TRABALHO SUBORDINADO
Sumário


I. A aplicação do método indiciário supõe a ponderação do conjunto dos indícios, sendo que nenhum deles será normalmente decisivo e o seu peso relativo pode depender da atividade levada a cabo pelo trabalhador/prestador, para tentar apurar quais são os preponderantes.
II. A inserção estável e duradoura na organização da contraparte contratual, a exclusividade, a utilização de meios de produção disponibilizados pela contraparte, as instruções concretas para o exercício das funções são indícios que, avaliados no seu conjunto, levam à conclusão da existência de uma relação de trabalho subordinado.

Texto Integral

Processo n.º 12510/19.1T8SNT.L1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Relatório

AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, a seguir a forma de processo comum, contra Digal – Distribuição e Comércio, S.A., pedindo

“a) A requalificação do seu vínculo laboral;

b) A declaração de ilicitude do seu despedimento; e em consequência:

c) O pagamento dos subsídios de férias e da compensação por férias não gozadas contabilizadas desde Outubro de 1998 até à presente data;

d) O pagamento dos subsídios de Natal vencidos e não pagos contabilizados desde Outubro de 1998 até à presente data;

e) A reintegração na empresa;

f) O pagamento de uma indemnização por danos morais, no valor de € 15.000,00;

g) A restituição de todas as quantias que lhe foram indevidamente descontadas na remuneração, a título de sanção disciplinar, no valor global de € 19.998,04;

h) O pagamento de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data do vencimento até integral e efectivo pagamento relativamente às quantias peticionadas nas alíneas c), d), f) e g) do pedido;

i) … a condenação da Ré a declarar o vínculo laboral do A à Segurança Social e, consequentemente, a efetuar o pagamento das contribuições e quotizações devidas.”

Alega que, foi contratado pela Ré, em Outubro de 1998, sem observância de forma escrita, para exercer as funções de ...; até 1999, a Ré procedeu à entrega das quotizações e contribuições devidas àSegurança Social pela remuneração que lhe era liquidada, mas a partir de Abril de 1999 exigiu que o Autor emitisse recibos verdes; o vínculo laboral vigorou até 11 de Março de 2019, data em que ocorreu a resolução unilateral pela Ré, sem que existisse qualquer motivo legalmente atendível, estando-se perante um despedimento ilícito. Entre si e a Ré vigorou um contrato de trabalho; recusou-se a assinar uma declaração elaborada pela Ré, nos termos da qual declararia que o vínculo que o ligava à Ré era o de uma prestação de serviços, manifestando a sua vontade de continuar a colaborar com esta naquele regime, o que levou a que aquela o despedisse. A conduta da Ré causou-lhe danos não patrimoniais.

Previamente à realização da audiência de partes, o Autor apresentou nos autos um articulado superveniente de ampliação do pedido. Alegou que a Ré lhe solicitou que desse sem efeito a resolução do contrato formalizada por carta datada de 11 de março de 2019, pedido a que acedeu para não prescindir do salário mensal, sua única fonte de rendimento. Contudo, tendo continuado ao serviço da Ré até 26 de setembro de 2019, esta, após a citação para a presente ação, promoveu novamente o seu despedimento, como retaliação, impedindo-o de aceder ao posto de trabalho no dia 27.09.2019.

Em consequência, além dos pedidos já formulados, pediu a condenação da Ré no pagamento de todas as retribuições vencidas desde 27.09.2019 até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude do despedimento, e que seja ainda a Ré condenada no pagamento de todos os danos morais e patrimoniais decorrentes do despedimento e da privação do seu vencimento mensal, em valor a apurar.

A Ré contestou, alegando, em síntese, que a partir do ano de 1999 se viu obrigada, por força das circunstâncias do mercado e pela própria natureza das funções de ..., a externalizar este tipo de serviço, passando as funções de ..., que o Autor exercia, a serem desempenhadas de forma autónoma em relação à empresa, em regime de prestação de serviços, inexistindo o vínculo laboral que o Autor invoca. Concluía pela inexistência de um contrato de trabalho e impugnava qualquer responsabilidade na reparação de danos sofridos.

Concluía pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.

Realizado o julgamento foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.

Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação.

O Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão proferido a 03.05.2023, decidiu-se pela improcedência do recurso, confirmando a sentença recorrida.

