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ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PECULATO
Sumário
(da responsabilidade do relator): I. Há erro notório na apreciação da prova quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, conduziriam à prova de outros dados como não provados. II. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada/não provada. III. Tais regras de experiência impõem que, dando-se como provado que um Vice-Presidente de Câmara Municipal de um município pequeno que mantém a sua actividade profissional remunerada no sector privado após início de funções públicas - que perduraram durante mais de seis anos, comunicando essa actividade mas omitindo a sua natureza remunerada –, se dê igualmente como provado que tal era do conhecimento do Presidente da mesma Câmara e que o Vice-Presidente soubesse da obrigação de mencionar que a actividade era remunerada.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
No âmbito do processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, n.º 1137/20.5T9PDL, a correr termos no Juízo Local Criminal da ..., os arguidos AA e BB, devidamente identificados nos autos, foram submetidos a julgamento pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 20.º, n.º 1, e 27.º-A, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, por referência ao artigo 3.º, n.º 1, al. i) do mesmo diploma legal, bem como artigos 10.º, n.º 1, 14.º, 26.º e 30.º, n.º 2, estes do Código Penal, tendo sido absolvidos do mesmo.
Inconformado com a decisão absolutória, veio o Ministério Público interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Vinham os arguidos acusados da prática, por cada um, de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 20.º, n.º 1, e 27.º-A, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, por referência ao art. 3.º, n.º 1, al. i) do mesmo diploma legal, bem como arts. 10.º, n.º 1, 14.º, 26.º e 30.º, n.º 2 do Código Penal.
2. O tipo objetivo do artigo 20º, nº1, da Lei nº 34/87, de 16 de ... preenche-se quando o titular de cargo político, no exercício das suas funções, ilicitamente se apropria, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel que lhe tiver sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções.
3. Quanto ao elemento volitivo, o tipo legal não exige um específico propósito apropriativo, bastando-se com a vontade, livre e consciente de praticar actos concludentes da apropriação de bem (neste sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-09-2016, processo 392/12.9T3OVR.P1, disponível em www.dgsi.pt).
4. Conforme decorre da sentença recorrida, o tribunal a quo deu como provados os factos que compõem o elemento objectivo do crime de peculato, dando como não provados os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infracção.
5. Relativamente aos factos provados, ou seja, os factos que compõem o elemento objectivo do crime em causa, o Tribunal a quo valorou as declarações prestadas pelos próprios arguidos e os testemunhos de CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK.
6. A nível documental, teve o Tribunal em consideração os documentos juntos aos autos, nomeadamente as atas de instalação da Câmara Municipal da ... as atas da Assembleia Municipal, as folhas de vencimento referentes aos arguidos, as respetivas ordens de pagamento, os pareceres emitidos pelos serviços da ... e pela ..., entre outros.
7. No que respeita ao factos psicológicos, que compõem o elemento subjectivo da infracção, muito embora o Tribunal a quo comece por conceder que “regras da experiência comum, parecem apontar para aquilo que um homem médio (daí, experiência comum) cogitará, isto é, os arguidos, firmaram um acordo em que AA auxiliaria, com o seu bom nome e reconhecimento social BB a vencer 16 de 20 as eleições e como contrapartida, auferiria o salário integralmente, não penalizando a sua atividade privada”, acaba por considerar que “as regras da experiência comum, não apontam (ainda sem o arrimo ou suporte de outra prova, concreta e objetiva) de forma evidente para a situação” que inicialmente apontou.
8. Resulta das declarações dos arguidos que os mesmos admitiram o que não podiam deixar de admitir face aos elementos de prova que constam dos autos.
9. O arguido BB, não negou que na qualidade de Presidente da Câmara Municipal da ..., no decurso dos mandatos de .... e ..., por competência própria, ordenou os pagamentos em causa nos autos em benefício do arguido AA, pela totalidade da remuneração devida pelo exercício das funções dos cargos que o mesmo exercia na edilidade.
10. O arguido AA não negou que fez sua a quantia global de 135.584,62€.
11. No mais, e no que respeita ao exercício remunerado da sua actividade particular o arguido AA disse, em suma, que nunca escondeu a sua actividade privada e que essa actividade era remunerada, que a sua actividade foi escrutinada, a qual não passou despercebida e que nunca ninguém lhe levantou a questão na Câmara (00:00:01 a 00:56:20 do dia 30/11/2023).
12. Por sua vez, o arguido BB afirmou desconhecer que o arguido AA exercia uma actividade privada a título remunerado. Que só tomou conhecimento que o arguido AA exercia funções privadas, no âmbito do processo do Tribunal de Contas. (00:00:01 a 00:29:28 do dia 30/11/2023).
13. As posições dos arguidos são diametralmente opostas, contudo ambos apontam o dedo para uma alegada “falha dos serviços” da Câmara Municipal, versão que parece ter sido acolhida pelo Tribunal a quo.
14. Há porém, no nosso entender, alguns pormenores (ou antes pormaiores) que o Tribunal a quo não valorou com a devida cautela e que nos levam a uma distinta conclusão dos acontecimentos.
15. Desde logo as comunicações feitas pelo arguido AA aquando do início de cada mandato.
16. Ouvidos os arguidos e as testemunhas CC e KK ficamos sem saber quem é que, afinal, redigiu as referidas comunicações.
17. No que respeita às referidas comunicações juntas a fls 84 e 85 do apenso B, constata-se as mesmas nada referem quanto à natureza da actvidade, ou seje, se era remunerada ou a título gratuito.
18. Não obstante o artigo 3º do Estatuto dos Eleitos Locais sob a epígrafe “exclusividade e incompatibilidades”, dispõe que “Os presidente e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, a tempo inteiro ou parcial, podem exercer outras actividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas actividades não autárquicas”.
19. Curiosamente, as referidas comunicações, não obstante fazerem referência aos referidos normativos, omitem a única expressão que teria influência no valor da remuneração devida, ou seja, quer da comunicação efectuada em 2005, quer na comunicação efectuada em 2009, foi omitida a informação quanto à natureza da actividade.
20. Ou dito de outra forma, das comunicações consta a referência aos normativos legais, ao exercício continuado, à identificação da actividade, mas nada se diz relativamente à natureza remunerada ou não remunerada.
21. Não cremos que esta omissão tenha sido inocente.
22. Mas ainda que fosse, o certo é que, conforme resulta da douta sentença recorrida, ficou plenamente demonstrado que com exceção do arguido BB, que indicou desconhecer se o arguido AA efetivamente auferia remuneração pela prática de atividade privada, foi inclinação geral da globalidade das testemunhas, a perceção que AA desempenhava funções privadas, e que as mesmas seriam remuneradas (cfr fundamentação do ponto 4 dos factos provados).
23. A este propósito, resulta ainda da sentença recorrida que “em momento algum AA procurou esconder a sua atividade privada, de natureza remunerada. Assim o denotam as circunstâncias expostas e o diz expressamente a testemunha Dra. HH, à data jurista na .... Aliás, acrescentou esta testemunha que o próprio AA lhe pediu um parecer sobre a possibilidade de exercer funções privadas a fim de aferir alguma situação de incompatibilidade, resultando de tal parecer a inexistência de qualquer irregularidade, parecer que foi secundado pela ... (cfr. fls. 132 e 133, apenso B).”
24. E acrescenta que “atente-se que, a atuação dos arguidos estava a ser escrutinada pelo opositor FF (cfr. fl. 148 apenso B), conforme resulta da ata 23 de 03.11.2009. Ali (e ainda conforme ata 01/2010, fl. 99, apenso B), AA ostenta de modo quase inequívoco (embora não expressamente) que a sua atividade privada, tem cariz remunerado”.
25. E ainda que “o arguido AA não escondeu a sua atividade privada, havendo conhecimento generalizado que tal, tinha natureza remunerada”.
26. É ilógico que, sendo a inclinação da globalidade das testemunhas a percepção de que o arguido AA desempenhava funções privadas, e que as mesmas seriam remuneradas e que o mesmo nunca tenha escondido a sua actividade privada, que tenha dado como não provado o ponto 29.
27. É irracional que um Presidente da Câmara não saiba que o Vice-Presidente da mesma Câmara, exerce uma actividade remunerada, quando a globalidade dos funcionários o sabe.
28. É pouco provável que, não tendo o Vice-Presidente escondido o exercício da sua actividade privada a título remunerado, apresentando nessa mesma Câmara projectos por si assinados, o Presidente da Câmara ignore essa circunstância e que, tendo a actividade privada de um Vice-Presidente sido escrutinada, o Presidente da Câmara, desconheça a natureza da mesma.
29. Examinada criticamente a prova produzida, afigura-se-nos como um erro clamoroso, que não escapa à observação de um homem de observação média, não dar como provados, quer o ponto 29., quer os pontos 30. e 31.
30. Conforme resulta da douta sentença recorrida, o arguido BB referiu ter conhecimento do quadro legal referente às repercussões a nível salarial no caso de recebimento de montantes monetários no setor privado.
31. Sabendo o arguido BB, como sabia, que o arguido AA exercia actividade privada a título remunerado bem como do quadro legal referentes às repercussões a nível salarial, apresenta-se como visivelmente racional, lógico e conforme com as regras da experiência comum, que os arguidos tenham agido mediante um plano traçado entre ambos, tendo como resultado a apropriação de dinheiro por parte do arguido AA, mas cuja comparticipação do arguido BB foi, na decorrência da sua qualidade de Presidente da Câmara, essencial no propósito alcançado.
32. Só assim se explica a omissão da expressão “remunerada” das comunicações feitas pelo arguido AA no início de cada mandato.
33. Só assim se compreende o facto do arguido AA não ter feito essa comunicação a nenhum outro serviço, nomeadamente de ordem financeira.
