1. - De decisões intercalares de rejeição de requerimentos de prova cabe recurso de apelação autónoma, nos termos do art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv..
2. - O processo especial de entrega de menor, nos termos dos art.ºs 3.º, 7.º e 12.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída em Haia, em 25/10/1980), reveste-se de natureza urgente, implicando uma indagação expedita, que não se compadece com o apuramento quanto às matérias de regulação do exercício de responsabilidades parentais, para cuja definição não está vocacionado.
3. - Em tal processo apenas importa apurar e decidir quanto à deslocação ou retenção ilícita de menor (art.º 3.º daquela Convenção), e, por outro lado, segundo o invocado no caso, com vista a obstar ao regresso da criança ao país de residência habitual, quanto à matéria de exceção a que aludem os art.ºs 12.º e 13.º da mesma Convenção.
4. - Não se demonstrando qualquer dos fundamentos de exceção desses art.ºs 12.º e 13.º, o interesse da criança materializa-se no seu regresso urgente ao país de residência habitual, onde pode ser equacionada a regulação do exercício das responsabilidades parentais.
5. - Estando em causa um menor, filho de pais que viviam em união de facto na Suíça e que, entretanto, se separaram, sem que houvesse ocorrido regulação do exercício das responsabilidades parentais, tem de concluir-se que essas responsabilidades cabem a ambos os progenitores em comum, segundo acordo nesse sentido estabelecido perante tribunal suíço, não podendo, por isso, dizer-se que é a mãe quem detém exclusivamente o poder-dever de guarda do filho.
6. - Se, numa tal situação, a mãe, sem obter o consentimento do pai para tal, reteve o filho em Portugal, para fixação de residência definitiva neste país, decidindo unilateralmente perante questão de particular importância, ocorre retenção ilícita do menor, a dever ser corrigida com o regresso da criança ao país de residência habitual.
7. - A tal não obsta o facto de a mãe ter viajado para Portugal com o menor, mediante acordo com o pai, mas apenas para temporária prestação de auxílio a familiar doente, no pressuposto, pois, do regresso à Suíça, o qual não se verificou.
***
O Ministério Público (doravante, M.º P.º) veio, em representação do Estado Português, a solicitação das Autoridades Suíças, nos termos do disposto nos art.ºs 1.º, al.ªs a) e b), 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 10.º e 11.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de outubro de 1980 (aprovada pelo Decreto n.º 33/83, de 11-05),
intentar “ACÇÃO ESPECIAL, com vista ao regresso à Suíça da menor” AA, nascida a ../../2017, em Genebra, Cantão de Genebra, Suíça, filha de BB e de CC, todos com os demais sinais dos autos, a pedido da Autoridade Central.
Pede que seja:
a) Ordenado o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual (Suíça), sob os cuidados e responsabilidade da Autoridade Central, por violação do direito de custódia previsto no art.º 5.º, al.ª a), da Convenção de Haia;
b) Ordenada a inserção dos dados identificativos da criança no sistema de informação Schengen, com vista a garantir a segurança e localização da criança em caso de deslocação ilícita para um Estado-terceiro;
c) Notificada a Autoridade Central das providências decretadas.
Alegou, para tanto, que:
- os progenitores, que não são casados entre si, viveram juntos na Suíça, com a criança, que nasceu e residiu na Suíça até que a progenitora veio viver com a menor em Portugal, em junho de 2022, sendo que tais progenitores exercem em conjunto as responsabilidades parentais, o que inclui o direito de determinar a residência da criança, de acordo com a legislação suíça;
- estava previsto e acordado entre os pais que a mãe regressaria à Suíça com a criança logo que a avó materna desta melhorasse na sua saúde, estando o regresso da criança e da mãe à Suíça previsto para setembro de 2022, o que não veio a acontecer;
- o pai ficou a saber que a mãe não regressaria definitivamente à Suíça com a criança quando foi citado em 20/01/2023, no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais contra ele instaurado pela mãe;
- ocorrendo uma retenção ilícita da criança, que fundamenta o pedido de regresso da mesma à Suíça, a mãe da menor, notificada pela Autoridade Central, recusou o regresso da menor àquele País.
Citada, a mãe da menor deduziu contestação, alegando, em síntese, que:
- viveu em união de facto com o progenitor da criança até 2019/2020, altura em que regressou a Portugal com a filha, com idas esporádicas à Suíça;
- veio residir com a criança para Portugal com conhecimento e autorização do progenitor, sendo que a menor já se encontra integrada no seu atual ambiente, encontrando-se matriculada na escola em Portugal desde o ano 2021/2022;
- as responsabilidades parentais ainda não se encontram reguladas, não podendo ser ordenado o regresso da criança quando esta já se encontrar integrada no seu novo ambiente, como no caso, nem quando o progenitor tiver consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção, consentimento esse que se encontra demonstrado;
- a criança mantém uma forte ligação afetiva com a mãe, que tem em Portugal a sua família materna e paterna, com a qual convive frequentemente, enquanto que na Suíça terá apenas a companhia do progenitor, sem qualquer rede de apoio e tempo para cuidar devidamente da filha, o que já acontecia quando ainda estavam juntos.
Concluiu pela improcedência da ação, condenando-se o progenitor como litigante de má fé, em multa e indemnização à Requerida.
Apresentou requerimento de provas, com junção de prova documental e indicação de testemunhas.
O pai da menor exerceu o contraditório relativamente à contestação da mãe, impugnando o ali alegado e concluindo no sentido de ser julgado procedente o pedido do M.º P.º, ordenando-se o regresso imediato da menor ao Estado da sua residência habitual, a fim da mesma ser entregue ao progenitor.
Por despacho datado de 28/11/2023 foi assim decidido, em matéria de prova pessoal:
«A tramitação do pedido de regresso não comporta a inquirição de testemunhas, nem a realização de audiência de discussão e julgamento, pelo que indefiro a produção de prova testemunhal requerida.».
Tal despacho foi notificado aos sujeitos processuais (também à Requerida mãe, através da sua então mandatária judicial) mediante “Certificação Citius em: 29-11-2023”.
Foi determinada a audição da criança para expressar a sua posição acerca do objeto dos autos, tendo a mesma prestado declarações, assim como ambos os progenitores.
O M.º P.º emitiu parecer, pugnando pela procedência da ação.
A Requerida mãe veio ainda arguir a incompetência territorial do tribunal e reiterar a posição já anteriormente sustentada, enquanto o progenitor manifestou a sua adesão ao parecer do M.º P.º.
Julgada improcedente a exceção da incompetência territorial, com prosseguimento dos autos, foi proferida sentença, datada de 30/04/2024, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e, em consequência, determino o regresso imediato da criança AA à Suíça.
Julgo improcedente o pedido de condenação do progenitor como litigante de má fé em multa e indemnização, com a necessária absolvição de tal pedido.
Mais determino a notificação da progenitora para demonstrar no prazo de 48 horas que assegurou o regresso da criança à Suíça, onde deverá ser entregue ao pai, caso a mãe não regresse àquele país com a criança.
No caso de a progenitora não fazer tal demonstração, determino a notificação do progenitor para informar no prazo subsequente de 48 horas se pretende deslocar-se a este país, a fim de aqui lhe ser entregue a criança pela mãe.
Custas da causa a suportar pela requerida – art. 527º do CPC.
Custas do incidente de litigância de má fé a suportar pela progenitora, com uma UC de taxa de justiça, atento o processado a que deu causa – art. 527º do CPC e 7º do RCP.
Fixo o valor da ação em € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), nos termos do disposto nos arts. 303.º, n.º 1 e 306.º, ambos do Código de Processo Civil.
Fixo o valor do incidente de litigância de má fé no mesmo valor atribuído à causa (trinta mil euros e um cêntimo) – art. 304º, nº 1 e 306º do CPC.
Registe, notifique e comunique à Autoridade Central.
Decorrido o prazo legal para exercício do contraditório relativamente ao requerimento que antecede, atinente a custas, abra vista ao Ministério Público.” (destaques retirados).
