I - O art. 1083, nº 6, do Código Civil, incluído pela Lei 13/2019, impõe uma condição prévia àquela resolução.
II - Litiga de má fé a parte que, com negligência grave, usa o recurso para obter uma resolução com fundamento diverso do inicialmente invocado, contrariando expressamente posição assumida antes e que recupera questão que ela própria afastou anteriormente, desistindo então do pedido correspondente.
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
AA e BB instauraram ação contra CC, peticionando:
a) declarada a resolução e inerente extinção da relação contratual emergente do contrato de arrendamento celebrado entre os Autores e a Ré, referente ao imóvel melhor identificado no ponto 1;
b) a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue aos Autores, livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação;
c) a Ré condenada a pagar uma indemnização de 20%, calculada sobre o valor da renda, correspondente a cada renda devida e liquidada em atraso (respeitante aos meses de maio a dezembro de 2022, janeiro e março a maio de 2023) no montante global de 384,00€ (trezentos e oitenta e quatro euros);
d) a Ré condenada ao pagamento do valor correspondente às rendas vincendas até à efetiva entrega do locado; E ainda sem conceder,
e) a Ré condenada ao pagamento do montante respeitante à cedência gratuita do imóvel a terceiros, desde abril de 2022, no valor equivalente à renda mensal, no valor global de 2.400,00€;
f) tudo no que respeita aos montantes peticionados em c), d) e e), devem ser acrescidos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, os Autores alegam, em síntese:
São donos da fracção autónoma que identificam, tendo adquirido a mesma em 01.06.2021, sobre a qual já havia sido constituído um direito ao arrendamento da R., através de um contrato datado de 02.09.2013, passando os aqui AA. a figurar como senhorios; no âmbito do qual as ali partes acordaram que a renda anual seria de 1.920,00€, a pagar mensalmente em duodécimos de 160,00€, a efetuar “no primeiro dia do mês anterior a que respeitar”; a R. não cumpre o pagamento pontual da renda, começando a efetuar esses pagamentos depois do dia 1, nos termos que indica, tendo-lhe sido remetida interpelação nos termos do n.º 6 do artigo 1083.º do CC e de resolução do contrato de arrendamento celebrado, motivo pelo qual é inexigível aos AA. a manutenção do aludido contrato.
A Ré, sem autorização dos AA., cede o locado gratuitamente a um terceiro, estando este a coabitar com esta no imóvel, usando e fruindo do imóvel dos AA. sem nada
pagar e à custa alheia, o que remonta pelo menos a abril de 2022, sendo devidas aos AA. rendas desde essa data até à saída do terceiro do locado arrendado à Ré.
Citada, a Ré contestou, em síntese:
É casada com DD, constituindo o imóvel locado casa de morada de família; não foi cumprida a formalidade ad substantiam prevista no artigo 1803.º, n.º 4 e n.º 6 do CC, nos termos que explicita, o que impede o efeito jurídico pelos AA. pretendido; ficou determinado, aquando da celebração do contrato de arrendamento, que a R. poderia efetuar o pagamento a meio do respectivo mês e até à data de hoje (da contestação) sempre liquidou os montantes nesses termos, nunca tendo os AA., desde a data em que adquiriam o imóvel, reclamado dos pagamentos deferidos; quanto à cedência gratuita do imóvel, o terceiro a que se referem os AA. é o seu cônjuge.
Foi admitida a intervenção principal provocada de DD para intervir ao lado da Ré, nos termos do artigo 317.º do Código de Processo Civil.
Citado o chamado, veio o mesmo apresentar o seu articulado, no âmbito do qual declara que faz seus os articulados apresentados pela R.
Na audiência prévia, vieram os AA. desistir do pedido elencado sob a alínea c) [Ser a Ré condenada a pagar uma indemnização de 20%, calculada sobre o valor da renda, correspondente a cada renda devida e liquidada em atraso (respeitante aos meses de maio a dezembro de 2022, janeiro e março a maio de 2023) no montante global de 384,00€] do petitório final da petição inicial, o que foi homologado por sentença.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação totalmente improcedente e a absolver a Ré e o Chamado dos pedidos.
