CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
CADUCIDADE
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO LOCADO
Sumário

I - Ao referir-se a “arrendamento para habitação” no nº 3 do artigo 863º do Código de Processo Civil ou a “imóvel arrendado para habitação” na epígrafe do artigo 864º do Código de Processo Civil e no nº 1 deste mesmo artigo, o legislador pretendeu limitar a aplicação desses regimes jurídicos aos casos em que esteja em causa um imóvel que esteve arrendado para habitação ao executado e que este não desocupou incumprindo o dever legal pós-contratual subsequente à cessação do contrato de arrendamento.
II - O reconhecimento pela arrendatária em transação judicial de que o contrato de arrendamento para habitação caducou por efeito da oposição à renovação automática do contrato de arrendamento pelo senhorio, contrato que constituía o título para ocupação do local a despejar, é em tudo equiparável à decisão judicial que em ação comum ou em procedimento especial de despejo venha a reconhecer a caducidade do contrato de arrendamento e o dever de desocupação do local a despejar.
III - O legislador teve o cuidado de distinguir a tutela conferida ao executado que não teve a qualidade de arrendatário no caso do imóvel a entregar ser a sua habitação principal (artigo 861º, nº 6, do Código de Processo Civil), da que é conferida à pessoa que se encontra no local a despejar quando o imóvel a entregar era arrendado para habitação, sempre que se mostre que a diligência de despejo põe em risco a vida dessa pessoa e isso por causa de doença aguda (artigo 863º, nº 3, do Código de Processo Civil).
IV - Pelo contrário, no incidente de diferimento de desocupação, os fundamentos sem os quais este incidente não pode ser deferido previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil apenas contemplam o arrendatário, entenda-se o arrendatário do contrato extinto e que não cumpriu o dever de desocupação do arrendado.
V - No entanto, no corpo do nº 2 do artigo 864º, do Código de Processo Civil, prevê-se entre os variados elementos a ponderar na decisão final do incidente, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade e o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.
VI - Neste contexto normativo parece claro que o legislador limitou o relevo jurídico das pessoas que habitam com o arrendatário (veja-se o artigo 1093º do Código Civil) ao juízo prudencial emitido pelo juiz de acordo com a previsão do corpo do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil, mas não lhes deu relevância em sede dos dois pressupostos sem os quais o incidente de diferimento de desocupação não pode proceder e que estão previstos nas alíneas a) e b) do já citado artigo 864º do Código de Processo Civil.
VII - Esta construção normativa compreende-se, pois que estando em causa uma eventual extensão judicial do prazo de desocupação do locado, dever jurídico que impende sobre aquele que era o arrendatário no arrendamento que deixou de produzir efeitos por força da verificação de uma das formas legais de cessação desse contrato, essa eventual extensão do prazo tem que necessariamente ser aferida por referência ao sujeito passivo do dever de desocupação do arrendado.

Texto Integral

Proc. n.º 2450/24.8T8LOU.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 2450/24.8T8LOU.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório

Em 05 de julho de 2024, no processo comum nº 845/22.0T8PNF do Juízo Local Cível de Penafiel, Comarca do Porto Este, AA e BB instauraram contra CC ação executiva para entrega de coisa certa, mais concretamente do rés do chão de prédio situado na Rua ..., ..., freguesia e concelho ..., sendo o título exequendo a sentença homologatória de transação exarada em audiência realizada no dia 09 de abril de 2024, transitada em julgado em 09 de maio de 2024, transação e sentença com o seguinte teor:

Seguidamente, a Mmª Juiz tentou a conciliação entre as partes, o que conseguiu nos seguintes termos:

I.

Autores e Ré aceitam que o contrato de arrendamento existente entre eles sessou [sic] no dia 28/02/2022;

II.

A ré obriga-se a entregar/restituir aos autores o locado completamente livre e desocupado de pessoas e bens incluindo o jardim/logradouro que ocupa em frente ao mesmo até ao dia 30/06/2024, sendo as chaves do locado entregues pela ré até essa data ao seu pai;

III.

Todas as quantias que foram depositadas pela ré até esta data, na conta bancária da Banco 1... número ...50, devidamente identificada na contestação, revertem a favor dos autores como compensação pela ocupação da ré do locado até 30/06/2024;

IV.

