PROCEDIMENTO CAUTELAR
ARROLAMENTO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
ALEGAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
HERANÇA
Sumário

I- Se, o requerimento inicial do procedimento cautelar não contiver os factos essenciais em que se estriba a pretensão do requerente, se a causa de pedir for ininteligível (art.ºs 5/1, 186/2/a) ou se a pretensão formulada for manifestamente improcedente, o juiz deve indeferir liminarmente a providência requerida, não se justificando a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento do articulado.
II- O que está em causa na decisão recorrida não é a falta de concretização na petição do arrolamento de factos que permitam concluir pela verificação ou não do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens ou de documentos, o que está em causa é, apenas, a alegação e prova sumária do direito da requerente em relação aos bens da herança do mencionado F… e, essa, verifica-se, não se podendo concluir pela manifesta improcedência do arrolamento com base na falta de alegação dos factos essenciais relativos à titularidade do direito da requerente relativo aos bens da herança do F…, cujo arrolamento de bens do acervo hereditário é peticionado.

Texto Integral

I- RELATÓRIO
APELANTE/REQUERENTE DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR de arrolamento: A …
REQUERIDOS (citados para os termos da providência e do recurso): B … C … D … E …
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Todos com os sinais dos autos. Valor da providência: 30.000,00 euros (decisão recorrida).

I.1. A … requereu contra as pessoas acima indicadas a presente providência cautelara de arrolamento ao abrigo do disposto no artigo 403.º e ss. do Código de Processo Civil pedindo o arrolamento dos depósitos bancários, bens móveis que compõem a herança de F …, falecido no dia 15 de março de 2015 e ainda dos bens móveis, rendimentos e frutos que pertençam às sociedades F … - Construções, Lda e  Sociedade Agrícola F…& Filhos, Lda. Em suma alega que:
· A Requerente e os Requeridos são os únicos herdeiros do de cujus F …, o acervo hereditário é composto por diversos bens móveis e imóveis e por participações sociais nas seguintes sociedades: - Sociedade Agrícola F…& Filhos, Lda (Cfr. Doc. 3); - F … - Construções, Lda (Cfr. Doc. 4).
· A herança encontra-se indivisa e têm sido sucessivos os esforços que acabaram por culminar em fracassos, para efetuar composições de quinhões e partilha.
· a Requerente veio a confirmar quando, recentemente, teve conhecimento da existência do processo de maior acompanhado que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível – … – Proc. n.º …/…, os factos alegados no processo de maior acompanhado que fazem retroagir os últimos actos cognitivos conscientes da cabeça-de-casal e gerente há dois ou três anos atrás tornando evidente que alguém, de forma não controlada, autorizada, empossada ou com qualquer tipo de obrigação de prestação de contas, gere a seu belo prazer as sociedades, os ativos da herança sendo o acervo hereditário é composto de bens cujo o valor económico ascende a vários milhões de euros, potencialmente acima das duas dezenas de milhões, incluindo diversos imóveis devolutos no centro de Lisboa, no âmbito deste exercício livre de gestão de facto, o herdeiro C … intentou o processo e formula uma proposta de constituição de conselho de família, na qual a Requerente é a única que não é indicada a gerente de ambas as sociedades e cabeça-de-casal está incapacitada há vários anos, encontrando-se as sociedades sem aprovação de contas há mais de dois anos, correndo o risco inclusive de dissolução administrativa, as sociedades não realizam assembleias gerais desconhece-se, por completo, como são cumpridas as obrigações tributárias e tudo decorre no âmbito de uma informalidade que dá seguimento à ausência de prestação de contas desde há 9 anos nunca foram prestadas contas da administração do património, nem pela cabeça-de-casal, nem pelo herdeiro C … nem por nenhum dos herdeiros, desde 2015! Nunca tendo sido entregues elementos obrigatórios para cumprimentos das obrigações fiscais, como sejam anexos correspondentes a herança indivisa e rendimentos da mesma para que os herdeiros pudessem cumprir as suas obrigações (art.ºs 1 a 27)
