoimento sem incorrerem em qualquer sanção, faculdade essa que a lei processual penal rodeia de cautelas destinadas a permitir o seu efectivo exercício, impondo à entidade competente para receber o depoimento o dever de advertir tais pessoas dessa faculdade, sob pena de nulidade (cfr. nº 2).

Como bem sublinha o Exmo. Conselheiro Santos Cabral, in “Código de Processo Penal” Comentado, Almedina, 2ª Edição Revista, 2016, págs. 488/490, o direito de recusa previsto neste dispositivo legal justifica-se em nome dos laços familiares, de forma a que a testemunha não sinta a sua consciência violentada por incriminar, por força do seu depoimento, pessoa que lhe é próxima em virtude das ligações de parentesco ou de afinidade, bem como pela protecção das relações de confiança, essenciais na instituição familiar.
Acresce que – diz o mesmo Autor –, com a imposição da advertência a que alude o nº 2 do preceito legal em análise, o legislador teve vem vista assegurar que a opção da testemunha decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguarda a faculdade – o direito ao silêncio – que, repete-se, lhe é conferida não só por causa do seu íntimo conflito de consciência, mas também para protecção do mesmo círculo familiar a que ela e o acusado pertencem.

No mesmo sentido a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que é exemplo o acórdão nº 1/2009, de 25/03/2009, in DR nº 104/2009, 2ª Série, de 29/05/2009, no qual a este propósito lapidarmente se afirma:

“A hipótese que agora se contempla, a possibilidade de recusa a prestar depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuírem para a condenação do seu familiar.

Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o legislador quer proteger as "relações de confiança, essenciais à instituição familiar".
Assim sendo, nas situações taxativamente previstas no citado preceito legal, a testemunha pode recusar-se a prestar depoimento.
Mas tal recusa a depor será extensível aos demais arguidos no mesmo processo com quem a testemunha não tenha qualquer laço de parentesco ou afinidade relevante?
Na esteira da posição defendida pelo Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves, em anotação ao Artº 134º do C.P.Penal, in “Código de Processo Penal” Anotado e Comentado, 12ª edição, Almedina, 2001, pág. 351, entendemos que só será admissível a recusa quando a responsabilidade do arguido [não parente ou afim] for extensiva ao arguido parente ou afim da testemunha, como ocorre no caso da comparticipação. Pois, neste caso, as razões subjacentes à faculdade prevista no Artº 134º – a relação de estreita proximidade entre testemunha e arguido, de forma que a sua incriminação por força do depoimento da testemunha pode bulir com a consciência desta, assim como a protecção das relações de confiança inerentes à família – mantém-se, pois ao prestar depoimento em relação ao co-arguido não parente ou afim estende a responsabilidade ao seu parente. Já o mesmo não sucede quando o arguido não familiar ou afim for julgado no mesmo processo mas por crimes autónomos, dado que o depoimento em nada contende com o parente ou afim.
Na situação em apreço, como anteriormente se referiu, na audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 30/11/2023, foram chamados a depor as testemunhas CC e DD, as quais se identificaram como sendo filhos do arguido BB, sendo que, após terem sido advertidos da faculdade que lhes assistia de se recusarem a depor, nos termos do disposto no Artº 134º do C.P.Penal, declararam não pretender fazê-lo, razão pela qual de imediato o Mmº Juiz os dispensou.
Porém, salvo o devido respeito, não cremos que tais recusa e dispensa tenham cobertura legal.

Na verdade, como bem sublinha o recorrente, há que não olvidar que os dois arguidos nos autos, submetidos a julgamento, respondem claramente por crimes autónomos, cometidos reciprocamente, a saber:

