i) O valor de 10 €/dia que tem vindo a ser fixado pela nossa jurisprudência quando não existe um aluguer de um veículo por parte do lesado, já vem desde a distante data de 2010 e assim mantido em acórdãos bem posteriores (por exemplo em Maio de 2019, ou seja com 9 anos de intervalo);
ii) Partindo desta base de 10 €, importa actualizá-lo, decorridos 14 anos, atenta a inflação que tem grassado, especialmente mais severa nos últimos 5 anos, como é do conhecimento público.
iii) Estando tal valor perfeitamente desajustado, ponderando, a apontada desvalorização e um juízo de equidade, cremos ser muito mais adequado e justo, afastando-nos do imobilismo jurisprudencial, o valor diário de privação de uso do veículo o montante de 20 €;
iv) Havendo actualização da indemnização pecuniária por facto ilícito, os juros são devidos desde a decisão actualizadora.
I – Relatório
1. AA, residente em ..., propôs acção declarativa contra Companhia de Seguros A... S.A., com sede em Lisboa, peticionando a condenação da ré no pagamento do montante de 9.263,13 €, acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento, contabilizados desde a citação.
Alegou, em síntese, que em Dezembro de 2021, em ..., ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, da marca Audi, modelo ..., com a matrícula ..-..-ZN, conduzido por BB, por conta e no interesse do respetivo proprietário, CC e o veículo ligeiro de passageiros da marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula ..-HV-.., propriedade da autora e conduzido por DD. Que o referido acidente foi da exclusiva responsabilidade do veículo ZN, que se encontrava seguro na ré, tendo causado diversos danos na parte frontal e lateral esquerda do veículo HV, tendo este ficado impossibilitado de circular. Que a reparação do seu veículo foi estimada em 6.472,20 € e que foi aventada pelos serviços de peritagem da seguradora a possibilidade de se estar perante uma situação de perda total, propondo para o veículo da autora o valor de 4.518 €. Considerando a autora que o seu veículo não teria um valor comercial inferior a 10.000 € e a sua reparação sempre seria mecanicamente possível e economicamente viável, recusou as propostas apresentadas pela seguradora e procedeu à reparação do veículo, que ficou em perfeito estado de funcionamento, tendo suportado o valor de 3.698,13 €, valor de que pretende ser ressarcida pela ré. Que o veículo ficou imobilizado durante 159 dias, não tendo sido proposta a entrega de veículo de substituição, que tal veículo era utilizado diariamente, razão pela qual deverá igualmente ser indemnizada pela privação do uso do referido veículo, à razão diária 35 €, totalizando o valor de tal dano em 5.565 €, a ser igualmente ressarcido pela ré.
Contestou a ré impugnando a matéria de facto alegada, designadamente a dinâmica do acidente, concluindo pela repartição em partes iguais da responsabilidade pelo acidente. Mais alegou que atento o valor de reparação, estimado em 6.472,20 €, e o valor venal do veículo antes do acidente, cifrado em 4.518 €, se constatou estarmos perante uma perda total, não sendo consequentemente devido qualquer montante a título de privação do uso.
*
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e em consequência condenou a R. a pagar à A. a quantia de 5.288,13 €, absolvendo a R. quanto ao demais peticionado.
*
2. A A. recorreu, formulando as seguintes conclusões:
a) A A./Recorrente discorda da douta sentença quanto ao valor diário fixado para o dano privação de uso, e pela não condenação da Ré em juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação.
b) Sendo a privação de uso de um veículo automóvel maioritariamente reconhecido como um dano autónomo, o valor de 10€/dia que tem vindo a ser fixado pela nossa jurisprudência quando não existe um aluguer de um veículo por parte do lesado, parece-nos exíguo.
c) De facto tal valor começou a ser fixado em acórdãos proferidos já na longínqua data de 2010, não tendo sido atualizado até ao momento, não obstante a grave inflação que tem grassado nos últimos anos.
d) Um valor correspondente aos 10€ para ano de 2010, será hoje, 14 anos passados, no mínimo um valor de €20,00, o qual ainda assim se situará no limiar mínimo da indemnização do transtorno diário provocado pela privação de um veículo que era utilizado com bastante frequência.