· D … já se apropriou de bens móveis, nomeadamente de pratas, serviços de louça e obras de arte, realizando uma espécie de adjudicação parcial sem concordância. Refira-se, ainda, que os herdeiros C … e o filho do herdeiro originário I …, E … –, administram, a seu belo prazer, os imóveis, nomeadamente permitindo a entrada e permanência de cidadãos estrangeiros ilegais nos imóveis sitos na Rua do …, n.º … (Vivendas da Lapa), que faz parte do património imobiliário da sociedade F … - Construções Lda. Esta situação de insalubridade e chaga social em pleno coração da sociedade de Lisboa e num dos seus bairros mais luxuosos, já deu origem a um procedimento criminal, porquanto existe a utilização indevida e informal de 12 vivendas inacabadas como lugar de curta permanência de cidadãos estrangeiros, presumivelmente ilegais, desconhece-se, também, qual o valor dos depósitos bancários, que há data do falecimento do de cujus eram de milhões de euros, desconhece-se se foram conferidos mandatos aos herdeiros, cujos poderes tenham sido conferidos, já durante o período de incapacidade da cabeça-de-casal. Desconhece-se qual o destino que é dado aos subsídios que são auferidos pela sociedade agrícola, cujo investimento em conservação e manutenção tem sido realizado única e exclusivamente pela requerente e seu marido. Da mesma forma que as vivendas inacabadas na zona da Lapa estão deixadas a um desgoverno total da sociedade F … - Construções Lda., só por intervenção da requerente e do marido é que o mesmo não sucede com a Sociedade Agrícola F … & Filhos, Lda., embora, ainda recentemente, o herdeiro C … tivesse enunciado que pretendia vender a Herdade a cidadãos estrangeiros de nacionalidade Venezuelana e/ou Colombiana, desconhece-se, assim, de que forma é que são geridas as sociedades, nomeadamente após da perda de capacidades da cabeça-de-casal. Desta forma existe uma a animosidade flagrante entre os herdeiros, e a evidente impossibilidade de a cabeça-de-casal administrar os bens da herança ante a dimensão do acervo de bens móveis que compõem a herança direta ou indiretamente (constituindo património das sociedades).  Importa fazer um inventário rigoroso de todos os bens ainda existentes e respetivo estado de conservação, da mesma forma que importa fazer um levantamento rigoroso das obrigações cumpridas ou por cumprir das respetivas sociedades comerciais. Não podendo as sociedades em questão manter-se ingovernáveis ou governáveis por essa mão invisível, sem que se cumpram as obrigações inerentes durante tantos anos. Desta forma, impõe-se proceder ao arrolamento dos depósitos bancários, bens móveis da herança e das sociedades comerciais, nomeadamente rendimentos e frutos que pertençam às sociedades. Sendo a requerente herdeira do seu pai, a quem pertenciam os bens agora na posse dos requeridos, é obvio o seu interesse na conservação desses bens. Tendo já, previamente, requerido inventário para partilha dos bens (art.ºs 28 a 53). Arrolou testemunhas e declarações de parte da requerente.
I.2. Foi proferido despacho onde no essencial consta “... Desta forma, a providência cautelar encontra-se dependente de uma outra acção que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurada como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva – cf. artigo 364º do Código de Processo Civil. In casu, foi apensada ao processo especial de inventário, em que é inventariado F …, a presente providência cautelar. Como já tivemos oportunidade de assinalar, a requerente requer o arrolamento de bens que integrarão o património de duas pessoas colectivas, requerendo o arrolamento dos bens de tais sociedades (cf. artigo 49º do requerimento inicial).
Ora, uma sociedade comercial é uma pessoa jurídica distinta das pessoas singulares, sendo que o património social não é considerado como património dos seus sócios ou administradores. Face à autonomia jurídica das sociedades comerciais, os bens das sociedades identificadas no requerimento inicial não integram acervo hereditário do de cujus, mas antes o activo das próprias sociedades, não podendo, consequentemente, os eventuais bens das sociedades em causa integrar a relação de bens a apresentar no processo de inventário, podendo apenas ser relacionado a participação social do de cujus nas referidas sociedades. Em conformidade com o que ficou exposto, não existe dependência nem instrumentalidade entre o presente procedimento cautelar e a acção de inventário à qual o mesmo foi apensado, devendo os presentes autos ser desapensados e remetidos à distribuição, o que se determina.”