34. Só assim se justifica que os arguidos, com formação superior, com experiência a vários níveis da vida profissional, e sabendo trâmites legais e procedimentais, aquando da tomada de posse de cargos públicos na ..., não tivessem comunicado de forma clara e expressa o exercício da actividade privada a título remunerado aos serviços competentes.
35. Como se sabe, não havendo confissão, quanto á atitude interior do arguido, o Tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum.
36. Também se sabe que os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infracção são, em regra, objecto de prova directa, isto é, são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos analisados à luz da experiência comum (neste sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/09/2019, Processo 406/08.7JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt).
37. Atenta a factualidade provada e conjugada a mesma à luz da experiência comum, deveriam ser dados como provados, porque demonstrados, os factos volitivos do crime de peculato de que os arguidos vinham acusados.
38. Tendo o Tribunal recorrido julgado como não provados os factos constantes dos pontos 29., 30. e 31., baseado numa convicção que nos parece assente num raciocínio ilógico e desconforme com a normalidade dos acontecimentos da vida em iguais circunstâncias, padece a sentença recorrida do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa se dignarão suprir, revogando a sentença proferida e condenando os arguidos pelo crime de que vinham acusados farão, V. Exas., a costumada justiça.
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O recurso foi admitido por despacho proferido a 28 de Fevereiro de 2024, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Pelos arguidos foi apresentada resposta, na qual, em súmula, afirmam que o recurso está impropriamente motivado quanto à impugnação da matéria, nomeadamente por não dar cumprimento ao estatuído no artigo 412.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal; no mais, pugnam pela manutenção da sentença proferida.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Procuradora-Geral Adjunta foi lavrado parecer no qual, em súmula, declarando acompanhar a resposta do Ministério Público junto da primeira instância, sustenta que «a motivação de recurso analisa a prova produzida em audiência de julgamento, fundamentando a discordância com a apreciação que dela foi feita pelo tribunal a quo, de forma correta e completa».
Cumprido o preceituado no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, os recorrentes nada responderam àquele Parecer.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419.º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de primeira Instância (transcrição):
1. Nos períodos e datas abaixo indicados, os arguidos exerceram as funções inerentes aos seguintes cargos na Câmara Municipal da ... (doravante designada apenas de ...), para os quais foram eleitos:
1. O arguido BB exerceu o cargo de presidente da ... nos mandatos de ... e ..., mais concretamente entre ... e ..., tendo sido eleito para o mandato de ... como vereador em regime de não permanência;
2. O arguido AA exerceu, desde ..., os cargos de vereador em regime de permanência e de vice-presidente da ... (designado em ... e ...), nos mandatos de ... e ..., com o pelouro da ..., tendo sido eleito para o mandato de ... como vereador em regime de não permanência, cargo ao qual veio a renunciar em ....
2. Por requerimento, com data de entrada no Município em ..., dirigido ao Presidente da Assembleia Municipal de ..., e que veio a ser presente na sessão ordinária de ... da Assembleia Municipal, o arguido AA comunicou o exercício continuado da atividade de ….
3. Por requerimento, com data de entrada no Município em ..., dirigido ao Presidente da Assembleia Municipal de ..., e que veio a ser presente na sessão ordinária de ... da Assembleia Municipal, o arguido AA comunicou o exercício continuado da atividade de ….
4. Assim, no decurso dos mandatos de ...0.../2009 e ...0.../2013, o arguido AA exerceu, em simultâneo com o exercício dos cargos acima indicados, funções remuneradas de natureza privada, concretamente de consultadoria em ... eletrotécnica e enquanto autor de projetos de instalações elétricas, de telecomunicações e de fichas de segurança contra incêndios.
5. Sucede que não obstante as comunicações referidas em 3. e 4., nenhum dos arguidos comunicou, ou determinou a comunicação à Divisão Administrativa e Financeira, do exercício das funções privadas com caráter remunerado pelo arguido AA, para efeitos do adequado processamento de remunerações.
6. Em vez disso, os arguidos determinaram-se a proceder, quer um quer outro, à autorização do pagamento da remuneração mensal ao arguido AA pela totalidade da remuneração devida pelo exercício das funções dos cargos que exercia na ..., desconsiderando o arguido AA, do exercício pelo mesmo, em regime de acumulação, de atividade remunerada de natureza privada.
7. No período de ... a ..., os arguidos, BB, por competência própria, e AA, por competência delegada, ordenaram pagamentos, ao arguido AA, então Vice-Presidente da ..., pelo exercício do cargo autárquico que o arguido exercia, no montante global de 324.012,09€, designadamente:
a. ano de ...: 30.911,52€ de remuneração mensal, 6.090,96€ de despesas de representação, 2578,54€ e 2.575,96€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 42.156,98€;
b. ano de ...: 31.382,40€€ de remuneração mensal, 6.090,96€ de despesas de representação, 2.617,82€ e 2.615,20€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 42.706,38€;
c. ano de ...: 32.035,20€ de remuneração mensal, 6.090,96€ de despesas de representação, 2.672,27€ e 2.669,60€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 43.468,03€;
d. ano de …: 32.964,24€ de remuneração mensal, 6.399,24€ de despesas de representação, 2.749,77€ e 2.747,02€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 44.860,27€;
e. ano de …: 32.002,79€ de remuneração mensal, 6.212,60€ de despesas de representação, 2.609,67€ e 2.609,67€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 43.434,73€;
f. ano de ...: 28.817,76€ de remuneração mensal, 5.594,28€ de despesas de representação, 2.442,12€ e 2.442,12€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 39.296,28€;
g. ano de ...: 28.817,76€ de remuneração mensal, 5.594,28€ de despesas de representação, no total de 34.412,04€;
h. ano de ...: 22.831,17€ de remuneração mensal, 4.432,13€ de despesas de representação, 4.487,47€ e 1.926,56€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respetivamente, no total de 33.677,32€.
8. O arguido AA auferiu, entre ... e ..., a totalidade das remunerações devidas aos vereadores em regime de permanência que exercessem exclusivamente funções autárquicas ou em acumulação com o desempenho não remunerado de funções privadas, ou seja, pela totalidade dos salários e suplementos.
9. Por força de tais ordens de pagamento, o arguido AA recebeu, sem que ao mesmo tivesse direito e não lhe sendo devido, o montante global de 135.584,62€, discriminado nas quantias a seguir indicadas:
a. no ano de ...: 15.455,52€ a título de remuneração mensal, e 1.290,54€ e 1.287,96€ a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 18.034,02€;
b. no ano de ...: 15.691,20€ a título de remuneração mensal, e 1.310,11€ e 1.307,60€ a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 18.309,01€;
c. no ano de ...: 16.017,60€ a título de remuneração mensal, e 1.337,47€ e 1.334,80€ a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 18.561,95€ (deduzido o montante de 127,92€ que deveria ter recebido a título de despesas de representação);
d. no ano de …: 16.481,04€ a título de remuneração mensal, e €1.276,17 e 1.373,42 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 19.230,63€;
e. no ano de …: 16.000,35€ a título de remuneração mensal, e €1.304,75 e €1.304,75 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 18.609,85€;
f. no ano de ...: 13.706,79€ a título de remuneração mensal, e €1.137,20 e €1.137,20 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 15.708,92€ (deduzido o montante de €272,26 que deveria ter recebido a título de despesas de representação);
g. no ano de ...: 13.706,79€ a título de remuneração mensal, ao qual deduzido o montante de 272,26€ que deveria ter recebido a título de despesas de representação, se cifrou no montante global de 13.434,52€;
h. no ano de ...: 10.888,97€ a título de remuneração mensal, e €2.113,82 e €897,12 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respetivamente, no montante global de 13.695,71€ (deduzido o montante de 204,21€ que deveria ter recebido a título de despesas de representação).
10. Os pagamentos acima referenciados. foram feitos na sequência de ordens de pagamento assinadas pelos arguidos no exercício dos cargos supra indicados, sendo que as ordens de pagamentos dadas pelo arguido BB somam o total de 108.176,02€ de remuneração recebida pelo arguido AA a que não lhe cabia direito, e as dadas pelo arguido AA, que autorizou, a si próprio, os pagamentos em excesso, somam o total 25.778,88€ de remuneração recebida a que não lhe cabia direito.
11. Em ... foi ainda dada ordem de pagamento da remuneração pela totalidade ao arguido AA, por DD, eleito para o cargo de Presidente daquela ... nas eleições ocorridas em ... para o mandato de ..., por razão da qual o arguido AA recebeu sem que lhe coubesse direito a remuneração de 1.629,73€.
12. O arguido AA fez suas as quantias acima indicadas, indevidamente pagas, no montante global de 135.584,62€, que só lhes foram entregues por força das condutas acima descritas de ambos os arguidos, praticadas no âmbito e por força dos cargos que os arguidos exerceram na ....
13. Os arguidos atuaram com desrespeito das funções públicas que lhes foram acometidas por eleição para os cargos autárquicos que ocuparam, sem cuidar de informar o competente serviço autárquico para o processamento de remunerações, a saber, a divisão administrativa e financeira, da atividade remunerada de natureza privada exercida pelo arguido AA em acumulação com as suas funções de eleito local.
14. Por força das ordens de pagamento referenciadas, os arguidos foram condenados em responsabilidade financeira sancionatória e reintegratória, bem como na restituição ao Município da ... dos valores em causa no âmbito do processo n.º …, do Tribunal de Contas, Secção ….
15. Assim, o arguido BB foi condenado naquele processo n.º … a proceder à reposição ao Município da ... do valor de 54.088,01€, acrescida de juros de mora, após redução para metade da quantia a repor por aplicação do art. 64.º, n.º 2 da LOPTC.
16. Por sua vez, o arguido AA foi condenado do mesmo processo n.º … a proceder à reposição ao Município da ... do valor de 25.778,88€, acrescida de juros de mora.