(…)
v. Entendeu o douto Tribunal a quo alicerçar a solução nos requisitos de forma ínsitos nos nº 4 e 6 do artº 1083º, numa clara e sempre dispensável postura paternalista, convocando para si a sempre escusada defesa da parte mais fraca, afastando-se do mérito da causa.
vi. Mais, em toda a matéria dada como provada e não provada, nunca o Tribunal a quo se debruça sobre o incumprimento dos ali Réus, relativamente à interpelação para pagamento da indemnização de 20% nos termos da norma referida.
vii. Quando, em bom rigor e mesmo que assistisse razão ao douto Tribunal a quo
na literalidade do formalismo a adotar, sempre seria de atender (até porque peticionado), ao incumprimento no pagamento da indeminização a que alude o disposto no artº 1041º, n.º 1 do CC.
viii. Mas a isso não atendeu a decisão de que se recorre, permitindo um incumprimento por parte do, ali Réus, até à presente data. Isto porque,
ix. Os AA./Recorrentes são Senhorios/locadores de um imóvel sujeito a um “Contrato de arrendamento de duração indeterminada”, datado de 02 de setembro de 2013, sendo os RR/Recorridos inquilinos.
x. Esta sub-rogação decorre da aquisição do imóvel (descrito nos autos) pelos AA/Recorrentes em 01 de junho de 2021.
xi. Desde que assumiram a posição de Senhorios, que os RR/Recorridos e inquilinos insistem reiteradamente em liquidar as rendas muito além do prazo de mora de oito dias de incumprimento.
xii. Os AA/Recorrentes interpelaram verbalmente os RR/Recorridos, várias vezes,
quanto a estes persistentes incumprimentos.
xiii. Facto que, sem prescindir, se não pode considerar notório, pode e deve resultar para o julgador como muito provável segundo as regras de experiência comum.
xiv. Os RR/Recorridos desprezando as solicitações por parte do AA/Recorrentes
continuaram a liquidar as rendas muito além do prazo.
xv. Os AA/Recorrentes sempre cumpriram com a sua obrigação nesta relação sinalagmática em proporcionar o gozo e fruição do imóvel sem quaisquer limitações.
xvi. No polo oposto da equação, a obrigação dos RR/Recorridos, essencialmente, em pagar a renda no prazo estipulado, que repetidamente não tem sido cumprida.
xvii. Só nos últimos doze meses (à data de entrada da ação) não cumpriram com o pagamento pontual, considerando a mora de oito dias, precisamente doze vezes.
xviii. Em 03 de Março de 2023 os AA/Recorrentes, perante a postura dos RR/Recorridos, remeteram uma interpelação admonitória em que comunica a intenção de resolver o contrato de arrendamento (ponto nº 10 dos factos provados), estabelece uma prazo para, querendo, fazer cessar a mora pagando a indemnização de 20% nos termos do artº 1041º do CC.
xix. Não sendo um exercício simples, roga-se para que não se confunda a interpretação do conteúdo desta carta, reduzindo ao elemento literal, em oposição à necessidade de sintetizar a informação.
xx. Nada obsta a que, por razões de economia processual, se utilize uma única declaração para a interpelação admonitória e para a resolução.
xxi. Em bom rigor esta missiva cumpre, inclusive, os requisitos do nº 4 e 6 do artº
1083º do CC.
xxii. Porém não é este o fundamento preconizado pelos AA/Recorrentes na presente ação, que consideram, perante os factos concretos do presente caso, enquadrar-se no conceito de “incumprimento definito” de uma obrigação quando, objetivamente, o credor perca o interesse na prestação e quando o devedor não cumpra num prazo razoavelmente fixado pelo credor – a chamada interpelação admonitória (artº 808 do Código).
xxiii. No seguimento de todo o supra alegado há que salientar que os RR/Recorridos continuaram a pagar a renda muito além do prazo convencionado do prazo de mora de oito dias.
xxiv. Salvo o devido respeito, tem que se concluir que os RR/Recorridos criaram uma situação de incumprimento definitivo conducente ao direito de resolução por parte dos AA/Recorrentes aquando da interposição da presente ação de Despejo.
xxv. Fato assente e provado são os doze atrasos no pagamento pontual da renda
além dos oitos dias de mora concedidos por lei.
xxvi. Qualquer incumprimento, ainda que não expressamente referido nas alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil, pode ser fundamento de resolução do contrato de arrendamento, contanto que “pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
xxvii. A resolução operada nestes termos não pode ser efetuada extrajudicialmente, mas sim judicialmente.
xxviii. A ação intentada pelos aqui AA/Recorrentes foi precisamente neste sentido, neste enquadramento jurídico que a decisão colocada em crise simplesmente não considerou, quando está patente esta intenção na ação interposta pelos AA/Recorrentes.
xxix. Segundo o art. 1083º do CC é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio.
xxx. É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses.
xxxi. Com ênfase que os AA/Recorrentes toleraram este comportamento por, não quatro, mas doze vezes.
xxxii. Ao arrepio das regras de boa-fé, tentaram os RR/Recorridos justificar o seu
incumprimento pela boa-fé demonstrada pelos AA/Recorrentes, acusando-os inclusive de abuso de direito na sua contestação.
xxxiii. Neste pleito há uma parte que cumpre e, em sentido oposto, há uma parte que não cumpre.