Desta sentença, veio a Requerida mãe, inconformada, interpor o presente recurso ([1]), apresentando alegação e as seguintes
Conclusões ([2]):
«1ª
O presente Recurso reúne, in totum, os requisitos plasmados no artigo 678º do CPC, para subir directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, o que, desde já, Requer.
2ª
A escalpelização hermenêutica da sentença, ora, recorrida, descortina, salvo o devido respeito que muito é, equívocos continentais ao nível da subsunção e interpretação jurídicas.
3ª
A convicção do julgador há-de formar-se, após, uma ponderação serena de todos os meios de prova produzidos, guiado sempre, por padrões de probabilidade, e nunca de certeza absoluta, num processo lógico-dedutivo de montagem do mosaico fáctico, perspectivado pelas regras da experiência comum.
4ª
A presente Instância conheceu a sua aurora no pretérito dia 04.08.2023 com a bordadura da peça petitória apresentada em Juízo pelo Ministério Público, nos termos e para os efeitos, ali, alegados do disposto nos artigos 1º, alíneas a), b); 2º; 3º; 4º; 5;, 6º; 7; 10º e 11º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de Outubro de 1980 (aprovada pelo Decreto n.º 33/83, de 11 de Maio) e artigo 113º do Regulamento da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Esculpiu e formatou o seu articulado como ACÇÃO ESPECIAL, assim, tramitada até à Sentença, posta, ora, em crise.
5ª
Com vincada modéstia, não se conhece no nosso Ordenamento-Jurídico-adjectivo qualquer acção especial que agasalhe a pretensão do Ministério Público, pelo que, existe erro na forma do processo, importando uma invalidade processual, que é de conhecimento oficioso (Cfr. artigo 196º do CPC), tendo a MM.ª Juiz do Tribunal “a quo” postergado, neste conspecto, o seu múnus.
O invocado erro na forma do processo, importa, ainda, a absolvição da Instância da R., nos termos plasmados no nº 1, do artigo 193º, al. b); do nº1, do artigo 278º; do nº2, do artigo 576º e al. b), do artigo 577º, todos do CPC.
6ª
A Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” tricotou a sua decisão à margem do manto normativo aplicável, exsudando um flagrante erro de interpretação, e de aplicação na tarefa subsuntiva, ostracizando, nomeadamente, os seguintes blocos normativos:
• Convenção de Haia de 1996, Relativa à Competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e de medidas de protecção das Crianças;
• Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das Decisões Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores: Decreto n.º 136/82, de 21-12;
• Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25.06.2019.
7ª
Arredando qualquer perfunctoriedade na disquisição, que com o devido respeito o Tribunal “a quo” não logrou fazer, resulta, com a clareza do relâmpago, que a deslocação da menor AA para Portugal não foi ilícita, antes, isso sim, efectuada no âmbito da legitimidade da sua progenitora, ora, Recorrente, enquanto, titular das responsabilidades parentais, e ipso facto, também, titular do direito de decidir sobre o lugar da residência da sua filha.
8ª
O Acordo particular, que serviu de amparo, para a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo”, lobrigar na esfera jurídica do pai da menor AA um direito de custódia, não estava vigente à data da deslocação da menor para Portugal, tendo sido mesmo tacitamente revogado por, ambos, os progenitores.
9ª
O progenitor consentiu na deslocação da menor para Portugal, onde fixou residência a partir de 2020.
10ª
O direito de custódia, que inclui o direito particular de decidir sobre o lugar da residência da menor, inscrevia-se, ao tempo da deslocação da menor para Portugal, na esfera jurídica da sua mãe, ora, Recorrente, de forma exclusiva e por atribuição de pleno direito.
(Cfr. artigo 3º, in fine da Convenção de Haia, de 1980).
11ª
Ressaltam, de forma vítrea, lapidar e escancarada, dos autos, duas conclusões incontornáveis:
Primus: Que a menor AA foi transferida para Portugal há bem mais de 1 (um) ano (rectius, há mais de 03 anos !!) entre a data da deslocação e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar;
Secundus: Que a menor AA encontrava-se integrada no seu novo ambiente, em Portugal á data da decisão que ordenou o seu regresso à Suíça.
12ª
Neste contexto fáctico, não poderia passar despercebido à Exmª Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo”, como, infelizmente, parece ter passado, que a menor AA estava, plenamente, integrada em Portugal, até a sua vida ser sacudida por uma decisão judicial que fez estremecer e abalar todos os alicerces da sua residência habitual, com atropelo gritante do princípio radicular e primevo de todos os instrumentos normativos internacionais, que é a defesa dos superiores interesses da criança.
13ª
O Tribunal “a quo” errou, grosseiramente, ao postergar o regime estampado no artigo 12º da Convenção de Haia de 1980, porquanto, a menor AA já se encontrava, plenamente, integrada no seu novo ambiente em Portugal, tendo fluído mais de 3 anos desde a data da deslocação até ao início do processo para o seu regresso à Suíça.
14ª
Em sede de articulado bordado em 05.02.2024, (Ref.ª Citius 47879873), a, ora, Recorrente logrou alegar factualidade subsumível na hipotização plasmada na alínea b) do artigo 13º da Convenção de Haia de 1980.
Em face desta alegação, o que a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” deveria ter feito, era, cumprindo o contraditório, abrir a porta do direito à prova, e, oficiosamente, perscrutar as condições sociais da criança fornecidas pelas autoridades competentes do Estado da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação. (Cfr. artigo 13º, in fine, da Convenção de Haia de 1980 e artigo 27º, n.º 4 e 86º, ambos do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 26.06.2019), o que postergou.
15ª
A Sr.ª Juiz deveria ter diligenciado pela indagação mais ou menos aturada das condições sociais da criança na Suíça, para aboletar uma eventual decisão conscienciosa de fazer regressar a criança àquele país.
Sucede, que a Sr.ª Juiz do Tribunal ”a quo” postergou por completo este dever, e, além, de não ter diligenciado por saber das condições sociais da criança na Suíça, e nem sequer ter esboçado quaisquer medidas ou providências adequadas para garantir a protecção da criança após o seu regresso, foi mais longe, e agrilhoou a porta da entrada do direito à prova à Recorrente, com o argumento, quase pueril, que este processo não permite prova testemunhal, esquecendo-se, das regras própria dos processo de jurisdição voluntária, como é o dos presentes autos. (Cfr. artigos 986º a 988º e 293º, todos do CPC e artigo 12º do RGPTC).
16ª
Tudo aconselharia e o interesse da criança assim exigiria que tal entrega fosse recusada à luz do disposto na alínea b) do artigo 13º da Convenção da Haia de 1980, o que o Tribunal “a quo” postergou.
E por ter omitido pronúncia sobre questão que devia apreciar, a Sentença em escrutínio padece, inelutavelmente, da nulidade estampada no artigo 615º, n.º 1, alínea d), sendo, também, este fundamento do presente recurso à luz do artigo 674º, n.º 1, alínea c), ambos do CPC, o que para os devidos efeitos, expressamente, se invoca.
17ª
Andou mal a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo”, ao imprimir executoriedade imediata à sua decisão de fazer regressar a criança, pois, nenhuma norma legal lhe confere tal amparo.
18ª
Não é que o nosso Ordenamento-Jurídico não reconheça, nalgumas situações, a possibilidade de conferir-se executoriedade à decisão de regresso da criança, mas para tanto, é mister que a decisão contemple fundamentação no sentido de ser declarada executória a título provisório, se o regresso da criança antes da decisão sobre o recurso for exigido pelo superior interesse da criança. (Cfr. Considerandos 44, 64, 65 e 66 e artigo 27º, n.º 6 todos do Regulamento (UE), 2019/1111.
Ora, como está bom de ver, a sentença é, completamente, omissa quanto a este segmento da executoriedade a título provisório, pelo que, a ordem de regresso imediata da criança, antes da prolação da decisão do recurso, é ilegal e ofende os superiores interesses da menor, o que para os devidos, efeitos, aqui, expressamente, se invoca.