17. Nessa sequência o arguido AA encontra-se a restituir, parcelarmente, os valores nos quais foi condenados a repor no supra identificado processo junto da ....
Da contestação do arguido BB:
18. O arguido BB ressarciu integralmente o Município da ..., face à condenação referida em 15.
Mais se apurou que:
19. O arguido AA é licenciado, em …, pela ....
20. Reside com a esposa.
21. Tem dois filhos, maiores de idade, um dos quais estudante universitário.
22. Os rendimentos anuais são superiores a 80.000,00 euros.
23. O arguido BB é licenciado.
24. É ... de ….
25. Reside com a esposa.
26. Tem 3 filhos, todos maiores de idade.
27. Os seus rendimentos anuais são superiores a 80.000,00 euros.
28. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados. Factos dados como não provados pelo Tribunal de Primeira Instância (transcrição): Da prova produzida, e com interesse para a boa decisão da causa, ficaram por provar os seguintes factos (em sede de sentença só é exigível a enumeração dos factos não provados quando, dentro do objeto do processo, existam factos que não tenham ficado provados e sejam relevantes para a decisão da causa – Ac. TRP, proc. 629/12.4GCSTS.P1, 05.06.2013, www.dgsi.pt):
A. Nas circunstâncias descritas em 6, o arguido BB atuou desconsiderando ser conhecedor do exercício pelo arguido AA, em regime de acumulação, de atividade remunerada de natureza privada.
B. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, cientes da natureza dos cargos que exerciam na ..., dos deveres daí decorrentes, e com conhecimento de que paralelamente como os cargos públicos de eleito local exercidos pelo arguido AA naquela Câmara, o mesmo exercia funções remuneradas de natureza privada, e com o propósito, conseguido, de, do modo descrito, fazerem do arguido AA as quantias acima indicadas no montante global de €135.584,62, bem sabendo que as mesmas pertenciam à ... e não lhe eram devidas.
C. Os arguidos sabiam, porque não podiam nem deviam ignorar, que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Motivação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal de Primeira Instância (transcrição): Nos termos do art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei. O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97º, n.º 4 e 374º, n.º 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção. São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art.º 125.º do Código de Processo Penal). A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (art.º 127.º do Código de Processo Penal). Esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por fatores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas quase sempre inatingíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objetiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, tudo por forma a que uma resposta dada a determinada questão "deva refletir o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade" veja-se Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 209. Foram assim valoradas as declarações prestadas pelos próprios arguidos, que manifestaram intenção de expor a sua versão dos factos, valorando-se ainda os testemunhos de CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK. A nível documental, teve o Tribunal em consideração os documentos juntos aos autos, nomeadamente as atas de instalação da Câmara Municipal da ... (doravante ...), as atas da Assembleia Municipal, as folhas de vencimento referentes aos arguidos, as respetivas ordens de pagamento, os pareceres emitidos pelos serviços da ... e pela ..., entre outros que adiante identificaremos. Como se indicou, pretenderam os arguidos prestar declarações. Os mesmos não negaram muito do circunstancialismo indicado na acusação. Efetivamente, confirmaram quer o desempenho das funções em causa, nas datas respetivas, quer, até, o processamento salarial respeitante a AA, referente à totalidade de remunerações (acrescidas de suplementos) por referência ao desempenho de funções em regime de permanência e sem o desempenho remunerado de exercício de atividades de natureza privada. Confirmaram, assim, o vencimento, por parte do sobredito arguido, dos montantes indicados na acusação, que resultou das ordens de pagamento, por parte de ambos os arguidos, nos moldes também ali inscritos. As declarações dos arguidos são, nesta parte, absolutamente consentâneas com a prova documental junta aos autos, tanto que, as atas de instalação dos arguidos nas funções respetivas (fls. 58 a 61 do apenso B), as atas de comunicação do exercício de atividade de ... por parte do arguido AA (fls. 84 a 91 do apenso B), a informação da ... de fl. 225 e os recibos de pagamento constantes do apenso A, assim as corrobora de modo inequívoco, pelo que se dão como provados os factos 1 a 3 e 7 a 12 da matéria provada. Por seu turno, o facto 4 não oferece, do mesmo modo, a mínima dúvida. Desde logo, também aqui, o arguido AA indicou que procedeu de tal modo, isto é, manteve o exercício das referidas funções de natureza privada, a título remunerado, em simultâneo com a atividade autárquica. À exceção do coarguido BB, que indicou desconhecer se aquele arguido efetivamente auferia remuneração pela prática de atividade privada, foi inclinação geral da globalidade das testemunhas, a perceção que AA desempenhava funções privadas, e que as mesmas seriam remuneradas. De modo mais claro e objetivo e a ultrapassar a mera perceção, assim o indicou, por exemplo a testemunha II (note-se, arrolada pelo arguido AA), que indicou que AA foi colaborador, desde o ano 2000, numa empresa de que era gerente, e que, a atividade que era remunerado pela atividade que desempenhava, mesmo aquando no lapso de tempo em que desempenhou atividade na .... Ademais, a circunstância sob análise vem, ainda, espelhada na prova documental junta aos autos, observando-se a fl. 184, o desempenho de tais funções remuneradas, de natureza privada, por parte de AA. A factualidade descrita em 5 e 6 resulta, logo à partida, das declarações dos arguidos, que assumem o circunstancialismo referido em 5, acrescendo que AA, assume, ainda, como já se viu, o exercício em regime de acumulação, de atividade de natureza privada remunerada. Sem prejuízo da validação de tais declarações, tanto que, à partida prejudicariam os próprios arguidos, que assumem tais atos, vêm os mesmos espelhados nos documentos constantes do apenso A, sendo inequívocas as ordens de pagamento e o processamento salarial, da totalidade da remuneração, auferida por AA. No mesmo sentido, o indicou a testemunha Dra. CC, (à data) chefe da divisão administrativa e financeira na ..., mencionando que nenhuma comunicação da atividade privada remunerada desenvolvida por AA, chegou àquela divisão, facto que não é, sequer, negado por nenhum dos arguidos. O ponto 13 surge como decorrência lógica e necessária, face aos factos objetivos já dados como provados e perante o quadro normativo que não cumpre aqui analisar no imediato, mas sobre o qual, adiante, nos debruçaremos. Efetivamente, por um lado, AA, sendo beneficiário do recebimento do montante que, pelo menos atualmente, o mesmo considera ter sido, de facto, indevido, face à função pública que desempenhava, no mínimo, não teve o cuidado de fazer chegar a informação relevante (a remuneração da função privada paralela) ao departamento de processamento de salários. Por outro lado, o arguido BB, à data Presidente da ..., responsável máximo e último, pelas despesas que a ... suporta, autorizou os pagamentos em causa, que, pelo menos atualmente, tem conhecimento de que não eram devidos. Também este arguido, no mínimo, não cuidou de aferir da respetiva legalidade dos recebimentos, nem informou o departamento competente, para regularizar a situação. Os pontos 14 a 18, resultam da certidão presente nos autos, a fls. 10 e seguintes do apenso B, referente à condenação sofrida pelos arguidos, decorrente da decisão proferida pelo Tribunal de Contas, considerando-se ainda, os documentos de fls. 1 e seguintes do apenso B, fls. 400 se seguintes e 587. A matéria comprovada em 19 a 27 resulta das declarações dos próprios arguidos, aqui consentâneas com as regras da experiência comum e com a realidade económica e social, considerando a conjuntura especifica dos visados, sendo tais informações ainda validadas pela prova documental junta aos autos, respeitante à situação económica de cada um dos arguidos. Por fim, quanto aos factos provados, constatou-se a inexistência de antecedentes criminais, perante a análise dos respetivos CRC, junto aos autos a fls. 599 a 600v. * No que aos factos não provados concerne, cumpre fazer, como sempre perseguimos, uma ponderada, criteriosa e tão sensata quanto o possível, reflexão. Vejamos: Desde já, concedemos que as regras da experiência comum, parecem apontar para aquilo que um homem médio (daí, experiência comum) cogitará, isto é, os arguidos, firmaram um acordo em que AA auxiliaria, com o seu bom nome e reconhecimento social, BB a vencer as eleições e como contrapartida, auferiria o salário integralmente, não penalizando a sua atividade privada. Foi esta, aliás, a versão ouvida em sede de alegações finais, enunciada pela titular da ação penal. Efetivamente, não rejeitamos, à partida este pensamento, esta hipótese (nem qualquer outro/a, antes da apreciação da prova produzida). De facto, seria de pensar que cidadãos, como os arguidos, com formação superior, com experiência a vários níveis da vida profissional, soubessem dos trâmites legais e procedimentais, aquando da tomada de posse de cargos públicos na .... Por outro lado, sempre em abstrato ainda, seria difícil de conceber que BB, como o próprio aceitou, conhecedor do quadro legal em causa, desconhecesse que AA era remunerado no setor privado e que apenas, por tal desconhecimento autorizasse os pagamentos indevidos. Todavia, as regras da experiência comum, baseiam-se em factos anteriores, que se repetem sucessivamente ultrapassando em número, aquilo que podemos chamar de exceções, que não podemos olvidar que também sucedem. Referem-se, portanto, a probabilidades estatísticas, situações que maioritariamente ou provavelmente, ocorrerão, mas, sem uma certeza científica. Pela assertividade, pese embora estejamos ainda em sede de motivação de facto, acompanhamos o sumário produzido pelo Acórdão da Relação de Évora de 21.01.2020 (disponível em www.dgsi.pt) que indica o seguinte a este propósito: I - As regras de experiência comum autorizam a apreciar um comportamento determinado em função da cultura e comportamento social de um determinado povo, num tempo determinado. As presunções, ao invés, permitem partir de um facto conhecido para um facto desconhecido. II - A presunção vive e gera factos. A regra de experiência comum é uma generalização, decorrente de observação