ABUSO DO DIREITO
MODALIDADE DE "TU QUOQUE"
Sumário

I - Incorre em abuso do direito, na modalidade de tu quoque, alguém que abandonou um arrendado há já mais de dez anos, sem informar o senhorio, rescindindo o contrato de fornecimento de energia elétrica, sem que demonstre qualquer razão para tal conduta e que, não obstante isso, volvidos todos esses anos, vem queixar-se da privação do gozo do arrendado, pretendendo ser reinvestido nesse gozo de que voluntariamente abdicou e indemnizado pela privação do gozo entretanto “sofrida”.
II - A ilegitimidade no exercício do direito pela autora e ora recorrente por abuso do direito na modalidade de tu quoque constitui uma situação equiparada à ilicitude e determina a total improcedência da ação e do recurso.

Texto Integral

Processo nº 4106/21.4T8PRT.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 4106/21.4T8PRT.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]

Em 12 de março de 2021, com referência ao Juízo Local Cível do Porto, Comarca do Porto, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, AA instaurou ação declarativa sob forma comum contra BB, CC e DD pedindo a condenação das rés:

a) No pagamento da quantia de €600,00 euros por cada mês em que a Autora esteve impedida de aceder ao locado;

b) No pagamento da quantia de €600,00 por cada mês em que a Autora continuar impedida de aceder ao locado;

c) Na entrega dos bens móveis da Autora;

d) No pagamento da quantia de €2 500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

Para fundamentar as suas pretensões a autora alegou, em síntese, que em 05 de dezembro de 1944, sua mãe, EE, celebrou um contrato de arrendamento urbano com FF, assumindo aquela a posição de arrendatária e este a de senhorio; pelo referido contrato, a mãe da autora tomou de arrendamento o prédio urbano sito no 1º andar do nº ...11 da Rua ..., concelho e comarca do Porto, destinado a habitação, inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o artigo ...45 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...97/20180507; em contrapartida, ficou obrigada ao pagamento de uma renda mensal, objeto de atualizações, sendo no montante de € 30,00 desde a última atualização, renda paga, primeiramente, através de entrega em mão contra a emissão dos respetivos recibos, passando, depois, a ser paga por transferência bancária para a conta nº ...01 aberta no Banco 1..., no cumprimento da vontade manifestada pela 2ª ré; a mãe da autora fez do locado a sua habitação até ao momento da sua morte, em novembro de 1998; desde essa data, a autora, que residia com a mãe, assumiu a posição de arrendatária, continuando a habitar no local com a sua família, guardando no seu interior as suas roupas, mobílias e demais bens pessoais e pagando a respetiva renda; em meados de 2018, entre os meses de abril e maio de 2018, alguém colocou um cadeado na porta do prédio e posteriormente, a porta e a fechadura do prédio foram mudadas; de nenhuma das vezes a autora foi avisada de que iriam ser realizadas essas alterações, nem lhe foram entregues as novas chaves de acesso ao locado; não obstante, a autora continuou a pagar a renda através de depósito na conta bancária que conhecia até 08 de outubro de 2019, momento em que o recebimento da mesma na conta bancária que tinha sido designada pelos senhorios para esse efeito passou a ser recusado; a autora tem noventa anos de idade e esta situação tem-lhe causado muita angústia, ansiedade e desgosto por se ver despojada, ao fim de tantos anos, da sua casa de habitação e dos seus bens móveis, sem qualquer pré-aviso ou justificação, o que a deixou transtornada e lhe tirou, e continua a tirar, inúmeras noites de sono e prejudica o seu descanso e bem-estar.

Citadas, as rés contestaram impugnando que a autora, após a morte de sua mãe, continuou a viver no arrendado, juntamente com a sua família, ocupando-o com os seus pertences e que continuou a pagar a renda; alegaram que a autora nunca comunicou o falecimento da sua mãe, cônjuge do primitivo arrendatário, nem demonstrou que com ela coabitasse; a primeira ré tomou conhecimento verbal por terceiros, muito para além do prazo de três meses que, à data a lei prescrevia, da morte da arrendatária EE; a primeira ré apenas permitiu, a título de liberalidade, que a autora se mantivesse na posse do imóvel, dela recebendo uma contrapartida destinada ao pagamento do IMI; após a indicação do NIB, a primeira ré deixou de se aperceber, por falta de indicação ou identificação da autora como depositante, da transferência de qualquer verba para a referida conta bancária, sendo certo que a primeira ré recebe, por esse meio, vários depósitos de pequeno valor; tais depósitos terão sido feitos por alguém que assinava “FF”, que a primeira ré nunca associou à autora, sendo que quando tomou conhecimento que tais depósitos, eram efetuados por outrem que não a autora, deu ordem para não serem recebidos; a autora abandonou há mais de uma dezena de anos o imóvel que havia sido arrendado aos seus pais para habitação, tendo em 10 de outubro de 2006 dado sem efeito o contrato de fornecimento de energia elétrica relativo ao imóvel junto da EDP; em setembro de 2015, as rés constataram a degradação do imóvel, tendo verificado, através dos inquilinos do rés do chão que não habitava ninguém no andar que havia sido arrendado aos pais da autora; em dezembro de 2017, o portão de acesso ao nº ...11 foi arrombado por desconhecidos; entre dezembro de 2017 e agosto de 2018, sucederam-se mais três arrombamentos, quer do portão, quer do acesso à habitação, que foi vandalizada por terceiros desconhecidos; alertadas por vizinhos, as rés colocaram primeiramente um cadeado no portão e, em agosto de 2018, um portão de ferro, para proteção do imóvel e dos vizinhos; para dar conta da situação, a primeira ré enviou uma carta à autora, com o intuito de que a esta retirasse do imóvel os bens que lhe pertencessem, não tendo obtido resposta; como as portas se encontravam arrombadas, as rés acederam ao primeiro andar do imóvel, tendo constatado a inexistência de camas ou quarto de banho; mais constataram a presença de esqueletos e ratos e pombos e um amontoado de lixo; na ausência de resposta e por desconhecerem o paradeiro da autora, as rés promoveram e custearam a suas expensas a retirada do amontoado de lixo que se acumulara no imóvel; as rés deduziram reconvenção pedindo que se declare cessado o contrato de arrendamento por abandono com efeitos a partir de dezembro de 2017 pedindo ainda a condenação da autora como litigante de má-fé em multa e em indemnização de valor não inferior a três mil euros.

A autora replicou suscitando a ineptidão da reconvenção deduzida pelas rés, voltou a afirmar que o arrendamento se transmitiu para si, invocou abuso do direito por parte das rés já que durante vinte e um anos receberam rendas pagas pela autora e não obstaram ao gozo do locado por parte dela, invocou a caducidade do direito de resolver o contrato de arrendamento com fundamento em abandono do locado, alegou que a relação de arrendamento não cessa com a mera verificação da causa de cessação, sendo sempre necessário o recurso a tribunal a fim de o contrato ser resolvido, o que a rés não fizeram, nem alegaram factos de que decorra a inexigibilidade de manutenção do arrendamento para o locador, ao que acresce que as rés nunca fizeram obras de manutenção no arrendado, concluindo pela improcedência da reconvenção.

As rés foram convidadas a, querendo, se pronunciarem sobre a ineptidão da reconvenção arguida pela autora e ainda para em dez dias indicarem o valor da reconvenção, sob pena de não ser atendida com tal fundamento, convites a que as rés não responderam.

Em 02 de março de 2022 foi proferido despacho a não admitir a reconvenção por falta de indicação do seu valor, dispensou-se a realização de audiência prévia, fixou-se o valor da causa no montante de € 19 800,00, proferiu-se despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova, apreciaram-se os requerimentos probatórios das partes, ordenando-se a notificação das partes para os efeitos do nº 3 do artigo 593º do Código de Processo Civil.

Obtidas informações requeridas pelas rés e notificadas às partes, a autora pronunciou-se sobre as mesmas, oferecendo prova documental.

Designou-se dia para a audiência final.

Comprovado o falecimento de BB, decretou-se a suspensão da instância com tal fundamento e deu-se sem efeito a data designada para a audiência final.

Em 13 de outubro de 2022, AA requereu nestes autos a habilitação de herdeiros de BB contra CC e DD, pedindo que a primeira requerida seja habilitada como sucessora da falecida BB, prosseguindo os termos da demanda até final.

As requeridas no incidente de habilitação de herdeiros foram notificadas para os efeitos do nº 1 do artigo 352º do Código de Processo Civil, não tendo deduzido qualquer oposição.

Em 29 de novembro de 2022 foi proferida sentença que julgou CC habilitada como sucessora da falecida BB e, após trânsito em julgado desta decisão, designou-se nova data para a audiência final.

A audiência final decorreu em três sessões e em 05 de setembro de 2023 foi proferida sentença[2] que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo as rés do pedido.

