ACÇÃO DECLARATIVA
REVELIA DO RÉU
ALEGAÇÕES POR ESCRITO
OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO DO RÉU
NÃO CONSTITUIÇÃO OBRIGATÓRIA DE ADVOGADO
Sumário

I - O art.º 567, nº 2 do CPC apenas impõe a notificação das partes por intermédio dos respectivos mandatários para alegarem na sequência do reconhecimento da revelia do réu.
II - Não há qualquer violação dos princípios do contraditório e igualdade de armas plasmados nos art.ºs 3º e 4º do CPC, pelo facto do réu revel, não ter sido notificado pessoalmente para apresentar as referidas alegações.
III - Estão em causa questões jurídicas que apenas devem ser debatidas por advogados, os únicos com competência técnica para o efeito, num processo de constituição obrigatória de mandatário.
IV -  Não se verifica nulidade da sentença por violação do art.º 615, nº 1, al. b) do CPC, conexionada com o facto de o autor ter sido considerada parte legitima na acção, quando de acordo com os elementos de facto alegados e as provas documentais produzidas, o julgador verifica que a pessoa que se intitula de senhorio num acção de despejo aparece enquanto tal no contrato de arrendamento e tem a propriedade do bem objecto do litigio registada a seu favor.
V - Não se verifica nulidade da sentença por violação do art.º 615, nº 1 al. c) do CPC, relacionada com a invocação na sentença dos artigos 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1 do CPC, quando deveria ter sido referido o art.º 567, nº 1, quando esta questão foi objecto de despacho de correcção nos termos do disposto no art.º 614, nº 1 e 2 do CPC, proferido pela Mmª Juiz “a quo” antes de o recurso subir.

Texto Integral

Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
ES, propôs contra BO, Unipessoal, Lda., acção declarativa e condenação com processo comum.
Peticionou que fosse:
1 – Decretada a resolução do contrato de arrendamento tendo como objecto o prédio urbano, sito na Rua …, com destino a habitação e comércio.
2 - Condenada a Ré a pagar as rendas vencidas e não pagas relativas ao período de novembro de 2020 até janeiro de 2023, no total de €68.919,66;
3 – Condenada a Ré a pagar as obras necessárias para repor o locado no estado em que o recebeu, valor a apurar em execução de sentença.
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Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:
É proprietário do referido prédio urbano;
Celebrou com a Ré, um contrato de arrendamento da Loja correspondente ao rés-de-chão, com entrada pela Rua …, parte integrante do prédio identificado supra, destinado a comércio e serviços;
O arrendamento foi feito pelo prazo de 10 (dez) anos, renovável por períodos de um ano, com início na data de 01 de abril de 2017;
A renda contratada é actualmente de €2.552,58 (Dois mil quinhentos e cinquenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos).
Nos termos da cláusula Décima Segunda do contrato de arrendamento, as partes convencionam os domicílios indicados abaixo para efeito das comunicações entre o Senhorio e o Inquilino, previstas no artigo nono da lei 6/2006 de 27 de fevereiro:
Senhorio: Rua …, Lisboa
Inquilino: Sede …, Rua …, Lisboa
A Ré não pagou as rendas vencidas, correspondentes aos meses de novembro de 2020 e dezembro de 2020; bem como, todas as rendas vencidas nos anos de 2021 a janeiro de 2023, as quais totalizam €68.919,66 = (27 x €2.552,58);
A Ré comunicou ao A. por carta datada de 21de setembro de 2020, que pretendia recorrer às leis COVID, que lhe permitiam pagar as rendas vencidas nos três meses subsequentes àquele em que ocorresse o levantamento da imposição de encerramento do estabelecimento;
Decorrido o período COVID, o estabelecimento da Ré voltou a funcionar e o A. instou a Ré, várias vezes, a pagar as rendas vencidas desde novembro de 2020, até à data, o que a Ré nunca fez;
Através de várias comunicações eletrónicas (emails), a Ré foi prometendo que pretendia pagar as rendas, porém, não efetuou o pagamento até à data;
O A. comunicou à Ré, por carta registada com aviso de receção e por carta simples, em 16 de janeiro de 2023, o valor das rendas vencidas e não pagas, concedendo-lhe o prazo de oito dias para proceder ao pagamento e caso não o fizesse seria instaurada ação judicial de despejo com pedido de pagamento das rendas devidas;