19ª
Violou, assim, diz-se com o devido respeito, a Sentença recorrida, os artigos 193º, n.º1, alínea b), 278º, n.º1, 293º, 576º, n.º2, 577º, alínea b), e 986º a 988º todos do CPC; Os artigos 1º, 3º, 5º, 12, 13º, 14º e 15º todos da Convenção de Haia de 1980; Os artigos 22º, 27º e 86º todos do Regulamento (UE) n.º 2019/1111 do Conselho de 25.06.2019; e o artigo 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada na Assembleia Geral da ONU em 20.11.1989 e aprovada para ratificação em Portugal pela Resolução da AR n.º 20/90 de 12.09.
TERMOS EM QUE,
Ex Positis
Deve dar-se provimento ao presente Recurso e ipso facto:
a) Revogar-se a Sentença recorrida, e ordenar-se o regresso imediato da criança AA para Portugal, na residência da sua mãe, ora, Recorrente.
Assim, decidindo, farão, V.Ex.ªs a costumada
e recta
J U S T I Ç A.».
O M.º P.º, em resposta, pugna pela improcedência do recurso.
O recurso, como havia sido requerido, foi admitido per saltum para o STJ, como de revista, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([3]), tendo sido ordenada a remessa dos autos àquele STJ.
Após despacho da Exm.ª Conselheira Relatora, pronunciou-se a Recorrente no sentido da admissibilidade do recurso per saltum, afirmando que, na motivação recursória, não é impugnada a matéria de facto, mas apenas a subsunção da factualidade ao Direito, sendo que em passo algum da sua motivação, sindicou, autonomamente, despachos ou decisões interlocutórios, mas sim e apenas o percurso cognitivo e decisório, perspetivado como um todo, lavrado pela 1ª instância.
Aquela Exm.ª Conselheira Relatora proferiu decisão singular, decidindo “não admitir o recurso de revista per saltum interposto pela Recorrente CC e, nos termos do art. 678º, nº 4, do CPC, determinar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para aí ser processado como apelação”.
Nesta Relação foi mantido o efeito assim fixado ao recurso, enquanto apelação, termos em que, nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito recursivo, cumpre apreciar e decidir.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, importa saber ([5]):
a) Se está verificada causa de nulidade da sentença, no âmbito do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv. (omissão de pronúncia);
b) Se deve proceder a invocação de erro na forma de processo, com as legais consequências;
c) Se pode ser conhecida a matéria decisória de rejeição de meios de prova;
d) Se, caso tenha sido devidamente impugnada a decisão da matéria de facto, deve a mesma proceder, por verificado erro de julgamento de facto;
e) Se deve alterar-se a decisão de direito, nos seguintes planos:
1. - Licitude da retenção da menor;
2. - Consentimento/aceitação pelo Requerido pai;
3. - Custódia exclusiva da Requerida mãe;
4. - Residência da menor (em Portugal) há mais de um ano e integração no novo ambiente;
5. - Necessidade de indagação das condições sociais (na Suíça);
6. - Não executoriedade da decisão de regresso;
7. - Desconsideração do superior interesse da criança.
A) Do erro na forma do processo
Sob a sua conclusão 5.ª, invoca a Recorrente não conhecer no nosso ordenamento jurídico qualquer ação especial “que agasalhe a pretensão do Ministério Público, pelo que, existe erro na forma do processo, importando uma invalidade processual, que é de conhecimento oficioso (Cfr. artigo 196º do CPC)”, conduzindo à “absolvição da Instância da R., nos termos plasmados no nº 1, do artigo 193º, al. b); do nº1, do artigo 278º; do nº2, do artigo 576º e al. b), do artigo 577º, todos do CPC.”.
O M.º P.º contrapõe que, «(…) nos termos do art.198º do CPC, as nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º (como é o caso) só podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado.
Ora, a ora recorrente foi citada por mandado em 02-10-2023, sendo que na sua contestação apresentada em 12-10-2023 não suscitou qualquer nulidade por erro na forma do processo, pelo que, a ter havido erro na forma do processo (que, em nosso entendimento, não houve), está sanada tal questão.
A alegada nulidade por erro na forma do processo pela recorrente nesta fase é absolutamente extemporânea, nos termos do art.198º do CPC.».
Vejamos.
Dispõe o art.º 193.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv. que «O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
Não devem, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.».
É certo, com também observado pelo M.º P.º, que a errada indicação da forma do processo constitui uma nulidade principal, de conhecimento oficioso até à sentença final, se não houver despacho saneador, e constitui uma exceção dilatória sanável, já que a petição inicial é sempre aproveitada, passando-se da forma errada para a forma legal (mediante a prática dos atos que forem estritamente necessários para esse efeito) e apenas se anulam os atos que não possam ser aproveitados, ou seja, os atos que sejam incompatíveis com a nova forma processual ou que atribuam menos garantias ao réu (como tudo resulta dos art..ºs 193.º, n.º 3, 199.º e 200.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv.).
Apreciando, dir-se-á que se concorda com este entendimento do M.º P.º.
Com efeito, a nulidade em causa – por via de erro na forma de processo - somente pode ser arguida, pelo respetivo interessado, até à contestação ou neste articulado (art.ºs 193.º e 198.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.).
Cabia, pois, à Requerida mãe, uma vez citada, arguir tal nulidade processual na sua contestação, o que não fez.
Por isso, o vício deve considerar-se sanado, razão pela qual se compreende que a 1.ª instância dele não tenha conhecido, embora o pudesse fazer, oficiosamente, em abstrato, até à sentença (art.º 200.º, n.º 2, do NCPCiv.).
Não arguido nem conhecido o vício em 1.ª instância, devendo considerar-se sanado por inoperância da interessada (a ora Recorrente), tem de assentar-se em que a invocação em recurso, como questão nova, é manifestamente extemporânea.
É certo que podia conhecer-se da matéria até à sentença – o que não foi feito, certamente, por o Tribunal recorrido ter entendido não haver erro na forma de processo, para além da sanação aludida, caso outro fosse o entendimento –, razão pela qual, proferida tal sentença, se esgotou a oportunidade para o fazer.
Em suma, o invocado vício mostra-se sanado, votando ao insucesso a tardia arguição no recurso.
Caso assim não se entendesse, então teria de seguir-se o caminho a que alude o art.º 193.º, n.º 1, do NCPCiv.: aproveitamento dos atos praticados, tanto mais que nos autos foi observado o princípio do contraditório, assegurando os direitos de defesa. Não seria caso, pois, de absolvição da instância, inexistindo, por força do modelo de tramitação processual, qualquer diminuição de garantias do réu (no caso, a Requerida/Recorrente).
Por fim, diga-se que o processo especial instituído pelo art.º 3.º da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de outubro de 1980, constitui um procedimento especial que se destina a assegurar o rápido regresso dos menores ao Estado do seu domicílio habitual, quando se verifique a sua deslocação ou retenção ilícitas.
Assim, não restam dúvidas de se tratar de um “processo”/“ação”/“procedimento” especial, sem previsão processual específica na nossa lei processual, por derivar de convenção internacional, mas que se reveste «de natureza urgente, implicando uma indagação expedita, que não se compadece com um apuramento global quanto às matérias de regulação do exercício de responsabilidades parentais, para cuja definição não está vocacionado. // 2. - Nesse processo de entrega de menor apenas importa apurar e decidir quanto à deslocação ou retenção ilícita de menor (art.º 3.º daquela Convenção), e, por outro lado, segundo o invocado no caso, com vista a obstar ao regresso da criança ao país de residência habitual, quanto ao risco grave decorrente de tal regresso, por sujeição a perigos de ordem física ou psíquica ou a situação qualificável como intolerável (matéria de exceção do art.º 13.º da mesma Convenção). // 3. - Nesta sede, não cabe apurar de imputadas/alegadas condutas criminosas de um dos progenitores, como obstáculo ao regresso da criança ilicitamente retida, se tais condutas já foram objeto de apreciação pela Justiça do país de residência habitual, que as considerou não demonstradas por decisão tornada definitiva. // 4. - Em tal caso, não demonstrada a matéria de exceção do art.º 13.º da dita Convenção, o interesse da criança materializa-se no seu regresso urgente ao país de residência habitual, onde pode ser reequacionada, se para tanto houver fundamento, a regulação do exercício de responsabilidades parentais.» ([6]) ([7]).
Termos em que improcedem as conclusões da Recorrente em contrário.