Em 18 de outubro de 2023, inconformada com a sentença, AA interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1º A Autora recorre da douta sentença que decidiu julgar a ação totalmente improcedente e absolver as rés do pedido.

2º A Autora impugna a decisão que recaiu sobre os pontos 1., 6. e 9. dos factos provados, 1., 2. e 3. dos factos não provados.

3º No ponto 1. dos factos provados tem a Recorrente apenas que assinalar que onde se lê “FF” se deve ler “FF”, resultando em: 1. Em 5/12/1944 EE declarou tomar de arrendamento e FF declarou dar de arrendamento o 1.º andar do imóvel situado na Rua ..., no Porto, pelo período de 1 ano, renovável, mediante o pagamento de uma quantia mensal.

4º No que concerne à decisão de prova do artigo 5. e de não prova do alegado nos artigos 8º a 10º da petição inicial – ponto 1. dos factos não provados nota-se que o douto Tribunal a quo faz uma interpretação errada do quanto foi alegado na petição inicial.

5º A Autora pretendia justificar que as condições fácticas para a sucessão na posição contratual da sua mãe se encontravam reunidas no momento do falecimento daquela, o que provou através da testemunha GG e das duas cartas juntas com a petição inicial e enviadas pela Ré CC.

6º Deve ficar provado que:

4-A A Autora residia com a sua mãe no momento do seu falecimento.

5. Após a morte da sua mãe a Autora habitou no imóvel com a sua família por algum tempo.

5-A Passando a entregar a renda mensal à 1ª Ré.

7º A impugnação do provado sob o nº 6. e o não provado sob os nºs 1., por referência aos artigos 10º, 17º e 18º da petição inicial, e 2., por referência aos artigos 5º, 6º e 7º da Contestação tem por base as regras processuais de impugnação e o depoimento gravado do mesmo GG.

8º O recebimento das rendas um facto pessoal a Ré não se pode aproveitar da alegação do seu desconhecimento, nos termos do disposto no artigo 574º, nº 3 do Código de Processo Civil.

9º Conclui-se que as Rés confessam o recebimento das quantias até ao momento em que passaram a recusar o seu recebimento, através da ordem dada ao banco para não mais receber aqueles depósitos.

10º Deveria ter ficado provado que:

6. A Autora pagou a renda mensal de 30,00 euros até 8/10/2019, sendo que após essa data a autora não procedeu à entrega de quaisquer outros montantes.

6-A. Em data indeterminada do ano de 2019 as Rés deram ordens ao Banco 1... para recusar o recebimento do depósito da renda da Autora.

11º A Autora impugna o provado em 9., porquanto o termo “abandono” corresponde a um termo jurídico.

12º Ainda com relação com o provado em 9., a Autora impugna o ponto 3. Dos factos não provados, por referência aos artigos 46º, 48º e 49º da Réplica.

13º Essa matéria está em contradição com o provado nos nºs 11. e 13. onde se indicia que o imóvel se encontrava degradado e sem condições de habitabilidade.

14º A prova provém das fotografias juntas em audiência de julgamento pelas Rés e que se encontram juntas aos autos sob a referência nº 447768036, das imagens do google earth, das testemunhas GG e HH.

15º A Autora tem 92 anos de idade, teve um cancro já em idade avançada e, portanto, possui uma saúde mais frágil que o comum das pessoas.

16º Deve ficar provado que:

• No período em que a Autora sucedeu na titularidade do contrato de arrendamento, nunca as Rés realizaram quaisquer obras de manutenção.

• O locado sofreu queda de partes do telhado, incluindo a chaminé que caiu em cima do fogão e a queda do telhado do quarto de banho, destelhamento e mau funcionamento das janelas.

17º A douta sentença reconhece que o contrato de arrendamento que principiou com EE se manteve válido após a sua morte, tendo a Autora sucedido na sua posição contratual.

18º A Autora é filha da arrendatária e vivia com ela há mais de um ano aquando da sua morte, pelo que o contrato se transmitiu para si por força do disposto na lei.

19º As normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa, nos termos do artigo 1080º do Código Civil.

20º Por força das normas combinadas dos artigos 1083º, 1084º do Código Civil e 14º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, o contrato de arrendamento não cessa pela verificação das condições previstas na lei para a sua resolução, sendo necessário o recurso à acção de despejo.

21º No contrato de arrendamento, às obrigações do senhorio de entregar ao arrendatário a coisa arrendada e de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se destina corresponde a obrigação de pagar a renda.

22º O contrato provado nos autos mantém-se em vigor e a Autora conserva intacto o seu direito a utilizar o locado.

23º A presente acção tem por fundamento o reconhecimento da existência de um contrato de arrendamento e os pedidos indemnizatórios têm subjacentes os pedidos de reconhecimento de que o contrato permanece válido, de que a Autora se encontra sem acesso locado e de condenação das Rés à entrega do locado.

24º Não fora válido o arrendamento e todas as quantias entregues pela Autora a título de rendas, que as Rés se conservaram a receber, durante vários anos após a sua saída forçada do locado, configurariam uma situação de enriquecimento sem causa.

25º A douta sentença sofre de insuficiente fundamentação pois não logra identificar qual o facto extintivo da pretensão da Autora, nem enquadrá-lo juridicamente, violando o disposto no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa.

26º O incumprimento das obrigações contratuais surgiu, em primeiro lugar, da parte das Rés, que nunca fizeram obras no locado, permitindo que o mesmo se degradasse ao ponto de ser impossível à Autora manter aí a sua residência.

27º A saída da Autora está justificada e a sua conduta está conforme ao direito, motivo pelo qual nem sequer lhe pode ser oposta a cláusula de última ratio do abuso de direito.

28º Pelo que se encontram reunidas todas as condições para a procedência, ainda que parcial, da acção.

30º A douta sentença violou o disposto no artigo 574º, nº 3 do Código de Processo Civil, artigos 1031º, 1038º, alínea a), e 1079º a 1085º do Código Civil, 14º do Novo Regime do Arrendamento Urbano e 205º da Constituição da República Portuguesa.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos dos restantes membros do coletivo, cumpre agora apreciar e decidir.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da impugnação dos pontos 1, 5[3], 6, 9 dos factos provados e 1, 2 e 3 dos factos não provados;

2.2 Da repercussão na solução do caso da eventual alteração na decisão da matéria de facto e, em todo o caso, da manutenção do contrato de arrendamento para habitação de que a autora é arrendatária.

3. Fundamentos

4.1 Da impugnação dos pontos 1, 5, 6 e 9 dos factos provados e 1, 2 e 3 dos factos não provados

A recorrente impugna os pontos 1, 5, 6 e 9 dos factos provados e os pontos 1[4], 2[5] e 3[6] dos factos não provados.

A recorrente afirma que o ponto 1 dos factos provados enferma de erro porque, como resulta do contrato junto aos autos e bem assim do que foi alegado pela autora na petição inicial, acrescentamos nós, o senhorio que deu de arrendamento à mãe da autora o arrendado chamava-se FF e não FF, como ficou escrito no referido ponto dos factos provados.

No que respeita ao ponto 5 dos factos provados e aos artigos 8º a 10º da petição inicial, a recorrente afirma que o tribunal a quo fez uma interpretação errada do que foi alegado na petição inicial, referindo que a autora pretendia justificar que as condições fácticas para a sucessão na posição contratual de sua mãe estavam reunidas no momento da morte desta, matéria que a seu ver resulta provada com base no depoimento da testemunha GG, nas passagens que indica e bem assim do que resulta das duas cartas que ofereceu com a petição inicial.

Propõe assim que se julgue provado o seguinte:

“4-A A Autora residia com a sua mãe no momento do seu falecimento.

5. Após a morte da sua mãe a Autora habitou no imóvel com a sua família por algum tempo.

5- A Passando a entregar a renda mensal à 1ª Ré.”

Quanto ao ponto 6 dos factos provados e os não provados sob o nº 1, com referência aos artigos 10º, 17º e 18º da petição inicial e sob o nº 2, por referência aos artigos 5, 6 e 7 da contestação, invoca as regras processuais que disciplinam o ónus de impugnação e as passagens do depoimento da testemunha GG assinaladas no corpo das alegações, devendo assim, em consequência, julgar-se provado o seguinte:

“6. A Autora pagou a renda mensal de 30,00 euro até 8/10/2019, sendo que após essa data a autora não procedeu à entrega de quaisquer outros montantes.

6-A. Em data indeterminada do ano de 2019 as Rés deram ordem ao Banco 1... para recusar o recebimento do depósito da renda da Autora.”