xxxiv. O direito a aplicar não é o do artigo 1083, n.ºs 4 e 6 do CC.
xxxv. O tribunal entendeu, e neste ponto discorda-se, aplicar o Direito de acordo com o meio impositivo previsto na lei para o efeito que é o da resolução extrajudicial - comunicação ao arrendatário do incumprimento contratual por falta de pagamento pontual de rendas nos termos do artº nº 4 e 6 do 1083º.
xxxvi. O tribunal errou ao decidir-se pela aplicação do Direito relativo ao meio extrajudicial previsto na lei, quando este é optativo, podendo os AA/Recorrentes socorrer-se da acção de despejo para o efeito, o que fizeram, constituindo a carta (ponto 10 dos factos provados, pág, 13 da sentença) o momento de interpelação admonitória – e não um fim em si mesmo como erradamente decidiu-se em primeira instância.
xxxvii. Porém os AA/Recorrentes sujeitaram o pedido sob a égide do nº 1 e 2 do artº 1083º do CC – nos termos gerais.
xxxviii. O direito do credor de resolver o contrato, a que alude o nº 1 do citado artigo 801º do C.Civil, apenas surge com o denominado incumprimento definitivo, que não com o simples atraso ou mora do devedor.
xxxix. Como é por demais evidente, os atrasos no pagamento da renda no prazo convencionado, acrescido dos oito dias de mora, não são esporádicos, são reiterados e abusivos ao longo de doze meses consecutivos.
xl. A existência de incumprimento definitivo da prestação ou a possibilidade do seu cumprimento no contexto da obrigação (simples mora) são conceitos que têm de ser analisados à luz do interesse do credor.
xli. O incumprimento definitivo ocorre sempre que, independentemente de interpelação, o contraente manifesta, de forma clara e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato.
xlii. Após a interpelação por carta com data de 03 de Maio de 2023 o RR/Recorrentes continuaram a pagar fora de prazo e não liquidaram a indemnização de 20%, nem colocaram à disposição por qualquer forma até à presente data.
xliii. Dentre as várias oportunidades os RR/Recorridos nunca revelaram interesse em cumprir, pois pese embora a argumentação destes, no âmbito do incumprimento das obrigações, presume-se a culpa do devedor conforme de infere do art. 799º, nº 1, que estabelece que "incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua".
xliv. Mutatis Mutandis assiste razão aos AA/Recorrentes nos precisos termos e de acordo com o alegado na Petição Inicial, pelo que, impõe-se uma decisão no sentido defendido.
xlv. In casu os inquilinos, ali Réus durante mais de doze meses liquidaram a renda
após o dia 1, além do dia 8, de cada mês (mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses), sem mais, apesar das interpelações pessoais por parte do Senhorio.
xlvi. O tribunal a quo ao invés de censurar a postura incumpridora dos Réus, fazendo-os cumprir o pagamento atempado e, bem assim, da indeminização que lhes cabia pelo desleixo tido, optou pela postura de amparar as aparentes dificuldades dos Réus (se é que existem), desconsiderando os que, com esforço, sacrifício e labor, possuem património que lhes permite ter mais liberdade financeira.
xlvii. Com toda a honestidade intelectual que se impunha, e sem quaisquer subjetivismos abnegados, o certo é que os Recorrentes aguentaram os incumprimentos dos Réus, não uma, não duas, não cinco, mas doze vezes!
xlviii. Sendo que em nenhuma destas doze vezes viu o douto Tribunal a quo viu motivos para condenar os Réus no pagamento da indeminização devida e, bem assim, na extinção da relação contratual.
xlix. Após a interpelação formal por carta registada (conforme ponto 10. dos fatos provados, pag. 13 da sentença), ao 12º mês, informando a intenção de resolver o contrato, a forma de se opor a esta resolução, com a cominação de considerar-se resolvido o contrato arrendamento, os ali Réus continuam a liquidar as rendas além dos referidos prazos por mais duas vezes até à entrada da presente ação.
l. Atentas as circunstâncias concretas do caso “sub judice”, independentemente do alcance humanitário, impõe-se uma decisão objetiva, imparcial, e em respeito à lei.
li. Do comportamento exteriorizado e extravasado pelos Réus-Recorridos, incumprindo em definitivo com a obrigação e pagar a renda no prazo estipulado, e que após interpelações pessoais, seja ainda após por carta registada, e, em sede de ação judicial, traduz-se numa situação de justa causa por quebra de confiança, fundada em violação do princípio da boa-fé, que justifica o exercício do direito de resolução do contrato por parte do Senhorio, Recorrentes, através da ação de Despejo, conforme o caso dos autos.
lii. Devendo, pelo exposto ser revogada a sentença recorrida. Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser dado provimento ao presente Recurso, e, em consequência ser revogada a douta sentença proferida pelo duto Tribunal a quo, sendo esta substituída por decisão que confirme e dê procedência aos pedidos.