As custas devidas a final serão suportadas em partes iguais prescindindo ambos de custas de parte, sem prejuízo da compensação que deve ser operada em face do disposto do art.26º n.º6 e 7 do RCP. -


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Em seguida, a Mmª Juiz proferiu a seguinte: -

S E N T E N Ç A

Atendendo à qualidade das partes e ao objeto do processo, julgo válida a transação que antecede, e homologo-a por sentença dando por reproduzidas as respetivas cláusulas, condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos (arts. 277.º, al. d), 283.º, 284.º, 289.º e 290.º do C.P.Civil).

Custas conforme o acordado. – cfr. art. 537.º, n.º 2 do C.P.Civil

Registe e notifique.

Em 08 de julho de 2024, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 85º do Código de Processo Civil, foi remetida certidão para distribuição nos Juízos de Execução de Lousada, Comarca do Porto Este.

Em 09 de julho de 2024, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono e de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, CC veio requerer o diferimento por cinco meses da desocupação da habitação cuja entrega judicial é requerida, alegando, para tanto, em síntese, que não obstante as diligências encetadas, não conseguiu arrendar habitação que seja para si economicamente comportável, tanto mais que se acha desempregada e doente, o acesso à habitação social é demorado e tem como exclusivo rendimento a pensão recebida por seu filho, doente esquizofrénico[1], que consigo habita na casa cuja entrega é requerida.

O incidente foi liminarmente admitido, sendo os exequentes notificados para, querendo, contestar.

Os exequentes deduziram oposição ao incidente de diferimento de desocupação, pugnando pelo seu indeferimento, alegando, em síntese, que a requerente do incidente não alega nenhum dos dois fundamentos legais de diferimento da desocupação do locado previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil e que o contrato de arrendamento do local objeto de despejo cessou por oposição à renovação automática em 28 de fevereiro de 2022, não tendo a requerente do incidente cumprido o dever de desocupação do arrendado.

Em 15 de julho de 2024 foi proferida a seguinte decisão[2]:

A executada CC veio deduzir incidente de diferimento da desocupação.

Os exequentes opoêm-se.

Cumpre apreciar.

O art. 864º do CPC consubstancia uma possibilidade manifestamente excepcional, que se opõe à disciplina que vigora para o comum das situações de entrega de coisa imóvel em sede executiva, fundada em razões especiais, privativas das relações arrendatícias e, que prevê que durante a moratória imposta ao senhorio/exequente para que o executado possa encontrar alojamento alternativo seja o Fundo de Socorro Social do IGFSS a pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste, coisa que não acontece quando não há relação arrendatícia.

Essa questão foi já amplamente decidida pela Jurisprudência e Doutrina, seguindo-se a linha decisória praticamente consolidada de que o art. 864º do CPC não permite aplicação analógica, não assistindo ao mero detentor do imóvel (aquele que não é arrendatário) o direito de requerer o diferimento da desocupação, independentemente de se verificarem ou não as razões sociais imperiosas exigidas pelo mencionado preceito legal (neste sentido, entre outros, Ac RP de 30.06.2022, Proc. Nº 2968/21.4T8PRT-A.P1; Ac RP de 12.01.2021, Proc. Nº 18018/17.2T8PRT.P1; Ac RP de 9.12.2020, Proc. Nº 3566/18.5T8STS-D.P1; Ac RP de 11.09.2017, Proc. Nº 3481/10.0TBVNG-A.P1 e Ac RL de 12.07.2018, Proc. Nº 719/17.7T8OER-A.L1-7).2

Também A. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação aos arts. 861º e 864º do CPC sustentam tal posição, podendo ler-se que “tendo o legislador estabelecido um regime distinto consoante o imóvel a entregar seja arrendado (art. 864º) ou não arrendado (art. 861º, nº 6), não há qualquer lacuna na lei que permita uma interpretação analógica no sentido de o regime previsto para os imóveis arrendados (art. 864º) se aplicar também aos não arrendados (STJ 17-3-16, 217/09, Sumários, RP 24-1-19, 3308/04 e RG 21-3-19, 153/15.

As situações não são iguais e, por isso mesmo não merecem tratamento igualitário, não devendo ser tratados de forma igual detentores que ocupam indevida e ilicitamente, sem título, imóvel pertencente a outrem, daqueles que ocupavam o imóvel com título, mediante contrato de arrendamento e, que pelas circunstâncias previstas expressamente pelo legislador no art. 864º nº 2 al. a) e b) do CPC, deixaram de conseguir pagar as rendas ao senhorio.

Sucede, porém, que a Executada reconheceu em sede de acção declarativa que em momento muito anterior à referida acção o contrato já havia cessado no dia 28.02.2022 e a ré obrigou-se a entregar/restituir aos autores o locado completamente livre e desocupado de pessoas e bens incluindo o jardim/logradouro que ocupa em frente ao mesmo até ao dia 30/06/2024.