B) Nulidade da sentença
Esgrime a Recorrente que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre matéria de que tinha o dever de conhecer, em violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv..
A Requerida/Recorrente invoca, assim, a nulidade da sentença em crise, por via de omissão de pronúncia, uma vez que, a seu ver, a 1.ª instância não se pronunciou sobre a matéria/questão da recusa de entrega da menor à luz do disposto no art.º 13.º, al.ª b), da Convenção de Haia.
Apreciando, dir-se-á que resulta do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, inversamente, conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.
De acordo com Amâncio Ferreira ([8]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.
E, segundo Alberto dos Reis ([9]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([10]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.
Por seu turno, Antunes Varela ([11]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, face à previsão do art.º 668.º do CPCiv., que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.
Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.
Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de omissão (ou excesso) de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.
Assim, não são, obviamente, questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal, o que sempre afastaria a nulidade da sentença em crise por omissão (ou excesso) de pronúncia.
Assim sendo, contata-se que importa a matéria, nos moldes em que tenha sido invocada, de impedimento do regresso imediato da menor [à luz do art.º 13.º, al.ª b), da Convenção de Haia].
Dispõe, desde logo, o art.º 2.º da mencionada Convenção Internacional:
«Os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respectivos territórios, a concretização dos objectivos da Convenção.
Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência.».
E também é certo (cfr. art.º 10.º do mesmo instrumento jurídico) que a “autoridade central do Estado onde a criança se encontrar deverá tomar ou mandar tomar todas as medidas apropriadas para assegurar a reposição voluntária da mesma”.
Sendo que (cfr. art.º 11.º) as “autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança”.
Compreendendo-se, neste âmbito (cfr. art.º 12.º), que:
«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.» (sic, com itálico e sublinhado aditados).
Só assim não ocorrendo (cfr. art.º 13.º aludido) “se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.”.
Importa, então, agora saber se houve pronúncia, ou não, quanto ao risco grave – se invocado/alegado na contestação – de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
Ora, na contestação, a Requerida mãe não invoca aquele art.º 13.º da Convenção, nem alega qualquer factualidade – ou argumentação – tendente a demonstrar a existência de risco grave de sujeição da menor a perigos de ordem física ou psíquica, ou a qualquer situação intolerável.
Apenas alude a “graves e avultados prejuízos à requerida, tanto psicológicos, como patrimoniais”, não à menor, e somente o faz para efeitos de “condenação como litigante de má-fé” do Requerido pai (cfr. art.º 42.º e petitório incidental da contestação).
Assim sendo, não suscitada a questão – no local e tempo próprios, o articulado de contestação, após citação, onde deviam ser concentrados os fundamentos de oposição ([12]) –, não tinha a sentença de se pronunciar sobre a existência de risco grave de sujeição da menor a perigos de ordem física ou psíquica, ou a qualquer situação intolerável.
Mas mesmo que assim não fosse entendido, atenta a natureza dos autos, o certo é que na sentença há – efetiva – pronúncia sobre a matéria aludida: não só ali se menciona expressamente o preceito agora invocado [art.º 13.º, al.ª b), referido (cfr. fls. 144 v.º do processo físico], como se assevera, outrossim – bem ou mal, não importa agora –, que a «factualidade apurada não permite recorrer aos mecanismos de excepção previstos nos arts. 13.º e 20.º (por falta de subsunção dos factos alegados e apurados nas hipóteses desses preceitos legais).» [fls. 146 v.º do processo físico].
E até se acrescenta que «na Suíça, onde o pai dispõe de condições habitacionais, pessoais e económicas, a criança poderá manter o ambiente de conforto e segurança a que esteve habituada desde o nascimento até a mãe passar a viajar com a criança para Portugal, sem dependência económica, ou outra, da família alargada materna.» [fls. 147 v.º do processo físico].
Em suma, inexiste omissão de pronúncia.
C) Da (não) impugnação da matéria decisória de rejeição de meios de prova
Como visto, já na fase recursiva, a Recorrente, notificada para o efeito, veio esclarecer/reiterar:
a) Que, na motivação recursória, não é impugnada a matéria de facto (mas apenas a subsunção da factualidade ao Direito);
b) Que não sindicou/questionou, autonomamente, despachos ou decisões interlocutórios (mas apenas o percurso cognitivo e decisório da sentença).
Assim sendo, claro sempre se tornaria que a parte recorrente não pretendeu impugnar (i) a decisão referente à matéria de facto, nem (ii) qualquer decisão interlocutória.
Daí que a decisão de rejeição de provas – uma decisão interlocutória – proferida mediante despacho de 28/11/2023 não faça parte do objeto do presente recurso, aliás, interposto apenas da sentença da 1.ª instância.
Tal decisão intercalar – com o seguinte teor essencial: «A tramitação do pedido de regresso não comporta a inquirição de testemunhas, nem a realização de audiência de discussão e julgamento, pelo que indefiro a produção de prova testemunhal requerida» – consubstancia uma decisão de rejeição de meios de prova, que logo foi notificada aos sujeitos processuais, entre eles a Requerida mãe ([13]).
Por isso, teria de ser objeto, para o recurso ser tempestivo, de apelação autónoma, ao abrigo do disposto no art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv., a interpor em 15 dias a contar da notificação, o que não foi feito.
Com isso, aquela decisão de rejeição de meios de prova transitou em julgado.
Logo, não caberia conhecer dessa matéria no atual recurso (da sentença), por extemporaneidade e trânsito em julgado formal.
D) Da factualidade da sentença
É a seguinte a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância:
“1) A criança AA nasceu a ../../2017, em Genebra, Cantão de Genebra, Suíça, sendo filha de BB, à data com 35 anos de idade, e de CC, à data com 29 anos de idade, sendo ambos solteiros e de nacionalidade portuguesa.
2) A criança e a mãe habitam actualmente em Portugal e o pai reside na Suíça, país esse onde também residiam a progenitora e a criança, desde o nascimento desta, até passarem a habitar em Portugal.
3) Quando nasceu a criança, os progenitores viviam na Suíça, partilhando cama, mesa e tecto, em comunhão de vida e de afectos, como se marido e mulher fossem, cuidando ambos da criança e deslocando-se de férias a Portugal.
4) Pelo menos a partir de inícios de 2020, a progenitora começou a dividir o seu tempo entre Portugal e a Suíça, permanecendo por temporadas na Suíça e em Portugal com a criança, por razões atinentes à degradação do estado de saúde da avó materna da criança, residente em ..., a fim de lhe prestar assistência nas temporadas que passava neste país com a criança, enquanto o progenitor permanecia na Suíça a trabalhar.
5) Pelo menos a partir de inícios de 2020, nos períodos em que a progenitora passou a deslocar-se à Suíça com a criança, mãe e filha continuavam a pernoitar na casa de morada de família, onde também reside o progenitor naquele país, relacionando-se os três como família e encontrando-se a criança aos cuidados de ambos os pais, o que também sucedia quando o pai se deslocava a Portugal para conviver com a criança e a mãe desta, pernoitando os três na casa da mãe da progenitora.
6) A partir do referido em 4) e 5), os progenitores da criança continuaram a relacionar-se como se marido e mulher fossem, nos períodos em que estavam juntos, mantendo contactos regulares um com o outro nos períodos em que se encontravam em países diferentes.
7) Nos períodos em que a criança está com a mãe em Portugal, a criança e o pai comunicam diariamente, convivendo presencialmente um com o outro sempre que o pai se desloca a Portugal e sempre que a criança se desloca à Suíça com a mãe.
8) Nos períodos em que se encontra em Portugal com a mãe, a criança convive com a família alargada materna e paterna aqui residente.
9) Quando se encontra em Portugal, a criança permanece com a mãe em ..., na casa da avó materna da criança e do companheiro desta (padrasto da progenitora da criança), sendo ambos reformados e auferindo reformas mensais de montante global não inferior a mil e quinhentos euros.
10) Enquanto se manteve em permanência na Suíça, a progenitora da criança prestava serviços de limpeza para terceiros, não exercendo qualquer actividade remunerada em Portugal.
