O artigo 18.º n.º 2 da Lei n.º 100/97 limitava-se a estabelecer que a responsabilidade por acidente de trabalho não prejudicava a responsabilidade por danos morais “nos termos da lei geral”, mas então tratar-se-ia já da responsabilidade civil geral e não do regime específico da responsabilidade por acidentes de trabalho, pelo que o FAT não era, mesmo à luz da redação originária do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, responsável pela compensação de danos não patrimoniais.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
Relatório
No processo crime que correu termos sob o n.º 323/04.0GAALJ, AA, BB e CC, na qualidade de mulher e filhos do falecido DD, deduziram pedido de indemnização civil contra, além do mais, R..., Lda. e EE.
O acidente de trabalho mortal que vitimou DD ocorreu em ...-11-2004.
Por acórdão de 7.03.2012, transitado em julgado em 16.04.2012, R..., Lda. e EE foram condenados no pagamento da quantias de € 38.333,33 a AA, de € 33.333,33 a BB e de € 33.333,33 a CC, a título de indemnização por danos não patrimoniais (dano morte e danos próprios dos demandantes), acrescidos de juros de mora desde a notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento.
Por requerimento de 19.04.2022, os recorrentes juntaram cópia simples da sentença de 13.05.2016, do acórdão de 2.03.2017 e de despacho de 23.01.2018 proferidos no processo n.º 105/05.1...
Neste processo, que correu termos no Juízo de Trabalho, o acidente que vitimou DD foi considerado como acidente de trabalho resultante da falta de observação das regras de segurança pela entidade empregadora, a sociedade R..., Lda. Em virtude da extinção da referida sociedade, os seus sócios gerentes e liquidatários foram condenados, em sua substituição, no pagamento a cada um dos beneficiários (ora recorrentes) da pensão agravada e do subsídio por morte.
No processo de acidente de trabalho, os beneficiários tinham peticionado também uma indemnização por danos não patrimoniais. Este pedido foi julgado improcedente com fundamento na exceção de caso julgado, por se ter entendido que os danos peticionados eram os mesmos que tinham sido considerados no acórdão proferido no processo crime (processo n.º 323/04.0GAALJ).
Por despacho de 23.01.2018 foi determinado que o FAT procedesse ao pagamento aos beneficiários das pensões anuais e vitalícias e demais prestações.
Em 13.10.2020, AA, BB e CC intentaram execução para pagamento de quantia certa, que correu termos por apenso ao processo crime.
Na sequência da extinção da execução por inexistência de bens, por requerimento de 15.05.2021, os Exequentes vieram deduzir incidente de intervenção do Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) e requerer a sua notificação para proceder ao pagamento das quantias em que os Executados tinham sido condenados, acrescida dos juros vencidos.
Por despacho de 19.05.2021, foi julgada procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do FAT.
Os Exequentes interpuseram recurso de apelação.
Por acórdão do Tribunal da Relação de 16.12.2021 (323/04.0GAALJ-C.G1), foi decido “revogar a decisão recorrida que terá de ser substituída por outra que atribua LEGITIMIDADE ao FAT para intervir nos autos, e para os fins requeridos pelos ora recorrentes”.
Citado, por requerimento de 18.12.2022, o FAT veio contestar.
Por despacho de 22.03.2022, o Tribunal da 1.ª Instância determinou a notificação do FAT para proceder ao pagamento das quantias que deveriam ter sido pagas, nos termos do acórdão por R..., Lda. Sociedade Comercial de Responsabilidade Limitada e EE, acrescido de juros vencidos desde 23.09.2021.
O FAT interpôs recurso de apelação.
Por acórdão do Tribunal da Relação de 9.01.2023 (323/04.0GAALJ-C.G2), foi decido declarar “a nulidade da decisão recorrida, que se revoga, devendo ser substituída por outra, em que, tudo ponderado, decida tendo também em conta a contestação, tempestivamente apresentada, do Fundo de Acidentes de Trabalho - F.A.T., relativamente ao qual havia já sido decidido, por este T.R.G., ter legitimidade, para intervir nos autos”.
Por sentença de 4.06.2023, o Tribunal da 1.ª Instância indeferiu o requerido pelos Exequentes e decidiu não determinar a notificação do FAT para proceder ao pagamento das quantias por aqueles peticionadas.
Os Exequentes interpuseram novo recurso de apelação.
Por decisão singular de 16.11.2023, o Tribunal da Relação excecionou “a incompetência em razão da matéria da Secção Criminal para julgar o recurso que incide sobre a sentença recorrida, sendo competente, para tanto, a Secção Social desta Relação de Guimarães”.
Por acórdão de 15.02.2024, os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação acordaram em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida. No sumário desse Acórdão pode ler-se que “[o] disposto no art. 1.º, n.º 1, alínea a), do DL 142/99 de 30 de Abril, na sua versão originária, deve ser compaginado com o disposto no art. 39.º, da Lei 100/97, de 13 de Setembro, o que significa que as prestações cujo pagamento o FAT assegura são apenas as contempladas naquele art. 39.º, nas quais se não inclui a indemnização por danos não patrimoniais”
Os Exequentes interpuseram novo recurso de revista excecional, invocando a contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.2017, proferido no processo n.º 905/05.2TTL.SB.L1.S1 (Relatora Ana Luísa Geraldes).