Acresce que a causa de pedir não foi a falta de pagamento de rendas mas sim a oposição do senhorio à renovação automática do CAUH, ao abrigo do Artº 1097º do CC, e que assim o mesmo cessava no dia 28 de Fevereiro de 2022, o que a executada reconheceu.

Assim, a executada reconheceu que desde 28.02.2022 que ocupa indevida e ilicitamente, sem título o imóvel.

Assim, não se verifica nenhuma das hipóteses previstas nas als. a) e b) do nº 2 do Artº 864º do CPC, pelo o presente incidente terá de ser julgado improcedente por falta de fundamentação legal

Tratando-se contudo o imóvel de casa de habitação da executada sempre a mesma verá acautelada a sua situação pela observância do Agente de Execução do disposto no artº 861 nº 5 do Código de Processo Civil.

Assim, indefere-se o pedido de diferimento da desocupação.

Em 06 de agosto de 2024, inconformada com a decisão que precede, CC interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O Tribunal “a quo” considerou que não se verifica nenhuma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil, pelo decidiu que o incidente deveria ser julgado improcedente por falta de fundamentação legal.

2. Contudo, não há razão para a decisão afirmar, como faz o Tribunal, que o artigo 864º do Código de Processo Civil não se aplica ao caso em apreço.

3. Pois, segundo o disporto no artigo 864º do Código de Processo Civil, pode ser pedido o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação por força da cessação do contrato de arrendamento.

4. Ora, a Recorrente/Executada foi arrendatária do imóvel a entregar.

5. Somente com a sentença transitada em julgado em 09 de maio de 2024 é que a Recorrente/Executada perdeu o direito à habitação no prédio que legitimamente ocupava.

6. Estamos, assim, perante uma relação arrendatícia.

7. E, os Recorridos/Exequentes intentaram a presente ação executiva com o objetivo de que seja efetiva entregue o imóvel pela cessação do contrato de arrendamento.

8. Daí a Recorrente/Executada, arrendatária habitacional, lançou mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel.

9. Pelo que, a situação em causa deve considerar-se coberta pela previsão normativa.

Mais,

10. O artigo 864º, nº2º, al. b), do Código de Processo Civil dispõe que o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação pode ser concedido verificando-se «Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %».

11. Ora, a Recorrente/Executada vive apenas com o seu filho.

12. E, o filho da Recorrente/Executada tem, comprovadamente, um grau de incapacidade permanente global superior a 60% (sessenta por cento), grau definitivo.

13. Pelo que, a letra da lei ficou aquém do seu espírito.

14. Pois, o bem a que o legislador concede maior proteção é a vida e a dignidade da vida humana.

15. Assim, a situação do diferimento da desocupação também deverá ser permitida quanto um dependente do arrendatário e não somente o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

16. Pois a desocupação imediata não afecta só o Arrendatário mas igualmente os seus dependentes (demais ocupantes do imóvel).

17. Ora, o artigo 864º do Código de Processo Civil trata-se de norma especial e não de norma excecional, pelo que não está vedada a sua aplicação por analogia.

18. As normas especiais, que não se confundem com as excepcionais e que não excluem a analogia, regulam um sector restrito de casos, consagrando uma disciplina diferente, mas que não é directamente oposta à do direito comum.

19. Assim, é susceptível de aplicação analógica à situação, num quadro de razões sociais imperiosas.

20. O ponto de partida para a analogia é a similitude das situações, similitude que é indiscutível.

21. Aquilo que o artigo 864º do Código de Processo Civil acautela, não se tratando de preceito excepcional, vale tanto para o arrendatário portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, como para demais ocupantes portadores de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

22. Pois o elemento nuclear é a circunstância de se tratar de habitação arrendada e o portador de deficiência ficar literalmente desalojado.

23. Ou seja, o diferimento a ponderar radica nas (mesmas) por razões sociais imperiosas.

Mesmo que se entenda que está vedada a sua aplicação por analogia.

24. O artigo 864º do Código de Processo Civil pode ser alvo de aplicação extensiva por estarmos perante uma comprovada lacuna na lei.

25. Tal preceito legal deve ser alvo de uma interpretação extensiva, encontrando-se, assim, o espírito da lei e pretendido pelo legislador.