11) Em Portugal, a criança e a progenitora são sustentadas pela avó materna da criança, recebendo contribuições monetárias esporádicas do progenitor quando este se desloca a Portugal.
12) Na Suíça, o progenitor da criança vive na casa de morada da família, que é arrendada, suportando uma renda mensal de 1750 francos suíços.
13) Na Suíça, o progenitor exerce a profissão de assistente técnico, auferindo um rendimento mensal líquido de 4800 francos suíços.
14) Até finais de 2022, o progenitor foi concordando com o referido em 4), face ao estado de saúde da avó materna da criança, a carecer de assistência, tendo manifestado a sua discordância com a permanência definitiva da criança em Portugal com a mãe da criança quando esta pôs termo à relação de casal com o progenitor da criança e posteriormente propôs, a 19.12.2022, acção de regulação das responsabilidades parentais contra o progenitor.
15) No ano de 2021/2022, a criança frequentou o pré-escolar em Portugal.
16) No ano de 2022/2023, a criança frequentou o Agrupamento de Escolas ... em ....
17) A criança foi inscrita no dia 26.11.2022 num centro de saúde em ....
18) A 29.09.2022, a progenitora dispunha de um seguro de saúde para ela e para a criança em Portugal.
19) Em 2.02.2023, a progenitora da criança tinha domicílio fiscal na morada da própria mãe em ....
20) A 10.02.2023, a criança tinha domicílio fiscal na residência da avó materna em ....
21) Em Janeiro de 2022, o progenitor adquiriu bilhetes de avião para a filha e a mãe viajarem de Genebra até Portugal e, em Junho de 2022, a progenitora e a criança passaram uma temporada com o progenitor na Suíça.
22) Tendo em vista o referido em 4), a 14.10.2019, os progenitores subscreveram declaração perante o Tribunal de Proteção do Adulto e da Criança em Genebra, nos termos da qual declararam que detinham “autoridade parental conjunta”, que estavam dispostos a assumir em conjunto as responsabilidades parentais da filha e entendidos acerca da guarda da filha, bem como da participação de cada um dos progenitores para o sustento desta, ficando atribuída a cada um dos progenitores um bónus para a escolaridade da filha de 50%
23) A 20.01.2023 a progenitora ainda mantinha residência fiscal na Suíça, embora tivesse sido alterado, em 21.10.2020, o seu domicílio fiscal em Portugal “pelo cartão de cidadão”.
24) De Fevereiro de 2023 a Setembro de 2023, o progenitor recebeu 311 francos suíços mensais a título de prestações sociais/abonos de família para a filha.
25) A 26.05.2023, o progenitor pediu à Autoridade Central suíça o regresso da filha à Suíça.
26) Nos dias 30.12.2017, 26.04.2019, 9.06.2020, 3.09.2020, 22.06.2021, 7.10.2021, 30.12.2021, 7.05.2022, 4.12.2022, 22.12.2022, 23.12.2022, 28.12.2022, a criança foi assistida nos Serviços de Urgência do Hospital ....
27) Por decisão de 15.09.2023, foi determinada a suspensão dos autos de regulação das responsabilidades parentais até à prolação de decisão definitiva quanto ao pedido de regresso, nos termos previstos no art. 16º da Convenção de Haia.
28) Quer o pai, quer a mãe mantêm uma sólida relação de afecto com a filha, que é por esta retribuída.
29) Quer o pai, quer a mãe demonstram preocupação pelo bem-estar e desenvolvimento da filha.
30) Nos anos de 2021/2022 e 2022/2023, a criança frequentou a actividade de expressão musical em Portugal.
31) A 18.12.2023, foi ouvida a criança, que expressou viver com a mãe e avós e ser por estes bem tratada, antes vivia na Suíça com os dois pais, fala com o pai pelo tablet, é o pai que liga, gosta do pai, não sabe dizer se prefere Portugal ou Suíça, gostava de viver com os dois pais.
32) Não são conhecidos antecedentes criminais à mãe.
33) O pai já foi condenado pela prática em 08.12.2008 de um crime de condução em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º do CP, numa pena de multa extinta a 16.10.2009.
34) Não corre termos processo de promoção e protecção referente à criança.
35) Dispõe o artigo 298º do Código Civil Suíço que:
1 Se a mãe não é casada com o pai e o pai perfilha a criança, ou se a relação de filiação é reconhecida por decisão judicial e a “autoridade parental conjunta” ainda não está instituída ao tempo da decisão judicial, os pais obtêm a “autoridade parental conjunta” com base numa declaração emanada de ambos.
2 Os pais confirmam, nessa declaração emanada de ambos:
1 – que estão dispostos a assumir conjuntamente a responsabilidade da criança,
2 – que estão entendidos quanto à guarda da criança, às relações pessoais ou à participação de cada progenitor quanto ao seu sustento.
3 Antes de formalizarem tal declaração, os pais podem aconselhar-se junto da autoridade de protecção da criança.
4 Se os pais formalizam tal declaração ao mesmo tempo que reconhecem a criança, a declaração é recebida por funcionário do registo civil.
Se a formalizam mais tarde, é recebida por autoridade de protecção da criança do lugar do domicílio da criança.
5 Até formalizarem tal declaração, a criança fica submetida à autoridade parental da mãe.”
36) Dispõe o artigo 301º do Código Civil Suíço que:
“1 Os pai e mãe determinam os cuidados a dar à criança, dirigem a sua educação tendo em vista o seu bem-estar e tomam as decisões necessárias, sob reserva da sua própria capacidade.
(…)
2 A criança deve obediência aos seus pai e mãe, que lhe concedem a liberdade de organizar a sua vida de acordo com o seu grau de maturidade e tomam em conta, na medida do possível, a sua opinião quanto aos assuntos importantes.
3 A criança não pode abandonar a área de residência sem o consentimento dos seus pai e mãe, nem pode ser separado dos pais sem causa legítima.
(…)”
37) Dispõe o artigo 301º do Código Civil Suíço que:
“1 A autoridade parental inclui o direito de determinar o local de residência da criança
2 Um dos pais que exerça em conjunto a “autoridade parental” só pode modificar o local de residência da criança com o acordo do outro progenitor ou sob decisão do juiz ou da autoridade de protecção da criança nos seguintes casos:
a. O novo local de residência situa-se no estrangeiro;
b. A deslocação tem consequências importantes no exercício da “autoridade parental” pelo outro progenitor e para as relações pessoais.
(…)
5 Se necessário, os pais podem chegar a acordo, com respeito pelo bem-estar da criança, para adaptar o regime da “autoridade parental”, a guarda, as relações pessoais e o sustento. Se não conseguem alcançar um acordo, a decisão cabe ao juiz ou à autoridade de protecção da criança.”.
E) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto (existência, admissibilidade e procedência)
A impugnante não mostra, nas suas conclusões de recurso, pretender empreender impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
E teve oportunidade, se dúvidas houvesse, em plena fase recursiva, de esclarecer/reiterar que, na motivação recursória, não é impugnada a matéria de facto (mas apenas a subsunção da factualidade ao Direito).
Assim, está fora do objeto desta apelação a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, impugnação essa que a parte recorrente não quis deduzir.
E, ainda que assim não se entendesse, então teria de concluir-se pela rejeição, imediata, dessa vertente da eventual impugnação, por inobservância dos imperativos ónus legais, a cargo do recorrente, a que alude o art.º 640.º, n.ºs 1, al.ªs a) a c), e 2, al.ª a), do NCPCiv..
Em suma, na economia do recurso interposto, inexiste impugnação da decisão relativa à matéria de facto – a qual, se assim não se entendesse, sempre seria de rejeitar –, do que, por isso, nada há a conhecer.
Com a consequência de dever ter-se por definitivamente fixada a matéria de facto vertida na sentença em crise, sendo, por isso, essa – e somente essa – a factualidade a atender para decisão do presente recurso.
F) Substância jurídica do recurso
1. - Da (i)licitude do ato de retenção da menor pela mãe
Defende a Recorrente, já em matéria de direito – cuja decisão, obviamente, tem de conformar-se com os factos provados –, que a retenção da menor em Portugal não foi ilícita, antes tendo sido efetuada no âmbito da legitimidade da sua progenitora, enquanto titular das responsabilidades parentais, o que lhe permitia decidir – sozinha – sobre o lugar da residência da sua filha.