e) Motivo pelo qual deverá o valor diário da privação de uso do veículo da A. ser fixado em 20,00€/dia.
f) Apesar de peticionados pela A., a douta sentença não condenou a Ré no pagamento de juros de mora contados desde a citação.
g) Tratando-se de obrigações pecuniárias, a mera condenação da Ré no seu pagamento obrigaria ao deferimento do pedido de condenação em juros, tal como decorre do artº 806º nº 1 do C.C.),
h) Motivo pelo qual deverá ser dado provimento a recurso condenando-se a Ré em juros de mora sobre a quantia sentenciada desde a data da citação.
i) A douta sentença incumpriu o estabelecido nos arts. 566º nº 1 a 3 e 806º nº 1 do Código Civil, ao não lhes dar a interpretação propugnada ao longo das presentes motivações e conclusões.
Dando-se provimento ao presente recurso, se fará Justiça!
3. A R. contra-alegou, concluindo que:
1. Vem a Autora, ora Recorrente, interpor recurso da sentença proferida pelo douto Tribunal a quo a 23 de maio de 2024 que julgou parcialmente procedente a ação, condenando a Ré no pagamento ao Autor da quantia global de 5.288,13€ (cinco mil duzentos e oitenta e oito euros e treze cêntimos), sendo 3.698,13€ (três mil seiscentos e noventa e oito euros e treze cêntimos) a título indemnizatório pela reparação do veículo HV e 1.590,00€ (mil quinhentos e noventa euros) a título indemnizatório pelo dano de privação do uso, absolvendo a Recorrida do demais peticionado.
2. Isto porque, considera, em suma que a Mma. Juiz a quo fixou valores indemnizatórios que considera reduzidos para o dano de privação do uso, não tendo ainda condenado a Recorrida no pagamento de juros de mora contados desde a citação até ao integral pagamento.
3. Nesta senda, peticiona pela fixação de uma indemnização no valor de 3.180,00€ (três mil cento e oitenta euros), correspondendo ao montante diário de 20,00€ (vinte euros) e ainda a condenação da Recorrida no pagamento de juros moratórios, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
4. Acontece, porém, que, os fundamentos apresentados pela Recorrente não deverão merecer colhimento, considerando a Recorrida ser de manter a douta a sentença proferida pela Mma. Juiz do Tribunal a quo quanto aos valores monetários fixados a título indemnizatório.
5. Ora, atenta a matéria de facto dada como não provada, nomeadamente os pontos f), g) e h), a Recorrente não logrou demonstrar que a imobilização do veículo HV importou uma quase total impossibilidade de deslocação, que o veículo HV era o seu único veículo e que utilizava o mesmo nas suas deslocações profissionais.
6. Desta forma, pese embora o dano da privação de uso seja indemnizável, o seu cálculo deve englobar os montantes que correspondem a uma diminuição do património da Recorrente, culminando na fixação de uma compensação determinada por juízos de equidade, sem gerar um enriquecimento injustificado do lesado.
7. Destarte, a fixação da quantia diária de 10,00€ (dez euros) a título compensatório pela privação de uso do veículo foi arbitrada pelo douto Tribunal a quo mediante a aplicação dos princípios da equidade e da proporcionalidade ao caso em concreto, sem descurar os padrões de indemnização geralmente adotados nos Tribunais superiores.
8. Assim, ao socorrer-se de juízos de equidade, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, mas sem descorar as circunstâncias concretas do caso e os padrões geralmente adotados pela jurisprudência, a Mma. Juiz a quo fez a correta apreciação e ponderação da matéria de facto dada como provada (e não provada), bem como o consequente enquadramento jurídico-legal do caso em apreço, prevenindo um injusto locupletamento da Recorrente.
9. Razão pela qual, o Tribunal a quo fez a correta subsunção da matéria de facto provada ao direito tendo, no que diz respeito ao quantum indemnizatório, decidido em conformidade.
10. Por último, no que concerne aos juros moratórios, entende a Recorrente que a ora Recorrida deve ser condenada no pagamento dos respetivos juros de mora, contabilizados desde a citação até ao integral pagamento.