Sublinhe-se que embora tal não conste do Dispositivo, o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto, eliminando o facto 13.º dos factos assentes e o facto 3.º dos factos não provados e alterando os factos assentes 14.º, 34.º e 67.º.

Novamente inconformado, o Autor veio interpor recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil (doravante designado CPC).

No seu recurso, além de sustentar a admissibilidade da revista excecional por si interposta, o Recorrente invoca nulidades por omissão de pronúncia (Conclusões números 1 a 42), erro no julgamento da matéria de facto (Conclusões números 43 a 78), nulidade por falta de fundamentação de facto (Conclusões 79 a 88) e erro no julgamento de direito (Conclusões 89 a 158).

A respeito das nulidades, o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se em Acórdão proferido a 14 de dezembro de 2023, no sentido da procedência parcial das nulidades invocadas, mas da improcedência da pretensão de alteração da decisão.

No seu recurso de revista suscita duas questões de direito:

- em primeiro lugar, se a presunção de laboralidade constante do artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009 não se deveria aplicar ao caso vertente por ter havido uma modificação substancial da relação de trabalho a partir de 2011.

- em segundo lugar, se a aplicação do método indiciário tendo em conta a totalidade dos factos dados como provados não permitiria, em qualquer caso, afirmar a existência de subordinação jurídica com a consequência de que a relação contratual entre Autor e Ré consubstanciava, na realidade da sua execução, um contrato de trabalho.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Por Acórdão da Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto desta Secção Social, o recurso de revista foi admitido.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo do Trabalho, o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.

Fundamentação

De Facto

1) A Ré Digal - Distribuição e Comércio, S.A., tem por objeto, entre outros, o comércio por grosso de combustíveis líquidos, sólidos, gasosos e produtos derivados – cfr. certidão de matrícula junta aos autos.

2) Em outubro de 1998, mediante acordo verbal, o Autor foi contratado pela Ré para exercer as funções de ... – cfr. resposta ao artigo 1º da p.i.

3) Até data não concretamente apurada do ano de 1999, a Ré procedeu à entrega das quotizações e contribuições à Segurança Social relativas às remunerações pagas ao Autor, conforme consta dos docs. nºs 1 e 2 juntos com a petição inicial e cujos teor se se dão aqui por integralmente reproduzidos – cfr. resposta ao artigo 2º da p.i.

4) Em mês não concretamente apurado do ano de 1999, o Autor passou a emitir recibos verdes – cfr. resposta ao artigo 5º da p.i.

5) Desde a contratação, o Autor deslocava-se às instalações da Ré, onde existia uma sala que partilhava com outros ..., sala equipada com uma secretária e um computador – cfr. resposta ao artigo 11º da p.i.

6) O Autor não dispunha de uma secretária exclusiva, nem de computador especificamente afeto a si – cfr. resposta ao artigo 24º da contestação.

7) O Autor chegava às instalações da Ré por volta das 7h30m – cfr. resposta ao artigo 65º da p.i.

8) Ali chegado, o Autor ou outro colega ... recebiam do Departamento de Cobranças uma listagem com a totalidade dos serviços de leitura de contadores definidos para esse dia – cfr. resposta ao artigo 12º da p.i.

9) A listagem continha o nome e morada dos clientes onde os ... teriam de se deslocar nesse dia para procederem à leitura dos respetivos contadores – cfr. resposta ao artigo 12º da p.i.

10) Na posse da listagem, o Autor (ou outro ...) distribuía os clientes indicados na lista pelos vários colegas... – cfr. resposta ao artigo 13º da p.i.

11) Era o Autor (ou outro ...) quem definia, dos vários clientes a visitar para leitura ou cobrança, quais os que caberiam a cada colega... – cfr. resposta ao artigo 29º da contestação.

12) A Ré não intervinha na referida distribuição – cfr. resposta ao artigo 30º da contestação.

13) Eliminado1.

14) Aos leitores/cobradores, incluindo ao Autor, a Ré entregou, para o exercício das funções de ...:

- um aparelho para introdução de leituras designado P...;

- uma impressora portátil para emissão de recibos relativos aos pagamentos que pudessem ser efetuados pelos clientes – cfr. resposta ao artigo 25º da contestação.