Entretanto, o A. fez uma vistoria ao arrendado e verificou que a Ré, destruiu uma parede mestra, colocando em risco todo o edifício, alterou toda instalação elétrica, destruiu uma parede e instalou ali tanques de água, abriu buracos nas paredes;
Nos termos da cláusula sexta do contrato de arrendamento, a Ré foi autorizada a realizar obras, desde que não comprometam a segurança e estabilidade da fração e do edifício, condição que a Ré não respeitou;
Constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento, o incumprimento das cláusulas contratuais, que pela sua gravidade e consequências, torne inexigível á outra parte a sua manutenção, conforme art.º 1083º, nºs 1e 2 do CC;
Também constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento, a mora, igual ou superior a três meses no pagamento da renda, o que é o caso dos autos, por tratar-se de facto continuado, conforme art.º 1083º, nº 3 e 1085º, nº 3 do C.C.;
O A. fez a comunicação ao arrendatário conforme prevista no art.º 9º, nº 7, c) da Lei nº 6/2006 de 27/02, na redação atual, visto que, no referido contrato de arrendamento foi convencionada a morada das partes para tal efeito;
As comunicações feitas pelo A. ao arrendatário, nos termos referidos supra, consideram-se realizadas, ainda que, a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la, art.º 10º, nº 1, a) da Lei nº 6/2006 de 27/02, na redação atual;
Estão reunidas as questões de facto e de direito para que seja, legalmente, resolvido o contrato de arrendamento aqui posto em crise.

A ré requereu protecção jurídica nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de compensação de patrono, pedido esse que foi indeferido.
A ré não apresentou contestação.
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Foi proferido o seguinte despacho:
“Devida e regularmente citada, a ré não apresentou contestação, pelo que se consideram reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto do art.º 567 nº 1, do CPC.
Notifique as partes nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art.º 567º do CPC”.
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 A autora ES, alegou no sentido de que, “tendo em conta que, foi decidido que se consideram confessados os factos articulados pelo A., sem mais, entende-se que deverá ser proferida sentença condenado o R. no pedido”.
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A Mmª Juiz “a quo” proferiu sentença na qual julgou a acção totalmente procedente e, em consequência, condenou a ré BOS, Unipessoal, Lda. no pedido, decretando a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, e relativo ao imóvel correspondente à loja com entrada pelo nº … da Rua …, condenando a ré a pagar ao autor as rendas vencidas e não pagas relativas ao período de novembro de 2020 até janeiro de 2023, no total de €68.919,66 e condenando a ré a pagar as obras necessárias para repor o locado no estado em que o recebeu, valor a apurar em execução de sentença
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Inconformado com tal decisão, veio a ré dela interpor o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
“A. O juiz a quo tem o dever de garantir o princípio do contraditório à parte que manifestou expressamente nos autos o desejo de apresentar contestação e apenas não a apresentou no prazo legal por não ter sido notificado.
B. Só há revelia absoluta nos termos do artigo 566º do CPC que produza os efeitos previsto no art.º 567º do CPC quanto o réu não tenha intervindo de qualquer forma no processo.
C. A ré interveio no processo através do seu requerimento de 09.03.2023 declarando expressamente que queria defender-se e apresentar contraditório.
D. Nas várias fases processuais, o juiz pode e deve convidar as partes a suprir deficiências.
E. O art.º 567º nº 2 do CPC, não deve ser interpretado literal e restritamente no sentido de apenas ser notificado o advogado do autor para alegar por escrito.
F. Não existindo advogado constituído ou nomeado, tendo em consideração o princípio do contraditório e adequação formal, deve ser notificada a ré para o mesmo efeito.
G. De outra forma, as posições processuais da parte ficam notória e absolutamente desequilibradas, promovendo exclusivamente a notificação de advogados para alegar, dando-lhe evidente vantagem processual, e excluindo de forma intolerável a parte sem advogado do processo civil, em violação do princípio do contraditório.