11. Todavia, a contabilização dos juros de mora nos moldes peticionados pela Recorrente levaria a uma violação expressa da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça e ainda do disposto nos artigos 804.º, n.º 1, 805.º, n.º 3 e 806.º, n.º 1), todos do Código Civil.
12. No Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09-05-2002, publicado no DR I-A, de 27-06-2002, estabeleceu o Supremo Tribunal de Justiça que sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
13. Ora, no caso dos presentes autos, tendo os valores indemnizatórios sido arbitrados pela decisão atualizadora e calculados segundo juízos de equidade, o início da contagem dos juros moratórios deve ser consentâneo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça sendo, por isso, contabilizados a partir da data da prolação da mesma, in casu, 23 de maio de 2024.
14. Face a tudo o que precede, o douto Tribunal a quo fez a correta apreciação e ponderação da matéria de facto dada como provada, bem como o consequente enquadramento jurídico-legal do caso em apreço, devendo ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, pugnando-se pela manutenção da douta sentença recorrida.
Termos em que, Venerandos Juízes Desembargadores deve ser confirmada a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências, como é da mais inteira JUSTIÇA !
II – Factos Provados
1. No dia 23.12.2021, pelas 16h00 na Rua ..., dentro da localidade da ..., na freguesia ..., ..., ocorreu um embate no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, da marca Audi, modelo ..., com a matrícula ..-..-ZN, (doravante “veículo ZN”), e o veículo ligeiro de passageiros da Marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula ..-HV-.. (doravante “veículo HV”).
2. À data do embate o veículo ZN era propriedade de CC e era conduzido por BB.
3. Já o veículo HV era conduzido por DD, sendo sua proprietária a autora.
4. No veículo HV seguia enquanto passageiro, sentado no banco dianteiro do lado direito, EE.
5. No veículo ZN seguia apenas a sua condutora.
6. À data do embate tempo estava bom, o piso estava seco e ainda havia luz natural na hora do acidente.
7. O acidente ocorreu em plena localidade da ..., junto ao largo da igreja.
8. A Rua ... tem dois sentidos de trânsito, um para cada lado.
9. Tem uma largura de faixa de rodagem de 6,00 metros, correspondendo 3,00 a cada via de trânsito, pelo que dois veículos ligeiros têm espaço suficiente para passar um pelo outro sem sequer terem necessidade de abrandar.
10. O piso é asfaltado e encontrava-se em bom estado de conservação, sendo a zona onde ocorreu o acidente em patamar, ou seja, sem desnível acentuado para nenhum dos lados.
11. O local onde ocorreu o acidente forma uma ligeira curva para a direita no sentido .../....
12. Tal curva não impede uma visibilidade mínima de 50 metros para qualquer um dos sentidos, sendo que sensivelmente a meio dessa curva existe uma passagem para peões pintada por sobre a faixa de rodagem.
13. A estrada em causa não tem qualquer outra marcação pintada no asfalto.
14. No momento imediatamente anterior ao embate o veículo HV prosseguia a sua marcha no sentido .../..., na sua mão de trânsito, a uma velocidade não concretamente apurada mas inferior à velocidade máxima permitida para o local.
15. A condutora do veículo HV seguia atenta ao trânsito.
16. O veículo ZN circulava no sentido .../..., a velocidade não concretamente apurada mas inferior à velocidade máxima permitida para o local, invadindo a via de trânsito destinada ao sentido contrário.
17. No momento do imediatamente anterior ao embate BB, condutora do veículo ZN, conduzia de forma desatenta.
18. O embate ocorreu quando, efetuando o veículo HV a referida curva, que para si se apresenta para a esquerda, já depois de se encontrar para diante da passagem de peões (atento o seu sentido de marcha), viu surgir, em sentido contrário, o veículo ZN invadindo a sua via de trânsito.
19. Perante a trajetória do veículo ZN, a condutora do veículo HV desviou a sua trajetória o mais que pôde para a sua direita, travando até imobilizar por completo o veículo HV encostado ao caixote do lixo que se encontrava na berma direita, atento o seu sentido de marcha.
