REVISTA EXCECIONAL
Sumário


É questão cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação de direito a de saber se a alegada vítima de um assédio sexual no trabalho terá, na comunicação escrita de resolução do contrato de trabalho de concretizar cabalmente os comportamentos assediantes ou se será suficiente invocar o assédio e concretizá-lo melhor na petição inicial.

Texto Integral


Processo n.º 1794/23.0T8MTS-A.P1.S2 (revista excecional)

Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

AA, Autora na presente ação declarativa comum em que é Ré LIDL & Cia., interpôs recurso de revista do Acórdão proferido no presente processo pelo Tribunal da Relação do Porto a 19.02.2024.

A revista foi interposta como revista excecional a título subsidiário, tendo o Exmo. Relator neste Tribunal remetido a apreciação da revista excecional para esta Formação.

Dos factos provados nas instâncias resultou designadamente que:

H- Em 10 de março a Autora remeteu à Ré carta registada com aviso de receção, a qual foi recebida pela ré em 13 de março de 2023 invocando a resolução do contrato de trabalho com justa causa.

I. A mencionada carta tem o seguinte teor:


J) Dá-se por integralmente reproduzida a declaração médica datada de 09/03/2023, e na qual se pode ler que:
L) O mandatário da Autora, e signatário da P.I., remeteu à Ré uma carta, em 14 de março de 2023, a qual foi rececionada por esta em 15 de março de 2023 onde refere que:
M) Esta carta obteve resposta através de email de 15 de março de 2023, onde refere a Ré que:

No Acórdão recorrido afirmou-se o seguinte:

“[P]odemos afirmar ser cristalino que o trabalhador na carta a que se refere o nº 1 do art.º 395º do Código do Trabalho, invocando situação de “assédio sexual e moral”, terá que fazer uma indicação sucinta de factos que permitam o destinatário da carta, e depois, eventualmente, o tribunal1, saber em que factos suporta o trabalhador essa situação, não podendo haver omissão desses factos integradores da situação invocada.

Porém, uma indicação sucinta significa, não só que não se podem omitir os factos indispensáveis para o reconhecimento/justificação do direito invocado (o direito à resolução do contrato com justa causa), como também que tem que haver um mínimo de factos suficientes para identificar uma possível situação de assédio. (…)

Quer isto dizer que, sendo o fundamento da resolução de contrato de trabalho uma situação de assédio, os termos “assédio moral” e/ou “assédio sexual” configuram conceitos jurídicos, não bastando referi-los, impondo-se integrá-los com factos materiais que permitam a aplicação do direito aos factos. Integração dos conceitos essa a fazer na própria carta, de modo sucinto, e não em petição inicial de ação judicial.

Deste modo, a densificação de que a Recorrente fala não pode ter lugar numa situação como a destes autos em que a alegação de factos essenciais [os integradores da causa de pedir, constitutivos do direito alegado à luz do quadro legal (substantivo) invocado] foi totalmente substituída pela alegação de conceitos jurídicos e conceitos vagos, pois só estando alegados os factos essenciais é que se poderia falar na sua densificação com a alegação de factos complementares”.

O Tribunal da Relação concluiu, por isso mesmo, que a resolução do contrato pela trabalhadora fora ilícita, confirmando a sentença recorrida.

É desta decisão que a Autora interpôs recurso de revista excecional, invocando, aliás, as três alíneas do n.º 1 do artigo 672.º do Código do Processo Civil.

Começaremos a análise pela primeira dessas alíneas, a alínea a) que prevê que cabe recurso de revista do Acórdão da Relação, mesmo havendo “dupla conformidade”, quando “[e]steja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.

Como é sabido, o artigo 395.º n.º 1 do Código do Trabalho estabelece que “[o] trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com a indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos”. Sublinhe-se que “[n]a ação em que for apreciada a ilicitude da resolução, apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no n.º 1 do artigo 395.º” (n.º 3 do artigo 398.º). Por outro lado, a lei prevê a possibilidade de o trabalhador corrigir os vícios deste procedimento, parecendo designar com este nome a comunicação em causa (“[n]o caso de a resolução ter sido impugnada com base em ilicitude do procedimento previsto no n.º 1 do artigo 395.º”) até ao termo do prazo para contestar, mas apenas uma vez.

A aplicação destas normas suscita uma série de dificuldades teóricas e práticas. A lei exige a indicação de factos, mas apenas de forma sucinta. É, desde logo, necessário ter em conta que o trabalhador que escreve a carta de resolução é amiúde um leigo que pode ainda não ter tido sequer aconselhamento jurídico (embora não pareça ser esse o caso dos autos).

Mas, e sobretudo, o assédio moral e o assédio sexual são hoje conceitos jurídicos, mas foram na sua origem conceitos sociológicos. Mas pode questionar-se se não são também factos sociais, realidades associadas a uma certa tipicidade social. Se na linguagem do dia-a-dia alguém afirmar que foi vítima de assédio sexual o destinatário da comunicação compreenderá que podem estar em jogo certos comportamentos indesejados e altamente lesivos, numa gama mais ou menos ampla (expressões verbais, contactos físicos). A acusação não é puramente genérica e não se vê porque é que não há-de poder ser cabalmente concretizada no próprio processo judicial (mormente na petição inicial), tanto mais que a própria lei permite que o vício da comunicação seja sanado até ao momento da contestação. Não se ignora que a doutrina tem defendido que “[c]aso o vício respeite à “indicação sucinta dos factos” que justificam a imediata cessação do contrato pelo trabalhador, e de modo a preservar o sentido útil do estatuído no n.º 3 do presente preceito [o artigo 398.º do CT], haverá que distinguir consoante aquele consista na ausência de indicação de factos, hipótese em que será insanável, ou resida na sua mera incompletude, caso em que se mostra possível a sua correção”2, mas pode questionar-se se a conclusão lapidar de que a resolução é ilícita quando se indicam factos com uma certa generalidade é adequada num sistema legal como o nosso, que tendo ultrapassado uma certa conceção formal da justiça, prevê o convite de aperfeiçoamento de uma petição inicial inepta ou até que uma petição inepta se pode “salvar” se a contraparte mostrar que compreendeu o seu sentido.

Acresce que em casos como o presente em que a vítima de um alegado assédio sexual se pode encontrar numa situação de grande penosidade pessoal e constrangimento social se pode interrogar se será legítimo exigir-lhe que na comunicação escrita ao empregador concretize os comportamentos de que foi (alegadamente) vítima – e já agora com que detalhe?

Em suma, trata-se de questão que merece ser ponderada por este Tribunal para lograr uma melhor aplicação do direito pelo que já por este motivo a presente revista deve ser admitida.

Torna-se, assim, desnecessário analisar se se verificam igualmente as restantes alíneas do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

Decisão: Admitida a presente revista excecional.

Custas deste recurso pela Recorrida

Lisboa, 25 de setembro de 2024.


Júlio Gomes (Relator)

Mário Belo Morgado

José Eduardo Sapateiro

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1. Caso reclame, por via judicial, o pagamento da indemnização prevista art.º 396º do Código do Trabalho.↩︎

2. JOANA VASCONCELOS; Anotação ao artigo 398.º, in Código do Trabalho Anotado, Pedro Romano Martinez e Outros, 12.ªed., Almedina, Coimbra, 2020, p.921.↩︎