I - A tutela legal conferida pelo incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, com a consequente limitação do direito de propriedade, considerada "ultra vigência" de um direito anterior, admitindo-se o prolongamento dos seus efeitos em face da boa-fé do respetivo titular e das suas necessidades e das pessoas que com ele vivam, assume-se como excecional estando, como tal, circunscrita aos casos especificamente consagrados. O propósito do legislador, ao estabelecer a possibilidade do diferimento da desocupação foi fazer face a específicos casos em que se justifica impor, aos proprietários dos imóveis, o retardar do cumprimento da obrigação de entrega do imóvel, por motivos que se prendem com a dignidade humana, visando-se salvaguardar o direito à habitação, constitucionalmente consagrado no art. 65º, da Constituição da República Portuguesa, por “razões sociais imperiosas”, e verificados que se mostrem determinados fundamentos condicionantes.
II - Com efeito, o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, por força da cessação do contrato de arrendamento, pode ser pedido quando existam “razões sociais imperiosas” (cfr. nº1, do art. 864º, do CPC), mas esta cláusula geral não opera automaticamente, exigindo-se que, em concreto, ocorra uma das circunstâncias previstas nas alíneas a) ou b), do nº2, de tal artigo, aplicável ex vi nº1, do art. 15º-M, do NRAU, que funcionam como presunções legais da verificação de tais “razões sociais imperiosas”, pressuposto do juízo a formular em conformidade com os critérios decisórios apontados na lei e de acordo com as circunstâncias do caso (ónus de alegação e da prova a cargo do requerente – nº1, do art. 342º, do CC).
III - E, na verdade, embora sejam apontados critérios decisórios a seguir, não admitindo estas normas, excecionais, aplicação por analogia nem delas cabendo efetuar interpretação extensiva, por forma a abranger outras situações de vulnerabilidade, confia a lei a decisão ao prudente arbítrio do Tribunal (bom senso e racionalidade do juiz) uma vez verificados os pressupostos condicionantes;
IV - Revestindo o direito à habitação, acima de tudo, natureza programática, dirigindo-se ao Estado, que o assegura por variados meios (e, desde logo, no referido art. 864º, encontra-se salvaguardada a parte mais frágil e de essencial relevo do direito à habitação, com proteção das pessoas mais vulneráveis, situações essas em que mais se reclama e justifica especial proteção), apesar daquele direito ser um direito fundamental, de natureza social, o mesmo não pode ser conseguido à custa da violação da lei e de direitos legítimos de outrem, sendo o assegurar daquele direito incumbência do Estado, não de particulares.
1º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida
2º Adjunto: Des. Anabela Morais
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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Recorrente: AA
A..., S.A. apresentou procedimento especial de despejo, no Balcão do Arrendatário e do Senhorio, contra BB e AA, pedindo o despejo do locado, alegando, para tanto, que por meio de cartas registadas com aviso de receção, enviadas para o domicílio convencionado, remetidas em 23 de janeiro de 2023 e 14 de março de 2023, comunicou às requeridas a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento em apreço nos autos e as mesmas não procederam à entrega voluntária do imóvel locado, devoluto de pessoas e bens.
Notificadas as Requeridas, por cartas registadas enviadas em 16/10/2023, para, querendo, deduzirem oposição, a requerida AA apresentou-se a requerer o diferimento da desocupação do locado por um período não inferior a 24 meses, nos termos do art. 15º -N, do NRAU, uma vez que não dispõe de imediato de outra habitação, que lhe permita desocupar o prédio em questão nos autos.
Foi proferido despacho a ordenar a notificação da requerente para, querendo, se pronunciar quanto ao teor da oposição junta aos autos, nos termos e para os efeitos do artigo 3º n.º 4 do Cód. de Processo Civil e, notificada, a requerente nada disse.
Procedeu-se à realização de diligências de prova.
“… julga-se improcedente o pedido de diferimento de desocupação do locado.