I.3. Foi aos 10/7/2024, proferido despacho onde, no essencial, se diz “...Daí que, não fazendo os bens cujo arrolamento se pretende - “depósitos bancários, bens móveis da herança e dos bens móveis, rendimentos e frutos que pertençam às sociedades” - parte do acervo hereditário deixado pelo óbito do de cujus, a Requerente não é titular de “um direito, certo ou eventual sobre os bens a arrolar” e conclui: “...pelo não preenchimento do primeiro requisito de que depende a procedência do presente arrolamento. Tal implica que, mesmo que viessem a ser considerados como indiciariamente provados os factos alegados, os mesmos não são susceptíveis de preencher todos os requisitos cumulativos de que depende o decretamento da presente providência. Por tudo o exposto, decide-se julgar manifestamente improcedente o presente procedimento cautelar, e, em consequência, indeferi-lo liminarmente.”
I.4. A Apelante inconformada com a decisão que indeferiu a providência cautelar dela interpôs recurso de apelação em cujas alegações em suma conclui:
a) O Tribunal a quo não interpretou o real sentido do requerimento de decretamento de arrolamento formulado pela ora Recorrente e, consequentemente, incorreu em erro de julgamento, proferindo por isso uma sentença que, sempre com o devido respeito, deverá ser anulada e substituída por outra que decrete a providência requerida, a ora recorrente apresentou requerimento de decretamento de providência cautelar de arrolamento, em face do seu fundado receio na dissipação dos bens que compõem a herança, aberta por óbito de seu pai, e que são suscetíveis de ser alienados sem que haja qualquer concordância ou sequer conhecimento da sua parte,  pedido da requerente decompõe-se em arrolamento dos depósitos bancários, dos bens móveis que compõem a herança; arrolamento dos bens móveis, rendimentos e frutos que pertençam às sociedades: Sociedade Agrícola F … & Filhos, Lda e F … -  Construções Lda; o pedido de arrolamento dos depósitos bancários e bens móveis que compõem a herança corresponde a pedido diverso do relativo às sociedades comerciais não se compreende o motivo pelo qual o douto Tribunal olvida uma parte substancial do requerimento, deixando-a sem qualquer apreciação não tendo, tão pouco, fundamentado a ausência de decisão quanto a esta parte a ausência de qualquer apreciação ou decisão quanto a esta parte do peticionado consubstancia uma clara e evidente omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC motivo pelo qual, a Sentença é nula por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do CPC, devendo, por isso, ser revogada. [conclusões 1 a 10]
b) Não obstante, considerando o douto Tribunal a quo que o pedido estava mal formulado, o que apenas se concede por cautela de patrocínio e para efeitos de raciocínio jurídico, deveria ter convidado a Requerente a aperfeiçoar o requerimento ou a vir esclarecer o pretendido, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º e 7.º do CPC, assim como do artigo 590.º do CPC, aplicável, ex vi, do artigo 549.º n.º 1, do CPC, o que não sucedeu sendo que, para indeferir liminarmente o procedimento cautelar sempre seria necessário um grau de certeza muito elevado, nos termos do artigo 590.º/1 do CPC não tendo o Tribunal a quo proferido qualquer despacho no sentido de convidar ao aperfeiçoamento do requerimento, nem sequer formulado qualquer pedido de esclarecimento junto da Requerente, a decisão que indefere liminarmente o procedimento cautelar, sem se pronunciar sobre a totalidade do pedido, encontra-se ferida de nulidade. [Conclusões 11 a 14]