H. A falta de notificação à ré dos actos processuais conduziram à presente sentença a qual constitui uma verdadeira decisão surpresa, que o Mmo Juiz a quo deveria ter acautelado nos termos do art.º 3º e 4º do CPC.
I. O autor é parte ilegítima na acção uma vez que, existindo vários proprietários/senhorios, se verifica existir uma situação de litisconsórcio necessário.
J. Ao decidir que que o autor é parte legítima sem aferir da sua legitimidade nem a mesma estar provada nos autos, a sentença recorrida viola o artigo 33º do CPC e configura erro de julgamento que torna a sentença nula por violação do art.º 615º nº 1 al. b) do CPC , nulidade essa que se requer pelo presente recurso que seja declarada.
K. A questão da legitimidade processual das partes, é uma excepção dilatória que implica a absolvição da instância e é de conhecimento obrigatório e oficioso do tribunal.
L. Não existe qualquer documento nos autos que comprove a propriedade pelo autor da loja locada ou a sua legitimidade processual do autor, nem a prova de tal facto é susceptível de ocorrer por confissão da ré, pelo que a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 568º al. d), art.º 278º nº 1 al. d) e art.º 33º nº 3 do CPC.
M. O Mmo Juiz a quo incorreu em erro de julgamento e aplicação da lei porquanto indicou como fundamentação da sentença disposições legais que não têm qualquer relação ou são aplicáveis ao caso concreto.
N. Os artigos 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1 do CPC referidos como tendo o efeito cominatório de que a falta de contestação implica “reconhecimento” dos factos alegados pelo autor na sua petição inicial, não encontram tal expressão na letra da lei, nem se adequam ao julgamento de direito da causa.
O. A indicação na sentença, como fundamentação da confissão/“reconhecimento” pela ré dos factos alegados pelo autor, de disposições legais totalmente diferentes daquelas onde se prevê tal cominação, constitui erro de direito e de julgamento, tornando a decisão ininteligível e nula nos termos do artigo 615º nº 1, al. c) do CPC, devendo ser revogada o
que agora se requer através do presente recurso”.
Pugna pela declaração da nulidade da sentença.
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O autor apresentou contra alegações, concluindo que:
“A sentença foi notificada às partes na data de 23-01-2024 e a apelante interposto o recurso em 23/02/2024, portanto, 30 dias após a notificação, consequentemente, a interposição do recurso ocorreu fora do prazo legal, pelo que, deverá ser considerado não admissível.
Conforme consta no ofício do Instituto de Segurança Social junto aos autos, a apelante “BO” foi notificada do dito indeferimento do pedido de proteção jurídica.
A Ré/apelante, foi regularmente citada para a ação e notificada do indeferimento do pedido de proteção jurídica, não tendo contestado nem constituído advogado  para deduzir oposição (art.º 15º-S da Lei nº 6/2006 de 27/02, com a redação da Lei nº 79/2014 de 19/12), consequentemente, conforme dispõe o art.º 567º, nº 2 do CPC, na falta de contestação é concedido o prazo de 10 dias aos mandatários do A. e do R. para alegarem.
Como se vê na citada norma, em caso de revelia do Réu, a Lei não prevê a notificação da parte que não tenha constituído mandatário.
O apelado juntou aos autos com a P.I. o respetivo contrato de arrendamento e a comunicação ao apelante, portanto, satisfez o estipulado na lei.
O Apelado é proprietário de 1 / 2 do prédio e usufrutuário de 1 / 4 + 1 / 4 = 1 / 2, consequentemente, o apelado tem toda a legitimidade para usar, fruir e administrar o referido prédio sem intervenção de outros (Art.º 1439º e 1446º do CC).
O arrendatário/apelante não pagou nem depositou as rendas na pendência da ação”.
Conclui, pugnando pela rejeição do recurso interposto por extemporaneidade. Em alternativa, defende que se deverá considerar o apelante, devidamente notificado do indeferimento do pedido de proteção jurídica, sendo revel na ação e considerar-se o apelado parte legitima na ação, bem como ser decretado o despejo imediato por falta do pagamento das rendas (Art.º 14º, nº 5, Lei 6/2006).