A Ré fornecia ainda ao Autor o material de escritório necessário ao exercício das suas funções, como caneta e folhas de papel. – Acrescentado pelo Tribunal da Relação

15) No P... o Autor introduzia as leituras que ia recolhendo ao longo do dia –cfr. resposta ao artigo 19º da p.i.

16) O equipamento P... é um equipamento adquirido pela Ré, que necessita de certificação e que funciona unicamente com um programa informático criado pela Ré especificamente para o trabalho de leitura/cobrança – cfr. resposta ao artigo 26º da contestação.

17) A impressora está especificamente configurada para a emissão de recibos de pagamentos destinados à Ré – cfr. resposta ao artigo 27º da contestação.

18) Aqueles são equipamentos que têm necessariamente que ser fornecidos pela Ré, dada a necessidade de certificação dos mesmos e de adaptação às normas do sector – cfr. resposta ao art. 57º da contestação.

19) O Autor exercia ainda funções de ... entregues pelo Departamento de Cobranças com a marcação de datas para leituras especiais – cfr. resposta ao artigo 14º da p.i.

20) O Autor colocava as referidas cartas no recetáculo postal dos clientes da Ré – cfr. resposta ao artigo 14º da p.i.

21) As leituras especiais eram agendadas pela Ré para os sábados, por ser o único dia da semana em que os clientes abrangidos pelas mesmas se encontravam disponíveis para permitir o acesso aos contadores – cfr. resposta ao artigo 15º da p.i.

22) O Autor e demais ... usavam farda e identificação como colaboradores da DIGAL – cfr. resposta ao artigo 16º da p.i.

23) A farda era composta por camisa, polo ou t-shirt, blusão e calças, todos identificados com o logotipo da DIGAL – cfr. resposta ao artigo 17º da p.i.

24) O Autor apresentava também, pendurado ao pescoço, um cartão que o identificava como colaborador da DIGAL – cfr. resposta ao artigo 18º da p.i.

25) No cartão o Autor estava identificado como ..., “Ao serviço da Digal” – cfr. resposta ao artigo 18º da p.i.

26) A Ré forneceu a farda ao Autor e aos restantes leitores/cobradores, assim como o cartão identificativo, como forma de os identificar como pessoal ao serviço da Ré e assim evitar a desconfiança dos clientes, já que os leitores/cobradores têm que entrar em prédios e, por vezes, em habitações – cfr. respostas aos artigos 32º, 33º e 34º da contestação.

27) Concluídas as leituras atribuídas, o Autor tinha de retornar à empresa para entregar o P... e receber os avisos de cobrança para pagamento (entretanto emitidos pelo Departamento de Cobrança, com base na informação transmitida através do P...) – cfr. resposta ao artigo 20º da p.i.

28) Com base na informação previamente transmitida pelos..., o Departamento de Cobranças da Ré, no próprio dia da leitura dos contadores, emitia os avisos para pagamento cuja distribuição e entrega tinha de ser assegurada, ainda nesse mesmo dia, pelo Autor e demais ... – cfr. resposta ao artigo 21º da p.i.

29) O que implicava diariamente duas deslocações aos mesmos locais/clientes, a primeira para proceder à leitura e a segunda para efetivar a entrega do respetivo aviso de cobrança para pagamento – cfr. resposta ao artigo 22º da p.i.

30) Nos casos em que os primeiros avisos não eram pagos tempestivamente pelos clientes, o Autor procedia posteriormente à entrega de segundos avisos para pagamento – cfr. resposta ao artigo 23º da p.i.

31) Os avisos de cobrança também podiam ser pagos diretamente ao Autor, que dispunha da impressora portátil acima mencionada e que, na sequência do pagamento, lhe permitia emitir e entregar ao cliente o respetivo recibo – cfr. respostas aos artigos 24º e 25º da p.i.

32) Recebidos os valores cobrados, o Autor procedia à sua entrega à Ré – cfr. resposta ao artigo 26º da p.i. 33) O Autor representou a Ré, junto de clientes, outorgando em nome da Ré contratos de fornecimento de gás – cfr. resposta ao artigo 28º da p.i.

34) Ao Autor podiam também ser solicitadas tarefas de cortes no abastecimento do fornecimento de gás por falta de pagamento e leituras, bem como restabelecimento do serviço de abastecimento de gás após o corte do mesmo, e registo do nível de gás em tanques – cfr. resposta ao artigo 27º da p.i. Alterado pelo Tribunal da Relação.2

35) O Autor deslocava-se quer na própria viatura, quer em viatura pertencente à Ré, a qual fornecia o combustível e disponibilizava a via verde – cfr. resposta ao artigo 29º da p.i.