Nos termos e para os efeitos legais, aquando do cumprimento do título de desocupação, autorizo desde já - se necessário - a entrada no locado.
Custas do incidente pela requerente, fixando a taxa de justiça no mínimo”.
“1. A Douta sentença não faz a correta aplicação do direito aos factos.
2. O art.º 15º-N n.º 1 NRAU permite ao arrendatário, no caso de despejo de imóvel arrendado para habitação, diferir a desocupação por razões sociais imperiosas, devendo, nomeadamente, ponderar-se a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (nº 2 do art.º 15º-N NRAU).
3. A requerente/recorrente não dispõe de outro local para a habitar para lá do imóvel ajuizado, nem dispõem de capacidade económica (tem um rendimento muito baixo), para procurar outra casa no mercado normal da habitação, restando-lhe o recurso à habitação social que, como é sabido de todos, não se consegue de um dia para o outro, acrescendo que a sua situação precária tem vindo a agravar-se.
4. Com efeito, o mercado imobiliário atualmente está impossível, com rendas muito inflacionadas.
5. Acresce que o credor não sairá assim tão prejudicado com a espera, para satisfação do comando constitucional de a todos assegurar o direito a uma habitação (art.º 65º da CRP), já que a recorrente encontra-se a pagar as respetivas rendas.
6. De facto, ponderando os prejuízos com o protelamento da situação até ao prazo requerido para diferimento, o prejuízo da requerente com a entrega imediata, superará em muito o da Proprietária, e assim estar-se-á a dar cumprimento aquele desígnio constitucional.
7. Ora, na situação sub judice, temos que o incidente em causa foi deduzido atempadamente.
8. A recorrente, cumpriu todas as formalidades: alegou de forma pormenorizada e concisa os fundamentos plasmados nas alíneas a) a b) do n.º 2 art.º 15-N, in fine, que preenche na totalidade e arrolou testemunhas.
9. Pelas razões alegadas, se a desocupação suceder, a aqui recorrente cairá numa dessas situações, uma vez que, entre outras coisas, carece de rendimentos, não tendo ninguém que a possa auxiliar.
10. Perante todo o cenário desolador do ponto de vista económico e social que ficou descrito nas alegações, está de todo justificado o diferimento da entrega do local em causa.
11. Dispõe o art.º 15º-N, nº 1 do N.R.A.U. que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição ao procedimento especial de despejo, o arrendatário pode requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
12. Estatui ainda o nº 2 de tal preceito que o diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção, o que é claramente o caso dos autos.
b) Que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.
13. No caso em apreço a requerida/recorrente veio invocar dificuldades económicas como o baixo valor da pensão, resultando da factualidade provada que de facto a requerida/recorrente recebe – é reformada, auferindo uma reforma mensal de Eur. 672,90. Para além da pensão de reforma aludida, a requerida/recorrente AA não dispõe de outros rendimentos.
14. Todavia, a mesma recebe tal rendimento, encontrando-se o pagamento das rendas em dia, tendo sempre pago as rendas.
15. Deste modo, uma vez que que a requerida/recorrente pagou as rendas devidas desde o início do arrendamento até à presente data.
Acresce que, pese embora o alegado e comprovado quanto às patologias de que a requerida padece de deficiência.
16. Termos em que, se verifica o condicionalismo previsto na alínea a) do nº 2 do art.º 15º-N do N.R.A.U., bem como o previsto na sua alínea b), encontram-se reunidos os pressupostos para o diferimento da desocupação do locado, por um período não inferior a 5 (cinco) meses, para se dar oportunidade à recorrente de encontrar uma nova habitação e refazer a sua vida, sem o risco máxime de cair na desgraça.
17. Tal diferimento, não afeta o direito fundamental à habitação do proprietário, na medida em que este não carece da habitação para sua residência.
18. A Douta sentença recorrida, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art.º 15º-N n.º 1 e 2 da NRAU e art.º 65º CRP”.