Complementa que o acordo particular convocado na sentença, que poderia conferir ao pai da menor um direito de custódia, não estava vigente à data da deslocação para Portugal, tendo sido tacitamente revogado por ambos os progenitores.
Na sentença vem explicitado:
«No caso vertente, resulta da factualidade apurada que, a partir de 2020 e até finais de 2022, a criança, acompanhada pela mãe, passou a permanecer por temporadas em Portugal e na Suíça, para que a progenitora pudesse cuidar da própria mãe neste país, devido ao seu estado de saúde deficitário, com a anuência do pai.
Mais resulta dos autos que, desde o nascimento da criança até ao momento em passou a viajar entre os dois países, a criança residia com ambos os pais, mantendo-se aos cuidados de ambos, sendo que, quando passou a passar temporadas em Portugal e na Suíça, continuou aos cuidados de ambos os pais, na casa de morada de família sempre que se deslocava à Suíça e na casa da avó materna, quando o pai vinha a Portugal.
Por outro lado, resulta que apenas em finais de 2022 ocorreu a ruptura da relação de casal e a progenitora formulou a pretensão de fixação da residência da criança junto de si em exclusivo, em Portugal, através da acção de regulação das responsabilidades parentais, o que desencadeou o pedido formulado em 26.05.2023, pelo progenitor, à Autoridade Central suíça, com vista ao regresso da filha à Suíça, por discordar da fixação da residência da filha junto da mãe em Portugal, por violação do seu direito de custódia.
Ora, sendo indubitável que desde o nascimento a criança residiu com ambos os pais na Suíça, passando a partir de 2020 a passar temporadas num país e noutro, o que sucedeu pelo menos até finais de 2022, altura em que os pais deixaram de conviver como casal e, subsequentemente, a mãe propôs acção de regulação das responsabilidades parentais, verifica-se que a criança, até à separação dos pais, encontrava-se sob custódia de ambos, fruto de um acordo vigente segundo o direito deste Estado, incorporado na declaração datada de 14.10.2019, subscrita pelos progenitores perante o Tribunal de Proteção do Adulto e da Criança em Genebra, relativa à “autoridade parental conjunta” por ambos reconhecida e acordada.
E verifica-se ainda que ambos os pais exerciam esse direito de custódia, a ambos atribuído, pois ambos cuidavam da criança, o que continuou a acontecer mesmo depois de 2020, sempre que a criança se deslocava à Suíça ou o pai a Portugal.» (destaques aditados).
Que dizer?
Dir-se-á, desde logo, que o invocado acordo tácito de revogação (por ambos os progenitores) não se mostra ilustrado perante o factualismo provado.
Incontroverso que havia acordo vigente, obtido perante o Tribunal de Proteção do Adulto e da Criança em Genebra, relativo à “autoridade parental conjunta” (cfr. ponto 22 dos factos provados), cabia à Recorrente demonstrar, como matéria de exceção, a existência de um acordo posterior – expresso ou tácito – em sentido diverso (revogatório), isto é, em termos de o pai da menor ter abdicado do (seu) exercício do direito de custódia (que lhe cabia), em favor da Requerida mãe.
E note-se que são coisas distintas, realidades não confundíveis: por um lado, o aceitar que a mãe da menor se desloque, temporariamente, a Portugal, com a filha, para prestar auxílio na doença a pessoa familiar próxima, com manutenção, todavia, dos laços que uniam os progenitores (e, por consequência, da relação de ambos com a filha, sem renúncia ao exercício de direitos/deveres quanto à mesma, ainda que provisoriamente/acidentalmente à distância); por outro lado, o abdicar/renunciar, pelo pai, quanto ao exercício do direito de custódia – mediante declaração expressa ou comportamento que, implicitamente, mas com toda a concludência, mostre a vontade formada/consolidada de renunciar ao direito –, em favor da Requerida mãe, com permissão de permanência definitiva em Portugal aos cuidados apenas da progenitora.
Ora, da factualidade provada o que resulta é que até finais de 2022 o pai da menor concordou com o referido em 4), face ao estado de saúde da avó materna da criança, a carecer de assistência na doença (ponto 14 dos factos provados), com o seguinte “regime” (a partir de inícios de 2020): a progenitora começou a dividir o seu tempo entre Portugal e a Suíça, permanecendo por temporadas na Suíça e em Portugal com a criança, por razões atinentes à degradação do estado de saúde da avó materna da criança, residente em ..., a fim de lhe prestar assistência nas temporadas que passava neste país com a criança, enquanto o progenitor permanecia na Suíça a trabalhar (dito ponto 4).
Sem esquecer que ainda em 20/01/2023 a progenitora mantinha residência fiscal na Suíça (ponto 23), que de fevereiro de 2023 a setembro de 2023, o progenitor recebeu 311 francos suíços mensais a título de prestações sociais/abonos de família para a filha (ponto 24) e que em 26/05/2023 o Requerido pai pediu à Autoridade Central suíça o regresso da filha à Suíça (ponto 25).
Quer dizer, nada na factualidade provada mostra a existência do invocado acordo tácito de revogação do acordo expresso que ambos progenitores em tempos subscreveram perante o Tribunal da Suíça.
Daí que se tenha de subscrever a posição da 1.ª instância no sentido de aquele acordo expresso e vigente não ter sido revogado, decaindo, por isso, as conclusões em contrário da Recorrente.
2. - Da existência de consentimento/aceitação pelo pai da menor, afastando a ilicitude do ato
Como visto, invoca ainda a Recorrente que o pai do menor deu o seu consentimento (ou aceitação) para a ocorrida deslocação e permanência – em moldes definitivos – da criança, pela mãe, para Portugal, o que, a verificar-se, afastaria a ilicitude do afastamento para outro país.
Logicamente, cabia à Requerida/Apelante o ónus da prova desse consentimento/aceitação, como facto impeditivo do pretendido regresso (cfr. art.ºs 342.º, n.º 2, do CCiv.).
Vejamos, então, se logrou provar factualidade de que derive esse consentimento/aceitação.
Ora, perscrutada a factualidade provada, o que se nota, desde logo, é que o pai não deu tal autorização definitiva: repetindo-nos, diremos que até finais de 2022 o progenitor concordou que a mãe da menor, transitoriamente, começasse a dividir o seu tempo entre Portugal e a Suíça, permanecendo por temporadas na Suíça e em Portugal com a criança, por razões atinentes à degradação do estado de saúde da avó materna da criança, residente em ..., a fim de lhe prestar assistência nas temporadas que passava neste país com a criança, enquanto o progenitor permanecia na Suíça a trabalhar, até que em 26/05/2023 o Requerido pai pediu à Autoridade Central suíça o regresso da filha àquela País.
Tal é quanto basta, sem necessidade de outras considerações, para concluir pela inexistência do invocado consentimento/autorização/aceitação, em termos permanentes e definitivos ([14]), com o que não resulta afastada a ilicitude do ato em apreciação.
3. - Da invocada custódia exclusiva
A Requerida invocou ainda ser ela quem detinha, exclusivamente, a custódia da menor, o que lhe permitia decidir sozinha sobre questões de particular interesse/importância da vida da filha, incluindo a unilateral mudança de residência da Suíça para Portugal.
Será assim?
Na sentença deixou-se exarado, a propósito da lei vigente na Suíça, sem controvérsia (pontos 35 e segs.):
Dispõe o artigo 298º do Código Civil Suíço que:
1 Se a mãe não é casada com o pai e o pai perfilha a criança, ou se a relação de filiação é reconhecida por decisão judicial e a “autoridade parental conjunta” ainda não está instituída ao tempo da decisão judicial, os pais obtêm a “autoridade parental conjunta” com base numa declaração emanada de ambos.
2 Os pais confirmam, nessa declaração emanada de ambos:
1 – que estão dispostos a assumir conjuntamente a responsabilidade da criança,
2 – que estão entendidos quanto à guarda da criança, às relações pessoais ou à participação de cada progenitor quanto ao seu sustento.