Invocaram ainda que falta ao recurso a definição do fundamento específico da recorribilidade e vieram pedir a consideração da litigância de má fé dos Recorrentes, assim e em síntese:
XXXI. Em primeiro lugar, ao referirem que não é de se aplicar o artigo 1083.º, n.º 4 e 6 do CC, os recorrentes estão em clara contradição com o que alegaram em sede de petição inicial.
XXXII. Em segundo lugar, ao referirem que “sempre seria de atender (até porque peticionado), ao incumprimento no pagamento da indemnização a que alude o disposto no art.º 1041.º, n.º 1 do CC” os recorrentes ao interporem recurso com tal alicerce, omitiram que essa questão já tinha sido apreciada no processo, mais concretamente na audiência prévia, por despacho transitado em julgado e que admitiu a desistência parcial do pedido quanto a esse tópico peticionado.
XXXIII. E sempre se diga que não deve ter acolhimento qualquer alegação que se
configure como um desconhecimento da conjuntura, pois foram os próprios recorrentes que vieram requerer a desistência do pedido no que toca à indemnização descrita no artigo 1041.º, n.º 1 do CC.
XXXIV. Atentos os factos ora invocados, peticionam os recorridos a litigância de má-fé dos recorrentes, nos termos do disposto nos artigos 542.º e 543.º, ambos do CPC.
XXXV. Os recorrentes deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam
ignorar e “usaram” o recurso, bem como os meios processuais, de uma forma “manifestamente reprovável”, com o objetivo ilegal de entorpecer a ação da justiça e de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. (…)
XXXVIII. Os recorrentes, indubitavelmente, litigaram de má-fé, na medida em que deduziram pretensão cuja falta de fundamento não podiam ignorar – artigo 542.º, n.º
2, alínea a) do CPC.
XXXIX. Resultando dos autos (principalmente da ata da audiência prévia e do próprio recurso interposto), de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça – artigo 542.º, n.º 2, alínea d) do CPC.
XL. Para que os recorrentes sejam condenados como litigantes de má-fé é necessário que se esteja perante uma situação donde dúvidas não existam quanto à existência de uma atuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
XLI. No caso dos autos, verifica-se ser manifesta e evidente a má-fé dos autores apelantes, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) e d) do CPC, interpondo recurso contraditório com o que foi por estes alegado em sede de petição inicial (no que toca à aplicação do artigo 1083.º, n.º 4 e 6 do CPC) e com fundamento no incumprimento do pagamento da indemnização a que alude o artigo 1041.º, n.º 1 do CPC, quando na audiência prévia vieram desistir do respetivo pedido de indemnização.
XLII. Os recorrentes têm conhecimento pleno das ditas intervenções, até porque foram eles que invocaram a aplicação do artigo 1083.º, n.º 4 e 6 do CPC e que desistiram
do pedido formulado quanto ao pagamento da indemnização prevista no artigo 1041.º, n.º 1 do CPC.
XLIII. Pelo que não se pode dizer que estamos na presença de atos negligentes (quando muito, estaríamos sempre na presença de atos grosseiramente negligentes, o que não se concebe), mas de atos dolosos, com os fitos melhor identificados no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) e d) do CPC.
XLIV. Estes comportamentos causaram prejuízos, quer monetários, quer (e sobretudo) psicológicos, aos recorridos que, como pessoas sensíveis e honestas que são, têm sofrido muito com esta situação, ao ponto de perderam o sono e de terem receio de ficarem sem a sua casa de morada de família (apesar de terem sido sempre diligentes nas suas obrigações contratuais e na preservação do imóvel).
XLV. Assim, só poderão os recorrentes ser condenados por esta lamentável litigância, o que, desde logo, se requer, também nos termos do artigo 543.º do CPC, devendo pagar aos recorridos, a este título, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
A definição do fundamento específico da recorribilidade;
O fundamento específico da resolução; a consideração de outro fundamento; a sua verificação;
A litigância de má fé dos Recorrentes.
O recurso tem o objeto claramente definido, cujas questões foram claramente compreendidas pelos Recorridos.
1) Os AA. adquiriram a fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “D”, correspondente ao 2.º dto., do prédio urbano sito na Rua ..., ... ..., constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana com o artigo matricial n.º ...20 da freguesia ..., concelho e distrito ..., através de documento particular autenticado outorgado a 01 de Junho de 2021, perante a Sra. Solicitadora, Dra. EE.