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Em 08.04.2024 foi proferido o seguinte despacho pela Mmª Juiz titular do processo na Primeira Instância:
“Da retificação de erro de escrita:
Nos termos do disposto no art.º 613º nº2 e no art.º 614º nº1 do CPC, é permitida a retificação de erros de escrita.
Considera-se erro de escrita aquele que se revela no contexto da declaração, (art.º 249º do CC).
Como assinala a apelante, na sentença em crise consta o seguinte segmento:
“IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a ré não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto do art.º 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1, todos do C. P. Civil.”
Como decorre, claramente, da leitura dos referidos artigos do C. P. Civil, estes nada têm que ver com a confissão de factos, na atual redação do aludido código. Trata-se dos artigos do anterior C. P. Civil, sendo que, por lapso, a subscritora utilizou como base da sentença ora proferida a estrutura de uma outra anterior à entrada em vigor da atual redação do C. P. Civil.
Trata-se de lapso evidente, facilmente constatável e corrigível, o que se passa a fazer.
Dado o exposto, e na sentença em causa, onde se lê:
“IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a ré não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto do art.º 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1, todos do C. P. Civil.”
Deverá passar a constar:
“IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a réu não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pela autora nos termos do disposto do art.º 567º nº1 do C. P. Civil.”
Notifique.
Da admissibilidade e tempestividade do recurso
Defendeu a apelada que estando em causa procedimento especial de despejo, o prazo de recurso é de apenas 15 dias.
No entanto, e conforme consta do requerimento eletrónico, petição inicial e distribuição, a presente ação foi intentada como ação declarativa com processo comum, aplicando-se as normas correspondentes.
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Admito o presente recurso, o qual é de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Das nulidades da sentença
Feita a retificação supra, entende-se estar sanada uma das nulidades assinaladas pela apelante.
Vem ainda a apelante arguir que não foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário, e não tendo o Tribunal se assegurado de tal notificação, proferiu decisão surpresa, violando o princípio do contraditório.
Ora como consta do ofício enviado pelo Instituto de Segurança Social, entidade competente para tramitação do pedido de proteção jurídica, a ré foi notificada, no âmbito daquele procedimento, da decisão de indeferimento.
Salvo melhor opinião, tal informação é suficiente e não tem de ser sindicada para que o tribunal considere a ré notificada da decisão.
Alega ainda a ré que deveria ter sido notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 567º nº 2 e, não o sendo, tal constitui nulidade processual.
O citado normativo apenas prevê a notificação dos mandatários das partes para, querendo, apresentar alegações, pelo que foi dado cabal cumprimento ao legalmente exigido.
Também alega a apelante que ao decidir que o réu é parte legítima, sem que a mesma esteja provada nos autos, a sentença se encontra ferida de nulidade.
Ora no caso dos autos, e atento o teor do documento junto e denominado “Arrendamento não habitacional”, o autor é identificado como senhorio, pelo que tal facto basta, no entender do tribunal, para que seja considerado parte legítima.
Não cabe ao Tribunal, na falta de indícios em contrário, indagar exaustivamente sobre todos os pressupostos processuais, como a capacidade ou legitimidade das partes.
Termos em que, salvo melhor opinião, se considera que a sentença recorrida não se encontra ferida de nulidade”.
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Recebidos os autos neste Tribunal, foram colhidos os vistos.
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2. Objeto do recurso
Admitido o recurso, e remetido o mesmo a este Tribunal, nada obstando ao conhecimento do seu mérito.
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3. Questões a decidir
São as conclusões formuladas pela recorrente que delimitam o objeto do recurso, no tocante ao desiderato almejado por aquele, bem como no que concerne às questões de facto e de Direito suscitadas, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC.
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC)[1].