c) A requerente demonstrou existir justo receio de extravio, tendo descrito diversos acontecimentos que implicaram a dissipação de bens e outros que demonstram a sua desconfiança de quem tem a administração de facto dos bens, tendo inclusive feito referência à incapacidade da cabeça-de-casal, corroborada pela existência de um processo de maior acompanhado que se encontra a correr termos no Juízo Local Cível de Lisboa a Requerente alegou e demonstrou que a herança está a ser administrada por herdeiros que não são a requerente, e relativamente aos quais existem motivos mais do que suficientes para que a requerente tenha receio do extravio, ocultação e dissipação dos bens, tendo em conta a atuação que têm levado a cabo ao longo dos anos. A requerente mencionou expressamente, concretamente nos artigos 26.º, 27.º, 28.º e 31.º do requerimento inicial, a inexistência de prestação de contas do património, a apropriação, por parte da herdeira D …, de diversos bens móveis, entre os quais obras de arte, e, ainda, a existência de depósitos bancários cujo valor nunca foi atualizado, mas que à data do óbito ascendiam a milhões de euros, a requerente demonstrou não só ser herdeira do de cujus e herdeira das participações sociais que o mesmo detinha (conforme certidões juntas), como explanou os motivos que justificavam o seu receio e a necessidade de arrolamento dos bens motivo pelo qual, pelo menos no que respeita a estes bens, o requerimento deveria ter sido julgado procedente e, em consequência, ter sido decretado o arrolamento dos referidos bens as participações sociais e direitos que lhes advêm integram o conceito de bens móveis, nos termos dos artigos 202.º a 205.º do Código Civil, a requerente pretendia acautelar era tão só o arrolamento das participações sociais que o de cujus detinha nas sociedades Sociedade Agrícola F … & Filhos, Lda e F … - Construções, Lda. e que, por sua morte, passaram a pertencer em comum e sem determinação de parte a todos os herdeiros, inclusive a requerente, e, se fosse o caso, eventuais rendimentos ou frutos que coubessem ao sócio (ou às participações do sócio) por decorrência de deliberação social, uma vez que a requerente desconhece, totalmente, o que se passa nas sociedades e o que foi deliberado até então não se pode concordar com o entendimento que é defendido pelo douto Tribunal a quo de que “a requerente não é titular de nenhum direito certo ou eventual sobre os bens a arrolar”, as participações sociais de que o de cujus era titular não passam, em virtude da sua morte, para a titularidade das sociedades, mas sim dos herdeiros. Não se concorda igualmente que “os bens de uma qualquer sociedade nunca poderão integrar património hereditário”, na medida em que tais bens ou rendimentos/frutos dos mesmos podem estar adjudicados a determinado sócio ou acionista, desconhece-se se o de cujus (ou até mesmo a herança, por iniciativa da cabeça-de-casal ou outro herdeiro) prestou quaisquer suprimentos às sociedades e quais as condições para a sua restituição a restituição dos suprimentos pode ser ordenada, como qualquer outra transferência ou pagamento, por aquele que tenha a administração de facto das contas bancárias das sociedades, sendo efetuada uma simples comunicação à contabilidade para efeitos de registo nos documentos contabilísticos, podem ser transferidos valores das contas das sociedades para quem quer que seja, sem autorização da requerente desconhecem-se quais os resultados líquidos das sociedades nos últimos anos e se existem dividendos com pagamento postecipado atribuídos às participações que eram do de cujus, os quais, a existirem, integram o acervo hereditário, importa apurar, com celeridade, se existem direitos ou rendimentos inerentes às participações sociais da herança, para efeitos de contabilização e identificação para posterior partilha, razão pela qual, uma vez mais, se o tribunal a quo tinha dúvidas do que realmente se pretendia com o requerimento, deveria ter convidado a requerente a aperfeiçoar a sua peça, pese embora se considere que indubitavelmente decorria do requerimento a verdadeira pretensão da requerente, nestes termos, deve a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que decrete a providência cautelar requerida. [Conclusões 15 a 43].
I.4. Os autos foram aos vistos dos Ex.mos Juízes-adjuntos que nada sugeriram, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso.