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância com relevância para a decisão (transcrição):
1 - Em 1 de Agosto de 2014, o “Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional Arrendamento Mais” celebrou com as requeridas BB e AA um acordo escrito, denominado “Contrato de Arrendamento para Habitação Permanente Com Prazo Certo”, tendo por objeto:
⎯ a fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º ...6 da Rua ..., na ... - domicílio convencionado – do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Maia sob o numero ...95 da referida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...85;
⎯ a fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente a garagem na cave, com entrada pelo n.º ...08 da Rua ..., na ..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Maia sob o numero ...95 da referida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...85.
2 - Nos termos do acordo aludido em 1), foi convencionado que o mesmo tinha o prazo de duração inicial de cinco anos, renovável por períodos de um ano, salvo denúncia das partes.
3 - Nos termos do acordo aludido em 1), foi convencionado que, em contrapartida da cedência do uso e fruição das fracções autónomas, as requeridas se obrigavam a pagar uma contrapartida monetária mensal de Eur. 200,00, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito.
4 - As fracções autónomas aludida em 1) foram adquiridos pela requerente, encontrando-se o registo de aquisição inscrito pela apresentação n.º 1727, datada de 12/10/2021, conforme descrito na certidão de registo predial junta aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
5 - Mediante cartas registadas com aviso de receção enviadas para o domicílio convencionado, remetidas em 23 de Janeiro de 2023 e 14 de Março de 2023, a requerente comunicou às requeridas a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento.
6 - As requeridas não procederam à entrega voluntária dos imóveis aludidos em 1).
7 - A requerida AA nasceu no dia ../../1934, sendo viúva.
8 - A requerida AA não é proprietária de qualquer imóvel.
9 - A requerida AA padece de problemas de saúde, nomeadamente: a) HTA; b) Dislipidemia; c) DM tipo 2 sob (ADO); d) Retinopatia diabética com edema macular no OE sob IV; e) Doença osteoarticular degenerativa; f) Hérnia inguinal bilateral; g) Hipoacúsia; h) História de cólera > 40 anos; i) Enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento ST inferior em 2016; j) Insuficiência cardíaca de etiologia isquémica – compromisso moderado da FSVE; k) Patologia oftalmológica: drusas serosa coalescentes.
10 - A requerida AA encontra-se reformada, auferindo uma reforma mensal de Eur. 672,90.
11 - Para além da pensão de reforma aludida em 10), a requerida AA não dispõe de outros rendimentos.
Insurge-se a apelante contra a decisão que julgou improcedente o pedido de diferimento de desocupação do locado, por falta de verificação dos pressupostos legais, consagrados no art. 864º, do CPC, dado ser titular de direito ao diferimento face às circunstâncias pessoais, designadamente de idade, de saúde e económicas, que alega, indicando como normas violadas o nº1 e 2, do art. 15º-N, do NRAU e o artigo 65º, da Constituição da República Portuguesa.
Comecemos por referir que, conforme “Norma revogatória” constante da Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro – cfr. al. c), do art. 53º -, foi o referido artigo 15º-N revogado (bem como o foram o art. 15º-O e, ainda, os nºs 2, 3 e 4, do art. 15º-M, do NRAU), tendo a referida Lei, entrado em vigor, como estatuído no artigo 55º, “no dia seguinte ao da sua publicação” e tendo o pedido de diferimento da desocupação sido deduzido na vigência da referida Lei nº 56/2023, não pode aquele preceito ser aplicado ao caso.
Dispõe o nº1, do art. 15º-M, do NRAU:
“1- À suspensão e diferimento da desocupação do locado aplicam-se, com as devidas adaptações, o regime previsto nos artigos 863.º a 865.º do Código de Processo Civil”,
sendo, pois, estas as disposições a regular o incidente em apreciação.
Ora, estatui o artigo 864º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência:
“1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste” (negrito e sublinhado nosso).