Por outro lado, não pode o Tribunal de recurso, conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
No caso em análise, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
1 - Apurar se, no caso em que a ré não constitui advogado, deve a mesma ser notificada pessoalmente para alegar por escrito, à semelhança do que foi determinado relativamente ao advogado da autora e, se a alegada falta de notificação, conduz a uma decisão surpresa, que o Juiz “a quo” deveria ter acautelado nos termos do art.º 3º e 4º do CPC;
2 – Aferir se a sentença é nula por violação do art.º 615º nº 1 al. b) do CPC, porque considerou o autor parte legitima na acção, sendo que o prédio objecto do litígio está registado, também em nome de outras pessoas;
3 - Aferir se a sentença é nula e ininteligível por violação do art.º 615º nº 1 al. c) do CPC, porque mencionou que os factos alegados pelo autor se consideram reconhecidos pela ré, de acordo com o disposto nos artigos 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1 do CPC, ao invés do disposto no art.º 567, nº 1 do CPC.
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3. Fundamentação
 É este o conteúdo da sentença recorrida:
“I. Relatório
ES, melhor identificado a fls. 2, intentou a presente ação declarativa de condenação contra BO, Unipessoal, Lda., também melhor id. a fls. 2.
Pede o autor seja:
1 - Decretada a resolução do contrato de arrendamento;
2 - Condenada a ré a pagar as rendas vencidas e não pagas relativas ao período de novembro de 2020 até janeiro de 2023, no total de €68.919,66;
3 – Condenada a ré a pagar as obras necessárias para repor o locado no estado em que o recebeu, valor a apurar em execução de sentença.
Para tanto, alega o que consta da petição de fls. 2 e ss.
II. Do Valor
O autor indicou como valor da ação €68.919,66; que corresponde ao montante das rendas em dívida e em cujo pagamento pede a condenação da ré.
O critério geral de fixação do valor da causa é aquele determinado no nº 1 do art.º 296º do CPC, ou seja, o valor da causa representa a utilidade económica do pedido.
No entanto, há situações para as quais são determinados critérios especiais de fixação do valor, como é o caso das ações de despejo. Uma vez que, através desta ação, o autor pretende a resolução de contrato de arrendamento, será aplicável o critério determinado no nº 1 do art.º 298º do CPC, isto é, o valor da causa é o da renda de dois anos e meio, acrescida do valor das rendas em dívida.
Termos em que se fixa o valor da causa em €145.497,06.
III. Saneamento
O tribunal é competente. O processo é o próprio e não contém nulidades que o invalidem. As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas. Não existem quaisquer outras questões prévias de que cumpra conhecer e obstem ao conhecimento de mérito.
IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a ré não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto do art.º 784º, 484º nº1 e 463º nº1, todos do C. P. Civil.
V. Do Direito
Os factos alegados pelo autor determinam a procedência da ação pelo que, nos termos do disposto no artigo 784º do Código de Processo Civil, aderindo aos fundamentos de facto e de direito alegados na petição inicial, decide-se da procedência da ação, devendo a ré ser condenada nos pedidos formulados.
VI. Decisão
Face ao supra exposto, julga-se procedente a ação, e condena-se a ré BO, Unipessoal, Lda. no pedido, ou seja,
1 – Decreta-se a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, e relativo ao imóvel correspondente à loja com entrada pelo nº5 da Rua do Telhal, Lisboa;
2 – Condena-se a ré a pagar ao autor as rendas vencidas e não pagas relativas ao período de novembro de 2020 até janeiro de 2023, no total de €68.919,66;
3 – Condena-se a ré a pagar as obras necessárias para repor o locado no estado em que o recebeu, valor a apurar em execução de sentença
Custas pela ré, (artigo 527º do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.
Lisboa, d.s.
1 – Da alegada necessidade de notificar a ré/recorrente que não constitui advogado, nem contestou a acção, para alegar nos termos do disposto no art.º 567, nº 2 do CPC:
Importa em primeiro lugar, apurar se, no caso em que a ré não constitui advogado, deve a mesma ser notificada pessoalmente para alegar por escrito, à semelhança do que foi determinado relativamente ao advogado da autora e, se a alegada falta de notificação, conduz a uma decisão surpresa, que o Juiz “a quo” deveria ter acautelado nos termos do art.º 3º e 4º do CPC.