36) Quando utilizava veículo próprio, era-lhe pago um valor por cada quilómetro percorrido – cfr. resposta ao artigo 30º da p.i.

37) A remuneração auferida mensalmente pelo Autor, e paga pela Ré, era apurada com base nos seguintes cálculos:

a) Por cada leitura realizada – 0,195 €;

b) Por cada leitura com pagamento efetuado – 0,30€;

c) Por cada deslocação a cliente ausente – 0,055€;

d) Entrega de segundos avisos para pagamento – 29,00€/dia;

e) Cortes no fornecimento (através da selagem da válvula) – 29,00€/dia;

f) Horas extraordinárias – 5, 75€/hora;

g) Por cada quilómetro percorrido em viatura própria - 0, 29€ - cfr. resposta ao artigo 34º da contestação.

38) O número de serviços/tarefas desempenhados pelo Autor era variável – cfr. respostas aos artigos 45º e 46º da p.i.

39) Por períodos não concretamente apurados, nos anos de 2011, 2014, 2016 e 2017, o Autor foi incumbido pela Ré de realizar inquéritos de satisfação junto dos clientes e de angariar novos clientes – cfr. resposta ao artigo 37º da p.i.

40) As tarefas de realização de inquéritos de satisfação e de angariação de novos clientes eram desempenhadas durante 4 horas por dia, após as 18 horas – cfr. resposta ao artigo 87º da p.i.

41) Quando as tarefas eram realizadas em dias alternados (dia sim, dia não), a Ré remunerava o Autor com a quantia mensal de € 400,00 (quatrocentos euros) e, após, com a realização das mesmas tarefas diariamente, a Ré passou a remunerar o Autor com a quantia de € 700,00 (setecentos euros) por mês – cfr. resposta ao artigo 87º da p.i.

42) O Autor dispunha de endereço eletrónico atribuído pela Ré –... – cfr. respostas aos artigos 59º e 60º da p.i.

43) O Autor usava ainda tablet fornecido pela Ré – cfr. resposta ao artigo 63º da p.i.

44) O Autor desempenhava as suas funções de... de segunda a sexta-feira e, aos sábados, com exceção de um por mês – cfr. resposta ao artigo 66º da p.i.

45) O Autor recebeu as instruções que constam dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 31 a 55 – cfr. resposta ao artigo 72º da p.i.

46) Em número de vezes não apuradas, a Ré solicitou ao Autor que soprasse o balão, para despiste e controlo de álcool no sangue – cfr. resposta ao artigo 76º da p.i.

47) Por ofício datado de 14.01.2019, a ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho, notificou a Ré no âmbito de um processo por Inadequação do Vínculo que titula a Prestação de Atividade de ..., nos termos do artigo 15º-A, nº 1 da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, conforme melhor consta do doc. nº 24 junto com a petição inicial (cfr. fls. 35 verso-37) – cfr. resposta ao artigo 50º da p.i.

48) Na sequência desse processo, a Ré apresentou ao Autor e demais ..., com data de 23 de janeiro de 2019, a Declaração cuja cópia foi junta como doc. nº 25 da petição inicial (cfr. fls. 37 verso-38) e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. resposta ao artigo 50º da p.i.

49) O Autor recusou assinar a mencionada Declaração – cfr. resposta ao artigo 51º da p.i.

50) Com data de 12 de fevereiro de 2019, a Ré apresentou ao Autor e outros ..., a Declaração cuja cópia foi junta como doc. nº 26 da petição inicial (cfr. fls. 38 verso-39) e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. resposta ao artigo 51º da p.i.

51) O Autor recusou assinar a mencionada Declaração – cfr. resposta ao artigo 51º da p.i.

52) Em março de 2019, a Ré apresentou ao Autor e outros ..., a Declaração cuja cópia foi junta como doc. nº 27 da petição inicial (cfr. fls. 39 verso) e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. resposta ao artigo 51º da p.i.

53) Na reunião havida com o Autor, onde estiveram presentes dois Administradores da Ré e uma Srª Advogada, o Autor não assinou de imediato a Declaração e pediu para conferenciar com a esposa – cfr. resposta ao artigo 55º da p.i.