I.5. São as seguintes as questões a resolver:
a) Saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia sobre o pedido de arrolamento dos bens da herança do falecido F …, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do CPC; ou considerando o douto tribunal a quo que o pedido estava mal formulado, saber se o Tribunal recorrido deveria ter convidado a requerente a aperfeiçoar o requerimento ou a vir esclarecer o pretendido, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º e 7.º do CPC, assim como do artigo 590.º do CPC aplicável, ex vi, do artigo 549.º n.º 1 do CPC, encontrando-se ferida de nulidade.
b) Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e aplicação do direito quando conclui que “a requerente não é titular de nenhum direito certo ou eventual sobre os bens a arrolar”, isto porque as participações sociais de que o de cujus era titular não passam, em virtude da sua morte, para a titularidade das sociedades, mas sim dos herdeiros, e bem assim quando refere “os bens de uma qualquer sociedade nunca poderão integrar património hereditário”, na medida em que tais bens ou rendimentos/frutos dos mesmos podem estar adjudicados a determinado sócio ou acionista, verificando-se ao contrário do decidido o primeiro pressuposto para o decretamento do arrolamento.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É do seguinte teor a decisão recorrida:
“A … intentou procedimento cautelar de arrolamento contra B …, C …, D … e E ….
Para tanto, e em suma, alega que as partes são os herdeiros de F …, sendo que o acervo hereditário é composto, nomeadamente, por participações sociais de duas sociedades comerciais, encontrando-se os requeridos a gerir tais sociedades sem prestarem contas à requerente, pedindo que se “proceda ao arrolamento dos depósitos bancários, bens móveis da herança e dos bens móveis, rendimentos e frutos que pertençam às sociedades (…)”.
A providência cautelar de arrolamento tem como fito a conservação de bens com vista a evitar o respectivo extravio, e encontra previsão legai nos artigos 403º e seguintes do Código de Processo Civil.
De acordo com o artigo 403º do Código de Processo Civil:
“1. Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2. O arrolamento é dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
Por sua vez, prescreve o nº 1 do art.º 404º do Código de Processo Civil que: “O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”.
Da leitura das citadas disposições legais, extrai-se que são dois os requisitos do arrolamento: 1) o requerente ser titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar; 2) haver justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens (cf., entre outros, Alberto dos Reis, In CPC Anotado, vol. II, 3.ª edição–reimpressão, e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021, Proc. 342/20.9T8PVZ-A.P1, acessível em dgsi.pt). Como ensina Alberto dos Reis a propósito do interesse na conservação de bens a que alude o citado art.º 404º/1 do CPC, “Ter ou não interesse equivale a ter ou não direito (certo ou eventual) aos bens que se pretendem por a coberto do risco de extravio ou dissipação. Segue-se daí que, embora pareça tratar-se de uma condição de legitimidade, na realidade trata-se de um a condição de fundo, de um requisito de procedência do pedido” (…). “Se o requerente não tiver direito algum aos bens, o pedido não pode ser atendido, a providência não pode ser decretada” (op. cit, p. 104).
No caso em apreciação, resulta manifesto que a Requerente não é titular de um direito, certo ou eventual sobre os bens a arrolar, pois os bens pretendidos arrolar serão da titularidade das sociedades comerciais que identifica no requerimento inicial. Ora, os bens de uma qualquer sociedade nunca poderão integrar o património hereditário, mas sim o património daquela sociedade comercial/pessoa colectiva. Como é sabido, as pessoas colectivas são sujeitos dotados de personalidade jurídica, titulares de direitos e obrigações autónomas, e não se confundem com os direitos e obrigações das pessoas singulares, ainda que estas sejam membros daquelas.
Daí que, não fazendo os bens cujo arrolamento se pretende - “depósitos bancários, bens móveis da herança e dos bens móveis, rendimentos e frutos que pertençam às sociedades” - parte do acervo hereditário deixado pelo óbito do de cujus, a Requerente não é titular de “um direito, certo ou eventual sobre os bens a arrolar”. Conclui-se, pois, pelo não preenchimento do primeiro requisito de que depende a procedência do presente arrolamento. Tal implica que, mesmo que viessem a ser considerados como indiciariamente provados os factos alegados, os mesmos não são susceptíveis de preencher todos os requisitos cumulativos de que depende o decretamento da presente providência.