20. Após esta manobra do veículo HV, este ficou com a metade direita do mesmo em plena berma direita, atento o seu sentido de marcha, libertando assim cerca de 2 metros da sua própria via de trânsito para que o veículo ZN passasse.
21. Não obstante esta manobra de evasão da condutora do veículo HV, a condutora do veículo ZN, que conduzia distraída, continuou a invadir toda a via de trânsito contrária à que lhe estava destinada e acabou por embater com a frente e lateral esquerda do veículo ZN na frente e lateral esquerda do veículo HV, que se encontrava parado no momento do embate.
22. Com o impacto do embate, o veículo HV foi empurrado lateralmente contra o caixote do lixo que se encontrava à sua direita, bem como contra uma pedra de um muro delimitador de um terreno já para lá da berma direita.
23. Só com a força do embate do veículo ZN no veículo HV é que a condutora do veículo ZN se apercebeu do embate que tinha acabado de ocorrer, só conseguindo imobilizar o mesmo já após a passagem para peões.
24. O veículo HV ficou imobilizado tendo a sua lateral traseira direita ficado a distar 2,50 metros de um poste de telecomunicações, a roda traseira esquerda a 5,70 metros de um poste de iluminação que se situa para além da berma esquerda e a roda dianteira esquerda a 5,60 metros de um poste de eletricidade situado também para além da berma esquerda atento o seu sentido de marcha.
25. O local do embate entre os veículos ocorreu assim junto à frente e lateral esquerda do veículo HV, no exato local onde o mesmo ficou imobilizado, ou seja, em plena via de trânsito por onde este circulava, a cerca de 1,5 metros contados da berma direita atento o seu sentido de marcha.
26. Logo após o embate a condutora do veículo ZN declarou assumir a responsabilidade pelo embate, justificando-o com o facto de não estar a sentir-se bem, referindo inclusivamente, talvez para justificar a sua desorientação, que tinha deixado um neto de 18 meses sozinho em casa.
27. Logo que foi chamada a GNR a condutora do veículo ZN retirou o veículo do lugar, para depois, com a ajuda de um terceiro, indicar um ponto de embate diferente do identificado em 24), referido no croquis como estando a 12 metros do poste de telecomunicações, a 8,50 metros do poste de iluminação e 8,50 metros de um segundo poste de iluminação.
28. As duas condutoras intervenientes no embate estavam habilitadas para exercer a condução, pelo que conheciam ou deveriam conhecer as normas estradais.
29. Foram ambas sujeitas a teste de despiste de alcoolemia, tendo ambas apresentado resultado negativo.
30. A responsabilidade civil do veículo encontrava-se transferida para a Ré, através da apólice ...00.
31. A regularização do presente acidente foi iniciada mediante a convenção IDS ou seja, pela seguradora da própria autora, que concluiu que a responsabilidade pela produção do embate seria dividida em partes iguais por ambas as condutores.
32. Do referido embate resultaram danos em toda a parte frontal e lateral esquerda do veículo HV.
33. O veículo HV ficou impossibilitado de circular pelo que foi inicialmente enviado, por aconselhamento de quem fez o serviço de reboque, para o representante da marca para a zona de ..., ou seja, a B... Lda..
34. Aí foi realizada uma estimativa de reparação sem desmontagem pela seguradora da autora no valor de € 6.472,20.
35. O valor do veículo HV antes do embate foi avaliado pela própria seguradora em € 6.750,00.
36. À data do embate o veículo HV, encontrava-se em bom estado de conservação, consiste num veículo ... com motor a gasóleo, 2.000 de cilindrada, 110 cv de potência, 5 lugares, do ano de 2009, pelo que valia comercialmente quantia não inferior a € 6.750,00.
37. A autora não aceitou qualquer das propostas da seguradora do qual foi informada por carta datada de 12.01.2022, junta a fls. 35 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o que comunicou para os serviços respetivos, retirou o veículo da oficina para a qual o mesmo tinha sido enviado pelos serviços de reboque e iniciou a sua reparação.
38. O veículo HV foi colocado para arranjo na oficina automóvel de FF, sita em ..., o que ocorreu poucos dias após ter sido rececionada pela autora a carta datada de 12/01/2022, ou seja, na semana seguinte à referida receção.