3 Antes de formalizarem tal declaração, os pais podem aconselhar-se junto da autoridade de protecção da criança.
4 Se os pais formalizam tal declaração ao mesmo tempo que reconhecem a criança, a declaração é recebida por funcionário do registo civil.
Se a formalizam mais tarde, é recebida por autoridade de protecção da criança do lugar do domicílio da criança.
5 Até formalizarem tal declaração, a criança fica submetida à autoridade parental da mãe.
36) Dispõe o artigo 301º do Código Civil Suíço que:
1 Os pai e mãe determinam os cuidados a dar à criança, dirigem a sua educação tendo em vista o seu bem-estar e tomam as decisões necessárias, sob reserva da sua própria capacidade.
(…)
2 A criança deve obediência aos seus pai e mãe, que lhe concedem a liberdade de organizar a sua vida de acordo com o seu grau de maturidade e tomam em conta, na medida do possível, a sua opinião quanto aos assuntos importantes.
3 A criança não pode abandonar a área de residência sem o consentimento dos seus pai e mãe, nem pode ser separado dos pais sem causa legítima.
(…)
37) Dispõe o artigo 301ºa do Código Civil Suíço que:
1 A autoridade parental inclui o direito de determinar o local de residência da criança
2 Um dos pais que exerça em conjunto a “autoridade parental” só pode modificar o local de residência da criança com o acordo do outro progenitor ou sob decisão do juiz ou da autoridade de protecção da criança nos seguintes casos:
a. O novo local de residência situa-se no estrangeiro;
b. A deslocação tem consequências importantes no exercício da “autoridade parental” pelo outro progenitor e para as relações pessoais.
(…)
5 Se necessário, os pais podem chegar a acordo, com respeito pelo bem-estar da criança, para adaptar o regime da “autoridade parental”, a guarda, as relações pessoais e o sustento. Se não conseguem alcançar um acordo, a decisão cabe ao juiz ou à autoridade de protecção da criança. (destaques aditados).
Ora, perante este regime legal e provado (facto 22) que, em 14/10/2019, os progenitores subscreveram declaração/acordo perante o Tribunal de Genebra, no sentido de deterem “autoridade parental conjunta”, assumindo em conjunto as responsabilidades parentais da filha e estando entendidos acerca da guarda da filha, acordo não alterado nem revogado, inequívoco resulta que o regime parental, todavia subsistente, era o da guarda conjunta, com responsabilidades parentais partilhadas (a dita “autoridade parental conjunta”, em que um dos progenitores só pode modificar o local de residência da criança para o estrangeiro com o acordo do outro progenitor).
Falece, pois, a invocação de custódia exclusiva da Recorrente.
4. - Da residência da menor em Portugal há mais de um ano e da sua integração plena no seu novo ambiente, à luz dos art.ºs 12.º e 13.º, al.ª b), da Convenção de Haia
Recapitulando, à luz desta Convenção, a autoridade judicial ou administrativa respetiva, mesmo após a expiração do aludido período de 1 ano, deve ordenar o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.
Entende a Recorrente que já se verificava tal integração, a obstar ao regresso à Suíça.
Na sentença expendeu-se assim:
«Ora, de acordo com a factualidade apurada, não se pode afirmar que a criança tivesse residência habitual em Portugal há mais de um ano, aquando da formulação desse pedido de regresso, pois que circulava entre Portugal e Suíça com a mãe, ficando aos cuidados de ambos os pais sempre que estes se juntavam num ou noutro país, o que apenas não sucedeu em finais de 2022, altura em que se deu a separação do casal.
(…)
Se ainda não tinha decorrido o prazo de um ano de permanência ininterrupta da criança em Portugal quando o pai formulou o pedido de regresso, verifica-se, porém, que, desde então, já decorreu tal prazo.
(…)
Resta assim apenas ponderar se a criança já se encontra actualmente integrada no seu novo ambiente, o que poderia justificar o não regresso à Suíça.
Ora, a criança permanece em Portugal na residência da avó materna e do companheiro desta, sob dependência económica daquela, uma vez que a mãe depende economicamente da própria mãe, encontrando-se a criança no início da escolaridade obrigatória.
Embora a criança beneficie de diversas inscrições em território nacional, anteriores a 2023, daí não resulta que a criança se encontrasse mais integrada em Portugal do que na Suíça, uma vez que viajava entre os dois países com a mãe, reunindo-se com o pai em ambos os países sempre que se encontravam num ou noutro país.
Ora, resultou da audição da criança que esta compreende o âmbito dos presentes autos e das pretensões de cada um dos progenitores e, dotada dessa consciência, expressou a sua opinião, manifestando não saber se preferia viver em Portugal ou na Suíça e que gostava de viver com os dois pais.
Verifica-se assim que o facto de a criança se encontrar há já algum tempo em solo português não provocou um enraizamento tal que permita afirmar que a criança se encontra mais integrada em Portugal do que na Suíça, apenas sendo seu desejo viver com ambos os pais, constituindo ambos figuras de referência da criança.
Ora, considerando que a boa integração da criança em Portugal passa necessariamente pela análise da boa integração da mãe neste país e verificando-se que esta aqui permanece sob total dependência económica da própria mãe e na residência desta, sem qualquer autonomia habitacional e económica, diversamente do que sucede com o pai que, na Suíça, exerce actividade remunerada e reside naquela que era a casa de morada de família, mantendo a criança uma relação afectiva estruturante com cada um dos progenitores, é bom de ver que deve ser ordenado o regresso da criança à Suíça, à luz do seu superior interesse.
Nessa medida, merece concordância o parecer do Ministério Público, assim como merece procedência o pedido formulado nos autos, uma vez que o hiato temporal verificado desde a chegada da criança a Portugal não permitiu que esta se mostrasse mais enraizada neste país do que no país onde nasceu e cresceu até passar a viajar com a mãe para Portugal.
Diversamente, na Suíça, onde o pai dispõe de condições habitacionais, pessoais e económicas, a criança poderá manter o ambiente de conforto e segurança a que esteve habituada desde o nascimento até a mãe passar a viajar com a criança para Portugal, sem dependência económica, ou outra, da família alargada materna.».
Ora, apreciando, cabe dizer que se concorda, salvo o devido respeito, com esta perspetiva do Tribunal recorrido, não mostrando a Recorrente que, após a ilícita retenção da menor em Portugal (quando a permanência assumiu foros de definitividade, contra a vontade do pai e em atropelo à acordada e subsistente guarda/custódia conjunta/partilhada), ocorra uma plena integração em novo ambiente em Portugal.
Com efeito, não se vê como afastar a conclusão no sentido de a criança permanecer em Portugal na residência da avó materna e do companheiro desta, sob dependência económica da avó, por a mãe depender economicamente da sua própria mãe, encontrando-se a criança no início da escolaridade obrigatória.
Tendo a criança manifestado não saber se preferia viver em Portugal ou na Suíça e que gostava de viver com os dois pais, não se retira um enraizamento/adaptação/integração que suplante o que possuía na Suíça, sendo ambos os progenitores figuras de referência da menor.
Neste âmbito, importa aferir do nível de integração da Requerida mãe em Portugal – do que depende a integração da filha menor, com tudo o que esta demanda –, sendo que aquela vive na dependência económica da sua própria mãe (avó da menor), e na residência desta, sem qualquer autonomia habitacional e económica, o que não abona no quadro do juízo de integração da criança, consabido, por outro lado, que, na Suíça, onde a menor nasceu e viveu – ali tinha a casa de morada da família –, o seu pai dispõe da dita autonomia.
Em suma, também não pode dizer-se, com todo o respeito devido, para os efeitos em questão e vistas a circunstâncias e vicissitudes do caso, que ocorra inequívoca integração plena da menor em Portugal (em termos melhores do que os auferidos na Suíça).
5. - Da necessidade de indagação de condições sociais na Suíça
Nesta parte, invocando a Recorrente que não foram levadas a cabo as diligências necessárias à determinação das condições sociais para a menor na Suíça, resta dizer, ao invés, que tais condições resultam suficientemente apuradas na sentença, como se retira da parte fáctica da mesma.