2) Por documento particular denominado “Contrato de arrendamento de duração indeterminada”, datado de 02 de setembro de 2013, foi identificada como primeiro outorgante FF, na qualidade de senhoria, declarou dar de arrendamento a CC, na qualidade de arrendatária, no estado de casada, o imóvel descrito em 1).
3) À data id. em 2) a Ré era casada com DD.
4) Consta da cláusula primeira do contrato id. em 1) que “o presente contrato será de duração indeterminada, com início em 02.09.2013”.
5) Consta da cláusula segunda do contrato id. em 1) que: “a renda anual é de Euros 1920 (mil, novecentos e vinte euros), a pagar mensalmente em duodécimos de Euros 160 (cento e sessenta euros), ao senhorio ou ao seu representante legal, na respectiva residência, ou através de depósito ou transferência bancária a efetuar em conta numa instituição de crédito, no primeiro dia do mês a que respeitar.”
6) Consta da cláusula terceira do contrato id. em 1) que: “A renda será atualizada anualmente de harmonia com os fatores de atualização aplicáveis aos arrendamentos para habitação, a partir do segundo ano de vigência do contrato, ficando os primeiros outorgantes com a obrigação de a comunicar ao segundo outorgante através de carta registada com aviso de recepção, enviada com pelo menos 30 (trinta) dias de antecedência, na qual indicarão o valor da nova renda e o coeficiente aplicável.”
7) Consta da cláusula quarta do contrato id. em 1) que: “O local arrendado destina-se exclusivamente a habitação do segundo outorgante, não lhe podendo ser dado outro fim ou uso sob pena de resolução contratual. O segundo outorgante não pode sublocar ou ceder, no todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente por qualquer outra forma os direitos do arrendamento, ou dar destino diferente ao mesmo sem consentimento expresso e por escrito do senhorio.”
8) No pretérito ano de 2022, a Ré procedeu aos pagamentos das rendas devidas nos seguintes termos: - 12.05.2022 liquidação da renda relativa ao mês de maio; - 14.06.2022, liquidação da renda relativa ao mês de junho; - 13.07.2022, liquidação da renda relativa ao mês de julho; - 11.08.2022, liquidação da renda relativa ao mês de agosto; - 16.09.2022, liquidação da renda relativa ao mês de setembro; - 13.10.2022, liquidação da renda relativa ao mês de agosto; - 11.11.2022, liquidação da renda relativa ao mês de novembro; - 13.12.2022, liquidação da renda relativa ao mês de dezembro.
9) No ano de 2023, a Ré procedeu aos pagamentos das rendas devidas nos seguintes termos: - 11.01.2023, liquidação da renda do mês de janeiro; - 09.03.2023, liquidação da renda do mês de março; - 10.04.2023, liquidação da renda do mês de abril;
- 11.05.2023, liquidação da renda do mês de maio.
10) Por comunicação escrita datada de 03 de maio de 2023, o Il. Mandatário dos AA. remeteu missiva dirigida à Ré, na qual, além do mais, consta o seguinte teor: “(…) Assunto: Comunicação de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio.
Exma Sra., Na qualidade de mandatários de BB E AA, proprietários do imóvel sito na Rua ..., em ..., no qual V. Exa. assume a qualidade de arrendatária, vimos comunicar-lhe a intenção dos n/clientes em procederem à resolução do contrato de arrendamento celebrado a 02.09.2013, nos termos do disposto no n.º 4 do art.º 1083.º do Código Civil.
Deste modo e tendo os n/clientes interpelado reiteradamente V.Exa. ao pagamento
atempado das rendas devidas, resulta claro que, pelo menos, no ano de 2022, estendendo-se ainda no presente ano, as rendas foram pagas sempre após o dia oito de cada mês, o que constitui causa bastante - mora superior a oito dias no pagamento de renda por par mais de quatro vezes seguidas para a resolução do contrato de arrendamento. Estando, portanto, reunidos os requisitos para resolução do contrato de arrendamento celebrado. Para além de tal incumprimento, assiste, ainda, aos n/clientes uma indeminização de 20%
por cada renda paga tardiamente, perfazendo na presente data um valor devido de 192,00€.
Assim, e considerando os n/clientes resolvido o contrato de arrendamento em causa com efeitos imediatos, fica V. Exa. interpelada para a desocupação do locado e o pagamento da aludida indemnização no prazo de 15 dias. Contudo, volvido tal prazo sem que tais obrigações sejam cumpridas, intentaremos — sem outro aviso — uma ação judicial para a obtenção do despejo de V. Ex. a e consequente pagamento dos montantes devidos, acrescidos de juros de mora.
Deste modo, certo que V. Exa. não ignora as vantagens de resolução da presente por via extrajudicial, ficaremos a aguardar o cumprimento de tais obrigações, devendo a
devolução do locado culminar na entrega das chaves do locado aos proprietários. Certos do v/melhor e mais avisado cuidado para o assunto em causa, (…).”