54) O Autor acabou por não assinar a Declaração – cfr. resposta ao artigo 56º da p.i.

55) Com data de 11 de março de 2019, a Ré remeteu ao Autor a carta cuja cópia foi junta aos autos como doc. nº 23 da p.i. (cfr. fls. 34 verso-35), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

56) Na referida carta a Ré escreveu, além do mais, o seguinte:

“(…)

Pelo que, atentas as razões que ficam expostas, não nos resta alternativa senão por termo à relação de fornecimento e prestação de serviços que venhamos mantendo consigo. Assim, vimos por este meio proceder à resolução do contrato, não reduzido a escrito, que subjaz a tal prestação de serviços, o que por esta única via comunicamos.

A resolução ora operada produzirá efeitos imediatos.

(…)”

57) O Autor, surpreendido pela carta, sentiu-se angustiado e temeu pela sua subsistência – cfr. resposta ao artigo 46º da p.i.

58) Depois do envio e receção da carta pelo Autor, a Ré solicitou-lhe que desse sem efeito o conteúdo da mesma – cfr. resposta ao artigo 47º da p.i.

59) O Autor acedeu ao pedido da Ré – cfr. resposta ao artigo 2º do articulado superveniente (cfr. fls. 100-101).

60) O Autor continuou a desempenhar as suas funções de... – cfr. respostas aos artigos 2º e 4º do articulado superveniente (cfr. fls. 100-101).

61) Com data de 28 de março de 2019, a Ré apresentou ao Autor um denominado “Contrato Promessa de Trabalho”, conforme melhor consta dos docs. nºs 67 e 68 juntos com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, para o exercício das funções de “Comercial – Angariação e Defesa” – cfr. resposta ao artigo 89º da p.i.

62) O Autor não assinou o documento e continuou a desempenhar as suas funções de ... até ao dia 26 de setembro de 2019 – cfr. resposta ao artigo 5º do articulado superveniente (cfr. fls. 100-101).

63) No dia 30 de julho de 2019 o Autor intentou a presente ação.

64) A Ré foi citada para a ação no dia 25 de setembro de 2019 – cfr. aviso de receção junto aos autos (digitalizado).

65) No dia 27 de setembro de 2019, o Autor foi impedido de aceder às instalações da Ré e de desempenhar as suas funções – cfr. resposta ao artigo 6º do articulado superveniente (cfr. fls. 100-101).

66) O Autor exerceu funções desde sempre em exclusivo para a Ré – cfr. resposta ao artigo 77º da p.i.

67) E auferia mensalmente um vencimento variável, apurada de acordo com o referido nos pontos 37 e 38 dos factos provados. – cfr. resposta ao artigo 78º da p.i. – Alterado pelo Tribunal da Relação.3

68) No ano de 2013, o Autor auferiu um rendimento anual total de € 50.534,08 (cinquenta mil quinhentos e trinta e quatro euros e oito cêntimos) – cfr. docs. nºs 60 e 61 junto com a p.i.

69) No ano de 2014, o Autor auferiu um rendimento anual total de € 51.428,93 (cinquenta e um mil quatrocentos e vinte e oito euros e noventa e três cêntimos) – cfr. doc. nº 62 junto com a p.i.

70) No ano de 2015, o Autor auferiu um rendimento anual total de € 51.950,06 (cinquenta e um mil novecentos e cinquenta euros e seis cêntimos) – cfr. doc. nº 63 junto com a p.i.

71) No ano de 2016, o Autor auferiu um rendimento anual total de € 41.587,93 (quarenta e um mil quinhentos e oitenta e sete euros e noventa e três cêntimos) – cfr. doc. nº 64 junto com a p.i.

72) No ano de 2017, o Autor auferiu um rendimento anual total de € 44.665,85 (quarenta e quatro mil seiscentos e sessenta e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos) – cfr. doc. nº 65 junto com a p.i.

73) No ano de 2018, o Autor auferiu um rendimento anual total de € 27.558,99 (vinte e sete mil quinhentos e cinquenta e oito euros e noventa e nove cêntimos) – cfr. doc. nº 66 junto com a p.i.

74) Na vigência do contrato, o Autor gozou dias de férias não concretamente apurados – cfr. resposta ao artigo 97º da p.i.