39. A oficina em causa orçamentou a reparação do veículo em € 3.698,13, já com IVA.
40. Tal reparação consistiria na substituição do para-choques da frente, grelha central do para-choques, tampas do para-choques, radiador de água, radiador de AC, carregamento de AC, radiador de intercooler, moto- ventilador, resguardo de radiador, frente em fibra, reforço de para-choques, anticongelante, guarda-lamas da frente esquerdo, porta da frente esquerda usada, porta da traseira esquerda usada, suporte de farol frente direita, materiais de pintura, alinhamento de direção, lâmpadas H4, mão de obra de bate-chapas, mão de obra de pintura, blindagem frente e mão de obra mecânica.
41. Atentos os atrasos na obtenção de peças, bem como o facto de ser a autora a suportar primeiramente o custo da totalidade da reparação, o veículo HV só ficou pronto no dia 24.05.2022, data da emissão da fatura.
42. A oficina apenas permitiu a saída do mesmo após o integral pagamento do valor da reparação, no montante total de € 3.698,13, cujo pagamento foi efetuado no dia 31.05.2022, data em que a Autora teve disponibilidade para fazer o pagamento.
43. O veículo HV, após a referida reparação ficou em perfeito estado de funcionamento, tendo sido aprovado em inspeção técnica periódica realizada no dia 23.11.2022, ser merecer qualquer menção de deficiência.
44. A autora vive em ..., lugar que não é servido por transportes públicos, sendo que nessa data tinha necessidade de se deslocar pelo menos uma vez por dia a ..., que dista cerca de 15 km da sua casa, o que perfazia 30 km diários.
45. O veículo HV era também utilizado diariamente pela autora para ir ao supermercado, farmácia, deslocar-se a casa de familiares e amigos, para os passeios lúdicos, a ..., a ..., ..., às praias, etc., tendo uma utilização diária, e sendo essa a função para a qual tinha sido comprado em março desse ano.
46. Era com este veículo que a autora também se deslocava aos bancos (na localidade de ...), posto médico, etc..
*
Factos Não Provados:
(…)
f) O veículo HV era, e é, o único veículo da autora.
g) A autora utilizava o veículo HV para se deslocar para o seu trabalho
h) A imobilização do veículo HV importou uma quase total impossibilidade de deslocação da Autora, tendo de recorrer a boleias de familiares e a pedidos de empréstimo de veículos destes, o que a coartou na livre disponibilidade do seu tempo durante os mais de 5 meses de espera pela reparação, bem como a fez passar pelo constrangimento de dizer para que é que precisava do veículo emprestado e para onde ia, ou quanto tempo demorava.
(…)
*
III – Do Direito
1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.
Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.
- Montante do dano de privação de uso.
- Condenação em juros.
2. Na sentença recorrida escreveu-se que:
“Peticiona ainda o autor o valor de € 5.565,00 relativo a indemnização pela privação do uso e não atribuição de um veículo de substituição pelo período de 159 dias, ou seja, entre o dia do acidente (23.12.2021) e o dia 31.05.2022, data do levantamento do veículo.
Compulsada a factualidade apurada constata-se que resultou provado que o veículo HV ficou impossibilitado de circular após o acidente, tendo sido reparado a expensas da autora e de acordo com a sua disponibilidade financeira.
Apurou-se igualmente o acidente de viação correu no dia 23.12.2021, que a 12.01.2022 a ré disponibilizou à autora uma indemnização no valor de € 2.259,00, montante que esta não aceitou.
Mais resultou provado que a autora ficou fortemente condicionada na generalidade das suas deslocações diárias.
Ora, dispõe o artigo 42º, do DL 291/2007, que:
“1 - Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores.
2 - No caso de perda total do veículo imobilizado, nos termos e condições do artigo anterior, a obrigação mencionada no número anterior cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização.
3 - A empresa de seguros responsáveis comunica ao lesado a identificação do local onde o veículo de substituição deve ser levantado e a descrição das condições da sua utilização.
4 - O veículo de substituição deve estar coberto por um seguro de cobertura igual ao seguro existente para o veículo imobilizado, cujo custo fica a cargo da empresa de seguros responsável.