11) No presente ano (2023) os AA. referiram, verbalmente, que pretendiam atualizar o valor da renda para mais do dobro.
12) O locado id. em 1) é casa de morada de família da Ré e seu cônjuge DD.
No caso, torna-se claro que o fundamento se concretizou na invocação da mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses (art.1083, nº 4, do Código Civil (CC)).
Agora, no recurso, os Recorrentes querem alargar a discussão ao fundamento de resolução geral (É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento), invocando também outros factos relativos ao comportamento posterior a maio de 2023.
Este alargamento não pode ser aceite. Por um lado, contraria o concreto fundamento da resolução. Por outro lado, imporia a consideração de factos não alegados, caso dos referidos nas conclusões xlii e xlix.
Depois, no que respeita à resolução baseada na mora do arrendatário, no pagamento das rendas, foi o próprio legislador quem procurou concretizar e limitar os termos da gravidade da conduta a considerar.
Ora, no que respeita ao pagamento da renda, embora atrasada, a lei fixou no art.1083, nº 4, do CC: “É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.”
E restringiu no nº 6:
“No caso previsto no n.º 4, o senhorio apenas pode resolver o contrato se tiver informado o arrendatário, por carta registada com aviso de receção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos.”
Quer isto dizer que os termos da discussão da resolução por mora superior a 8 dias se faz nos termos bem delimitados e não nos termos gerais, em que a gravidade é deixada ao julgamento casuístico do tribunal.
Por fim, não é fundamento da resolução, usado pelos Autores, o não pagamento da indemnização prevista no art.1041 do CC. Esta é invocada juntamente com a resolução e como consequência. Além disso, os Autores desistiram dela na audiência prévia.
Sobre o fundamento usado pelos senhorios para a resolução do arrendamento:
A este respeito a solução encontrada pelo Tribunal recorrido é a correta. Diz o mesmo:
“Com a Lei n.º 13/2019, de 12.02, a qual entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (v. artigo 16.º, do mesmo diploma legal, ou seja, 13.02.2019), a citada norma do artigo 1083.º, meramente alterada através do aditamento do n.º 6, por referência à possibilidade, constante do n.º 4 do mesmo artigo, de o senhorio poder obter a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na constituição em mora por parte do arrendatário, superior a oito dias no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de doze meses, vem agora introduzir uma ressalva importante ao estabelecer que a possibilidade de resolução com base em tal fundamento apenas se verificará caso após o terceiro atraso (de um mínimo de cinco atrasos que fundamentam a resolução), o senhorio tiver informado o arrendatário, mediante carta registada com aviso de receção, da sua intenção de resolver o contrato com base nesse fundamento. – v. neste sentido Edgar Alexandre Martins Valente, in “Arrendamento Urbano – Comentário às alterações legislativas introduzidas ao regime vigente”, Almedina 2019, pág. 27-28, em comentário ao artigo 1083.º do CC.
Acrescentando o autor vindo de citar que “o propósito subjacente à referida alteração é claro e oportuno, existindo ainda um número não despiciendo de arrendatários que, por desconhecimento ou pela crença de que o contrato se manterá perante o pagamento das rendas, ainda que fora do prazo para o efeito, desconsidera manifestamente o fundamento constante do n.º 4 do artigo 1083.º desde o seu aditamento ao preceito com a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto.”
Ressaltando o citado autor que “segundo a alteração em apreço, a comunicação a realizar pelo senhorio nos termos do alterado n.º 6, antecede necessariamente a comunicação que terá de fazer para desencadear extrajudicialmente a cessação do contrato, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 9.º, NRAU, assim permitindo ao arrendatário, por um lado, que este não seja confrontado por uma decisão-surpresa de cessação justificada do contrato e, por outro, que ao ter conhecimento de que se encontra em incumprimento, possa fazer cessar tal situação antes de atingir o momento em que será tarde demais, assim obstando a uma futura resolução contratual, de todo o modo, indesejável.”
(Fazemos aqui um parêntesis na citação, para notar que a necessidade de esclarecimento da situação da mora pode decorrer de atos de tolerância anteriores; os próprios Recorrentes dizem na conclusão xxxi : “com ênfase que os AA/Recorrentes toleraram este comportamento por, não quatro, mas doze vezes.”)
Continua a decisão recorrida e bem:
“Trata-se, assim, de um requisito de natureza substantiva introduzido pela citada Lei n.º 13/2019, de 12.02, que teve precisamente como confessado intuito a introdução de medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.