No que tange o ponto 9 dos factos provados, afirma que corresponde a um termo jurídico, impugnando ainda o ponto 3 dos factos não provados com referência aos artigos 46, 48 e 49 da réplica que, alega, estão em contradição com a factualidade dada como provada nos números 11 e 13, provindo a prova em que se apoia este segmento da sua impugnação nas fotografias que juntou aos autos, nas imagens do google earth e ainda nas passagens dos depoimentos das testemunhas GG e HH que assinala no corpo das alegações, concluindo que no respeitante a este segmento da impugnação deve dar-se por provado o seguinte:

“No período em que a autora sucedeu na titularidade do contrato de arrendamento, nunca as rés realizaram quaisquer obras de manutenção.

O locado sofreu quedas de partes do telhado, incluindo a chaminé que caiu em cima do fogão e a queda do telhado do quarto de banho, destelhamento e mau funcionamento das janelas.”

Os pontos de factos impugnados têm o seguinte conteúdo:

- Em 5/12/1944 EE declarou tomar de arrendamento e FF declarou dar de arrendamento o 1.º andar do imóvel situado na Rua ..., no Porto, pelo período de 1 ano, renovável, mediante o pagamento de uma quantia mensal (ponto 1 dos factos provados);

- Após a morte da sua mãe a Autora habitou no imóvel por algum tempo (ponto 5 dos factos provados);

- Desde essa data [refere-se à data da morte da mãe da autora, alegadamente ocorrida em novembro de 1998], a Autora, que residia com a mãe, assumiu a posição de arrendatária, continuando a habitar no local com a sua família (artigo 8 da petição inicial);

- Guardando no seu interior as suas roupas, mobílias e demais bens pessoais (artigo 9 da petição inicial);

- E pagando a respectiva renda (artigo 10 da petição inicial);

- Não obstante [esta adversativa relaciona-se com os artigos 12 a 16 da petição inicial onde se alegou: “Sucede que, em meados de 2018, desconhecendo-se a data concreta, mas que terá ocorrido entre os meses de abril e maio de 2018, alguém colocou um cadeado na porta do prédio” (artigo 12 da petição inicial); “Posteriormente, a porta e a fechadura do prédio foram mudadas” (artigo 13 da petição inicial); “De nenhuma das vezes foi a Autora avisada de que iriam ser realizadas essas alterações” (artigo 14 da petição inicial); “Nem lhe foram entregues as novas chaves de acesso ao locado” (artigo 15 da petição inicial); “Pelo que a Autora foi, efectivamente, impedida de aceder ao arrendado e aos bens que mantinha na sua casa, desde esse momento, situação que se mantém até hoje” (artigo 16 da petição inicial)], a autora continuou a pagar a renda através de depósito na conta bancária que conhecia (artigo 17 da petição inicial);

- A Autora pagou as rendas até 08/10/2019, momento em que o recebimento da mesma na conta bancária que tinha sido designada pelos senhorios para esse efeito passou a ser recusado (artigo 18 da petição inicial);

- A Autora abandonou o imóvel descrito em 1., há mais de uma dezena de anos (ponto 9 dos factos provados);

- Por outro lado, no período em que a Autora sucedeu na titularidade do contrato de arrendamento, nunca as Rés realizaram quaisquer obras de manutenção, apesar de a isso instadas em diversos momentos (artigo 46 da réplica);

- Em consequência, a Autora assistiu à degradação do locado, traduzida em parte do telhado a cair, incluindo a chaminé que caiu em cima do seu fogão, mau funcionamento das janelas, rebentamento de canalizações (artigo 48 da réplica);

- Problemas que se traduziram em infiltrações de água, humidade nas paredes e tectos, fortes correntes de ar, inundações, curtos circuitos, etc… (artigo 49 da réplica).

Os pontos dos factos provados que a recorrente afirma estarem em contradição com os referidos artigos 46, 48 e 49 da réplica são os seguintes:

- Pelas autoras [aliás rés], pelo menos no ano de 2017, foi constatado que não havia residentes no imóvel descrito em 1. e que este se encontrava degradado. Ainda nesse ano o portão de acesso ao n.º 211 foi arrombado, pelo que, no ano de 2018, foi colocado um cadeado na porta de acesso ao imóvel descrito em 1. e ulteriormente foi colocado um portão (ponto 11 dos factos provados);

- No momento temporal referido em 11. no imóvel não existiam camas, nem quarto de banho estava amontoado com lixo[[7]], existindo ratos e pombos mortos (ponto 13 dos factos provados).

O tribunal recorrido motivou os pontos de facto impugnados da forma que segue:

Os factos descritos nos pontos 1, 2, 3, 6, 7, 8, 10 dos factos provados suportaram-se no contrato de arrendamento, nas cartas subscritas pela ré CC, no talão de depósito bancário, na certidão do registo predial, na certidão do assento de óbito de BB e na sentença proferida no âmbito do incidente de habilitação e na informação escrita prestada pela E-redes.

Os factos descritos nos pontos 4, 5 e 12 foram aceites pelas rés na sua contestação.

A demonstração do facto descrito no ponto 9 dos factos provados teve por base a conjugação da informação prestada pela E-redes relativa à data da cessação do fornecimento de eletricidade ao imóvel identificado com o depoimento da testemunha GG, filho da autora, do qual resultou, à saciedade que a autora deixou de residir no imóvel há vários anos e que era esta testemunha que, de vez em quando, o utilizava, ainda que o mesmo tivesse deixado de ter eletricidade (a testemunha fez uma “puxada”), camas (a testemunha referiu que só tinha colchão) e condições de habitabilidade, tendo mantido o pagamento da renda numa tentativa de manter o imóvel na sua detenção e fruição.

Na verdade, referiu esta testemunha que ela deixou de habitar no imóvel por volta dos anos de 2013/2014, mas a mãe, a autora, já tinha saído no ano de 2003, tendo ido para casa do seu irmão, em Vila Nova de Gaia, por doença, e a partir do ano de 2006/2007 deixou definitivamente o imóvel, levando consigo muitos dos seus bens. Afirmou até que para a mãe a detenção deste imóvel “é mais uma questão sentimental, mas para ser honesto não sabe se mantém interesse na casa”, já que a mãe não está a “100%”. Afirmou que a mãe, a autora, saiu da casa porque esta não tinha condições, o teto tinha caído e havia infiltrações. Contudo, não soube afirmar se foi comunicada tal situação aos senhorios e se foi pedida a realização de obras, apenas recordando esse pedido ainda no tempo dos seus pais, sendo que o pai terá falecido no ano de 2004. Há cerca de 7/8 anos a mãe, depois de sair da casa dos outros filhos, arrendou uma casa na .... Do depoimento desta testemunha, a qual ainda confirmou o estado das escadas revelado pela fotografia que se encontra junta aos autos, apenas se pode concluir que a autora saiu do imóvel no ano de 2006 e fê-lo com caráter definitivo, o que é revelado pela cessação do contrato de fornecimento de eletricidade e que tal aconteceu porque deixou de estar capaz para viver sozinha, ou apenas com a testemunha, naquela casa. E se cessou o contrato de fornecimento de eletricidade é porque não tinha intenção de retornar ao imóvel. Se, porventura, o mesmo não tinha condições para que ali se mantivesse, o certo é que nada nos autos ou no depoimento desta testemunha demonstra que tenha sido pedida a realização de obras e que tal pedido tenha sido recusado. Por outro lado, a prática de atos que conduzem à conclusão da intenção de não retornar ao imóvel, mas a manutenção do pagamento da quantia correspondente à renda demonstra apenas e tão só que a autora e a testemunha, já que era esta quem fazia os depósitos, pretendiam reter o imóvel, omitindo ao senhorio a sua não residência com caráter permanente.

Foi também com suporte no depoimento desta testemunha que se consideraram não provados os factos alegados nos art.ºs 8.º e 9.º da petição inicial nos termos referidos no ponto 1 dos factos não provados.

A prova dos factos descritos nos pontos 11 e 13 dos factos provados teve por base, a matéria aceite pelas rés, as fotografias juntas aos autos e, ainda, o depoimento das testemunhas II e JJ, inquilinos do prédio contíguo desde 2017, KK, que intermediou o arrendamento celebrado com as testemunhas II e JJ e HH, empreiteiro, que no ano de 2018 executou obras no imóvel, sendo o autor das fotografias juntas aos autos, as quais confirmaram tais factos, tendo sobre os mesmos conhecimento direto.

Quanto aos factos não provados a sua não prova resultou da circunstância de sobre eles não ter sido produzido qualquer meio de prova que cabalmente os demonstrasse, tendo em conta o que ficou dito quanto aos depoimentos prestados e documentos apresentados.

Cumpre apreciar e decidir.