empírica de factos anteriores, bastas vezes confundindo-se com prejuízos, mesmo preconceitos, daí a necessária cautela no seu uso. Dar como provados, ou não, factos em função de regras de experiência comum – para mais com a largueza e o subjetivismo expostos, tal como feito pelo tribunal recorrido - não é admissível e atenta contra as balizas de racionalidade impostas pela ordem jurídica processual penal portuguesa. Será, portanto, necessário concatenar os elementos de prova colhidos e analisados em sede de audiência, observá-los – também – sob o ponto de vista das regras da experiência comum, e de tal operação obter uma conclusão lógica, harmoniosa e consonante com a realidade dos acontecimentos. Sem prejuízo do exposto, cremos, ainda assim, que no presente caso as regras da experiência comum, não apontam (ainda sem o arrimo ou suporte de outra prova, concreta e objetiva) de forma evidente para a situação que acima expusemos. E adiantamos por que razões: Desde logo, não se vislumbra de modo inequívoco, que vantagem tiraria BB desta atuação voluntária e consciente, acordada com AA. Nenhuma outra questão – que não a eventual vitória eleitoral – foi adiantada em audiência, por qualquer testemunha ou consta (ou é sequer indiciada) nos autos. Mas recordamos que, por um lado, a tal vitória eleitoral era apenas eventual e, por outro lado, os factos sucederam já após tal vitória. Vemos com dificuldade que o próprio recém-eleito Presidente da Câmara, iniciasse o seu primeiro mandato, com tão grande “telhado de vidro” que, descoberto, hipotecaria uma longa carreira política naquelas mesmas funções. Arriscar tal situação, sem qualquer outra contrapartida, que não a vitória (já obtida) não se nos afigura coincidente com a ação de uma pessoa letrada e experiente como é o arguido BB. Por seu turno, juízo parecido é possível realizar quanto a AA, também este, pessoa experiente a nível profissional e com formação superior. AA, já vimos, na primeira reunião da assembleia municipal de cada mandato, comunicou o exercício continuado de funções privadas. E não só, desempenhou-as. Efetuar tais comunicações, pretendendo ostensivamente esconder a remuneração de funções privadas, seria o alerta máximo para que tal circunstância fosse descoberta, investigada ou levantada, pois, sendo um meio pequeno, certamente variadas pessoas – ligadas à ... – teriam conhecimento de tais remunerações. Sendo o arguido um homem experiente, pelo menos até aqui, no âmbito laboral/empresarial privado, fosse essa, de modo evidente, a sua intenção (a de auferir ilicitamente o salário por inteiro), mais facilmente ocultaria os seus proventos de natureza privada, nomeadamente direcionando-os através de interposta pessoa, que por si, ainda que de modo aparente, realizaria a atividade em questão. Uma outra questão, ainda sobre a mesma matéria, e que se ajusta a ambos os arguidos, está na circunstância de que, como qualquer outra pessoa, quando chegam a um local onde vão, pela primeira vez, prestar funções, “entregam-se nas mãos” de quem os recebe, de quem ali trabalha já há anos a esta parte e em quem se confia que os direcionará para os procedimentos corretos, julgando-se que, pela experiência, terão maior conhecimento do que quem chega pela primeira vez. Sucede que, como adiante se verá, nenhum elemento da ... alertou quanto à questão da remuneração a auferir pelo arguido AA. Nem a este, nem ao coarguido BB. Mas, porque não pode o Tribunal decidir apenas baseando a sua convicção em suposições, vejamos, afinal, a prova produzida quanto à factualidade em questão (factos não provados, 29 a 31). Já fizemos alusão que AA comunicou em cada primeira reunião da Assembleia Municipal, referente a cada mandato, o exercício de suas funções de natureza privada (fls. 84 e seguintes do apenso B). Todavia, não fez essa comunicação a nenhum outro serviço, nomeadamente de ordem financeira. Tal foi confirmado, pela Dra. CC, que assim o asseverou, acrescentando que se tivesse tido conhecimento de tais comunicações ficaria com dúvidas, que tentaria esclarecer, pois a comunicação não indica se as funções privadas eram ou não, remuneradas. Sucede que, as comunicações efetuadas na Assembleia Municipal, pese embora, passem a constar da ata, não são encaminhadas para os serviços competentes ou para os que, pudessem “aproveitar” tais comunicações para o cabal exercício de funções, conforme indicou expressamente, não só CC, mas também o atual Presidente da ..., DD. Segundo os mesmos, apenas as deliberações são comunicadas a cada serviço respetivo. Tais informações são confirmadas pelo documento junto a fl. 65 dos autos. Atente-se que foi preocupação efetuar a comunicação em causa, por parte do arguido AA, logo aquando do início das funções. Assim o indicou a testemunha KK – à data, entre o mais, secretariava os serviços aquando o início dos mandatos. Acrescentou que nesse mesmo dia, em que AA e BB se apresentaram, o primeiro questionou-a sobre a possibilidade de exercer funções no privado. Indicou a testemunha ter respondido afirmativamente, devendo, porém, efetuar a competente comunicação, que o arguido fez. Respondeu a testemunha que desconhecia a repercussão salarial, acaso houvesse remuneração do sector privado, pois caso contrário, teria avisado o arguido AA. Daqui se retira que, em momento algum AA procurou esconder a sua atividade privada, de natureza remunerada. Assim o denotam as circunstâncias expostas e o diz expressamente a testemunha Dra. HH, à data jurista na .... Aliás, acrescentou esta testemunha que o próprio AA lhe pediu um parecer sobre a possibilidade de exercer funções privadas a fim de aferir alguma situação de incompatibilidade, resultando de tal parecer a inexistência de qualquer irregularidade, parecer que foi secundado pela ... (cfr. fls. 132 e 133, apenso B). Atente-se que, a atuação dos arguidos estava a ser escrutinada pelo opositor FF (cfr. fl. 148 apenso B), conforme resulta da ata 23 de 03.11.2009. Ali (e ainda conforme ata 01/2010, fl. 99, apenso B), AA ostenta de modo quase inequívoco (embora não expressamente) que a sua atividade privada, tem cariz remunerado, o que suscita ou permite conceder que está convencido da legalidade da sua ação, pois que seria impensável a vontade de manutenção de uma irregularidade de tal dimensão, ainda no início de um segundo mandato, com uma evidente oposição ou escrutínio de opositores. O que temos como certo, são dois pontos: primeiro, nunca alguém dos serviços da ... levantou, ao arguido AA, a questão da irregularidade de vencimento integral, pese embora pudessem até ter conhecimento que a mesma era remunerada, como se presumia que sim (como foi a ideia deixada pelas testemunhas KK e HH); segundo, o arguido AA não escondeu a sua atividade privada, havendo conhecimento generalizado que tal, tinha natureza remunerada. Acrescentamos uma terceira certeza, que já mencionamos: AA comunicou o exercício de atividade privada. Não o fez, é certo, para o departamento financeiro, como julgamos que o poderia e deveria fazer, pois que era esse quem deveria efetuar o ajuste necessário ao salário, nada o podendo fazer, se nada lho for comunicado. Mas seria exigível ao arguido AA que procedesse de tal modo? Afigura-se-nos que, poderia e deveria tê-lo feito, deveria ter tido a diligência e cuidado de que era capaz, mas daí até afirmar que não o fez de modo consciente a fim de obter benefícios, não cremos ter elementos suficientes para tal afirmação com a segurança necessária que se impõe. É que, note-se a própria jurista da ..., à data, HH, desconhecia o quadro legal que interferia com o pagamento integral acaso houvesse remuneração no sector privado (assim o disse a sobredita testemunha em audiência). O mesmo quadro legal era desconhecido pela funcionária KK (igualmente o confirmou em audiência). Estamos a referir-nos a uma jurista e a uma funcionária de secretariado, que desempenham funções na ... há largos anos. E não desconheciam o quadro legal por mero acaso. Justificaram tal desconhecimento, porquanto nenhuma outra situação similar sucedeu até à data na ... (situação anteriormente referida, também, por CC). Se estas testemunhas desconheciam o quadro legal (e acrescentamos, tratam-se de funcionários, técnicos de carreira, não políticos) mostra-se exacerbadamente precipitado exigir que o arguido, que não é jurista e que chega às funções em causa, pela primeira vez, tenha necessariamente conhecimento do mesmo quadro e, ao mesmo tempo, comunicar nos precisos trâmites que a lei indica (com a ressalva que a lei não indica a necessidade de comunicação, mas impõe apenas o desconto salarial) e mais, efetuar a comunicação em cada posto de cada departamento da .... A tudo acresce que não foi produzida rigorosamente qualquer prova, quer documental, quer testemunhal, que indicie que o arguido AA tenha pedido sigilo quanto ao recebimento de verbas de funções privadas ou que tenha sido avisado ou por qualquer modo tivesse tido conhecimento de que estava a agir ilicitamente. No que respeita ao arguido BB, note-se que o mesmo indicou ter conhecimento do quadro legal referente às repercussões a nível salarial no caso de recebimento de montantes monetários no setor privado. O que desconhecia era que o arguido AA auferia tais montantes. E também aqui, por referência aos factos em apreço, a prova produzia não infirma, pelo menos de modo minimamente satisfatório ou suficiente do ponto de vista da prova dos factos, a versão do arguido. Das atas a que já nos referimos, fica claro que BB tinha conhecimento do exercício de funções privadas por parte de AA. Mas atente-se que na ata referente ao dia ........2009 (fl. 91 apenso B), BB referiu que aquele exercia funções ocasionais no sector privado. Não é de menor importância a palavra “ocasional”, por força do alegado desconhecimento de recebimento de remuneração de AA, que BB argumenta. É que, segundo disse BB, secundado por AA e, com maior relevância, pela generalidade das testemunhas inquiridas, funcionárias da ..., AA trabalhava nos serviços da ..., aparentemente a tempo inteiro, entrando de manhã e saindo ao final da tarde. Tal situação, poderia levar BB a julgar que aquele tivesse abandonado as funções remuneradas, exercendo funções apenas ocasionais, não remuneradas, tal como necessariamente sucedeu com muitos eleitos anteriormente (aqui recordando que, já se viu, foi a primeira situação em que houve acumulação de funções públicas e privadas a título remunerado na ...). Era, portanto, essa a situação normal, comum ou habitual. A exceção foi precisamente esta. Ademais, ambos os arguidos indicaram que AA não informou BB que auferia montantes monetários do exercício da atividade privada, versão que, em momento algum foi contrariada pela prova produzida em audiência, não decorrendo