Por tudo o exposto, decide-se julgar manifestamente improcedente o presente procedimento cautelar, e, em consequência, indeferi-lo liminarmente. Custas pela Requerente – artigos 527º, nºs 1 e 2, e 539º do Código de Processo Civil. Na falta de melhores elementos, e considerando que o presente procedimento não versa sobre interesses imateriais, fixa-se à causa o valor de €30.000,00 – artigos 296º, nº1 e 304º/3/f) do Código de Processo Civil.”
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1. Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608, n.º 2, 5, 635, n.º 4, 649, n.º 3, do CPC  são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539).
III.2. Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I.
III.3. Saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia sobre o pedido de arrolamento dos bens da herança do falecido F …, nos termos da alínea d), do nº 1, do artigo 615.º do CPC; ou, considerando o douto tribunal a quo que o pedido estava mal formulado, saber se o tribunal recorrido deveria ter convidado a requerente a aperfeiçoar o requerimento ou a vir esclarecer o pretendido, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º e 7.º do CPC, assim como do artigo 590.º do CPC aplicável ex vi do artigo 549.º n.º 1 do CPC, encontrando-se ferida de nulidade.
III.3.1. É verdade que a requerente pede o arrolamento dos bens das sociedades nas quais, alegadamente o falecido detinha participações sociais no caso a Sociedade Agrícola F … & Fihos, Lda (Cfr. Doc. 3) e na sociedade F … - Construções Lda, e, porque o património das sociedades por quotas se não confunde com o património do falecido é apodítico que em relação aos bens próprios das sociedades a providência nunca poderia proceder. Contudo, a requerente pede, também, o arrolamento dos bens que constituem o acervo hereditário do mencionado F … de que a requerente refere ser filha e herdeira e sobre tal o tribunal recorrido no despacho de admissão do recurso refere que “...Uma alusão genérica a “depósitos bancários, bens móveis que compõem a herança” não é susceptível da interpretação que, em sede de recurso, a requerente pretende fazer valer não menos relevante, temos que por despacho de 23 de Maio de 2024, transitado pacificamente em julgado, o Tribunal decidiu que “não existe dependência nem instrumentalidade entre o presente procedimento cautelar e a acção de inventário à qual o mesmo foi apensado, devendo os presentes autos ser desapensados e remetidos à distribuição, o que se determina”, uma vez que “os bens das sociedades identificadas no requerimento inicial não integram acervo hereditário do de cujus, mas antes o activo das próprias sociedades, não podendo, consequentemente, os eventuais bens das sociedades em causa integrar a relação de bens a apresentar no processo de inventário”, entendimento que se respeitou na decisão ora recorrida. O arrolamento de bens móveis da herança corre termos por apenso ao processo de inventário, que está pendente, sendo paradoxal pretender invocar a nulidade de decisão proferida na sequência da decisão de 23 de Maio, transitada em julgado. Quanto à pretendida “nulidade por inexistência de convite ao aperfeiçoamento”, carece de qualquer fundamento. A decisão de indeferimento teve por fundamento a improcedência do procedimento, tendo o Tribunal concluído “pelo não preenchimento do primeiro requisito de que depende a procedência do presente arrolamento. Tal implica que, mesmo que viessem a ser considerados como indiciariamente provados os factos alegados, os mesmos não são susceptíveis de preencher todos os requisitos cumulativos de que depende o decretamento da presente providência”.
III.3.2. O procedimento cautelar comum de arrolamento, a que alude o artº 403º, nºs 1 e 2, do CPC, exige como pressuposto ou requisito a verificação de um justo receio, por parte do requerente quanto ao extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, sendo dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas. O arrolamento é uma medida de carácter conservatório destinada a assegurar a manutenção de certos bens, e é instrumental em relação a todas as acções em que está presente a titularidade de certos bens, como acontece designadamente no processo de inventário sucessório e, especificamente, quanto a depósitos bancários. Essa providência pode ser requerida por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo, de acordo com o artº 405º, nº 1, fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente. A requerente fundamentou sumariamente o seu direito relativo aos bens da herança do mencionado F … de quem é herdeira, por isso é manifesto ocorre a omissão de pronúncia sobre essa questão e o despacho proferido ao abrigo do disposto no art.º 617/1, sobre a nulidade em questão, verdadeiramente não a aprecia. Ocorrendo essa nulidade os autos contêm os elementos necessários para que esta Relação ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 665 em substituição do Tribunal recorrido conheça do objecto da apelação o que se fará de seguida.