Uma vez que a recorrente observa suficientemente os ónus que impendem sobre quem impugna a decisão da matéria de facto com base em prova gravada, analisou-se criticamente a prova documental pertinente para o conhecimento da impugnação, nomeadamente, a cópia do contrato de arrendamento oferecido pela ora recorrente com a sua petição inicial[8], a cópia da carta para atualização da renda[9], as cópias de dois recibos de renda[10], a cópia da carta datada de 15 de outubro de 2000[11], cópia de um talão de depósito de numerário e valores[12], cópia da certidão de nascimento de AA[13], informação da E-Redes[14], informação da ARS Norte[15], cópia de demonstração de liquidação de IRS[16], cópia de declaração para efeitos de IRS emitida pela Caixa Geral de Aposentações[17], cópias de talões emitidos pela Caixa Geral de Aposentações[18], cópia de comunicação da Caixa Geral de Aposentações[19], cópia de declaração para efeitos de IRS emitida pela Caixa Geral de Aposentações[20], cópias de fotografias oferecidas na primeira sessão da audiência final[21], cópias das fotografias aéreas oferecidas na segunda sessão da audiência final[22] e procedeu-se à audição da prova pessoal produzida na sessão da audiência final realizada em 21 de abril de 2023.

GG, filho da autora, de sessenta e quatro anos de idade, reformado, declarou que apenas conhece a ré CC por comunicações por escrito e por telefone, mas conheceu pessoalmente a Dona BB, mãe da Dona CC. Declarou que nasceu no prédio sito na Rua ..., no Porto e que aí viveu juntamente com seus pais e irmãos na companhia da sua avó materna, pessoa em nome de quem estava o arrendamento. A avó faleceu em 94, declarando mais tarde que faleceu em 96. Depois do falecimento da avó materna, continuaram a viver naquele local e a mãe continuou a pagar a renda. Após a morte da avó materna, a Dona CC fez uma proposta de pagamento de oitocentos contos para deixarem o arrendado, retratando-se desta proposta cerca de uma semana depois. Após o falecimento de seu pai, em 2004, a Dona CC disse-lhes que tinham quinze dias para saírem do arrendado. O depoente telefonou à Dona CC esclarecendo-a que sua mãe era a filha da arrendatária e não seu falecido pai. Inicialmente as rendas eram entregues em mão à Dona BB, tendo a Dona CC pedido mais tarde que o pagamento da renda fosse por depósito bancário. A partir do momento em que os pagamentos passaram a ser feitos por depósito bancário, nunca mais foram entregues recibos. Mais tarde a Dona CC pediu que a renda fosse aumentada para o montante de trinta euros, pedido a que acederam. A testemunha declarou que tem todos os comprovativos dos depósitos que efetuou. Os depósitos eram feitos pela testemunha ou por seu pai, não tendo sua mãe condições para fazer esses depósitos, porque não sabia assinar. A partir de certa altura, que situou em momento posterior à instauração da ação, há cerca de quatro ou cinco anos, foi-lhe recusado o depósito da renda. Deslocava-se ao arrendado todas as semanas para recolher o correio e a data altura, que situou posteriormente em 2018, não pôde aceder à caixa do correio porque havia um cadeado na porta, tendo sido posteriormente colocada uma porta metálica a impedir o acesso à caixa do correio. Declarou que apenas por razões económicas não processaram a senhoria mais cedo, só o tendo feito quando souberam que podiam ter apoio judiciário[23]. Fizeram obras na cobertura do arrendado e mudaram as janelas. A casa não tinha condições, tendo em 2014 caído o teto da casa de banho e uma claraboia, tendo havido uma inundação num quarto do arrendado. As donas da casa disseram que não gastariam um tostão na casa, que aquilo era para deitar abaixo e nunca fizeram obras; mais adiante declarou que as senhorias recusavam fazer obras com os inquilinos a residir no arrendado. Os Serviços Sociais da Câmara Municipal deslocaram-se ao local e disseram que a casa estava inabitável, tendo ficado a aguardar resposta desses serviços. Declarou que para a sua mãe, a questão da casa era mais sentimental, pelas fotografias e pela cama onde tinham nascido os filhos e um bisneto[24], não sabendo se está interessada na casa. O arrendado tinha uma casa de banho pequena, uma varanda, dois quartos, uma sala, tipo kitchenette e um corredor. Entretanto arrendou uma casa na ... por intermédio de uma pessoa amiga e onde reside com sua mãe. No local do arrendado as rendas são muito elevadas. Depois do fim do contrato de fornecimento de energia elétrica o depoente ainda viveu algum tempo no arrendado, recebendo energia elétrica através do vizinho de baixo. Algum tempo antes de morrer, seu pai foi viver para casa de seu irmão mais novo em Gaia e sua mãe acompanhava-o, passando aí semanas. Sua mãe deixou de morar no arrendado em 2006 ou 2007 e reside com o declarante na Rua ..., na ..., em casa arrendada, há cerca de sete ou oito anos, mediante uma renda mensal de trezentos e quarenta euros.

II, engenheiro civil e empresário declarou conhecer a ré CC por, em 2017, lhe ter tomado de arrendamento para alojamento local o nº ...03 da Rua ..., não conhecendo a autora; o nº ...11 fica nas traseiras do nº ...03 e foi ao local com a ré DD, em 2018, estando nessa altura o nº ...11 devoluto. Quando decorriam as obras de reabilitação do prédio que tomou de arrendamento, o empreiteiro queixou-se que a entrada para o nº ...11 tinha sido arrombada, tendo entrado em contacto com a ré DD, tendo esta pedido que o Sr. em obra no nº ...03 fechasse a porta de acesso ao nº ...11.

JJ, engenheiro civil, fundador de uma sociedade juntamente com a testemunha II vocacionada para a exploração de imóveis para alojamento local; com relevo para a matéria em discussão nestes autos declarou que se deslocou ao arrendado duas vezes, a última das quais em 2017, na companhia da ré DD, constatando então que havia uma infestação de pulgas no arrendado.

KK, comerciante, conhece as rés, não conhecendo a autora. Declarou ter intermediado o arrendamento do nº ...03 da Rua .... Relativamente ao arrendado objeto destes autos declarou que não estava habitado há dezassete ou dezoito anos e estava cheio de lixo e de sacos de plástico amarrados.

HH, empreiteiro de construção civil declarou ter feito obras na Rua ..., em 2017, por conta da testemunha II, tendo também feito trabalhos na casa da parte de trás, em 2018, no mês de Março, por conta das rés; nesta casa nada havia que se aproveitasse, tendo tudo o que aí se achava ido para o lixo; enquanto fez as obras por conta do II apareceu uma porta arrombada na casa da traseiras, tendo colocado uma corrente para a fechar; mais tarde meteu outra porta cá fora; na casa das traseiras havia esqueletos de ratos e de pombos.

Rememorado o que de essencial foi declarado pelas testemunhas inquiridas na audiência final e bem assim o que resulta da prova documental junta aos autos e que foi admitida pelo tribunal a quo[25], é tempo de apreciar cada um dos pontos da decisão da matéria de facto impugnada pela recorrente.

Debrucemo-nos, em primeiro lugar, sobre o ponto 1 dos factos provados, a que a recorrente imputa um erro no nome do senhorio.

A questão que a recorrente ora suscita não é rigorosamente uma impugnação da decisão da matéria de facto, mas sim e verdadeiramente a correção de um erro material na resposta que foi dada pelo tribunal a quo.

A simples análise do contrato de arrendamento oferecido pela autora e não impugnado pelas rés, permite, com toda a segurança, concluir que quem deu de arrendamento à mãe da autora os altos da casa com entrada pela porta [dizer ilegível] – Rua ..., foi FF e não FF.

Deve assim corrigir-se este ponto 1 dos factos provados, tal como é requerido pela ora recorrente.

Uma vez que a recorrente suscitou a existência de um lapso no ponto 1 dos factos provados, aproveita-se a oportunidade para retificar o evidente lapso existente na primeira parte do ponto 11 dos factos provados quando se deu como provado que “[p]elas autoras, pelo menos no ano de 2017, foi constatado que não havia residentes no imóvel descrito em 1. e que este se encontrava degradado.”

Este ponto de facto corresponde, em parte, ao que foi alegado pelas rés no artigo 11 da contestação e é uma resposta restritiva ao que aí havia sido alegado.

Não tem qualquer sentido dar como provado que as autoras, pelo menos no ano de 2017, constataram que não havia residentes no arrendado, desde logo porque só há uma autora nestes autos; além disso, atento o conteúdo do ponto de facto, é notório que tem em vista as rés nestes autos.

Assim, por existir um lapso ostensivo na primeira parte do ponto 11 dos factos provados, onde ficou escrito “Pelas autoras”, passará a constar “Pelas rés”.

O ponto 13 dos factos provados tem um segmento ininteligível quando se refere que “no imóvel não existiam camas, nem quarto de banho estava amontoado com lixo”.

Esta matéria estava vertida nos artigos 16 e 17 da contestação, ainda que se atribuísse o género feminino ao substantivo “amontoado”.