26. A Recorrente/Executada não dispõe de capacidade económica para procurar outra casa no mercado normal da habitação, restando-lhe o recurso à habitação social que, como é sabido de todos, não se consegue de um dia para o outro.

27. Acresce que, a Recorrente/Executada vive com o seu filho portador de esquizofrenia e somente aufere de rendimento a pensão de invalidez do seu fiho.

28. Pelo que, fazendo-se uma interpretação extensiva de tal preceito legal, deve entender-se que o regime do diferimento da desocupação do imóvel deve aplicar-se no caso em concreto, ou seja, quando dependente do arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

Pelo exposto,

29. A decisão recorrida não é acertada, sendo de esperar a sua revogação.

30. Mostra-se violado o disposto do artigo 864º do Código de Processo Civil e no artigo 11º do Código Civil.

Os recorridos prescindiram de responder ao recurso.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Uma vez que o objeto do recurso tem natureza estritamente jurídica, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da inclusão da recorrente no âmbito pessoal de aplicabilidade do incidente de diferimento de desocupação de imóvel arrendado;

2.2 Da relevância jurídica da situação de doença do filho da recorrente que com esta habita e é portador de um grau de incapacidade superior a 60%.

3. Fundamentos de facto

Os factos necessários e pertinentes para conhecimento do objeto do recurso constam do relatório deste acórdão e a prova dos mesmos resulta destes autos que, nesta vertente estritamente adjetiva, têm força probatória plena.

4. Fundamentos de direito

4.1 Da inclusão da recorrente no âmbito pessoal de aplicabilidade do incidente de diferimento de desocupação de imóvel arrendado

A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida quando concluiu que não tinha a qualidade de arrendatária para poder lançar mão do incidente de diferimento de desocupação do locado já que o contrato de arrendamento deixou de produzir efeitos por caducidade em consequência de oposição à renovação automática do contrato operante desde 28 de fevereiro de 2022, não tendo desde então título para continuar a ocupar o arrendado.

Cumpre apreciar e decidir.

No domínio da ação executiva para entrega de coisa certa, além da suspensão das diligências executórias com fundamento em doença que põe em perigo de vida de pessoa que se encontra no local a despejar, por razões de doença aguda (artigo 863º, nº 3, do Código de Processo Civil[3]), o legislador facultou ao executado a dedução de pedido de diferimento da desocupação por razões sociais imperiosas, desde que se trate de imóvel arrendado para habitação[4] e que o pedido seja deduzido dentro do prazo de oposição à execução (artigo 864º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Anote-se que o legislador ao delimitar o âmbito objetivo da suspensão das diligências executórias e bem assim do incidente de diferimento da desocupação do imóvel objeto da entrega refere-se a “arrendamento para habitação” (nº 3 do artigo 863º do Código de Processo Civil) ou a “imóvel arrendado para habitação” (veja-se a epígrafe do artigo 864º do Código de Processo Civil e o nº 1 deste mesmo artigo).

No entanto, não cremos que o uso destas expressões implique que no momento da suspensão das diligências executórias e da dedução do incidente de diferimento da desocupação do imóvel objeto da entrega esteja em plena vigência um contrato de arrendamento.

De facto, se assim fosse, não se vê como poderia ser despejado alguém que tem um título que lhe confere o direito a habitar nesse imóvel.

A nosso ver, o legislador pretendeu limitar a aplicação desses regimes jurídicos aos casos em que esteja em causa um imóvel que esteve arrendado para habitação ao executado e que este não desocupou incumprindo o dever legal pós-contratual subsequente à cessação do contrato de arrendamento (veja-se o nº 1 do artigo 1081º do Código Civil).

A cessação do contrato, qualquer que seja a sua causa, não contende com a existência do dever legal pós-contratual de desocupação do local que foi objeto de arrendamento para habitação e de entrega do mesmo, com as reparações que incumbam àquele que foi arrendatário.

Assim, embora a partir da cessação do contrato de arrendamento, a ocupação do local arrendado seja intitulada, não se trata de uma usurpação de imóvel que confira ao dono da coisa ocupada o direito a reivindicá-la (veja-se o nº 1 do artigo 1311º, do código Civil) e a agir criminalmente contra o ocupante por crime de usurpação de coisa imóvel (artigo 215º do Código Penal), mas antes da violação de um dever jurídico legal pós-contratual (veja-se a este propósito o artigo 15º, nº 1, da Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro).