E o nº4, do artigo 865º consagra:
“4 - O diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder”;
Subsumindo o caso aos referidos preceitos, considerou o Tribunal a quo apenas poder ser deferida desocupação do locado a estarem verificados os pressupostos estabelecidos cabendo “ao requerente alegar e provar não dispor de outra habitação, em termos imediatos e comprovar a necessidade de permanência no locado, sendo que para o efeito releva o número de pessoas que habitam no locado, a sua idade e o seu estado de saúde” e considerou: “No caso vertente, importa ter presente se provou que a requerida não dispõe efectivamente de outra habitação, que já tem uma idade muito avançada (o que dificulta a alteração de residência) e que padece de vários problemas de saúde”. “No entanto, importa igualmente ter presente que o pedido de despejo deduzido pela requerente não assenta na resolução por não pagamento de rendas, mas antes na oposição à renovação do contrato”. “Assim, ao presente litígio não é aplicável o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 864º do Cód. de Processo Civil”. “Por outro lado, a requerida não logrou demonstrar que padeça de um grau de incapacidade superior a 60%”, e, assim, “não se verifica nenhum dos fundamentos legais que permita deferir o pedido de diferimento de desocupação do locado”.
Mais salientou “o presente contrato de arrendamento já cessou os seus efeitos há longos meses, o que significa que a requerida já foi advertida para a necessidade de encontrar uma habitação alternativa há um lapso de tempo suficiente para acautelar os seus interesses”. “De facto, face ao lapso de tempo já decorrido desde a extinção do contrato por oposição à renovação, nada foi comprovado que permita concluir que estejam agora em curso diligências por parte da requerida para obter um novo local de residência”. ”Nessa medida, não se comprovou qualquer factualidade que permita atestar que a procedência do pedido de diferimento da desocupação do locado se traduza num efeito útil quanto à obtenção de uma nova habitação por parte da requerida”.
Assim sucedendo quanto à falta de factos a comprovar efeito útil de deferimento da desocupação para obtenção de uma nova habitação por parte da requerida, cumpre apreciar, no confronto da matéria de facto, não objeto de impugnação em sede de recurso, da verificação dos requisitos essenciais ao diferimento do pedido de desocupação do locado, certo sendo caber à requerente o ónus de alegação e o da prova dos factos constitutivos do direito que invoca, nos termos do nº1, do art. 342º, do Código Civil.
Consagra a lei, limitando a sua previsão aos arrendamentos para habitação, o direito ao diferimento da desocupação por razões sociais imperiosas.
Ora, como resulta da lei e da interpretação que dela vem sendo efetuada pela doutrina e jurisprudência, a cláusula geral constante do nº1, do citado art. 864º, “razões sociais imperiosas”, isto é, resultar situação de o despejo imediato afetar gravemente a dignidade humana do executado, facultando-se, nessas situações, ao requerente um prazo razoável para encontrar um alojamento alternativo, não opera automaticamente, exigindo a lei que ocorra uma das circunstâncias previstas nas alíneas a) ou b), do nº2, que constituem presunções legais da verificação de razões sociais imperiosas[1] - sendo elas a carência de meios do arrendatário, quando o despejo se funda na falta de pagamento de renda, ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
Contudo, o diferimento da desocupação não é, também, uma decorrência automática da verificação de um dos fundamentos destas alíneas, os quais constituem um pressuposto necessário da decisão, confiada ao prudente arbítrio do tribunal, na consideração das circunstâncias do corpo do nº2[2].
Na verdade, no referido Ac. RG de 1/3/2018 em que a aqui Relatora também o foi, considerou-se essencial ao diferimento da desocupação a verificação de “razões sociais imperiosas” que o justifiquem, sendo que o propósito do legislador, ao estabelecer a possibilidade do diferimento da desocupação, foi fazer face a casos excecionais em que se justifica impor aos proprietários do imóvel o retardar do cumprimento da obrigação de entrega do imóvel, por motivos que se prendem com a dignidade humana e mais se entendeu que apesar do direito à habitação ser um direito fundamental, o mesmo não pode ser conseguido à custa da violação da lei (como seria o diferimento sem a comprovação dos requisitos, e, designadamente, por mais de cinco meses) e de direitos legítimos de outrem, sendo que o assegurar daquele direito fundamental, de natureza social, é incumbência do Estado e não de particulares[3].