Atendendo ao disposto na alínea c) do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil, este tribunal ajuizará oportunamente da remoção desta ininteligibilidade.

Prossigamos na impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente na parte que incide sobre o ponto 5 dos factos provados.

Neste ponto de facto apenas se deu como provado que após a morte de sua mãe, a autora habitou no arrendado algum tempo, dando-se como não provado que a autora residia com a mãe na data em que esta faleceu.

Sublinhe-se que ao contrário do que afirma a recorrente não existe aqui qualquer erro de interpretação do tribunal a quo do que foi alegado pela autora na sua petição inicial, pois que esta se limitou a alegar neste articulado que residia com a mãe na data do seu óbito, nunca tendo alegado desde quando se verificava essa situação, o que, atento ao disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 85º do Regime do Arrendamento Urbano era essencial para se poder concluir ou não pelo preenchimento dos pressupostos de facto necessários à transmissão do arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário.

Além disso, a única prova produzida sobre a matéria que a recorrente pretende ver incluída nos factos provados resultou do depoimento produzido pelo filho da autora, pessoa que no decurso do seu depoimento, por diversas vezes, revelou um interesse pessoal no arrendado.

Não foi produzida prova documental da data em que faleceu a mãe da autora, dizendo a testemunha GG que foi em 1994 e mais tarde em 1996 e tendo a autora alegado que foi em 1998 (veja-se o artigo 7º da petição inicial).

Não existe qualquer prova da comunicação do óbito da mãe da autora e a composição do agregado familiar da autora, de acordo com o que foi declarado pela testemunha GG, dificilmente se coaduna com a ocupação simultânea do arrendado por dois filhos da autora, por esta e seu marido e ainda pela mãe da autora.

Não existe qualquer prova documental nos autos de que a autora tenha pagado uma só renda referente ao arrendado e, pelo contrário, existe um recibo de renda datado de novembro de 1999 emitido em nome da mãe da autora.

A primeira carta enviada pela ré CC solicitando que o pagamento da renda se passe a fazer por depósito na conta bancária que identifica está endereçada a pessoa do sexo masculino e apenas a carta enviada no final de 2012, começos de 2013 (só assim se percebem os votos de um bom ano de 2013) está endereçada aparentemente à autora.

Neste contexto probatório, a convicção probatória desta instância converge com a do tribunal recorrido, mantendo-se por isso intocado o ponto 5 dos factos provados.

Debrucemo-nos agora sobre a impugnação do ponto 6 dos factos provados.

A matéria que a recorrente pretende seja julgada provada foi impugnada nos artigos 1 e 8 da contestação, havendo depois uma impugnação motivada de parte da factualidade vertida nos artigos 8, 9, 10, 17 e 18 da petição inicial nos artigos 5 a 7 da contestação.

Por isso, a pretensão da recorrente de que essa matéria seja tida como provada por efeito da inobservância do ónus de impugnação não tem fundamento.

Aliás, a impugnação da recorrente é reveladora da sua falta de razão já que, de duas uma: ou existe uma admissão da factualidade por confissão ficta, ex vi nº 3 do artigo 574º do Código de Processo Civil e tudo se resolve neste plano ou não existe confissão ficta e a questão resolve-se em conformidade com a prova que sobre a matéria tenha sido produzida, não sendo admissível qualquer miscigenação da confissão ficta decorrente da inobservância do ónus de impugnação, com a concreta prova que tenha sido produzida e apreciada livremente, como é pretendido pela recorrente.

Atentando no que foi articulado pelas rés no artigo 7 da sua contestação, bem se vê que não é aí admitida qualquer recusa de pagamento da renda por parte da ré CC, mas sim a recusa do recebimento de depósitos por parte de alguém que se identificava como “FF” e que pretendia criar a aparência da existência de um arrendamento.

Sublinhe-se uma vez mais que não existe qualquer prova de depósito de uma só renda por parte da autora e embora o filho da autora tenha afirmado ter em seu poder todos os comprovativos dos depósitos das rendas, não foram juntos aos autos, o que impossibilita o tribunal de aferir em que termos foram realizados. Anote-se que o filho da autora nunca referiu que a autora alguma vez lhe tenha entregado dinheiro para proceder ao pagamento da renda.

Assim, tudo sopesado, improcede a impugnação do ponto 6 dos factos provados e bem assim dos artigos 10, 17 e 18 da petição inicial e dos artigos 5, 6 e 7 da contestação dados como não provados nos pontos 1 e 2 dos factos não provados da sentença recorrida.

Apreciemos agora a impugnação do ponto 9 dos factos provados e do ponto 3 dos factos não provados, com referência aos artigos 46, 48 e 49 da réplica que a recorrente afirma estarem em contradição com os pontos 11 e 13 dos factos provados.

A matéria dada como provada no ponto 9 dos factos provados não constitui matéria de direito pois que não se divisa em nenhuma previsão legal relativa ao regime jurídico do arrendamento uma qualquer referência ao termo abandono. Admite-se que se trata de um termo com algum caráter conclusivo, mas de fácil perceção por qualquer cidadão comum e, por isso, entende-se que se deve manter na factualidade provada.

Vejamos agora os artigos 46, 48 e 49 da réplica que a recorrente afirma estarem em contradição com os pontos 11 e 13 dos factos provados e que, além disso, foi produzida prova documental e pessoal que constitui suficiente suporte probatório para as respostas por si pretendidas.

É jurisprudência corrente que a não prova de um facto equivale à não articulação desse facto, tudo se passando como se tal facto não existisse[26], não se podendo retirar da não prova de certo facto a prova do facto contrário. Daí que não possa ocorrer contradição entre respostas negativas.

E bem se compreende que assim seja porquanto a resposta à matéria de facto não constitui um mero exercício de lógica. De facto, as respostas negativas podem resultar de nenhuma prova ter sido produzida quanto à matéria em causa ou ainda de a prova produzida não ter sido convincente quanto a todos os pontos de facto em apreço, circunstâncias em que bem se percebe que a não prova de certo segmento factual não constitui arrimo seguro para que se dê como provada a factualidade oposta também controvertida.

Se acaso a resposta negativa a certo segmento de facto deriva da prova do contrário é que, se tal facto contrário também está quesitado, deve essa matéria, necessariamente, obter resposta positiva. No entanto, se tal facto contrário também merecer do tribunal resposta negativa, não se tratará nessa eventualidade de contradição entre respostas negativas, mas antes de um erro de julgamento da matéria de facto.

Situação diversa e que não colhe a unanimidade do nosso mais alto tribunal é a da contradição entre respostas negativas e positivas[27], como no caso em apreço sustenta a recorrente.

Na nossa perspetiva, do ponto de vista lógico, não pode um nada em que se traduz uma resposta negativa colidir com algo em que se traduz uma resposta positiva. Porém, bem podem os pressupostos de uma resposta negativa envolver, necessariamente, a não prova, de outro facto quesitado, bem como verificar-se a situação inversa. Contudo, nesta situação, à semelhança do que já se afirmou a propósito da contradição entre respostas negativas, o vício que ocorre nesses casos não é de ordem lógica, sendo antes um erro na apreciação da prova.

Porém, deve vincar-se que ao contrário do que é afirmado pela recorrente, os artigos 46, 48 e 49 da sua réplica não estão em contradição com os pontos 11 e 13 dos factos provados, antes contêm uma maior concretização e pormenorização das patologias alegadamente existentes no arrendado.

O segmento inicial do artigo 46 da réplica integra matéria de direito e por isso em caso algum pode ser dado como provado, tanto mais que as rés questionam a alegada transmissão do contrato de arrendamento para a autora.

A restante matéria vertida nos artigos 46, 48 e 49 da réplica apenas tem como suporte probatório o depoimento do filho da autora, não podendo ser relevado o depoimento da testemunha HH, como pretendido pela recorrente, pois que este se limitou a constatar o estado do arrendado em 2017/2018.

As fotografias juntas aos autos na primeira sessão da audiência final apenas dão conta da sujidade e degradação do espaço fotografado, não permitindo identificar as múltiplas patologias a que a recorrente se refere e muito menos o momento em que se verificaram.

As fotografias extraídas do Google Earth juntas em requerimento de 29 de maio de 2023 não têm suficiente pormenorização para permitir qualquer conclusão sobre o estado do arrendado nas sucessivas datas em que foram tiradas.

Resta o depoimento de GG, filho da autora, que manifestou interesse próprio no arrendado e cujo depoimento não tem qualquer corroboração exterior e dele independente, como sejam, por exemplo, comunicações das patologias verificadas e intimações à senhoria no sentido de serem feitas obras no arrendado (veja-se a alínea h) do artigo 1038º do Código Civil).