a) O arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo Artº 155º, nº 1, al. a), por referência aos Artºs. 131º e 153º, nº 1, e de um crime de dano, p. e p. pelo Artº 212º, nº 1, todos do Código Penal, por factos ocorridos em data não concretamente apurada, mas compreendida no final do mês de Dezembro de 2020, à tarde, em que é ofendido BB, e ainda pela prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo Artº 181º, nº 1, do Código Penal, por factos ocorridos entre 20 e 31 de Dezembro de 2020, em que são ofendidos o mesmo BB e sua falecida esposa; e
b) O arguido BB pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo Artº 181º, nº 1, do Cód. Penal, por factos ocorridos em 21/10/2020, pelas 18H00, sendo ofendido AA.
Acresce que os identificados filhos do arguido BB foram arrolados como testemunhas nas respectivas acusações [pública e particular] tendo em vista a demonstração ou a prova da factualidade imputada ao arguido AA, [alegadamente] consubstanciadora dos quatro supra mencionados ilícitos criminais, sendo certo que, em sede de inquérito, foram formalmente inquiridos naquela qualidade acerca da matéria em causa.
Não visando, assim, os respectivos depoimentos, a demonstração da factualidade imputada a seu pai, o arguido BB, acusado pela prática de um crime de injúria, totalmente autónomo daqueles, com o qual inexiste, pois, qualquer relação ou conexão.
Consequentemente, e concordando-se uma vez mais com a Digna Procuradora da República recorrente, tais testemunhas não tinham a faculdade de se recusarem a depor relativamente aos factos que são imputados ao arguido AA, com o qual não possuem qualquer relação de parentesco ou afinidade.
Pois, como bem assinala, na sequência, aliás, do que anteriormente expendemos, “O direito de recusa de depoimento previsto no artº 134º tem subjacente a protecção das relações de confiança existentes no seio familiar, na medida em que se pretende evitar que a testemunha seja obrigada a depor, assim incriminando o arguido que lhe é próximo por via dessa relação de parentesco ou afinidade.”, pretendendo evitar, por outro lado “(...) que, obrigada que fosse a testemunha a depor, o não fizesse com verdade para favorecer a pessoa que lhe é próxima, sujeitando-se às respectivas consequências penais dessa conduta.”.
No caso sub-judice – repete-se – as testemunhas CC e DD são filhos do arguido BB, mas não têm qualquer relação de parentesco ou de afinidade com o arguido AA, não se vislumbrando minimamente que dos respectivos depoimentos pudesse resultar a incriminação do seu ascendente.
O que significa que a sua recusa em depor não é extensível ao arguido AA, razão pela qual deveriam ter prestado depoimento em relação aos factos que ao mesmo arguido são imputados, constantes das aludidas acusações pública e particular.
Nesse circunstancialismo, o tribunal a quo, ao validar a recusa das ditas testemunhas,  CC e DD, em prestar depoimento relativamente a ambos os arguidos e à totalidade dos factos que lhes são imputados, incorreu na nulidade prevista no Artº 120º, nº 2, al. d), traduzida na omissão de diligência reputada essencial para a descoberta de verdade, tal como defende o recorrente.
Nulidade essa que foi correcta e tempestivamente invocada pelo Ministério Público, em consonância com o disposto no Artº 120º, nº 2, al. d), e nº 3, al. a), e que, tendo sido desatendida por virtude dos aludidos despachos recorridos, foi alvo do recurso ora em apreciação.
Aqui chegados, resta extrair as consequências desta vicissitude processual.
As quais passam, de acordo com as disposições conjugadas dos Artºs. 120º, nºs. 1 e 2, al. d), e 122º, nºs. 1 e 2, do C.P.Penal, pela anulação das decisões recorridas, e pela reabertura da audiência de discussão e julgamento para inquirição, como testemunhas, dos identificados filhos do arguido BB, CC e DD, acerca da matéria alegada nas acusações [pública e particular] deduzidas contra o arguido AA, e pela posterior prolação de nova sentença.
Procede, pois, o interposto recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogam os despachos impugnados, com a consequente invalidade da sentença recorrida, e determinam a reaberta da audiência de discussão e julgamento para inquirição, como testemunhas, de CC e de DD, filhos do arguido BB, acerca da matéria alegada nas acusações [pública e particular] deduzidas contra o arguido AA, com a posterior prolação de nova sentença.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo na primeira página as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários – Artºs. 94º, nº 2, do C.P.Penal, e 19º, da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto).
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Guimarães, 10 de Setembro de 2024

Os Juízes Desembargadores:          
António Teixeira (Relator)
Anabela Varizo Martins (1ª Adjunta)
Isilda Maria Correia de Pinho (2ª Adjunta)


[1] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[2] Esta transcrição – tal como as demais que se seguem, correspondentes a actos ocorridos na audiência de discussão e julgamento  –, foi feita com base na audição que fizemos da gravação digital disponível no sistema Citius, dado não se mostrarem exarados na respectiva acta.
[3] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[4] Cfr., neste sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.