E o juízo sobre o diferimento da desocupação, a formular de acordo com o prudente arbítrio do julgador dentro do elenco de factos sociais estabelecido no referido nº2 (cfr. als. a) e b)), tem sempre de se pautar pelas regras da razoabilidade e da prudência.
Assim, o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, previsto no artigo 864.º, funda-se em “razões sociais imperiosas”, que se traduzem na carência de meios do arrendatário (al. a)) ou ser o arrendatário portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (al. b)), sendo decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, que deverá ter em conta, para além das exigências da boa-fé, as circunstâncias previstas no corpo do nº2 [4].
No Acórdão da Relação do Porto de 9/12/2020 foi igualmente considerado poder ser pedido o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, por força da cessação do contrato de arrendamento, quando existam razões sociais imperiosas, mas esta cláusula geral não opera automaticamente, exigindo-se que em concreto ocorra uma das circunstâncias previstas nas alíneas a) ou b) do nº2, que funcionam como presunções legais da verificação de razões sociais imperiosas[5].
E bem se analisa no mencionado Acórdão (que cita passagem do Ac. Rel. Porto 11 de setembro de 2017, Proc. 3481/10.0TBVNG-A.P1 (acessível em www.dgsi.pt) no sentido de se tratar “de um regime jurídico de excepção, porquanto a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efectiva e imediatamente entregue, ao senhorio …, no caso do fim do arrendamento”):
“…porque se trata de normas excepcionais, elas não permitem aplicação analógica, estando assim vedada a sua aplicação a situações nelas não previstas (cf. art.º 11.º do CC).
Pode questionar-se se a situação em causa não poderá considerar-se coberta pela previsão normativa pelo recurso à interpretação extensiva, sabendo-se que nesta, ao invés da analogia, que pressupõe uma lacuna, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, de modo que por via interpretativa e pela extensão da letra da lei é possível colocar sob a alçada do regime uma situação não expressamente prevista mas cuja inclusão estava na mente do legislador e foi por este querida.
… não se descortina que o texto da citada norma tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-las, disse menos do que efetivamente pretendia dizer.
Antes pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, …
Importa sopesar que o fundamento da tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do senhorio ou adquirente no processo de insolvência é apenas o prolongamento (a curto prazo) de um direito anteriormente reconhecido em face da boa-fé do respectivo titular e das suas necessidades bem como das pessoas que vivem consigo, sendo pois, esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do artigo 864.º do CPCivil. … Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam”.
E mais se acrescenta “…não se questiona que o direito à habitação goza de justificada tutela constitucional - cf. art.º 65.º da CRP, que proclama, no seu artigo 1.º que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Todavia, assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes”.
Neste sentido, também, o Ac. Rel. Coimbra 17 de janeiro de 2017, Proc. 59/14.3TBSCD-F.C1 e Ac. Rel. Porto 13 de maio de 2014, Proc. 6371/07.0TBMTS-J.P1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt)”.
Também no TRE, na decisão singular de 11/7/2019, se entendeu, como consideramos, que o diferimento de desocupação constitui um meio de tutela excecional e que a restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação, quer por via da analogia, quer do recurso a interpretação extensiva, a outras situações que não as especificamente previstas. E mais se decidiu que pese embora a diversidade de soluções que o legislador ordinário, no seu poder de conformação à lei constitucional, entendeu consagrar, não deixou ainda assim de tutelar o direito à habitação, sendo que, contudo, assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares, pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal a casos em que se verifiquem determinados pressupostos condicionantes[6].