tal, de modo concludente, da análise de qualquer elemento documental junto aos autos. Mas, quanto a nós, mais relevante, tendo o arguido BB estado presente aquando das comunicações efetuadas por AA (veja-se atas a que já fizemos referência), tendo “atrás de si” um ou mais departamentos que processam, organizam, verificam, controlam, acompanham todos os respetivos assuntos, mesmo sendo o Presidente o responsável máximo pelos “dinheiros públicos” concernentes à ..., necessariamente haverá um mínimo de confiança nos serviços respetivos pelos quais passa ou deveria passar toda a informação necessária ao correto funcionamento de cada matéria, confiança essa que tranquiliza o último responsável. Não estando devidamente comprovado que BB sabia que AA auferia remuneração no setor privado, cremos perfeitamente ser plausível que, no momento de assinar as ordens de pagamento, confiou que a situação era regular. Efetivamente, a situação exposta encontra verosimilhança nas palavras da testemunha Dr. JJ (atual Presidente da Câmara Municipal de …): à chegada ao local (para a tomada de posse) “é-nos questionado sobre o que fazemos e o que não fazemos e sobre o que condiciona o desempenho da função” (sic), situação que, no presente caso não sucedeu, note-se, porquanto os próprios funcionários desconheciam o quadro legal que impunha a redução salarial de AA. Aditou esta testemunha aquilo que a experiência comum já evidencia: que a lógica partidária na seleção de pessoas tem uma natureza muito própria, sendo preciso, por vezes, escolher pessoas que até não se quer, para daí tirar proventos políticos. Tal torna possível e até habitual que, mesmo conhecendo a pessoa que se escolhe ou convida, se desconheça o que faz ou não, na sua vida privada. Do exposto, não queremos deixar a ideia de responsabilização dos serviços da ... pelo sucedido. Mantemos a noção de que era sobre o beneficiário do rendimento que cairia o ónus da comunicação e em última análise, da responsabilidade do Presidente a ordem de pagamento irregular. Todavia não é incoerente enunciar que poderiam os serviços (mormente jurídicos e financeiros), questionar, alertar e corrigir a irregularidade que decorria, face à experiência que detêm no exercício de funções. Do exposto resulta, ainda, a total inexistência de um conluio entre os arguidos – em momento algum, tal circunstância consta da prova junta aos autos ou da prova testemunhal produzida em audiência – na prática dos factos. Reiteramos que não é através de suposições que se comprovam os factos. O que perpassa é um deficiente funcionamento e organização dos serviços da ..., aliás detetada pelo Tribunal de Contas, que, com a sua recomendação, já implementada (cfr. fls. 104 dos autos), impede a ocorrência de situações similares. A este título, veja-se, nomeadamente a declaração efetuada por AA ao Tribunal Constitucional (fls. 184), onde o próprio impresso contém já o campo referente ao recebimento de remuneração, situação que não sucedia na .... Concluindo, fica, para dizer pelo mínimo, uma dúvida que julgamos muito consistente para ser transposta de que os arguidos agiram de modo consciente e voluntário, afigurando-se que, ao invés, atuaram, certamente sem o devido cuidado e diligência que eram capazes – AA, ao não se inteirar do quadro legal e ao não comunicar ao serviço competente e BB, ao não aferir da regularidade dos pagamentos. Mas já deixamos claro – e foi aliás, a decisão a que chegou o Tribunal de Contas -, dar o salto para uma ação consciente e voluntária e ainda mais, concertada, é percorrer um caminho demasiado longo, ultrapassando de modo desproporcionado e desequilibrado o principio in dúbio pro reo.
III – FUNDAMENTOS DO RECURSO Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417.º, todos do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).2
A exigência de conclusões nos recursos, quer no âmbito penal quer no contra-ordenacional, tem em vista a determinação precisa e clara por parte dos sujeitos processuais dos aspectos que, por considerados incorrectamente julgados, pretendem ver reapreciados, de modo a permitir ao Tribunal conhecer de forma sintética, mas precisa as razões do pedido que lhe é dirigido.
Como se colhe dos ensinamentos do ... Alberto dos Reis as conclusões são a enunciação resumida dos fundamentos do recurso, «as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação», sendo elas que delimitam o objecto do recurso, como acima se referiu.
No recurso em apreciação, tendo em consideração as conclusões delimitadoras das pretensões do recorrente, cumpre apreciar:
A. Se ocorreu erro notório na apreciação da prova;
B. Se em consequência deste erro, e da alteração da matéria de facto provada, deve ocorrer alteração do enquadramento jurídico-penal dos factos e serem os arguidos condenados pela prática do crime de que vinham acusados.
Preliminarmente diremos que o recurso do Ministério Público, apesar de visar a matéria de facto dada como assente, não assenta o seu recurso na reapreciação da mesma, nos termos previstos no artigo 413.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ao contrário do que parece ser o entendimento dos recorridos.
Com efeito, apesar das considerações feitas ao longo da sua motivação, o recorrente conclui pela existência do vício previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, a saber: erro notório na apreciação da prova.
Assim, e uma vez que não impugna a decisão proferida sobre matéria de facto de forma clara e especificada, como impõe o supra referido n.º 3 do artigo 413.º, este Tribunal estará restringido a buscar o aludido vício de erro notório na apreciação da prova no texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (aliás, como para onde remete o Ministério Público nas suas alegações).
Como se extrai do recurso, o recorrente funda a sua pretensão de modificação da matéria de facto na errada valoração que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, sustentando que a mesma – que conduziu o Tribunal a um estado de dúvida – se apresenta contrária às regras da lógica e das regras de experiência comum. Ora, tal alegação corresponde juridicamente à alegação de violação do princípio da livre apreciação da prova, princípio que, como decorre do artigo 127.º do Código de Processo Civil, preside à apreciação da prova e do qual decorrem limitações ao controlo da decisão sobre a matéria de facto, em sede de recurso.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal a quo se estribou nestes pressupostos, o Tribunal ad quem não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição [«é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (…) «E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»3].
Da conjugação do regime legal vigente em matéria de apreciação e valoração da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, resulta que a tarefa do Tribunal de recurso, se reconduz a aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Ou seja, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar – como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento –, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente4.
Serão, pois, falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Esta interpretação, para além de acolhida por todos os Tribunais da Relação, é também sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo referenciar–se neste sentido, e entre muitos outros, o Acórdão de 23/09/20105, em cujo sumário se sintetiza que o «erro notório na apreciação da prova, da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida».
A este propósito, citemos ainda impressivo trecho de aresto do mesmo Tribunal Supremo6: No enquadramento jurídico-processual que é feito dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, estes assumem-se como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado. (…) Não se podem esgrimir argumentos opinativos quanto ao julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem criticar o processo formativo cognitivo – racional que arrimou uma tal ou qual apreciação factual ou valoração probatória, a menos que eles sejam cruciantes para o senso comum, et pour cause, o tornem inane para validação do acto de julgamento efectuado.
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. Já não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Assim estabelecidos os limites da análise suscitada, cumpre proceder à análise da prova e da exposição motivacional do Tribunal recorrido e aferir da invocada violação do princípio da livre apreciação da prova, com fundamento na inobservância, por este, das regras da lógica e da experiência comum (juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstrata decorrentes da observação empírica de factos anteriores semelhantes e que autorizam a apreciação de determinado comportamento com recurso à generalização, usando para o efeito um raciocínio indutivo que permite concluir que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma7).
Tudo no presente caso se resume à apreciação do elemento subjectivo do tipo de ilícito pelo qual os arguidos vinham acusados.
Como alega o Ministério Público, no crime de peculato (em concreto o previsto e punido pelo artigo 20.º da Lei n.º 34/87, de 16 de ...) não se exige um específico propósito apropriativo, bastando a vontade livre e consciente de praticar actos concludentes da apropriação de bem8. Daí ser fundamental que se mostrem provados os factos constantes da acusação e dados como não assentes pela sentença, a saber:
• Nas circunstâncias descritas em 6, o arguido BB atuou desconsiderando ser conhecedor do exercício pelo arguido AA, em regime de acumulação, de atividade remunerada de natureza privada.
• Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, cientes da natureza dos cargos que exerciam na ..., dos deveres daí decorrentes, e com conhecimento de que paralelamente como os cargos públicos de eleito local exercidos pelo arguido AA naquela Câmara, o mesmo exercia funções remuneradas de natureza privada, e com o propósito, conseguido, de, do modo descrito, fazerem do arguido AA as quantias acima indicadas no montante global de €135.584,62, bem sabendo que as mesmas pertenciam à ... e não lhe eram devidas.
• Os arguidos sabiam, porque não podiam nem deviam ignorar, que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
A sentença recorrida, neste particular, é abundante na sua fundamentação. Percorre de forma exaustiva o caminho que levaria a considerar, prima facie, como as regras de experiência comum apontam, para a existência de um conhecimento por parte dos arguidos da prática delituosa que empreenderam, para a final concluir que tal evidência não é clara e deixa espaço para que dúvidas legítimas subsistam. Dai terminar pela aplicação do princípio in dubio pro reo.