Recorde-se que a autora saiu há mais de dez anos do arrendado e que essa longa ausência, pode potenciar a ocorrência de danos, já que o não uso de uma casa tem efeitos nefastos na sua conservação, por exemplo, nas canalizações e pode determinar o agravamento de danos em consequência da não comunicação do sucedido em tempo oportuno ao senhorio de modo a que sejam tomadas medidas para reparação ou contenção de danos.

Assim, tudo sopesado, a convicção probatória desta instância de recurso converge com a do tribunal recorrido, pelo que improcede totalmente a impugnação da recorrente, ressalvada a retificação dos pontos 1 e 11 dos factos provados.

No entanto, deve remover-se nesta instância a ininteligibilidade já anteriormente referida de parte do ponto 13 dos factos provados, pois que estão na disponibilidade deste tribunal todos os elementos que serviram de base à convicção probatória do tribunal a quo (alínea c) do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil).

A prova pessoal produzida decorrente dos depoimentos das testemunhas II, JJ, KK e HH, em conjugação com as fotografias oferecidas na primeira sessão da audiência final, permitem-nos concluir que havia lixo amontoado no arrendado.

Por isso, o ponto 13 dos factos provados deve passar a ter o seguinte teor:

- No momento temporal referido em 11. no imóvel não existiam camas, nem quarto de banho, existindo lixo amontoado, ratos e pombos mortos.

3.2 Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida com as alterações decorrentes da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto que precede

3.2.1 Factos provados


3.2.1.1

Em 05 de dezembro de 1944 EE declarou tomar de arrendamento e FF declarou dar de arrendamento o 1.º andar do imóvel situado na Rua ..., no Porto, pelo período de 1 ano, renovável, mediante o pagamento de uma quantia mensal.

3.2.1.2

No ano de 2000, a ré CC remeteu uma carta para o imóvel referido em 1.[28][3.2.1.1], na qual solicitava que a entrega da quantia mensal devida passasse a ser através de transferência bancária [rectius depósito em conta] para uma conta bancária junto do Banco 1..., o que sucedeu.

3.2.1.3

No ano de 2013, a ré CC remeteu à autora uma carta[29], na qual lhe comunicava que a partir do mês de março/2013 o valor mensal devido pela ocupação do imóvel seria de 30,00 euros.

3.2.1.4

A outorgante referida em 1.[3.2.1.1], EE, mãe da autora, fez uso do imóvel identificado até à sua morte.

3.2.1.5

Após a morte da sua mãe a autora habitou no imóvel por algum tempo.

3.2.1.6

Em 08 de outubro de 2019 foi depositada na conta indicada na carta mencionada em 2. [3.2.1.2], a quantia de 30,00 euros, sendo que após essa data a autora não procedeu à entrega de quaisquer outros montantes.

3.2.1.7

O imóvel onde se situa o 1.º andar identificado está descrito na Conservatória do Registo Predial [do Porto] sob o n.º ...80/19940325 e em 25 de março de 1994 encontrava-se inscrito a favor de BB e CC; a partir de 07 de maio de 2018 passou a estar inscrito a favor de DD por doação de BB e de CC.

3.2.1.8

BB faleceu em ../../2019, deixando como sua única herdeira CC.

3.2.1.9

A autora abandonou o imóvel descrito em 1. [3.2.1.1], há mais de uma dezena de anos.

3.2.1.10

Em 10 de outubro de 2006, a autora colocou termo ao contrato de fornecimento de eletricidade ao imóvel.

3.2.1.11

Pelas rés, pelo menos no ano de 2017, foi constatado que não havia residentes no imóvel descrito em 1. [3.2.1.1] e que este se encontrava degradado. Ainda nesse ano o portão de acesso ao n.º 211 foi arrombado, pelo que, no ano de 2018, foi colocado um cadeado na porta de acesso ao imóvel descrito em 1. [3.2.1.1] e ulteriormente foi colocado um portão.

3.2.1.12

Do referido em 11. [3.2.1.11], não foi dado conhecimento à autora, nem entregues as respetivas chaves.

3.2.1.13

No momento temporal referido em 11. [3.2.1.11] no imóvel não existiam camas, nem quarto de banho, existindo lixo amontoado, ratos e pombos mortos.

3.2.2 Factos não provados


3.2.2.1

Que a mãe da autora faleceu em novembro de 1998.

3.2.2.2

Que desde essa data, a autora, que residia com a mãe, assumiu a posição de arrendatária[30], continuando a habitar no local com a sua família, guardando no seu interior as suas roupas, mobílias e demais bens pessoais.

3.2.2.3

Que não obstante a colocação de um cadeado na porta de acesso ao arrendado e de um portão, a autora continuou a pagar a renda através de depósito na conta bancária que conhecia.

3.2.2.4

Que a partir de 08 de outubro de 2019 os senhorios recusaram o recebimento da renda na conta bancária que tinha sido por eles designada.

3.2.2.5

Que a transmissão do arrendado para a terceira ré causou grande surpresa à autora, uma vez que a transmissão do prédio e, consequentemente, da posição contratual de senhorio, nunca lhe foi comunicada.

3.2.2.6

Que a autora desconhece quem colocou ou mandou colocar o cadeado no imóvel e quem mudou ou mandou colocar novas porta e fechadura.

3.2.2.7

Que o valor mínimo mensal para o arrendamento de um apartamento de tipologia semelhante ao arrendado no centro da cidade do Porto é não inferior a € 600,00.

3.2.2.8

Que a autora tem 90 anos de idade[31] e esta situação tem-lhe causado muita angústia, ansiedade e desgosto, por ser ver despojada, ao fim de tantos anos, da sua casa de habitação e dos seus bens móveis, sem qualquer pré-aviso ou justificação, sendo que o comportamento das rés é também uma grave ofensa às memórias que a autora foi gerando ao longo dos anos em que ocupou aquele espaço, por ali ter criado os seus filhos.

3.2.2.9

Que a autora foi surpreendida com um ato completamente injustificado e injusto por parte das rés, o que a deixou seriamente transtornada, e lhe tirou, e continua a tirar, inúmeras noites de sono e prejudica severamente o seu descanso e bem-estar.

3.2.2.10

Que a autora nunca comunicou o falecimento da sua mãe, cônjuge do primitivo arrendatário, nem demonstrou que com ela coabitasse.

3.2.2.11

Que a primeira ré contestante tomou conhecimento verbal por terceiros, muito para além do prazo de três meses que, à data a lei prescrevia, da morte da arrendatária EE, como, aliás se vê dos recibos de renda juntos com a Petição Inicial, emitidos em nome daquela em data que, segundo o alegado na petição inicial, a mesma já teria falecido.

3.2.2.12

Que a primeira ré apenas permitiu, a título de liberalidade, que a autora se mantivesse na posse não titulada do imóvel, dela recebendo uma contrapartida destinada ao pagamento do IMI.

3.2.2.13

Que após a indicação do NIB, a primeira ré contestante deixou de se aperceber, por falta de indicação ou identificação da autora como depositante, da transferência de qualquer verba para a referida conta bancária, sendo certo que a LL[32] recebe, por esse meio, vários depósitos de pequeno valor.

3.2.2.14

Que tais depósitos terão sido feitos por alguém que assinava “FF”, que a primeira ré contestante nunca associou à autora, sendo que quando tomou conhecimento que tais depósitos, efetuados por outrem que não a autora, se destinariam a manter a “aparência” da existência de um contrato de arrendamento, deu ordem para não serem recebidos.

3.2.2.15

Que entre dezembro de 2017 e agosto de 2018, sucederam-se mais três arrombamentos, quer do portão, quer do acesso à habitação, que foi vandalizada por terceiros desconhecidos.

3.2.2.16

Que para dar conta da situação, e com o intuito de que a mesma retirasse do imóvel os bens que lhe pertencessem, a primeira ré contestante enviou uma carta à autora, de que não obteve resposta, à semelhança das demais.

3.2.2.17

Que no período em que a autora sucedeu na titularidade do contrato de arrendamento, nunca as rés realizaram quaisquer obras de manutenção, apesar de a isso instadas em diversos momentos, numa deplorável manobra para obter a desocupação do espaço com vista à sua rentabilização através de outras formas de exploração.

3.2.2.18

Que em consequência, a autora assistiu à degradação do locado, traduzida em partes do telhado a cair, incluindo a chaminé que caiu em cima do seu fogão, mau funcionamento das janelas, rebentamento de canalizações, problemas que se traduziram em infiltrações de água, humidades nas paredes e tetos, fortes correntes de ar, inundações, curtos-circuitos, etc…

3.2.2.19

Que estes problemas foram constatados pela Câmara Municipal do Porto, a qual, em 2017, considerou que o prédio não tinha condições mínimas de habitabilidade.