No caso em apreço, a ré foi devidamente notificada do indeferimento do pedido de protecção jurídica que formulou junto da segurança social, para nomeação de patrono com vista para a assessorar a respectiva defesa nestes autos.
Decorreu o prazo de trinta dias a que alude o art.º 569, nº 1 do CPC, sem que tivesse constituído mandatário para contestar a acção. A presente acção é de constituição obrigatória de mandatário, como dispõe o art.º 40, nº 1, al. a) do CPC, uma vez que, face ao valor da mesma, por ser superior à alçada do tribunal onde pende, é admissível recurso ordinário.
Recorde-se que à acção foi atribuído o valor de €145.497,06 na decisão proferida em 10.01.2024 (o que não foi posto em causa) e que, em matéria cível, a alçada dos tribunais de primeira instância é de €5.000 (cinco mil euros), nos termos do disposto no art.º 44, nº 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto que regula a organização do sistema judiciário.
Portanto, não resta qualquer dúvida que a ré/recorrente deveria ter constituído mandatário e que se considera revel, pelo facto de ter sido citada regularmente na sua própria pessoa e, tendo sido notificada expressamente pela Segurança Social, do indeferimento do seu pedido de protecção jurídica, não apresentou qualquer contestação subscrita por advogado no prazo de trinta dias, cfr. art.º 567, nº 1 do CPC.
Ao contrário do que refere o apelante, a revelia opera ainda que o réu se apresente no processo informando que requereu apoio judiciário, no caso em que, tendo esse pedido sido indeferido pela entidade administrativa competente, não constitui mandatário no prazo concedido para o efeito e não apresentou contestação.
Mais, ainda que tivesse constituído mandatário, se não tivesse contestado, era, de igual modo, considerada revel. É o que decorre do citado art.º 567, nº 1 do CPC.
Conforme já foi reconhecido pelo Tribunal da Relação de Évora[3], “a revelia operante, não arreda o réu da lide, o qual, nos termos do nº 2, do art.º 567 do CPC, pode apresentar alegações escritas, que se destinam a permitir que a parte, face à circunstância de se registar assente a matéria de facto invocada pelo autor, possa apresentar a sua argumentação de direito, ou melhor expor, a sua posição quanto ao direito que poderá ser aplicado quanto àquela factualidade”.
Entende a ré que a Mmª Juiz deveria ter determinado a sua notificação pessoal para alegar por escrito, à semelhança do que foi determinado relativamente ao advogado da autora.
Esta exigência não tem qualquer acolhimento na lei.
Efectivamente, o nº 2 do art.º 567 do CPC, refere expressamente que só os advogados devem ser notificados para alegar. O que tem todo o cabimento, pois estamos perante o domínio de questões técnicas que só estes profissionais têm o mérito de dominar e não os leigos em matérias jurídicas, mormente em processos de constituição obrigatória de advogado como é o caso.
E conforme aparece pressuposto no acórdão do TRE “supra” citado, a notificação do réu revel para alegações nos termos do art.º 567, nº 2 do CPC, só faz sentido, se este tiver constituído mandatário no processo, pois o que está em causa é precisamente permitir à parte a discussão das matéria de direito e respectiva subsunção aos factos confessados, algo que só um advogado pode almejar fazer, num processo com estas características.
O princípio do contraditório plasmado no art.º 3º do CPC, bem como o princípio da igualdade das partes estipulado no artigo seguinte, invocado pela recorrente, não se mostram aqui beliscados, uma vez que foi dado à recorrente a oportunidade de se defender, foram cumpridos os prazos legais inerentes à tramitação da protecção jurídica solicitada, bem como da contestação respectiva e, a recorrente foi devidamente informada da obrigação legal de constituir mandatário para se defender nos presentes autos, bem como da cominação pelo facto de não apresentar contestação.