III.4. Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e aplicação do direito quando conclui que “a requerente não é titular de nenhum direito certo ou eventual sobre os bens a arrolar”, isto porque as participações sociais de que o de cujus era titular não passam, em virtude da sua morte, para a titularidade das sociedades, mas sim dos herdeiros, e bem assim quando refere “os bens de uma qualquer sociedade nunca poderão integrar património hereditário”, na medida em que tais bens ou rendimentos/frutos dos mesmos podem estar adjudicados a determinado sócio ou acionista, verificando-se ao contrário do decidido o primeiro pressuposto para o decretamento do arrolamento.
III.4.1. Os casos de indeferimento liminar, podemos ler no “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª ed. Pg. 699, ponto 4, de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, correspondem às situações em que a petição inicial apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor, a inviabilidade, dizia-se antes. Tal avaliação exige um juízo de avaliação sobre a situação controvertida configurada pelo requerente e o direito aplicável, nas suas várias soluções possíveis e da sua inexorável inviabilidade, não tem, portanto, a ver com algo bem diverso, a eventual constatação de insuficiências ou irregularidades do articulado inicial, mas que podem, e devem, ainda, ser supridas. Naquela primeira situação, impõe-se, efectivamente, o indeferimento liminar, porquanto seria inelutável o insucesso final previsto desde logo (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, obra e pág. cit. Ponto 5, e págs. 700- 702, pontos 8 a 17) mas não na segunda situação, aí importa lançar mão dos poderes de gestão cometidos ao juiz do processo para que este prossiga o seu iter até à almejada decisão final de mérito (José António de França Pitão e Gustavo França Pitão, Código de Processo Civil Anotado”, Tomo I, 2016. Pg. 657). De acordo com tal dever de gestão processual, previsto no art.º 6º, nº 1, do CPC, cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo, oficiosamente, as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. É nessa perspectiva que o nº 2 desse mesmo preceito acrescenta que o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo. O mencionado artº 590º, agora nos nºs 2, 3, dispõe que, findos os articulados o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, podendo convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados e fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa, bem como para suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. O convite ao aperfeiçoamento não seria feito agora através do despacho pré-saneador mas, excepcionalmente porque está previsto e deve ser aproveitado para essa fim, através do despacho de apreciação liminar imposto pelo artº 226º, nº 4, b). O artº 5º, nºs 1 e 2, a) e b), pronunciando-se sobre o ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, no segmento que agora nos interessa, diz que lhes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar (José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil – Conceitos e Princípios Gerais à luz do Novo Código”, 4ªed., pg 168 e sgs)[1]. III.4.2. O que está em causa na decisão recorrida não é a falta de concretização na petição do arrolamento de factos que permitam concluir pela verificação ou não do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens ou de documentos o que está em causa é apenas a alegação e prova sumária do direito da requerente em relação aos bens da herança do mencionado F … e, essa, verifica-se, não se podendo concluir pela manifesta improcedência do arrolamento com base na falta de alegação dos factos essenciais relativos à titularidade do direito da requerente relativo aos bens da herança do F ….
IV- DECISÃO
Tudo visto acordam os juízes em julgar procedente a apelação, em conformidade revogam a decisão recorrida, que se substitui por estoutra que determina o prosseguimento dos autos. Regime de Responsabilidade por Custas: custas no recurso são da responsabilidade da requerente que, não decaindo, tira proveito do recurso na medida em que se determina o prosseguimento dos autos, o que lhe é favorável. (art.º 527/1 e 2).

Lisboa, 26-09-2024
Vaz Gomes
Ana Cristina Clemente
Susana Gonçalves
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[1] Cfr. entre outros ACRC de 18/2/2021 nos processos 27/21.9T8SEI.C1, relatado pro Paulo Brandão, disponível no sítio www.dgsi.pt