4. Fundamentos de direito

Da repercussão na solução do caso da eventual alteração na decisão da matéria de facto e, em todo o caso, da manutenção do contrato de arrendamento para habitação de que a autora é arrendatária

A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida com procedência parcial da ação sem, contudo, definir precisamente em que termos essa pretendida procedência parcial se deve verificar.

Assenta a sua pretensão de revogação da sentença recorrida na alegação de que as normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa, que por força das normas combinadas dos artigos 1083º, 1084º do Código Civil e 14º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, o contrato de arrendamento não cessa pela verificação das condições previstas na lei para a sua resolução, sendo necessário o recurso à ação de despejo, que no contrato de arrendamento, às obrigações do senhorio de entregar ao arrendatário a coisa arrendada e de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se destina corresponde a obrigação de pagar a renda, que o contrato provado nos autos mantém-se em vigor e a autora conserva intacto o seu direito a utilizar o locado e ainda que a sentença sofre de insuficiente fundamentação pois não logra identificar qual o facto extintivo da pretensão da autora, nem enquadrá-lo juridicamente, violando o disposto no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, que a saída da autora está justificada e a sua conduta está conforme ao direito, motivo pelo qual nem sequer lhe pode ser oposta a cláusula de última ratio do abuso do direito.

Na sentença recorrida fundamentou-se essencialmente a improcedência da pretensão da autora nos seguintes termos:

Ora da matéria provada o que resulta não é que as rés tenham impedido o acesso da autora ao imóvel, mas que esta no ano de 2006 deixou de lá residir, a título definitivo, não tendo comunicado tal facto às rés, as quais, apenas no ano de 2017, tomaram conhecimento da inexistência de residentes no imóvel e do estado de degradação em que este se encontrava. E não se diga que o filho da autora por vezes ocupava o imóvel porquanto o arrendamento existente era com a autora, sendo esta quem deveria habitar no imóvel.

Por estes motivos a pretensão da autora carece de fundamento legal, na medida em que foi ela quem deixou de residir no imóvel, não comunicou tal facto às rés, não demonstrou a recusa destas em realizar obras, nem sequer que tivesse havido um pedido nesse sentido, não existindo qualquer conduta reprovável por parte das rés (a colocação de um cadeado na porta e a mudança desta ocorre mais de 10 decorridos sobre a saída a título definitivo do imóvel pela autora), nem qualquer situação de eventual abuso de direito.

De acordo com o preceituado pelo art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”. A autora não foi bem sucedida na satisfação do ónus da prova que sobre si recaía, sendo que, por seu turno, as rés lograram demonstrar um facto extintivo da sua pretensão (art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil).

Cumpre apreciar e decidir.

As alterações na decisão da matéria de facto são na realidade correções, sem qualquer relevo para a posição jurídica da recorrente.

Daí que, à luz dos factos provados, importe apreciar se a pretensão da ora recorrente reúne os necessários pressupostos legais de procedência.

De facto, é verdade que as normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa (artigo 1080º do Código Civil); porém, não é totalmente verdade que por força das normas combinadas dos artigos 1083º, 1084º do Código Civil e 14º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, o contrato de arrendamento não cessa pela verificação das condições previstas na lei para a sua resolução, sendo necessário o recurso à ação de despejo, já que se prevê que a resolução opere nalguns casos por mera comunicação do senhorio ao inquilino (veja-se o nº 2 do artigo 1084º do Código Civil), sendo verdade que no contrato de arrendamento, às obrigações do senhorio de entregar ao arrendatário a coisa arrendada e de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se destina corresponde a obrigação de pagar a renda pelo arrendatário.

Porém, que dizer de alguém que abandona o arrendado há já mais de dez anos, sem informar o senhorio, rescindindo o contrato de fornecimento de energia elétrica, sem que demonstre qualquer razão para tal conduta e que, não obstante isso, volvidos tantos anos, vem queixar-se da privação do gozo do arrendado, pretendendo ser reinvestido nesse gozo de que voluntariamente abdicou e indemnizado pela privação do gozo entretanto “sofrida”?

De acordo com o disposto no artigo 334º do Código Civil, “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Uma das modalidades de abuso do direito é o denominado tu quoque que “exprime a máxima pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois, sem abuso: (1) ou prevalecer-se da situação daí decorrente; (2) ou exercer a posição violada pelo próprio; (3) ou exigir a outrem o acatamento da situação inobservada”[33].

No caso dos autos, por via da presente ação, a autora pretende ser indemnizada por uma alegada privação de gozo do arrendado de que voluntariamente abdicou, sem que tenha demonstrado qualquer razão para tal conduta, e exercer o direito de gozo sobre o arrendado de que ela própria se demitiu há mais de dez anos, sem conhecimento das senhorias.

No caso do arrendamento urbano o arrendatário tem o dever de uso efetivo do arrendado (artigo 1072º, nº 1, do Código Civil), salvo se comprovar alguma das exceções previstas no nº 2 do artigo que se acaba de citar, tal como o senhorio tem o dever de assegurar o gozo do arrendado para os fins a que a coisa se destina (artigo 1031º, alínea b) do Código Civil).

Ainda que se admita que a relação de arrendamento não se extinguiu, por não se ter verificado uma das formas de cessação legalmente previstas e com as formalidades legais, o exercício pela ora recorrente da posição jurídica de arrendatária de que voluntariamente se demitiu, sem conhecimento das senhorias, há mais de dez anos, constitui inequivocamente um manifesto e censurável abuso do direito na modalidade de tu quoque, sendo por isso ilegítimo esse exercício.

A ilegitimidade no exercício do direito pela ora recorrente constitui uma situação equiparada à ilicitude[34] e determina a total improcedência da ação e do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

Pelo exposto, não obstante as correções pontuais na decisão da matéria de facto, o recurso improcede, sendo as custas do mesmo da responsabilidade da recorrente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam, não obstante as correções introduzidas na decisão da matéria de facto, em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por AA e, em consequência, em confirmar a sentença recorrida proferida em 05 de setembro de 2023, nos segmentos impugnados.

Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a recorrente.


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O presente acórdão compõe-se de vinte e nove páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.