Não há qualquer decisão surpresa que possa colocar em causa os direitos da recorrente. Por um lado, como já referimos, foi citada com a cominação expressa de que, se não contestasse, os factos alegados pelo autor, ter-se-iam por confessados, por outro, estando em causa questões jurídicas, não é o facto de não ter apresentado alegações escritas nos termos do disposto no art.º 567, nº 2 do CPC que a prejudica, pois tais questões podem sempre ser suscitadas em sede de recurso da sentença final, como de resto, estão a ser.
Pelo que, improcede a nulidade invocada, nesta sede.
2 – Da alegada nulidade da sentença por violação do art.º 615, nº 1, al. b) do CPC, conexionada com o facto de o autor ter sido considerada parte legitima na acção:
Interessa agora discernir se a sentença é nula por violação do art.º 615º nº 1 al. b) do CPC, porque considerou o autor parte legitima na acção, sendo que o prédio objecto do litígio está registado, também em nome de outras pessoas.
De acordo com a al. b) do art.º 615 do CPC, “a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
No que à legitimidade concerne, a sentença recorrida referiu apenas, na parte do saneamento que. “As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas”.
Conforme afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[4], “a falta de contestação, quando o réu tenha sido regularmente citado na sua própria pessoa (…), implica, em regra que se considerem confessados os factos articulados pelo autor (confissão tácita ou ficta) (…), mas o estado de revelia operante em que se encontra o réu, embora seja susceptível de potenciar tal desfecho, não conduz, sem mais, à procedência da acção. (…) De facto, o processo declarativo é um processo cominatório semipleno, dado que a revelia operante nunca implica, por si mesma, a condenação do réu. Na verdade, apesar de os factos alegados pelo autor se considerarem confessados, sempre caberá ao Juiz proceder ao respectivo enquadramento jurídico, em termos de julgar a acção materialmente procedente, abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (com fundamento em questões processuais – art.º 608, nº 1 do CPC), julgar a acção apenas parcialmente procedente  ou mesmo julgar a acção improcedente, sempre em função do resultado da aplicação das normas de direito material”.

Conforme expresso pela Mmª Juiz “a quo” aquando da prolação do despacho a que alude o art.º 617, nº 1 do CPC, atento o teor do documento junto pelo autor e denominado “Arrendamento não habitacional”, o autor é identificado como senhorio, pelo que tal facto basta, no entender do Tribunal, para que seja considerado parte legítima.
Não cabe ao Tribunal, na falta de indícios em contrário, indagar exaustivamente sobre todos os pressupostos processuais, como a capacidade ou legitimidade das partes”.
Efectivamente, assim se considera, até porque o apelado juntou aos autos com a P.I. o respetivo contrato de arrendamento e a comunicação ao apelante, portanto, satisfez o estipulado no artigo 15º, nº 2, al. e) da Lei nº 6/2006 de 27/02, segundo o qual “apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo, independentemente do fim a que se destina o arrendamento, em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº 2 do art.º 1084º do CC”.
Por outro lado, consta na caderneta predial junta aos autos pela apelante que, o Apelado é proprietário de 1 / 2 do prédio e usufrutuário de 1 / 4 + 1 / 4 = 1 / 2, consequentemente, o apelado tem toda a legitimidade para usar, fruir e administrar o referido prédio sem intervenção de outros, uma vez que dispõem os art.º 1439º e 1446º do CC, que:
“Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância” e “o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico”.
A isto acresce que, a legitimidade processual é a susceptibilidade de ser parte numa acção aferida em função da relação dessa parte com o objecto daquela acção. A legitimidade é, assim, sempre relativa a uma determinada acção e a um certo objecto.
A legitimidade visa assegurar que o autor e o réu são os sujeitos que podem discutir a procedência da acção. Esses sujeitos são os que podem ser beneficiados com a decisão de procedência ou de improcedência da causa.
Segundo o artigo 30, nº 1 do CPC, “o autor é parte legítima, quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima, quando tem interesse directo em contradizer”. Esclarece-se no nº 2 do referido preceito que, “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha”. Acrescenta-se no nº 3 que, “na falta de indicação em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
A redacção de tal preceito, visou claramente «tomar posição sobre a "vaexata quaestio" do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes, visando a solução legislativa proposta contribuir para pôr termos a uma querela jurídico processual que, há várias décadas, se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência, sem que se haja até agora alcançado um consenso':
Atendeu-se a uma formulação da legitimidade assente na titularidade da relação controvertida, tal como a configura o Autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães, na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto dos Reis.