75) A Ré nunca liquidou ao Autor qualquer subsídio de férias e de Natal – cfr. resposta ao artigo 97º da p.i.

76) A partir da receção da carta datada de 11 de março de 2019, o Autor sentiu-se perturbado, angustiado, preocupado, ansioso, frustrado e revoltado, sem conseguir dormir tranquilamente durante a noite – cfr. respostas aos artigos 100º, 101º, 103º e 106º da p.i. e artigo 8º do articulado superveniente (cfr. fls. 100-101).

77) Devido ao seu estado o Autor viu a sua funcionalidade sexual afetada – cfr. resposta ao artigo 108º da p.i.

78) Na vigência do contrato com a Ré nunca o Autor colocou qualquer questão à mesma sobre a natureza do vínculo – cfr. resposta ao artigo 13º da contestação.

79) O Autor nunca assinou registo de ponto, nem tinha que justificar ausências –cfr. resposta ao artigo 60º da contestação.

De Direito

Relativamente ao alegado erro de julgamento do Tribunal da Relação em matéria de facto importa recordar os poderes muito limitados deste Supremo Tribunal de Justiça nessa sede, como resulta dos artigos 682.º, n.º 2 e 674.º n.º 3 do Código do processo Civil.

Quanto às nulidades invocadas, importa reconhecer que a questão de terem sido ou não aplicadas sanções pecuniárias ao Autor (e demais cobradores) era matéria que deveria ter sido conhecida e não considerada irrelevante por não se demonstrar que eram sanções disciplinares (o que corresponde a uma caracterização de direito). No entanto, trata-se de questões cujo não conhecimento não se revela essencial para a decisão da causa, pelo menos quanto ao pedido de reconhecimento da natureza da relação contratual como sendo de trabalho subordinado. Como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 25 de fevereiro de 1997, processo n.º 902/964 (Relator Conselheiro José Martins da Costa), em decisão que permanece atual, “o disposto no artigo 731.º n.º 2 [correspondente ao artigo 684.º n.º 2 do atual CPC] do Código de Processo Civil, quanto à baixa do processo à Relação com base em nulidade por omissão de pronúncia, deve ser interpretado restritivamente, em termos de aquela não ter lugar quando o Supremo Tribunal tiver fundamento para revogar a decisão recorrida, independentemente da questão omitida”.

No seu recurso o Recorrente suscita a questão da aplicabilidade a esta relação contratual das presunções de laboralidade constantes do artigo 12.º Código de Trabalho de 2003 e do artigo 12.º Código do Trabalho de 2009. Todavia, e como se pode ler, por exemplo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 04-07-2018, processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1(Relator Chambel Mourisco), “[a] jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes”. Uma vez que a relação contratual se iniciou em 1998 (facto 2) não haverá, em princípio, que aplicar as referidas presunções. Note-se, contudo, que o Autor e Recorrente invoca uma alteração nos termos essenciais da relação que permitiria aplicar a presunção do artigo 12.º do Código de 2009. Efetivamente resulta dos factos provados que a partir de 2011 (facto 39: períodos não concretamente apurados nos anos de 2011, 2014, 2016 e 2017), foram atribuídas ao trabalhador novas tarefas (inquéritos de satisfação e angariação de clientes – facto 40) com a afetação de uma parte do seu tempo de trabalho (quatro horas por dia após as 18 horas) e o pagamento de uma remuneração fixa mensal (factos 41 e 42). Ou seja, alterou-se o objeto do contrato (as funções foram significativamente ampliadas) e o montante e sobretudo a forma de pagamento da remuneração que passou a ser mista. Afigura-se, pois, que tal alteração justificaria a aplicação da presunção de laboralidade, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal da Relação, a partir de 2011. Contudo, e como se dirá, mesmo sem o auxílio da presunção é possível qualificar a relação contratual entre as partes como sendo de trabalho subordinado.

A doutrina tem vindo a destacar que não existe propriamente uma fronteira entre trabalho subordinado e trabalhos autónomos, mas antes uma “mancha”, uma “terra-de-ninguém” onde existem contratos que apresentam traços de autonomia e de dependência em diferentes variações de intensidade. Há muito que se entende que o método subsuntivo é frequentemente incapaz ou pelo menos insuficiente para a qualificação de tias relações contratuais, tendo-se desenvolvido, em alternativa, o método indiciário. Em suma, sem que se possa afirmar uma subsunção total de uma relação ao tipo legal de trabalho subordinado, uma relação contratual será, no entanto, qualificada como tal se apresentar traços ou características na sua execução que a aproximam mais do contrato de trabalho do que do contrato de prestação de serviços.