Estamos em crer que, face à matéria que considerou – e bem – provada, deveria ter concluído em sentido inverso, se não vejamos.
Primeiro, não pode nunca colher a versão do arguido BB de que era desconhecedor de que o co-arguido AA exercia actividade profissional remunerada em paralelo com o exercício do cargo de Vice-Presidente da Câmara Municipal da ....
Não é crível nem lógico que o Presidente de uma autarquia, de dimensão pequena como a da ...9, desconheça que o seu vice-presidente exerça actividade profissional privada remunerada; tal ofenderia as regras de experiência comum, para mais sendo conhecedor – como o próprio admitiu e se provou – da obrigação de efectuar a comunicação do exercício da actividade remunerada para efeitos da retribuição devida pelo desempenho do cargo autárquico; e que esse desconhecimento se prolongue por tantos anos.
De facto, podemos afirmar com um mínimo de certeza, que um homem comum, com as habilitações e conhecimentos do arguido, colocado na sua posição, jamais desconheceria a natureza remunerada da actividade desenvolvida pelo seu braço direito no sector privado.
Acresce que não pode ter deixado de tomar conhecimento das comunicações prestadas pelo seu Vice à Assembleia Municipal em 2005 e 2009, do «exercício continuado» da actividade de ... electrónica (factos provados 2. e 3.), ou seja, da actividade que já vinha desenvolvendo antes da assunção das funções autárquicas. E, se nada sabia, não se questionou se a actividade antes desenvolvida e que o continuou a ser era a título gracioso? Não é minimamente admissível esta tese, porque irracional e desprovida de senso.
Por outro lado, como resulta da fundamentação da sentença, era do conhecimento geral dos funcionários da Câmara que o arguido AA mantinha a sua actividade profissional remunerada ao mesmo tempo que desempenhava funções autárquicas. O que as testemunhas afirmaram desconhecer era a obrigatoriedade de comunicar tal e a sua repercussão na remuneração devida pelas últimas. Ora, todos conheciam essa realidade menos o Presidente, precisamente quem de mais perto trabalharia com o Vice-Presidente?
Este facto – o arguido BB não desconhecia que o seu Vice-Presidente exercia actividade privada remunerada – não pode deixar de se ter como provado, por resultar da decorrência lógica da prova produzida.
Também não pode deixar de se considerar provado o facto de o arguido AA não desconhecer a obrigatoriedade de comunicar o exercício remunerado da sua actividade.
O então Vice-Presidente da Câmara Municipal é pessoa licenciada, portanto com habilitações académicas acima da média, e tinha 41 anos à data em que assumiu o cargo autárquico. Como resultou da prova, tinha conhecimento – ou pelo menos a noção – de que poderia existir alguma sorte de incompatibilidade entre a sua actividade privada e as funções públicas que assumiu (teve a preocupação de comunicar o exercício da actividade no início de cada mandato, questionando mesmo os serviços da autarquia sobre a existência de alguma incompatibilidade – chegou a pedir parecer; mas, em todos estes momentos, nunca referindo ser remunerada a sua actividade privada).
Parece o Tribunal a quo dar especial relevância à circunstância deste arguido não ter escondido de terceiros que mantinha o exercício de actividade privada remunerada. Mas, e tratando-se como dissemos de um meio pequeno, como o poderia ter feito? Só exercendo essa actividade noutros concelhos? Estando numa ilha como S. Miguel, também isso dificilmente ocultaria tal exercício. Ou seja, como resultou da prova – e é referido na fundamentação da sentença –, o que aconteceu é que generalidade das pessoas que trabalhavam na Câmara Municipal sabiam que o arguido AA continuava a exercer a actividade que já antes desempenhava, previsivelmente com caracter remunerada, ainda que não se detivessem neste aspecto, por não verem relevância, visto serem desconhecedoras da obrigatoriedade de comunicação (como o disseram em julgamento).
O arguido é que não podia desconhecer a importância desse pormenor (ou pormaior, como apoda o Ministério Público na sua motivação), sendo que pelo menos anteviu a possibilidade de ser necessário comunicar a actividade remunerada que exercia no privado. Ao não o fazer, agiu com dolo, pois conformou-se com o possível resultado – recebimento ilícito de dinheiro pelo exercício de cargo público.
Aqui chegados há que dizer que a sentença recorrida efectivamente enferma de erro notório na apreciação da prova, devendo os mencionados factos não provados serem considerados provados, na medida em que constituem consequência lógica dos que foram dados como provados, não podendo compreender-se a existência da factualidade dada como provada sem a intencionalidade descrita naqueles pontos da matéria dada como não provada.
Assim, resulta também provado que:
29. Nas circunstâncias descritas em 6, o arguido BB actuou desconsiderando ser conhecedor do exercício pelo arguido AA, em regime de acumulação, de actividade remunerada de natureza privada.
30. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, cientes da natureza dos cargos que exerciam na ..., dos deveres daí decorrentes, e com conhecimento de que paralelamente como os cargos públicos de eleito local exercidos pelo arguido AA naquela Câmara, o mesmo exercia funções remuneradas de natureza privada, e com o propósito, conseguido, de, do modo descrito, fazerem do arguido AA as quantias acima indicadas no montante global de €135.584,62, bem sabendo que as mesmas pertenciam à Câmara Municipal da ... e não lhe eram devidas.
31. Os arguidos sabiam, porque não podiam nem deviam ignorar, que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Por força da supra referida alteração, temos assim a seguinte matéria de facto provada:
1. Nos períodos e datas abaixo indicados, os arguidos exerceram as funções inerentes aos seguintes cargos na Câmara Municipal da ... (doravante designada apenas de ...), para os quais foram eleitos:
a. O arguido BB exerceu o cargo de presidente da ... nos mandatos de ... e ..., mais concretamente entre ... e ..., tendo sido eleito para o mandato de ... como vereador em regime de não permanência;
b. O arguido AA exerceu, desde ..., os cargos de vereador em regime de permanência e de vice-presidente da ... (designado em ... e ...), nos mandatos de ... e ..., com o pelouro da ..., tendo sido eleito para o mandato de ... como vereador em regime de não permanência, cargo ao qual veio a renunciar em ...
2. Por requerimento, com data de entrada no Município em ..., dirigido ao Presidente da Assembleia Municipal de ..., e que veio a ser presente na sessão ordinária de ... da Assembleia Municipal, o arguido AA comunicou o exercício continuado da actividade de ....
3. Por requerimento, com data de entrada no Município em ..., dirigido ao Presidente da Assembleia Municipal de ..., e que veio a ser presente na sessão ordinária de ... da Assembleia Municipal, o arguido AA comunicou o exercício continuado da actividade de ....
4. Assim, no decurso dos mandatos de ... e ..., o arguido AA exerceu, em simultâneo com o exercício dos cargos acima indicados, funções remuneradas de natureza privada, concretamente de consultadoria em ... e enquanto autor de ....
5. Sucede que não obstante as comunicações referidas em 3. e 4., nenhum dos arguidos comunicou, ou determinou a comunicação à Divisão Administrativa e Financeira, do exercício das funções privadas com carácter remunerado pelo arguido AA, para efeitos do adequado processamento de remunerações.
6. Em vez disso, os arguidos determinaram-se a proceder, quer um quer outro, à autorização do pagamento da remuneração mensal ao arguido AA pela totalidade da remuneração devida pelo exercício das funções dos cargos que exercia na ..., desconsiderando o arguido AA, do exercício pelo mesmo, em regime de acumulação, de actividade remunerada de natureza privada.
7. No período de ...a ..., os arguidos, BB, por competência própria, e AA, por competência delegada, ordenaram pagamentos, ao arguido AA, então Vice-Presidente da ..., pelo exercício do cargo autárquico que o arguido exercia, no montante global de 324.012,09€, designadamente:
a. ano de …: 30.911,52€ de remuneração mensal, 6.090,96€ de despesas de representação, 2578,54€ e 2.575,96€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 42.156,98€;
b. ano de ...: 31.382,40€€ de remuneração mensal, 6.090,96€ de despesas de representação, 2.617,82€ e 2.615,20€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 42.706,38€;
c. ano de ...: 32.035,20€ de remuneração mensal, 6.090,96€ de despesas de representação, 2.672,27€ e 2.669,60€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 43.468,03€;
d. ano de …: 32.964,24€ de remuneração mensal, 6.399,24€ de despesas de representação, 2.749,77€ e 2.747,02€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 44.860,27€;
e. ano de …: 32.002,79€ de remuneração mensal, 6.212,60€ de despesas de representação, 2.609,67€ e 2.609,67€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 43.434,73€;
f. ano de ...: 28.817,76€ de remuneração mensal, 5.594,28€ de despesas de representação, 2.442,12€ e 2.442,12€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 39.296,28€;
g. ano de ...: 28.817,76€ de remuneração mensal, 5.594,28€ de despesas de representação, no total de 34.412,04€;
h. ano de ...: 22.831,17€ de remuneração mensal, 4.432,13€ de despesas de representação, 4.487,47€ e 1.926,56€ de subsídios extraordinários pagos a ... e ..., respectivamente, no total de 33.677,32€.
8. O arguido AA auferiu, entre ... e …, a totalidade das remunerações devidas aos vereadores em regime de permanência que exercessem exclusivamente funções autárquicas ou em acumulação com o desempenho não remunerado de funções privadas, ou seja, pela totalidade dos salários e suplementos.