A consagração de tal tese, implica que a questão da legitimidade das partes tenha de ser aferida com base na análise da causa de pedir e do pedido formulados pelo autor, uma vez que estes constituirão os corolários da relação controvertida a regular.
ln casu, o Autor, invocando a qualidade de senhorio, demanda a ré, como arrendatária, peticionando o despejo da mesma por falta de pagamento das rendas, bem como a realização de obras ilegais e não autorizadas no locado.
Ora, salvo melhor entendimento, face a esta causa de pedir é manifesto que o quer o autor, têm interesse processual na presente acção, atento o disposto no artigo 26.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, uma vez que, se a mesma proceder, deixa de ter o seu prédio ocupado pela ré e recebe o beneficio das rendas em débito.
Assim sendo, carece de fundamento a invocada nulidade.
3 – Da alegada nulidade por violação do art.º 615º nº 1 al. c) do CPC, relacionada com a invocação na sentença dos artigos 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1 do CPC:
Por fim, há que aferir se a sentença é nula e ininteligível por violação do art.º 615º nº 1 al. c) do CPC, porque mencionou que os factos alegados pelo autor se consideram reconhecidos pela ré, de acordo com o disposto nos artigos 784º, 484º nº 1 e 463º nº 1 do CPC, ao invés do disposto no art.º 567, nº 1 do CPC, tal como invocado pela recorrente.
Esta questão já foi objecto de despacho de correcção nos termos do disposto no art.º 614, nº 1 e 2 do CPC, proferido pela Mmª Juiz “a quo” antes de o recurso subir.
Nesta sede, referiu a mesma o seguinte:
 “Da retificação de erro de escrita:
Nos termos do disposto no art.º 613º nº2 e no art.º 614º nº1 do CPC, é permitida a retificação de erros de escrita.
Considera-se erro de escrita aquele que se revela no contexto da declaração, (art.º 249º do CC).
Como assinala a apelante, na sentença em crise consta o seguinte segmento:
“IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a ré não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto do art.º 784º, 484º nº1 e 463º nº1, todos do C. P. Civil.”
Como decorre, claramente, da leitura dos referidos artigos do C. P. Civil, estes nada têm que ver com a confissão de factos, na atual redação do aludido código. Trata-se dos artigos do anterior C. P. Civil, sendo que, por lapso, a subscritora utilizou como base da sentença ora proferida a estrutura de uma outra anterior à entrada em vigor da atual redação do C. P. Civil.
Trata-se de lapso evidente, facilmente constatável e corrigível, o que se passa a fazer.
Dado o exposto, e na sentença em causa, onde se lê:
“IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a ré não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto do art.º 784º, 484º nº1 e 463º nº1, todos do C. P. Civil.”
Deverá passar a constar:
“IV. Dos Factos
Devida e regularmente citada, a réu não apresentou contestação, pelo que se consideraram reconhecidos os factos alegados pela autora nos termos do disposto do art.º 567º nº1 do C. P. Civil.”
Notifique.
           
Verificando-se que estamos perante um lapso de escrita que levou à indicação de artigos do anterior CPC, lapso esse já retificado, sem que a ré tenha suscitado qualquer questão sobre a nova versão da sentença nesta parte, tem-se a análise da questão ora suscitada, por prejudicada, face ao disposto no art.º 617, nºs 2 e 3 do CPC.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso.
Custas a cargo da apelante (art.º 527, nº 1 do CPC).
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Lisboa,26/9/2024
Marília dos Reis Leal Fontes
Carla Figueiredo
Maria do Céu Silva
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[1] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, págs. 114 a 116.
[2] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Opus Cit.”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 116.
[3] Processo 2856/18.1T8PTM.E1, relatado em 30.06.2021, pelo Sr. Desembargador Francisco Xavier
[4] Na obra; CPC Anotado, Vol I, 2ª Edição, pág. 654