A circunstância de o título exequendo ser uma transação em que a executada reconheceu que o contrato de arrendamento para habitação que constituía o título que lhe permitia ocupar o imóvel deixou de produzir efeitos a partir de 28 de fevereiro de 2022 por força de oposição à renovação automática do contrato de arrendamento por banda do senhorio e de nesse título exequendo ter acordado com a parte contrária a fixação do momento em que se tornava exigível a desocupação e a entrega do local, não descaracteriza a situação jurídica da executada de ocupante de um prédio urbano que lhe foi dado de arrendamento para habitação, arrendamento que se extinguiu por caducidade em consequência de oposição à renovação automática desse contrato, por parte do senhorio.

Se acaso não tem havido transação entre as partes, dada a fase processual dos autos em que tal autocomposição entre as partes foi obtida, estava de todo arredada a possibilidade de se questionar a eventual propriedade da forma processual usada (veja-se o nº 1 do artigo 198º do Código de Processo Civil) ou de se suscitar a falta de interesse processual no uso da ação de despejo pelo senhorio (veja-se o lugar paralelo do artigo 610º do Código de Processo Civil), quando o meio processual legalmente talhado era o procedimento especial de despejo previsto no nº 1 do artigo 15º da Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro[5], pelo que teria que ser proferida decisão de mérito reconhecendo a eficácia da oposição à renovação automática do contrato, com efeitos a partir de 28 de fevereiro de 2022 e o dever de desocupação imediata do local.

Porém, como bem resulta do nº 1do artigo 1081º do Código Civil, o momento em que opera a exigibilidade de dever de desocupação do arrendado pode ser objeto de acordo das partes, como aliás se verificou no caso dos autos.

Assim, tendo em conta o que precede, diverge-se da decisão recorrida quando entendeu que o incidente de diferimento de desocupação do locado não era aplicável ao caso dos autos em virtude de a executada não ter título para a ocupação do local objeto do despejo desde 28 de fevereiro de 2022.

A nosso ver, o reconhecimento pela arrendatária em transação judicial de que o contrato de arrendamento para habitação caducou por efeito da oposição à renovação automática do contrato de arrendamento pelo senhorio, contrato que constituía o título para ocupação do local a despejar, é em tudo equiparável à decisão judicial que em ação comum ou em procedimento especial de despejo venha a reconhecer a caducidade do contrato de arrendamento e o dever de desocupação do local a despejar.

Assim, nesta parte, entende-se que a recorrente tem razão nas críticas que dirige à decisão recorrida, estando reunidas as condições legais para que a sua pretensão seja apreciada e enquadrada normativamente no incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, rectius, de imóvel que esteve arrendado para habitação e no caso de o arrendatário não cumprir o dever legal pós-contratual de desocupação do arrendado.

4.2 Da relevância jurídica da situação de doença do filho da recorrente que com esta habita e é portador de um grau de incapacidade superior a 60%

A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida porque, na sua perspetiva, a alínea b) do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil deve ser objeto de interpretação extensiva ou de aplicação analógica de modo a que seja também aplicável aos casos em que é o filho do arrendatário que é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

Cumpre apreciar e decidir.

Numa visão formalista, poderia expeditamente julgar-se improcedente esta questão recursória, em virtude de a recorrente não ter alegado no requerimento do incidente qual era o grau de incapacidade de seu filho e disso apenas resultar de prova documental por si oferecida para prova dos fundamentos do incidente.

No entanto, considerando a eventual relevância jurídica dessa factualidade que não foi alegada à luz das soluções plausíveis das questões de direito decidendas e que essa omissão poderia e deveria ter sido suprida através de convite para aperfeiçoamento do requerimento do incidente, entendeu-se não dever este tribunal prevalecer-se de uma omissão que não se curou oportunamente de preencher.

Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil, “[o] diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.”

Recordado o teor da previsão legal matricial para resolução do caso submetido à apreciação deste tribunal, importa determinar se há dados que apontem no sentido de que o legislador disse menos do que queria ou do que a ratio legis do preceito exige, caso em que haverá lugar a interpretação extensiva ou se existem elementos para concluir que a hipótese legal se acha incompleta, caso em que pode haver aplicação analógica do preceito a casos não contemplados na previsão, isto é a sujeitos diversos do que se acha contemplado na previsão legal.

A nosso ver, os dados normativos existentes apontam todos de modo inequívoco no sentido de que a previsão legal aplicanda corresponde ao projeto normativo do legislador de tutela do executado anterior arrendatário habitacional do imóvel a despejar.