9. Por força de tais ordens de pagamento, o arguido AA recebeu, sem que ao mesmo tivesse direito e não lhe sendo devido, o montante global de 135.584,62€, discriminado nas quantias a seguir indicadas:
a. no ano de …: 15.455,52€ a título de remuneração mensal, e 1.290,54€ e 1.287,96€ a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 18.034,02€;
b. no ano de ...: 15.691,20€ a título de remuneração mensal, e 1.310,11€ e 1.307,60€ a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 18.309,01€;
c. no ano de ...: 16.017,60€ a título de remuneração mensal, e 1.337,47€ e 1.334,80€ a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 18.561,95€ (deduzido o montante de 127,92€ que deveria ter recebido a título de despesas de representação);
d. no ano de …: 16.481,04€ a título de remuneração mensal, e €1.276,17 e 1.373,42 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 19.230,63€;
e. no ano de …: 16.000,35€ a título de remuneração mensal, e €1.304,75 e €1.304,75 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 18.609,85€;
f. no ano de ...: 13.706,79€ a título de remuneração mensal, e €1.137,20 e €1.137,20 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 15.708,92€ (deduzido o montante de €272,26 que deveria ter recebido a título de despesas de representação);
g. no ano de ...: 13.706,79€ a título de remuneração mensal, ao qual deduzido o montante de 272,26€ que deveria ter recebido a título de despesas de representação, se cifrou no montante global de 13.434,52€;
h. no ano de ...: 10.888,97€ a título de remuneração mensal, e €2.113,82 e €897,12 a título de subsídios extraordinários pagos a ..., respectivamente, no montante global de 13.695,71€ (deduzido o montante de 204,21€ que deveria ter recebido a título de despesas de representação).
10. Os pagamentos acima referenciados. foram feitos na sequência de ordens de pagamento assinadas pelos arguidos no exercício dos cargos supra indicados, sendo que as ordens de pagamentos dadas pelo arguido BB somam o total de €108.176,02 de remuneração recebida pelo arguido AA a que não lhe cabia direito, e as dadas pelo arguido AA, que autorizou, a si próprio, os pagamentos em excesso, somam o total € 25.778,88 de remuneração recebida a que não lhe cabia direito.
11. Em ... foi ainda dada ordem de pagamento da remuneração pela totalidade ao arguido AA, por DD, eleito para o cargo de Presidente daquela ... nas eleições ocorridas em ... para o mandato de ...1.../2017, por razão da qual o arguido AA recebeu sem que lhe coubesse direito a remuneração de € 1.629,73.
12. O arguido AA fez suas as quantias acima indicadas, indevidamente pagas, no montante global de € 135.584,62, que só lhes foram entregues por força das condutas acima descritas de ambos os arguidos, praticadas no âmbito e por força dos cargos que os arguidos exerceram na ....
13. Os arguidos actuaram com desrespeito das funções públicas que lhes foram acometidas por eleição para os cargos autárquicos que ocuparam, sem cuidar de informar o competente serviço autárquico para o processamento de remunerações, a saber, a divisão administrativa e financeira, da actividade remunerada de natureza privada exercida pelo arguido AA em acumulação com as suas funções de eleito local.
14. Por força das ordens de pagamento referenciadas, os arguidos foram condenados em responsabilidade financeira sancionatória e reintegratória, bem como na restituição ao Município da ... dos valores em causa no âmbito do processo n.º …, do Tribunal de Contas, Secção ….
15. Assim, o arguido BB foi condenado naquele processo n.º … a proceder à reposição ao Município da ... do valor de 54.088,01€, acrescida de juros de mora, após redução para metade da quantia a repor por aplicação do art. 64.º, n.º 2 da LOPTC.
16. Por sua vez, o arguido AA foi condenado do mesmo processo n.º … a proceder à reposição ao Município da ... do valor de 25.778,88€, acrescida de juros de mora.
17. Nessa sequência o arguido AA encontra-se a restituir, parcelarmente, os valores nos quais foi condenados a repor no supra identificado processo junto da ....
Da contestação do arguido BB:
18. O arguido BB ressarciu integralmente o Município da ..., face à condenação referida em 15.
Mais se apurou que:
19. O arguido AA é licenciado, em ..., pela ....
20. Reside com a esposa.
21. Tem dois filhos, maiores de idade, um dos quais estudante universitário.
22. Os rendimentos anuais são superiores a 80.000,00 euros.
23. O arguido BB é licenciado.
24. É ... de ….
25. Reside com a esposa.
26. Tem 3 filhos, todos maiores de idade.
27. Os seus rendimentos anuais são superiores a 80.000,00 euros.
28. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
29. Nas circunstâncias descritas em 6, o arguido BB actuou desconsiderando ser conhecedor do exercício pelo arguido AA, em regime de acumulação, de actividade remunerada de natureza privada.
30. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, cientes da natureza dos cargos que exerciam na ..., dos deveres daí decorrentes, e com conhecimento de que paralelamente como os cargos públicos de eleito local exercidos pelo arguido AA naquela Câmara, o mesmo exercia funções remuneradas de natureza privada, e com o propósito, conseguido, de, do modo descrito, fazerem do arguido AA as quantias acima indicadas no montante global de €135.584,62, bem sabendo que as mesmas pertenciam à Câmara Municipal da ... e não lhe eram devidas.
31. Os arguidos sabiam, porque não podiam nem deviam ignorar, que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Subsumamos agora os factos ao direito.
Diz o n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 34/87, de 16 de ...10: O titular de cargo político que no exercício das suas funções ilicitamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel que lhe tiver sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções será punido com prisão de três a oito anos e multa até 150 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
De acordo com al. i) do n.º 1 do artigo 3.º da mesma Lei, é titular de cargo político o «membro de órgão representativo de autarquia local».
Os arguidos, ao actuarem do modo como o fizeram, preencheram objectivamente aquele tipo de ilícito: apropriaram-se, no exercício dos respectivos cargos autárquicos – em proveito próprio, no caso do arguido AA, e em proveito de terceiro, no caso do arguido AA – de dinheiro da autarquia cuja gestão lhes estava confiada, contraindo o que dispunha a lei.
Este crime, cometido entre ... e ..., a forma como o foi e considerando o bem jurídico ofendido, enquadra-se na noção de crime continuado, prevista no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal. É que os arguidos infringiram o dever de comunicação em pelo menos duas ocasiões, de forma idêntica no seu proceder, num quadro de uma mesma situação exterior – a inoperância dos serviços administrativo-financeiros da Câmara Municipal –, o que de certa forma mitiga o juízo de censurabilidade que sobre os mesmos impende.
Devem assim ser condenados, cada um, como co-autores deste ilícito penal, o qual foi cometido de forma continuada.
Cumpre neste momento determinar as concretas penas a aplicar aos arguidos.
Com efeito, e em cumprimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/201635, que fixou jurisprudência no sentido de que «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, al. b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, als a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal», impõe-se proceder à escolha e determinação concreta da pena, dentro da moldura abstracta prevista para o crime em questão.
Uma vez que ao referido crime correspondem, cumulativamente, pena de prisão e pena de multa, não há que fazer a análise pedida pelo artigo 70.º do Código Penal: dar preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão.
Tampouco há que aquilatar da possibilidade de substituição da pena de prisão por pena de multa, atenta a moldura penal em apreço (cfr. n.º 1 do artigo 45.º do Código Penal).
Estabelece o artigo 40.º quais a finalidades das penas: 1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. (…)
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas36.
O modo de determinação da medida da pena está legalmente definido no artigo 71.º do Código Penal, que estabelece que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º 1).
E ainda, conforme prescrito no n.º 2 deste artigo, «na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a. O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b. A intensidade do dolo ou da negligência;
c. Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d. As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e. A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f. A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.»
Por fim, remata o n.º 3 que «[n]a sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer11.
«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção»12.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/200513, a dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão, arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Em síntese, pode dizer-se, com FIGUEIREDO DIAS, que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa14.
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues15, apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Por fim, a punição do crime continuado segue o regime previsto no n.º 1 do artigo 79.º do Código Penal: O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
Descendo ao caso concreto, visto estarmos perante o cometimento plúrimo do mesmo tipo de crime, não releva aquele especial regime de punição.
Por outro lado, verifica-se que são prementes as exigências de prevenção geral, porquanto a prática deste crime tem tido um incremento preocupante na nossa sociedade e um impacto elevado na opinião pública, gerando sentimentos de desconfiança dos eleitores relativamente aos seus representantes nos diversos órgãos do Estado e minando a credibilidade do próprio regime democrático, a que urge por cobro e cujos efeitos importa minimizar.
Pelo contrário, não são prementes as exigências de prevenção especial, dado que os arguidos não têm antecedentes criminais e encontram-se socialmente inseridos.
Como factores relevantes para a determinação concreta das penas de prisão e de multa a aplicar a cada um dos arguidos nos presentes autos, importa considerar (ambos apresentam situações sócio-familiares muito semelhantes):
• Como agravantes:
• o grau elevado da ilicitude do facto, tendo os arguidos actuado com dolo directo;
• o modo de execução do ilícito, que se prolongou por cerca de 8 anos consecutivos, exercendo os arguidos os mais elevados cargos administrativos possíveis numa autarquia local;
• a ausência de arrependimento manifestado, revelador da ausência de consciência do desvalor das respectivas condutas pelos arguidos e das consequências das mesmas;
• Como atenuantes:
• as condições pessoais dos arguidos, que se mostram familiar e socialmente inseridos;
• a ausência de antecedentes criminais;
• a reparação do prejuízo (apesar de tudo mitigada porque consequência de decisão do Tribunal de Contas).
Todas estas circunstâncias, e ainda o lapso de tempo já decorrido desde a prática dos factos – cerca de 11 anos –, julgamos que acautela de forma suficiente as finalidades da punição graduar as penas de prisão e de multa próxima dos respectivos mínimos. Com efeito, tal mostrar-se-á bastante para dissuadir os arguidos de reincidir, por um lado, e restabelecer a confiança da comunidade no ordenamento jurídico.
Assim, decidimos fixar em 4 anos de prisão e 80 dias de multa as penas que cabem a cada um dos arguidos.