5 - O disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição.
6 - Sempre que a reparação seja efectuada em oficina indicada pelo lesado, a empresa de seguros disponibiliza o veículo de substituição pelo período estritamente necessário à reparação, tal como indicado no relatório da peritagem”.
Nada se apurou quanto à disponibilização de um veículo de substituição à autora, o que, sempre competiria à ré provar para obstar ao pedido de indemnização por privação do uso de veículo.
Assim, em face do n.º 5 do citado preceito, não tendo e nada se apurando quanto a tal questão, impõe-se atentar na ressarcibilidade do dano de privação do uso de veículo.
(…)
Entendemos, assim, que a simples privação ilegal do uso é em si mesmo um prejuízo de que o proprietário deverá ser ressarcido, in casu, deverá a autora ser ressarcida do período de imobilização do veículo, ainda que na exata medida da responsabilidade fixada à ré.
E quanto à quantificação de tal dano?
Em situações como a dos autos, Abrantes Geraldes (ob. Cit., pág. 53) aponta como critério orientador a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes ao sinistrado.
Mas como se deixou expresso no Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2012 (proc. n.º 86/10.0T2SVV.C1, disponível em www.dgsi.pt) “este critério não é exacto, pois o prejuízo resultante da privação de uso de um veículo próprio não é igual ao valor do aluguer de um veículo semelhante que uma empresa comercial disponibiliza a quem o queira alugar”.
Serão, então, também de ponderar outras circunstâncias, tais como, a poupança decorrente da não utilização do veículo imobilizado, em aplicação do princípio “compensatio lucri cum damno” ou o facto de o lesado ter ao seu dispor outros veículos que pudesse utilizar durante o período de imobilização.
Sendo que, haverá ainda que atender às características da viatura e uso que pelo lesado lhe era dado (cfr. o citado Acórdão da Relação de Coimbra de 02.12.2014, proc. n.º 324/10.9TBCVL.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Ponderando tais critérios, mas tendo presente que nada em concreto se apurou quanto ao valor locativo de veículo semelhante ou quanto ao valor de poupança adveniente da privação, haverá que formular in casu um juízo de equidade ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil, tendo presente a demais matéria de facto apurada.
Tem-se igualmente presente que a jurisprudência tem vindo a ressarcir o dano da privação do uso do veículo, de forma consistente e ressalvadas circunstâncias muito específicas, sem aplicação no caso concreto, no montante diário de € 10,00 (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.2010, proc. n.º 1247/07.4TJVNF, Acórdãos da Relação de Coimbra de 02.12.2014, proc. n.º 324/10.9TBCVL.CL e de 08.05.2019, proc. n.º 43/18.8T8TBU.C1, Acórdãos da Relação do Porto de 08.09.2014, proc. n.º 243/11.1TBAMT.P1 e de 21.02.2018, proc. n.º 1069/16.1T8PVZ.P1, Acórdão da Relação de Lisboa de 12.07.2018, proc. n.º 3.664/15.T8VFX.L1-6, Acórdão da Relação de Guimarães de 04.04.2017, proc. n.º 474/13.0TBFAF.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt), inexistindo em concreto razões que justifiquem um afastamento de tal critério.
(…)
No caso em apreço, e em face do supra referido, resulta que o montante disponibilizado pela ré a 12.01.2022 ficou à quem da legítima pretensão da autora, razão pela qual, não fica esta desonerada de indemnizar o dano de privação em momento posterior ao da apresentação de tal proposta.
Contas feitas, deverá a ré indemnizar a autora no montante de € 1.590,00 (mil quinhentos e noventa euros – 159 dias x € 10,00) a título de dano de privação do uso, improcedendo o pedido no remanescente.”.
A apelante discorda, pelos motivos constantes das suas alegações de recurso (cfr. as a) a e) das suas conclusões). Enquanto a apelada pugna pela manutenção do decidido (cfr. conclusões de recurso 3. a 10.).