Porto, 23 de setembro de 2024

Carlos Gil

Anabela Morais

Ana Paula Amorim


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[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 08 de setembro de 2023.
[3] Na identificação global da factualidade provada impugnada não figura o artigo 5º dos factos provados (veja-se no corpo das alegações o primeiro período logo após o título “Da Impugnação da matéria de Facto” e a segunda conclusão das alegações de recurso). Porém, quer no corpo das alegações, quer mesmo em sede de conclusões das alegações de recurso vem identificado o ponto 5 dos factos provados como objeto de impugnação também (veja-se o primeiro período após a proposta de decisão relativamente ao ponto 1º dos factos provados e a quarta conclusão das alegações de recurso).
[4] A recorrente pretende impugnar os artigos 8 a 10, 17 e 18 da petição inicial que se incluem no ponto 1º dos factos não provados.
[5] Neste caso, a recorrente pretende que se releve o conteúdo dos artigos 5, 6 e 7 da contestação à luz do ónus de impugnação que incide sobre o réu.
[6] A recorrente afirma pretender impugnar os artigos 46, 48 e 49 da réplica que se incluem no ponto 3 dos factos não provados.
[7] Este segmento deste ponto de facto é ininteligível e para tentar entendê-lo e corrigi-lo, será necessário atentar nos artigos 16 e 17 da contestação que têm o conteúdo que segue: “Como as portas se encontravam arrombadas, as Rés Contestantes acederam ao primeiro andar do imóvel, tendo constatado a inexistência de camas ou quarto de banho” (artigo 16 da contestação); “Mais constatarm a presença de esqueletos e ratos e pombos um amontoada de lixo, com sérios riscos para a salubridade e saúde pública” (artigo 17 da contestação).
[8] Nesse contrato datado de 05 de dezembro de 1944, relativo aos altos da casa com entrada pela porta [dizer ilegível] – Rua ..., FF deu de arrendamento o referido imóvel a EE. Está manuscrita no contrato a seguinte cláusula: “A inquilina quando abandonar a casa avisará o senhorio com trinta dias de antecedencia.”
[9] Esta carta, sem data, assinada por alguém que se identifica como “CC”, tem o seguinte conteúdo: Ex. Dona [esta palavra está rasurada] AA, Eu, CC, venho por este meio informar que de acordo com a lei em vigôr, venho propor a renda que está à data no valor de 17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), para o valor de 30,00 (trinta euros), em vigôr a partir do mês de Março de 2013. Votos de um ano de 2013 com tudo de bom. Agradeço a sua colaboração uma vez que a renda está totalmente [palavra ilegível] à actualidade e aos impostos pagos (IMI). Cumprimentos, [assinatura] PS: a carta vai normal, porque com aviso de recepção não está ninguém p/ assinar e vem devolvida”.
[10] Cópias de dois recibos, ambos com o nº 11 manuscrito em cada um deles, figurando em ambos os recibos como autor dos pagamentos a Sra. EE, o primeiro datado de 01 de novembro de 1984, referente ao mês de dezembro de 1984, no montante de 807$81[?], a título de renda de uma propriedade sita no ...11 da Rua ... e o segundo datado de 01 de novembro de 1999, referente ao mês de dezembro de 1999, no montante de 2.312$00, a título de renda de uma propriedade sita no ...11 da Rua ..., estando o segundo recibo subscrito por alguém que apôs uma assinatura manuscrita em que é legível o nome “CC”.
[11] Esta carta, datada de 15 de outubro de 2000, assinada por alguém que se identificou como “CC” tem o seguinte teor: “Exmo. Sr. Venho por este meio solicitar a Vª Exª., se digne, a partir de 1 de Novembro /entre o dia 1 e o dia 8 respectivamente), pagar a renda atravez do Banco. Para tal, envio o nº da conta e Nib, para a qual poderão fazer o respectivo depósito. Logo que o depósito dê entrada na conta Bancária, enviarei o respectivo recibo. Grata pela vossa melhor compreensão para o assunto (…) nº da conta Banco 1... ...01 Nib:  ...63 [segue-se a assinatura de alguém que se identifica como “CC”] (Para qualquer dúvida telefone ...35)”.
[12] Este documento tem o logótipo do Banco 1..., o nº ...37, está datado de 08 de outubro de 2019, com referência à conta B-...00[?], da titularidade de CC, no montante de € 30,00, com uma assinatura de que apenas se consegue ler o jota inicial em letra maiúscula.
[13] Nascida em ../../1931, filha de MM e de EE, casou em ../../1953 com NN, casamento que se dissolveu por óbito do marido em ../../2004.
[14] Informação datada de 14 de março de 2022, de que se destaca o seguinte parágrafo: “Foi identificada na nossa base de dados, a cidadã AA, com o NIF ...11..., no qual foi titular de um contrato de fornecimento de energia elétrica na morada Rua ..., ..., Porto ... Porto (Habitação), Local de consumo ...39- ... ...91..., contrato celebrado com o Comercializador EDP SU- Serviço Universal, agora denominada SU ELETRICIDADE, no período compreendido entre 08.03.2004 a 10.10.2006.”
[15] Informação datada de 31 de março de 2022 em que se consigna que a morada da autora nesses serviços é na Rua ... Hab ...6 – ... Porto, corrigindo posteriormente esta morada em informação datada de 18 de maio de 2023, informando que a morada da autora é na Rua ... Hab ...6 – ... Vila Nova de Gaia, tendo os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde informado em 29 de maio de 2023 que a autora tem esta última morada desde ../../2021.
[16] Referente ao ano de 2015, remetida para AA, Rua ... ... Porto.
[17] Referente ao ano de 2018, endereçada para AA Rua ... ... Porto.
[18] O primeiro referente ao mês de maio de 2020, emitido em ../../2020, endereçado para AA Rua ... ... Porto, relativo ao pagamento de pensão de sobrevivência e atualizações extraordinárias nos anos de 2017 a 2020, inclusive; o segundo referente ao mês de janeiro de 2020, emitido em 30 de dezembro de 2019, endereçado para AA Rua ... ... Porto, relativo ao pagamento de pensão de sobrevivência e atualizações extraordinárias nos anos de 2017 a 2019, inclusive; o terceiro referente ao mês de fevereiro de 2021, emitido em 05 de fevereiro de 2021, endereçado para AA Rua ... ... Porto, relativo ao pagamento de pensão de sobrevivência e atualizações extraordinárias nos anos de 2017 a 2021, inclusive.
[19] Datada de 27 de junho de 2018 e endereçada para AA Rua ... ... Porto.
[20] Referente ao ano de 2019, endereçada para AA Rua ... ... Porto.
[21] Na primeira das fotografias vê-se parte de um lanço de escadas, sujo com caliça e com caixotes e latas de metal e baldes aparentemente de plástico, tudo com pó e caliça; na segunda vê-se outro lanço de escadas, com uma passadeira, com uns cartões no topo do lanço, caliça espalhada pela escadas, um recipiente de plástico, uma garrafa de água e lixo; na terceira vê-se parte de um móvel, decoração de Natal, uma jarra em vidro muito suja, várias latas pequenas de tinta e diversos outros artefactos, tudo coberto com muito pó; na quarta vê-se o que parece ser um corredor de acesso a uma escada, com caliça e pó no chão, caixotes, peças de madeira e vassouras; na quinta retrata-se o que parece ter sido uma cozinha com muita sujidade no chão e diversos objetos dispostos de forma caótica; na sexta faz-se um grande plano de parte do cenário retratado na fotografia anterior, sendo visível um fogão coberto de pó e uma janela com uma peça de madeira disposta em diagonal.
[22] São fotografias extraídas do Google Earth Pro, da Rua ... Porto, datadas de 26 de junho de 2007, 11 de maio de 2013, 17 de agosto de 2014, 03 de julho de 2016, 06 de setembro de 2017, 25 de outubro de 2018, mas que não permitem conclusões minimamente seguras sobre o estado do arrendado nas datas em que foram obtidas.
[23] No entanto, pediram apoio judiciário restrito à modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
[24] Porém, mais adiante, instado pela Sra. Advogada das rés, declarou que tirou do arrendado a cama.
[25] Na sessão da audiência final realizada em 30 de junho de 2023, o tribunal recorrido não admitiu a prova documental oferecida pela autora com o seu requerimento de 29 de junho de 2023.
[26] Neste sentido, por todos, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de janeiro de 2005, relatado pelo Sr. Conselheiro Oliveira Barros, no processo nº 04B347, acessível no site do IGFEJ.
[27] No sentido da impossibilidade de contradição entre respostas negativas e positivas veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de abril de 2010, relatado pelo Sr. Conselheiro Bettencourt de Faria, no processo nº 9810/036TVLSB.S1, acessível no site do IGFEJ. Em sentido oposto, em casos excecionais, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de maio de 2010, relatado pelo Sr. Conselheiro Alves Velho, no processo nº 2655/04.8TVLSB.L1.S1, acessível no site do IGFEJ.
[28] Esta carta, datada de 15 de outubro de 2000, assinada por alguém que se identificou como “CC” tem o seguinte teor: “Exmo. Sr. Venho por este meio solicitar a Vª Exª., se digne, a partir de 1 de Novembro /entre o dia 1 e o dia 8 respectivamente), pagar a renda atravez do Banco. Para tal, envio o nº da conta e Nib, para a qual poderão fazer o respectivo depósito. Logo que o depósito dê entrada na conta Bancária, enviarei o respectivo recibo. Grata pela vossa melhor compreensão para o assunto (…) nº da conta Banco 1... ...01 Nib:  ...63 [segue-se a assinatura de alguém que se identifica como “CC”] (Para qualquer dúvida telefone ...35)”
[29] Esta carta, sem data, assinada por alguém que se identifica como “CC”, tem o seguinte conteúdo: Ex. Dona [esta palavra está rasurada] AA, Eu, CC, venho por este meio informar que de acordo com a lei em vigôr, venho propor a renda que está à data no valor de 17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), para o valor de 30,00 (trinta euros), em vigôr a partir do mês de Março de 2013. Votos de um ano de 2013 com tudo de bom. Agradeço a sua colaboração uma vez que a renda está totalmente [palavra ilegível] à actualidade e aos impostos pagos (IMI). Cumprimentos, [assinatura] PS: a carta vai normal, porque com aviso de recepção não está ninguém p/ assinar e vem devolvida”.
[30] Este segmento é claramente matéria de direito e por essa razão não pode ser relevado enquanto matéria de facto.
[31] Foi oferecida com a réplica certidão de nascimento de AA, nascida em ../../1931, filha de MM e de EE, que casou em ../../1951 com NN, casamento que se dissolveu por morte do marido em ../../2004. Por isso, em 12 de março de 2021, data da propositura da ação, a autora não tinha noventa anos de idade.
[32] Este ponto dos factos não provados corresponde ao artigo 6 da contestação, artigo que enferma de evidente lapso, devendo ler-se “primeira ré” onde ficou escrito “LL”.
[33] Citação extraída do Código Civil Comentado, com coordenação do Sr. Professor António Menezes Cordeiro, I – Parte Geral, Almedina 2020, página 937, IX, 31, anotação ao artigo 334º do Código Civil da responsabilidade do coordenador da obra.
[34] Assim veja-se Código Civil Comentado, com coordenação do Sr. Professor António Menezes Cordeiro, I – Parte Geral, Almedina 2020, página 931, V, 17, (1), anotação ao artigo 334º do Código Civil da responsabilidade do coordenador da obra.