Como se viu, o contrato de arrendamento em crise foi celebrado em 02 de setembro de 2013, na vigência do Novo Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, fundamentando os AA. o pedido de resolução do contrato de arrendamento sob escrutínio no citado n.º 4 do artigo 1083.º do CC e por factos ocorridos no ano de 2022 e no ano de 2023. (…)
“Dito de outro modo, impondo a citada Lei n.º 13/2019, de 12.02, com o aditamento do n.º 6 ao artigo 1083.º do CC, uma condição para que este direito de resolução pudesse ser exercido validamente, visando tal lei factos novos, a mesma tem em vista a resolução dos contratos que seja efectuada ou pedida pelo autor a partir da data da entrada em vigor da lei nova, averiguando-se do direito de resolução do autor à data em que é peticionada ao tribunal, ou seja, à data da petição inicial – v. neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.06.2020, proc. 777/18.7T8SXL.L1-2, relator Pedro Martins, disponível in www.dgsi.pt.
“Volvendo ao caso em apreço.
“De acordo com a matéria de facto apurada, a renda mensal acordada entre as partes corresponde a 160,00€, tendo sido convencionado o seu pagamento no primeiro dia do mês anterior a que respeitar - v. factos provados 5).
“Mais resulta demonstrado que a R. incorreu em mora superior a oito dias no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses – v. factos provados 8) e 9).
“Resulta ainda apurado nos autos que os AA., por intermédio do seu Il. Mandatário, remeteram uma missiva escrita datada de 03.05.2023, dirigida à R., na qual referem que é sua intenção proceder à resolução do contrato de arrendamento com base no preceituado no n.º 4 do artigo 1083.º do CC, e lhe comunicam a resolução do contrato de arrendamento, considerando o contrato resolvido com efeitos imediatos, interpelando a Ré para, no prazo de 15 dias, desocupar o locado e o pagamento de uma indemnização de 20% por cada renda paga tardiamente, no valor de 192,00€; e ainda que findo esse prazo sem que tais obrigações sejam cumpridas, intentariam a respectiva ação judicial para obtenção do despejo - v. factos provados 10).
“Sucede que, nos termos do disposto no n.º 6 do citado artigo 1083.º do CC, os AA., senhorios, apenas poderiam resolver o contrato com esse fundamento se tivessem informado previamente o arrendatário, a aqui Ré, por carta registada com aviso de receção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que era sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos, o que no caso não aconteceu no caso em apreço.
“Com efeito, nos termos supra expostos, sendo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, a referida comunicação exigida pelo legislador com a Lei n.º 13/2019, de 12.02, no sentido de o senhorio informar de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos, é, sem margem para dúvidas, constitutiva do direito do senhorio à resolução, sendo assim entendida como condição sine qua non do respectivo exercício. O que significa dizer que sendo uma norma de direito material condiciona o exercício do próprio direito de resolução, seja ele exercido pela via extrajudicial ou judicial. Condiciona, assim, a citada Lei n.º 13/2019, de 12.02 a resolução do contrato ao envio de uma carta registada com aviso de recepção, após o terceiro atraso no pagamento, informando o arrendatário de que é sua intenção por fim ao arrendamento. “Deste modo, o arrendatário fica a saber que se acendeu a luz amarela e que qualquer descuido a transformará em vermelha” – v. Edgar Valles, in “Arrendamento Urbano – Constituição e extinção”, 4.ª ed. Almedina, pág. 200. (…)
“No caso sob escrutínio, não resulta demonstrado nos autos, nem tão pouco foi alegado, que os AA. enviaram a referida comunicação à R., arrendatária. Com efeito, não obstante ter resultado demonstrado que os AA. remeteram uma comunicação escrita à R. – v. facto provado 10) - a mesma não cumpre o disposto no citado artigo 1083.º, n.º 6 do CC, porquanto, da sua simples leitura, tal missiva, datada de 03.05.2023, comunica de imediato a resolução do contrato de arrendamento, e já não a informação prévia à arrendatária, aqui R., que após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que era sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos, tal como é exigido por lei.
“Constatamos que operaram os AA. em per saltum.”
“Acrescente-se ainda, não obstante o exposto nos termos que antecede, brevitis causa, que sempre improcederia a pretensão dos AA. pois que, resulta apurado nos autos, que aquando a celebração do contrato de arrendamento em 02.09.2013, a arrendatária, aqui A. era casada com o Chamado; e bem ainda que o imóvel locado é casa de morada de família do agregado da R. e do seu cônjuge- v. factos provados 12).