A recorrida invoca, para não alterar o valor indemnizatório fixado, a matéria de facto dada como não provada, sob f), g) e h). Mas tal matéria não tem agora relevo, a partir do momento em que reconhece que a fixação da quantia diária de 10 €, a título compensatório pela privação de uso do veículo, foi arbitrada equitativa e proporcionalmente ao caso em concreto, sem descurar os padrões de indemnização geralmente adoptados nos tribunais superiores, pelo que o tribunal a quo decidiu bem.
Na verdade, o que importa agora saber é se o montante fixado pode ser aumentado, por força de uma actualização decorrente da grave inflação dos últimos anos, como afirma a recorrente.
Na realidade, o valor de 10 €/dia que tem vindo a ser fixado pela nossa jurisprudência quando não existe um aluguer de um veículo por parte do lesado, começou a ser fixado em acórdãos proferidos já na distante data de 2010 e assim mantido em acórdãos bem posteriores (o último assinalado na sentença apelada é de Maio de 2019, ou seja com 9 anos de intervalo).
Partindo desta base de 10 €, importa actualizá-lo, decorridos 14 anos, atenta a inflação que tem grassado, especialmente mais severa nos últimos 5 anos. Como é do conhecimento público.
Com resultados médios de 7,8% em 2022 e 4,3% em 2023 (fonte: www.pordata.pt – com a palavra chave taxa de inflação nos últimos 5 aos), tal e qual como justamente assinalado pela apelante no corpo das suas alegações de recurso, o que forçosamente desvalorizou o valor de 10 € inicialmente apontado pela dita jurisprudência no já longínquo ano de 2010, e que hoje em dia temos por perfeitamente desajustado.
Ponderando, a apontada desvalorização e um juízo de equidade, cremos ser muito mais adequado e justo, afastando-nos do imobilismo jurisprudencial, o valor diário de privação de uso do veículo o montante de 20 €.
Contas feitas, deverá a R. indemnizar a A. no montante de 3.180 € (159 dias x 20 €) a título de dano de privação do uso.
Procedendo a apelação nesta parte.
3. Relativamente à condenação da R. em juros de mora, vencidos e vincendos, contabilizados desde a citação, que a A. peticionou mas o tribunal nada decidiu, a mesma defende que tratando-se de obrigações pecuniárias, a mera condenação da R. no seu pagamento obrigaria ao deferimento do pedido de condenação em juros, tal como decorre do art. 806º, nº 1, do CC, motivo pelo qual deverá a R. ser condenada nos mesmos sobre a quantia sentenciada (cfr. conclusões a), f) a h) do recurso). Enquanto a recorrida tem posição diversa, pois entende que de acordo com o AUJ 4/2002, de 9.5.2002, no DR I-A, de 27.6.2002, os juros só são contabilizados a partir da data da sentença, em 23.5.2024. (cfr. conclusões de recurso 11. a 13.).
A A./recorrente tem razão, mas não integralmente, tal como a recorrida. Vejamos sumariamente.
É claro que tratando-se de uma condenação pecuniária, por facto ilícito, a A. tem direito a juros legais – actualmente de 4% - desde a citação (arts. 804º, 805º, nº 3, 2ª parte, e 806º, do CC). Mas também é verdade que nos termos do referido AUJ estabeleceu o STJ que “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.”.
Ora, a quantia fixada para indemnizar o dano de privação do uso foi actualizada, como atrás se viu, pelo que relativamente a ela, os juros só são devidos desde a data da sentença actualizada. Em termos concretos isto dá o seguinte resultado: sobre a quantia de 3.698,13 €, arbitrada na 1ª instância, por reparação do veículo da A., e não questionada pela R., são devidos juros desde a citação, ocorrida em 16.5.2023; sobre a quantia actualizada de arbitrada nesta Relação, para indemnizar o dano de privação do uso, os juros são devidos desde a prolação deste acórdão, datado de 24.9.2024.
(…)
IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a R. a pagar à A. a quantia já fixada na sentença apelada de 3.698,13 €, acrescida de juros à taxa de 4% desde 16.5.2023 até integral pagamento, mais 3.180 €, a título de dano de privação do uso, acrescida de juros, na mesma taxa, desde 24.9.2024 até integral pagamento.
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Custas a cargo das partes na proporção do vencimento/decaimento.
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Moreira do Carmo
Vítor Amaral
Fonte Ramos