Assim, é sabido – por provado – que:
- o pai reside na Suíça, país onde também residiam a progenitora e a criança, desde o nascimento desta;
- quando a menor nasceu os progenitores viviam na Suíça, partilhando cama, mesa e teto, em comunhão de vida e de afetos, como se marido e mulher fossem, cuidando ambos da criança e deslocando-se de férias a Portugal;
- pelo menos a partir de inícios de 2020, nos períodos em que a progenitora passou a deslocar-se à Suíça com a criança, mãe e filha continuavam a pernoitar na casa de morada de família, onde também reside o progenitor naquele país, relacionando-se os três como família e encontrando-se a criança aos cuidados de ambos os pais;
- na Suíça, o progenitor da criança vive na casa de morada da família, que é arrendada, suportando uma renda mensal de 1750 francos suíços e exercendo a profissão de assistente técnico, no que aufere um rendimento mensal líquido de 4800 francos suíços;
- de fevereiro de 2023 a setembro de 2023, o progenitor recebeu 311 francos suíços mensais a título de prestações sociais/abonos de família para a filha;
- o pai – tal como a mãe – mantém uma sólida relação de afeto com a filha, que é por esta retribuída, ambos os progenitores demonstrando preocupação pelo bem-estar e desenvolvimento da filha.
Ante o assim apurado, não se vê que houvesse, no caso, e sem esquecer a natureza urgente dos autos, cuja tramitação se quer expedita, de proceder-se – em processo que corre termos em Portugal – a uma indagação “mais aturada das condições sociais da criança na Suíça”, País onde, aí sim, poderá ser caso de maior indagação e mais profunda reflexão/decisão no âmbito do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais, após a separação de vidas dos pais da menor ([15]).
Donde a improcedência das conclusões da recorrente em contrário.
6. - Da não executoriedade da decisão de regresso
Refere, por fim, a Recorrente que nada permite conferir executoriedade (imediata) à recorrida decisão de regresso da criança, para o que invoca normas do Direito da União Europeia – Regulamento (UE) 2019/1111 (cfr. conclusão 18.ª).
Todavia, cabe dizer, salvo o respeito devido, que não estamos no âmbito de aplicação do Direito da União Europeia, por a Suíça não ser Estado-Membro da UE.
É a dita Convenção de Haia que colhe aplicação in casu.
E, como refere o M.º P.º na sua contra-alegação (conclusões 16.ª a 18.ª), a ordem de regresso imediato tem assento nos art.ºs 1.º a 3.º, 10.º e 17.º daquela Convenção Internacional, plenamente aplicável em Portugal ([16]).
Ademais, ao recurso interposto foi fixado efeito meramente devolutivo, com o que se conformou a Recorrente (aliás, ela própria sinalizou esse efeito recursivo no seu requerimento de interposição do recurso).
Donde, pois, a improcedência desta vertente recursiva.
7. - Da desconsideração do superior interesse da menor
Por fim, parece argumentar a Apelante ter sido desconsiderado o superior interesse da criança, ignorando-se que a privação do contacto da menor com a mãe e demais família materna a poderá fazer incorrer em perigos ou, pelo menos, ser-lhe prejudicial para o seu desenvolvimento.
Desde logo, deve notar-se – apreciando neste plano – que a eventual privação da presença e do acompanhamento da mãe poderá por esta ser evitada, desde que acompanhe a menor para a Suíça, onde com ela residia – statu quo ante –, pelo menos de forma intermitente (ali se situava a casa de morada da família), até ao momento em que, unilateralmente, a reteve em Portugal (contra a vontade do pai), o que equivalia à supressão da convivência que era mantida entre pai e filha.
Por outro lado, não se prova factualidade negativa que pudesse desabonar o pai, donde que não possa ter-se, por essa via, como consubstanciado risco para a menor.
E se risco houvesse, então cabia à Requerida mãe recorrer aos tribunais da Suíça, para que regulassem a situação, como ainda o poderá fazer no caso de regressar àquele país para acompanhar a sua filha ([17]), mostrando, na sede judicial própria, que o interesse da menor não passa por ficar confiada ao pai na Suíça mas por residir definitivamente com a mãe em Portugal.
Ora, vista a factualidade provada – a única a ter em conta –, nada mostra que ocorra qualquer risco grave em caso de regresso da criança ou esta possa ficar numa situação intolerável.
Reitera-se que os receios da mãe, se fundados, terão de ser concretizados na sede própria, isto é, no âmbito de processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, sabido que a Justiça suíça – a competente, atenta a residência habitual da menor – se debruçará, se acionada, sobre a matéria, com o mesmo grau de empenhamento e de garantias que a portuguesa.
Em suma, não está demonstrado, in casu, o requisitório da exceção prevista no art.º 13.º da Convenção, nem, por outro lado, os factos provados permitem concluir pela violação de quaisquer normas jurídicas aplicáveis, de direito nacional ou internacional.
Improcede, pois, a apelação, devendo manter-se a decisão recorrida.
(…)
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente, já que vencida na apelação.
Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.
Coimbra, 24/09/2024
Vítor Amaral (relator)
Fernando Monteiro
Alberto Ruço
([1]) Como expresso/manifesto no requerimento de interposição do recurso, «CC, R. nos autos à margem sinistra referenciados, não se conformando com a douta Sentença proferida no âmbito do Processo supra epigrafado, vem da mesma interpor Recurso (…)» (destaques aditados).
([2]) Cujo teor se deixa transcrito (com destaques retirados).
([3]) Foi também proferida pronúncia sobre a questão suscitada de nulidade da sentença, concluindo-se pela inexistência de nulidade (cfr. despacho datado de 26/06/2024, a fls. 189 e seg. do processo físico).
([4]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([6]) Cfr. Ac. TRC de 18-02-2020, Proc. 2278/19.7T8ACB.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt (em que foi Adjunto o aqui Exm.º 1.º Adjunto).
([7]) Nos moldes invocados pelo M.º P.º, veja-se também, inter alia, o Ac. STJ de 08/09/2021, Proc. 6810/20.5T8ALM.L1.S1 (Cons. Vieira e Cunha), em www.dgsi.pt.
([8]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., p. 57.
([9]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 143.
([10]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, p. 117.
([11]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 686.
([12]) Só a final, perante parecer do M.º P.º, “e por não concordar com o teor do mesmo”, veio, em 11/03/2024 (fls. 122 e segs. do processo físico), invocar “situação intolerável” (meio de defesa, reitera-se, que não havia sido utilizado).
([13]) Notificação, como consta do sistema Citius, à então mandatária da ora Recorrente (Dr.ª DD, com procuração a fls. 94 do processo físico) – mediante “Referência deste documento: 94281489”, com “Certificação Citius em: 29-11-2023”.
([14]) O que transparece é uma situação transitória, para acorrer a uma necessidade (doença) de familiar próximo, determinando/justificando uma deslocação e permanência meramente temporárias.
([15]) Como também dito na sentença: «No que concerne ao mérito da questão relativa à fixação da residência da criança em relação a cada um dos progenitores, fruto da separação destes, ocorrida em finais de 2022, terá que ser resolvida pelas autoridades competentes do Estado onde residia a criança habitualmente antes de ser indevidamente retida em permanência neste país, não sendo este o processo próprio para alcançar tal desiderato.».
([16]) Dispõe, desde logo, o art.º 2.º desta Convenção Internacional, como já visto, que os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes e recorrer a procedimentos de urgência. E também é certo (reitera-se, de acordo com o art.º 10.º) que a “autoridade central do Estado onde a criança se encontrar deverá tomar ou mandar tomar todas as medidas apropriadas para assegurar a reposição voluntária da mesma”, devendo (art.º 11.º) ser adotados “procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança”. Já o art.º 17.º prescreve assim: «O facto de ter sido tomada numa decisão relativa à custódia ou de a mesma ser passível de reconhecimento no Estado requerido não pode justificar a recusa de fazer regressar a criança nos termos desta Convenção; mas as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido poderão tomar em consideração os motivos desta decisão no âmbito da aplicação da presente Convenção.».
([17]) Se algum dos pais entendia, em qualquer momento, haver risco sério para a filha, então teria o dever de recorrer ao tribunal, no caso, o tribunal da residência habitual da menor (a jurisdição suíça).