Tendo em conta a medida da pena de prisão encontrada, impõe-se considerar a possibilidade de suspensão da respectiva execução.
Nos termos previstos no artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como se ponderou no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa16: 1– A finalidade político-criminal que a lei visa através do instituto da suspensão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, carecendo, a aplicação medida, de ser adequada a uma prognose de prevenção especial, já que os fins da prevenção geral aqui devem fazer-se sentir unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico. 2– Não são considerações de culpa que devem ser atendidas, mas juízos sobre o modo como o arguido se irá comportar em liberdade, considerando a sua personalidade, as suas condições de vida, o seu comportamento e as demais circunstâncias do caso, tudo determinando que o juízo de prognose do julgador seja favorável à suspensão, por esta se revelar adequada e suficiente.
Transcrevemos, a este propósito, impressivo trecho de aresto do Supremo Tribunal de Justiça17: Para a aplicação da suspensão da execução da pena (artigo 50.º, do CP), a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente. Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência. Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena. Estão em causa, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção. Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o ... Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência». Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa, pois, determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade. Nos termos prevenidos no artigo 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou. Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena. Assim, subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá futuros crimes.
Importa, pois, determinar se existe, com base nos factos apurados, uma esperança séria de que é possível a socialização dos arguidos em liberdade e de que os mesmos têm capacidade para se autocontrolar, pautar os seus comportamentos pela obediência às normas jurídicas e evitar o cometimento de novos crimes.
Nos termos do artigo 50.º do Código Penal, a averiguação de tal capacidade deve, no entanto, ser feita em concreto, através da análise da personalidade do agente, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
Se no momento em que a decisão é tomada se concluir que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são aptos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, então deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.
No caso dos autos, depõem em favor dos arguidos a respectiva inserção sócio-profissional e a ausência de antecedentes criminais, neste particular ligados com a idade dos mesmos – hoje, BB tem 62 anos e AA 60 anos.
Em seu desfavor avulta a falta de arrependimento, o que demonstra ausência de consciência do desvalor das suas condutas criminosas.
Não se cuidam aqui de ponderar as elevadas as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de crime, como supra deixamos dito. No momento de decidir pela suspensão da execução da pena de prisão o que importa considerar são as exigências mínimas de prevenção e de ressocialização do arguido, a fim de prevenir a reincidência.
Em face da factualidade apurada, entendemos que é possível formular um juízo de prognose favorável sobre a possibilidade de a ameaça de pena ser bastante para evitar que os arguidos voltem a cometer crimes.
Por fim, fixemos o quantum diário de multa a aplicar a cada um dos arguidos. Aqui manda a lei atender à situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal).
Também as situações de ambos os arguidos são semelhantes: são casados, vivem com as mulheres, têm filhos – todos maiores de idade – e auferem rendimentos anuais superiores a €80.000,00.
Mostra-se assim adequado fixar em €40,00 cada dia de multa, perfazendo o total de €3.200,00 de multa para cada um dos arguidos.
O recurso procede assim na totalidade.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e em consequência julgar a acusação procedente e condenar:
a. o arguido AA pela prática, em co-autoria material e na forma continuada e consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na pena de prisão de 4 (quatro) anos, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, e na pena de 80 (oitenta) dias de multa à razão diária de € 40,00, perfazendo o montante global de €3.200,00 (três mil e duzentos euros);
b. o arguido BB pela prática, em co-autoria material e na forma continuada e consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na pena de prisão de 4 (quatro) anos, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, e na pena de 80 (oitenta) dias de multa à razão diária de € 40,00, perfazendo o montante global de €3.200,00 (três mil e duzentos euros).
Custas pelos arguidos, fixando-se em 5 UCs a taxa de justiça – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro).
Notifique.
Após trânsito em julgado, remeta boletim ao Registo Criminal – artigo 6.º, al. a) da Lei n.º 35/2015, de 5 de Maio e 12.º do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto.
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Lisboa, 26 de Setembro de 2024
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Jorge Rosas de Castro (vencido, conforme voto que segue)
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Declaração de voto (parcialmente vencido)
Jorge Rosas de Castro
Subscrevo o acórdão na parte correspondente à alteração da matéria de facto, bem assim como no que toca à integração jurídico-penal que faz da conduta dos Arguidos no quadro do crime de peculato.
Já não acompanho a posição que fez vencimento quando considera que temos diante nós um peculato sob a forma de «crime continuado».
Justifica o acórdão o «crime continuado», neste caso, nos seguintes termos, que aqui se transcrevem: «Este crime, cometido entre ... e ..., a forma como o foi e considerando o bem jurídico ofendido, enquadra-se na noção de crime continuado, prevista no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal. É que os arguidos infringiram o dever de comunicação em pelo menos duas ocasiões, de forma idêntica no seu proceder, num quadro de uma mesma situação exterior – a inoperância dos serviços administrativo-financeiros da Câmara Municipal –, o que de certa forma mitiga o juízo de censurabilidade que sobre os mesmos impende.»
Por que me afasto desse entendimento?
O crime continuado consubstancia-se na unificação jurídica de um concurso efetivo de crimes fundada numa culpa diminuída (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição atualizada, pgs. 245-246). Do que se trata é de uma unidade criminosa normativamente construída [Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, Gestlegal (2019), pg. 1193]. É uma ficção jurídica: o agente atua várias vezes, na base de outras tantas resoluções criminosas, mas o legislador trata a situação sob a capa de um crime único.
Para que essa unificação possa ocorrer exige-se, à luz do art. 30º, nº 2 do Código Penal: (a) a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico; (b) que a execução tenha lugar por forma essencialmente homogénea; (c) e que essa execução se verifique no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Atentemos no conceito: «solicitação de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa».
Ora, nem vejo que haja uma «situação exterior», nem tão pouco uma «diminuição considerável da culpa».
Que situação exterior aos agentes aponta o acórdão? A inoperância dos serviços administrativo-financeiros da Câmara Municipal.
Ora, quem temos diante nós eram apenas o Presidente e o Vice-Presidente da Câmara Municipal, ou seja, as pessoas que dirigiam a Câmara Municipal e em última análise respondiam pelas ações ou omissões dos serviços por eles dirigidos, tutelados e/ou supervisionados; dizer-se que a inoperância dos serviços por eles dirigidos, tutelados e/ou supervisionados constitui algo que lhes é exterior é ponto que não alcançamos.
E também não vejo que dessa alegada situação exterior – ou de qualquer outra – derive uma «diminuição considerável da culpa».
Aliás, o próprio acórdão não a afirma de forma expressa, na medida em que o que diz é isto: «(…) - a inoperância dos serviços administrativo-financeiros da Câmara Municipal -, o que de certa forma mitiga o juízo de censurabilidade que sobre os mesmos impende».
Não basta que haja uma qualquer diminuição do juízo de censurabilidade; não basta que este juízo de censurabilidade seja diminuído de «certa forma» - exige-se que essa diminuição seja considerável.
Vejo as coisas, neste ponto, de forma diametralmente oposta: o prolongamento da situação durante múltiplos anos, ao invés de diminuir consideravelmente o juízo de censurabilidade, agrava-o, pois do que objetivamente se tratava era do perpetuar de uma situação onerosa para o erário público a que os Arguidos facilmente poderiam ter posto cobro a qualquer momento e cuja persistência denuncia uma reiterada e crescentemente censurável vontade criminosa.
Como já tem sido dito, a figura do crime continuado não está pensada para premiar carreiras criminosas longas (Ac. da RC de 8/11/2017, relatado por Luís Teixeira); está pensada para casos diferentes, isto é, para casos em que a situação, exterior ao agente, facilitou a prática do crime, atraindo-o ao mesmo sem ele o ter procurado e ativamente provocado (vejam-se a estrutura e a lógica dos exemplos indicados por Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, Almedina (1992), pg. 210 e por Figueiredo Dias, ob. cit., pg. 1198]; exige-se a presença de uma situação exógena ao agente, uma disposição das coisas para o facto que lhe seja alheia, facilitadora da repetição da conduta e tornando cada vez menos exigível um comportamento conforme ao direito (Ac. do STJ de 8/01/2014, relatado por Vasques Osório).
Nada disso vejo aqui.
O que temos, do meu ponto de vista, é um único crime, assente numa única resolução criminosa cujos efeitos se projetaram no tempo, resolução criminosa que se renovou aquando do início do segundo mandato (talvez pudesse até equacionar-se a existência de um segundo crime em concurso efetivo com o primeiro).
Dito isto, e com o devido respeito, não acompanho o acórdão quando diz que existe um crime continuado.
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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, Diário da República – Série I, de 28/12/1995.
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2015 (Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5.ª Secção).
3. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Volume II, Coimbra, 2010, págs. 201 e 273.
4. Cfr. MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 2002, pág. 808; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, vol. III, Lisboa, 1994 pág. 326; SIMAS SANTOS E LEAL HENRIQUES, em Recursos em Processo Penal, Lisboa, 2020, págs. 81 e ss.).
5. Acessível em www.dgsi.pt.
6. Acórdão de 11/10/2017 (www.dgsi.pt).
7. Vide a propósito Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21/01/2020 (www.dgsi.pt).
8. Assim, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/09/2016 (www.dgsi.pt).
9. Concelho da ilha de S. Miguel – Açores, com uma área de 180km2 e cerca de 10.000 habitantes.
10. Iremos considerar a versão deste diploma à data dos factos, ou seja, aquela emergente das alterações decorrentes da Lei n.º 108/2001, de 28 de ....
11. Cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, págs. 227 e segs.
12. TAIPA DE CARVALHO, Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pág. 322.
13. CJ/STJ, III, pág. 173.
14. Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, Coimbra, ..., pág. 84.
15. O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182.
16. Acórdão de 11/10/2017 (www.dgsi.pt).
17. Acórdão de 11/02/2021 (www.dgsi.pt).