De facto, o legislador teve o cuidado de distinguir a tutela conferida ao executado que não teve a qualidade de arrendatário no caso do imóvel a entregar ser a sua habitação principal (artigo 861º, nº 6, do Código de Processo Civil), da que é conferida à pessoa que se encontra no local a despejar quando o imóvel a entregar era arrendado para habitação, sempre que se mostre que a diligência de despejo põe em risco a vida dessa pessoa e isso por causa de doença aguda (artigo 863º, nº 3, do Código de Processo Civil). Neste último caso, a tutela não se cinge ao executado que teve a qualidade de arrendatário habitacional, estendendo-se a toda e qualquer pessoa que se ache no local. Cremos que razões de tutela da vida em caso de doença aguda impõem esta tutela mais alargada.

Pelo contrário, no incidente de diferimento de desocupação, os fundamentos sem os quais este incidente não pode ser deferido previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil apenas contemplam o arrendatário, entenda-se o arrendatário do contrato extinto e que não cumpriu o dever de desocupação do arrendado.

No entanto, no corpo do nº 2 do artigo 864º, do Código de Processo Civil, prevê-se entre os variados elementos a ponderar na decisão final do incidente, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade e o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.

Neste contexto normativo parece claro que o legislador limitou o relevo jurídico das pessoas que habitam com o arrendatário (veja-se o artigo 1093º do Código Civil) ao juízo prudencial emitido pelo juiz de acordo com a previsão do corpo do nº 2 do artigo 864º do Código de Processo Civil, mas não lhes deu relevância em sede dos dois pressupostos sem os quais o incidente de diferimento de desocupação não pode proceder e que estão previstos nas alíneas a) e b) do já citado artigo 864º do Código de Processo Civil.

E bem se compreende esta construção normativa pois que estando em causa uma eventual extensão judicial do prazo de desocupação do locado, dever jurídico que impende sobre aquele que era o arrendatário no arrendamento que deixou de produzir efeitos por força da verificação de uma das formas legais de cessação desse contrato, essa eventual extensão do prazo tem que necessariamente ser aferida por referência ao sujeito passivo do dever de desocupação do arrendado.

Deste modo, ao contrário do que pretende a recorrente, não se deteta na letra da lei qualquer desajuste relativamente à intenção ou teleologia do preceito, a ser suprida mediante interpretação extensiva e muito menos uma lacuna no regime a ser preenchida mediante analogia.

Conclui-se assim que esta questão recursória improcede e que pelos fundamentos que precedem, deve a decisão recorrida ser confirmada, improcedendo o recurso.

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente já que o recurso improcedeu (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por CC em 06 de agosto de 2024 e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida proferida em 15 de julho de 2024, ainda que com fundamentos distintos.

Custas do recurso a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a recorrente.


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O presente acórdão compõe-se de doze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.


Porto, 23 de setembro de 2024

Carlos Gil

Fátima Andrade

Miguel Baldaia de Morais


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[1] Sublinhe-se que no requerimento do incidente a requerente não alega qual é o montante da pensão que seu filho recebe nem concretamente qual é grau de incapacidade de seu filho, embora ofereça um atestado médico de incapacidade multiuso que atesta que em 20 de setembro de 2021, DD, residente na Rua ..., ..., direito, ... ..., é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 80%, incapacidade de caráter definitivo e de acordo com o enquadramento na Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo decreto-lei nº 352/2007 de 23 de outubro, anexo I, capítulo X (este capítulo refere-se à psiquiatria), II, grau V. 
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 16 de julho de 2024.
[3] Este regime de suspensão do despejo estava já previsto no artigo 988º do Código de Processo Civil de 1939, manteve-se no artigo 987º do Código de Processo Civil de 1961, passando depois a estar previsto no artigo 61º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo decreto-lei nº 321-B/90 de 15 de outubro e no nº 3 do artigo 930º-B, do Código de Processo Civil, aditado pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro e, posteriormente, no nº 3 do artigo 15º-M da Lei nº 6/2006 de 27 de fevereiro, aditado pela Lei nº 31/2012 de 14 de agosto.
[4] Não se tratando de imóvel arrendado para habitação, mas sendo o imóvel a entregar a casa de habitação principal do executado, será aplicável o nº 6 do artigo 861º do Código de Processo Civil.
[5] Sobre esta problemática leiam-se as anotações 1 e 2 ao artigo 15º-B da Lei nº 6/2006, da autoria de Rui Pinto, páginas 431 e 432, incluídas na obra coletiva coordenada por António Menezes Cordeiro, intitulada “Leis do Arrendamento Urbano Anotadas”, edição da Almedina, 2014.