Sublinhe-se que, como destaca LUCA NOGLER5, a aplicação do método indiciário só faz realmente sentido quando no complexo dos indícios relevantes uns apontarem para o trabalho subordinado e outros para o trabalho autónomo, já que se, por exemplo, estiverem reunidos todos os “indícios” de trabalho subordinado nem sequer será normalmente necessária a invocação desse método. A aplicação do método indiciário supõe a ponderação do conjunto dos indícios, sendo que nenhum deles será normalmente decisivo e o seu peso relativo pode depender da atividade levada a cabo pelo trabalhador/prestador, para tentar apurar quais são os preponderantes.

Analisando a situação concreta, à luz dos factos provados nas instâncias, pode, desde logo, afirmar-se que o trabalhador realizava a sua prestação socorrendo-se de instrumentos de trabalho que lhe eram facultados pela contraparte contratual. Com efeito, segundo o facto 14, era a Ré quem fornecia au Autor não apenas o aparelho para introdução de leituras (P...) e uma impressora portátil para emissão dos recibos, mas também material de escritório. Este facto não deve ser desvalorizado ou subestimado com a asserção de que sempre teria que ser usado esse equipamento (mais concretamente o P...) – o que é certo é que o genuíno prestador de serviços autónomo em regra usa o seu próprio equipamento. Acresce que a empresa facultava o material de escritório, um tablet (facto 43), além de que o Autor utilizava por vezes no exercício das suas funções uma viatura da empresa (facto 35) e, quando usava uma viatura própria, a empresa pagava-lhe o combustível e uma importância por quilómetro (factos 36 e 37 g). Era também a empresa quem disponibilizava a “via verde”. Ou seja, a empresa assumia os custos das deslocações e da atividade do Autor.

Resulta também inequivocamente dos factos provados uma forte inserção do trabalhador na organização da empresa, inserção essa que não foi meramente pontual ou efémera, mas duradoura (facto 2: desde 1998). O Autor usava um uniforme ou farda, fornecido pela empresa, com logotipo da mesma e um cartão que o identificava perante terceiros como estando ao serviço desta (factos 22 a 25). As razões aduzidas para este facto são compreensíveis (facto 26), mas, mais uma vez, não afastam a relevância do mesmo. Além disso, o trabalhador dispunha de um email profissional da empresa (facto 42). E destaque-se que tinha poderes para contratar em nome da empresa (facto 32).

A inserção normal ou permanente na organização da empresa é também patente ao nível do tempo de trabalho. Todos os dias o trabalhador tinha que se apresentar no início do dia na empresa (facto 7 – por volta das 07h30), antes da distribuição das leituras do dia feita por ele próprio ou por outro leitor/cobrador, e mais tarde, uma vez feitas as leituras que lhe tinham sido atribuídas, para entregar o P... e receber os avisos de cobrança que tinham de ser distribuídos nesse mesmo dia (factos 27 e 28).

Do facto 45 – “O Autor recebeu as instruções que constam dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 31 a 55” – resulta que, na realidade, para além da ameaça de sanções disciplinares ao cobradores (documentos 32, 36 e 40; neste último em mensagem enviada ao Autor pode ler-se “sugiro à nossa administração penalizações aos nossos comerciais que não entregarem os contactos a tempo e horas”), a empresa dava instruções concretas ao Autor (documento 35; sobre a entrega de um brinde).

Como a este respeito destaca o Parecer do Ministério Público:

“Em relação às instruções recebidas e referidas no ponto 45), e uma vez que o conteúdo dos documentos sob os n.ºs 31 a 55 juntos com a PI não se encontram descritos na factualidade dada como provada, importa sublinhar que denotam um manifesto acompanhamento e controlo das funções exercidas pelo recorrente pela parte da recorrida, traduzido nas ordens concretas dadas, bem como pelo aviso de punições em caso de incumprimento, nomeadamente com alegado «processo disciplinar», como no doc. n.º 32”.

Sublinhe-se, também, que o Autor gozou férias, ainda que sem ter recebido subsídio de férias (factos 74 e 75), o que deve ser considerado um indício de trabalho subordinado.