“Assim sendo, como estabelece o artigo 12.º do NRAU, se o local arrendado constituir casa de morada de família, aplicando-se analogicamente, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 9.º do mesmo diploma legal, devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges. As comunicações aludidas são precisamente as relativas à cessação do contrato de arrendamento (v. artigo 9.º, n.º 1 do NRAU). E, assim, forçoso considerar que, a cessação do contrato de arrendamento que tenha por objecto a casa de morada de família do arrendatário, apenas será válida se a comunicação tiver sido dirigida a ambos os cônjuges, sob pena de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, porque a final pode implicar a perda da casa de morada de família – v. neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.04.2014, proc.1346/11.8TBCVL-A.C1, relatora Albertina Pedroso acessível in www.dgsi.pt.
“No caso em apreço, os AA., por intermédio do seu Il. Mandatário, remeteram uma missiva escrita com a comunicação de resolução do contrato de arrendamento dirigida apenas e só à Ré, e não também ao seu cônjuge – v. facto provado 10).
“Neste conspecto, sempre se teria por inválida tal comunicação de cessação do contrato de arrendamento por não respeitar (também) as formalidades exigidas por lei, conduzindo à improcedência da pretensão dos AA.” (Fim da citação.)
Não merece censura a decisão recorrida.
Atenta a disciplina constante do artigo 542.º do Código de Processo Civil, “a litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo.” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13.7.2006, disponível em www.dgsi.pt.)
Como referem L. Freitas, M. Machado e R. Pinto, “é corrente distinguir má fé material (ou substancial) e má fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, actua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo.” (C.P.C. Anotado, 2ª edição, vol.2, páginas 218 e seguintes.)
Nestes termos, refere aquele artigo que litiga de má fé a parte que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, ou tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal.
A circunstância de não se ter razão ou de não se conseguir demonstrar o alegado não é, só por si, indicador de uma litigância de má fé. A concretização desta exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, não podendo o instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental. Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto e incompleto do sistema jurídico, a ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida. Assim, à semelhança da liberdade de expressão, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e em manifesta chicana processual com o objectivo de entorpecer a realização da justiça.
Este normativo sanciona, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária, assente na negligência grave.
De acordo com a norma referida, tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
A litigância de má fé opera oficiosamente, mas a parcela relativa à indemnização exige um pedido do beneficiário.
Vejamos então se estão preenchidos no caso os requisitos legais:
Em primeiro lugar, no que respeita ao fundamento da resolução, os recorrentes entram em clara contradição e procuram alargar a discussão a fundamento que não usaram antes. Os Recorrentes alegam agora que invocaram outro fundamento de resolução, quando não o fizeram.
Em segundo lugar, os Recorrentes recuperam no recurso uma questão que já antes tinham afastado pela via da desistência do pedido (relativo a um pretenso incumprimento no pagamento da indemnização a que alude o disposto no art.º 1041.º, n.º 1 do CC).
Neste contexto, de forma que nos parece grosseiramente negligente, entendemos que os Recorrentes usaram o recurso para um alargamento indevido, para uma discussão cuja falta de fundamento não devem ignorar, com o objetivo de obter um fim que percebiam não possível com os termos configurados em primeira instância.
Este uso indevido do recurso constitui litigância de má fé.
Quanto à quantificação da multa e da indemnização pedida:
O artigo 542.º do Código de Processo Civil não estabelece critérios para a quantificação da multa.
Mas o art.27º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais refere que a fixação é feita, “tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste”, o que se fará entre 2 UC e 100 UC (seu nº3).
Sendo assim, a multa deverá ser “fixada com base no “prudente arbítrio” do Juiz, que deve sopesar a gravidade da infração e a situação económica do infrator, a maior ou menor gravidade dos riscos de lesão patrimonial causada ao litigante de boa fé, os interesses funcionais do Estado e o valor da ação.
A maior ou menor intensidade da falta é susceptível de ser revelada pela maior ou menor consciência da sua falta de razão, bem como pela gravidade das consequências prováveis da sua conduta, sendo que esta, por seu turno, pode expressar-se nos riscos de lesão patrimonial causados ao litigante de boa fé. Como índice da avaliação desses riscos sempre podemos socorrer-nos do valor da ação. (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/02/2008, disponível em www.dgsi.pt.)
No caso, importa considerar que a conduta dos Autores integrará uma negligência grosseira. Importa considerar o valor da ação, sendo o risco formal de lesão patrimonial de cerca de oito mil euros.
Importa considerar que está em causa um despejo de habitação familiar.
Não se alegaram ou apuraram outros factos pertinentes.
Considerando tudo isto, nos limites legais, afigura-se-nos suficiente, proporcional e adequado fixar a multa em 10 (dez) UC e em igual valor de indemnização aos Réus.
Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Condenam-se os Recorrentes, a título de litigância de má fé, no pagamento de uma multa de 10 (dez) UC e em valor equivalente de indemnização aos Réus.
Custas pelos Recorrentes, vencidos.
2024-09-24
(Alberto Ruço)
(Fonte Ramos)