Revertendo para as circunstâncias do caso, verifica-se que, tratando-se de imóvel arrendado para habitação, findou o contrato de arrendamento por oposição do senhorio à renovação e não se verificam as razões sociais imperiosas consagradas na lei a demandar o diferimento da desocupação, dado que, apesar de a arrendatária ser já nonagenária e com doenças associadas, não dispondo de outra habitação e tendo como único rendimento uma reforma mensal de € 672,90, certo é que o caso concreto se não enquadra em qualquer das circunstâncias, legalmente estatuídas, pacificamente tidas pela doutrina e pela jurisprudência, como condicionantes do diferimento da desocupação, previstas nas als. a) ou b), do nº2, nenhuns factos, quanto a tal, resultando provados que permitam considerar verificada uma das referidas situações.
Com efeito, não estamos perante situação de falta de pagamento de rendas nem de incapacidade da arrendatária superior a 60%, não se configurando, pois, qualquer circunstância das consagradas a operar como presunção legal da verificação de “razões sociais imperiosas” e a possibilitar juízo de diferimento da desocupação (na ponderação das circunstâncias do corpo do nº2).
Conclui-se, pois, que o diferimento da desocupação do local arrendado está sujeito à verificação de um conjunto de requisitos, no caso não reunidos, pelo que bem foi julgado improcedente o requerimento de diferimento de desocupação.
E não verificados os pressupostos condicionantes do direito ao diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação (consagrados nas alíneas a) e b), do nº2, do art. 864º), que salvaguardam o direito à habitação constitucionalmente consagrado no art. 65º, da CRP, acautelado se mostrando, naquele artigo, o núcleo essencial de tal direito, com proteção das situações de vulnerabilidade a contender com a dignidade da pessoa humana, e, ainda, porque, no mais, é ao Estado cabe assegurar aquele direito fundamental e não a particulares, não pode a pretensão recursória deixar de improceder.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida
Anabela Morais
___________________________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 298 e cfr. Acs. da RG de 1/3/2018, 26/15 e de 8/2/2018, 164/13, aí citados.
[2] José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, 3ª Edição, Almedina, pág. 894.
[3]Ac. RG de 1/3/2018, proc. 26/15.0T8VNF-E.G1, no qual se considerou:
“… o nº 1, do art.º 864.°, para o caso de execução para entrega de imóvel arrendado para habitação, permite que, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior a desocupação, sendo que o diferimento, nos termos do nº 4, do art. 865.° não pode exceder o prazo de 5 meses, a contar da data do trânsito em julgado da decisão que conceder a desocupação do imóvel.
A lei, no nº2, do referido artigo, confia a decisão ao prudente arbítrio do tribunal, apelando, desse modo ao bom senso e racionalidade do juiz, mas aponta critérios decisórios, prescrevendo que devem ser tomadas em consideração:
- as exigência da boa-fé; - a circunstância de o insolvente não dispor, imediatamente, de outra habitação; - o número de pessoas que com ele habitam; - a sua idade; - o estado de saúde; - a situação económica e social das pessoas envolvidas.
Acresce que a invocação das referidas "razões sociais imperiosas" não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de, pelo menos, um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do referido nº2, do art. 864°.
Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, … se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do insolvente:
a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.°).
… A tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade … é considerada "ultra-vigência" de um direito anteriormente reconhecido, admitindo-se o prolongamento dos seus efeitos em face da boa-fé do respetivo titular e das suas necessidades e das pessoas que vivem consigo. …Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam.
Assim, decorre do nº2, do artigo 864.°, que o diferimento de desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de os requerentes não disporem imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) ocorra a carência de meios dos requerentes, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) os requerentes sejam portadores de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %”.
[4] Ac. RE de 23/4/2024, proc. 2563/17.2T8SLV-B.E1, acessível in dgsi.pt
[5] Ac. RP de 9/12/2020, proc. 3566/18.5T8STS-D.P1, Relatora: Ana Paula Amorim, acessível in dgsi.pt
[6] Decisão singular do Tribunal da Relação de Évora de 11/7/2019, proc. 25/16.4 T8PTG-A.E1, acessível in dgsi.pt