Também a exclusividade (facto 66), ou seja, o facto de a Ré ser a beneficiária exclusiva de toda a prestação laboral do Autor durante mais de duas décadas, é um fator relevante. Com efeito, a ainda que possa haver dependência económica sem subordinação jurídica e subordinação jurídica sem dependência económica, a verdade é que na maioria das situações o trabalhador subordinado é também economicamente dependente e esta dependência económica é um fator importante na debilidade contratual do trabalhador subordinado, a qual é uma das principais razões da existência de um regime especial do contrato de trabalho subordinado.

Há, como é normal nos casos em que se aplica o método indiciário, indícios contrários à existência de trabalho subordinado.

Em primeiro lugar assinale-se que a remuneração mensal auferida pelo Autor era variável (facto 67). Contudo, não só o contrato de trabalho é compatível com o trabalho à peça ou à tarefa, como resulta dos factos provados que o peso deste indício é no caso concreto bastante equívoco. Desde logo, verifica-se que durante um segmento temporal da (longa) duração deste contrato o trabalhador exerceu outras funções, pelas quais auferia uma retribuição mensal fixa. Há, pois, que concluir que durante algum tempo (factos 39 a 41) o trabalhador auferiu uma retribuição global mista (com uma parte fixa e uma variável). E importa atender que nos critérios para determinação da retribuição variável, além do pagamento por certas tarefas ou serviços, constava também a remuneração por trabalho extraordinário (facto 37-f): “horas extraordinárias”), o que é, no fundo, a admissão implícita de um horário e uma remuneração pelo tempo de trabalho. Como se pode ler nas alegações de recurso (Conclusão n.º 136) o pagamento de “horas extraordinárias” “naturalmente não se compadece com uma relação independente de prestação de serviços já que o pagamento por referência ao tempo visa recompensar o tempo e não um determinado resultado”.

O indício do não pagamento de subsídio de férias ou de Natal é, evidentemente, um dos mais débeis: trata-se de um comportamento unilateralmente assumido pelo empregador que o trabalhador muitas vezes tolerará para não perder o emprego, sem que isso corresponda a qualquer concordância.

O único indício forte de autonomia é o de não existir relógio de ponto, nem ter o Autor que justificar ausências (facto 79). Em rigor, no entanto, mesmo aqui não há uma completa ausência de controlo temporal da prestação (facto 45, documento 39: obrigatoriedade de preencher na ficha do cliente a hora de início e a hora de fim da visita/contacto com o cliente). Seja como for, este indício, ainda que forte, não é, só por si, suficiente para afastar a qualificação como trabalho subordinado desta relação contratual que resulta da ponderação de todos os indícios anteriormente mencionados.

Assim, há que concluir que a relação contratual entre Autor e Ré é, desde 1998, uma relação de trabalho subordinado, tendo o Autor sido objeto de um despedimento ilícito, desde logo porque não precedido de procedimento disciplinar.

O processo deve baixar ao Tribunal da Relação para que este proceda à apreciação dos pedidos do Autor, com a necessária ampliação da matéria factual relativamente ao pedido de “restituição de todas as quantias que lhe foram indevidamente descontadas na remuneração, a título de sanção disciplinar”.

Decisão: Concedida a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e decidindo-se pela existência de um contrato de trabalho entre Autor e Réu e de um despedimento ilícito do Autor, cabendo às instâncias apreciar os pedidos apresentados pelo Autor.

Custas pela Recorrida

Lisboa, 25 de setembro de 2024

Júlio Gomes (Relator)

Mário Belo Morgado

Domingos José de Morais

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1. Tinha a seguinte redação - Nem no agendamento das visitas – cfr. resposta ao artigo 31º da contestação.↩︎

2. Tinha a seguinte redacção - Ao Autor podiam também ser solicitadas tarefas de cortes no abastecimento do fornecimento de gás por falta de pagamento e leituras, e registo do nível de gás em tanques.↩︎

3. Tinha a seguinte redação - E auferia mensalmente um vencimento variável.↩︎

4. Publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 464 (1997), pp. 464 e ss.↩︎

5. LUCA NOGLER, Sull’inutilità delle presunzioni legali relative in tema di qualificazione dei rapporti di lavoro, Rivista Italiana di Diritto del Lavoro 1997, I, págs. 311 e segs., p. 315.↩︎