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por despacho do Relator – e tendo sido concedido o contraditório às Partes – o referido recurso de revista excecional foi convolado em recurso interposto ao abrigo do artigo 629.º n.º 2 alínea d) do CPC.
Tratando-se de um processo executivo importa, com efeito, ter em conta o artigo 854.º do Código do Processo Civil, o qual dispõe que “[s]em prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e de graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.
Mas o artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC estabelece que, independentemente do valor da causa e da sucumbência é sempre admissível recurso “[d]o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.
Os Recorrentes invocaram a contradição entre o Acórdão recorrido – o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.02.2024 – e o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.2017, proferido no processo n.º 905/05.2TTL.SB.L1.S1.
Muito embora o artigo 629.º, n.º 2, alínea d), se refira à contradição entre acórdãos das Relações, “por maioria de razão deve ser admitida revista quando a aludida contradição se verificar relativamente a um acórdão do STJ”1.
Admitida a revista com efeito meramente devolutivo, o Ministério Público emitiu o Parecer previsto no artigo 87.º n.º 3 do Código do processo de Trabalho, no sentido da improcedência do presente recurso.
Os Recorrentes responderam ao Parecer.
Fundamentação
De Facto
Os factos relevantes para a decisão do recurso constam do Relatório
De Direito
No seu recurso o Recorrente invoca a violação do caso julgado. Afirma que teria sido violado o caso julgado relativo à sentença proferida a 07.03.2012 no âmbito do processo comum coletivo n.º 323/04.OGAALJ, o caso julgado relativamente ao Acórdão proferido pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 323/04.OGAALJ-C.G1 e relativamente ao Acórdão proferido a 09.01.2023 pelo Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 323/04.OGAALJ-C.G2.
Não se vislumbra, todavia, qualquer violação do caso julgado. Na presente ação não se pretende pôr em causa a qualificação do acidente como de trabalho e a condenação penal dos responsáveis, mas sim apurar quais as consequências do acidente que devem ser suportadas pelo FAT.
O Acórdão invocado como Acórdão fundamento do presente recurso – o já referido Acórdão de 22.06.2017 – não tratou, em rigor, da questão da responsabilidade do FAT pela compensação pelos danos não patrimoniais, mas apenas pelo pagamento do diferencial entre a pensão paga pela Seguradora e a devida pelo agravamento. Compreende-se, assim, a asserção feita no douto Parecer do Ministério Público no sentido que não existe genuína contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento.
Todavia, no Acórdão fundamento pode ler-se a seguinte passagem:
“[S]ó em relação a acidentes posteriores a 11/05/2007 é que se exclui da responsabilidade do F.A.T. o pagamento das indemnizações por danos não patrimoniais devidos pela entidade empregadora, bem como o pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões quando o acidente resulte da sua atuação culposa, e juros de mora das prestações pecuniárias em atraso que sejam devidos pela entidade empregadora, conforme estatuído nos números 4), 5) e 6) do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 142/99, de 30 de Abril, na versão que lhe foi conferida pelo referido Decreto-Lei nº. 185/2007” (sublinhado nosso).
Embora se possa discutir se a referência ao “pagamento de indemnizações por danos não patrimoniais” não será, em bom rigor, obter dicta, a verdade é que tal passagem parece constituir fundamento bastante para reconhecer a oposição entre as decisões.
Pergunta-se, então, se face a um acidente de trabalho como o ocorrido nos autos em novembro de 2004 se o FAT responde ou não pelo pagamento de compensações por danos não patrimoniais.
Em primeiro lugar, reconhece-se que assiste toda a razão ao Acórdão fundamento quando afirma que a questão deve ser resolvida à luz das normas legais em vigor no momento do acidente e quando sublinha que as alterações introduzidas ao Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril pelo Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de maio só se aplicam a acidentes ocorridos após a entrada em vigor deste último diploma, ou seja, 11 de maio de 2007, não tendo tais alterações eficácia retroativa. Nesse mesmo Acórdão, aliás, transcrevem-se várias passagens de numerosa jurisprudência deste Tribunal afirmando que o n.º 5, do art. 1.º, do Decreto-Lei n.º 142/99, aditado pelo aludido Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de maio, não tem natureza interpretativa e que aquele diploma apenas dispõe para o futuro.
Há, pois, que atender à redação originária do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99. Este com a epígrafe “Criação e competências do Fundo de Acidentes de Trabalho” dispunha que:
“1 - É criado o Fundo de Acidentes de Trabalho, dotado de autonomia administrativa e financeira, adiante designado abreviadamente por FAT, a quem compete:
a) Garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável;
b) Pagar os prémios do seguro de acidentes de trabalho das empresas que, no âmbito de um processo de recuperação, se encontrem impossibilitadas de o fazer;
c) Reembolsar as empresas de seguros dos montantes relativos: i) Às actualizações das pensões devidas por incapacidade permanente igual ou superior a 30% ou por morte derivadas de acidente de trabalho; ii) Aos duodécimos adicionais criados pelo n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 466/85, de 5 de Novembro; iii) Aos custos adicionais decorrentes das alterações, em consequência da nova redacção dada ao artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 360/71, de 21 de Agosto, pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 459/79, de 23 de Novembro, de pensões de acidentes de trabalho, por incapacidade permanente igual ou superior a 30% ou por morte, que tenham sido fixadas anteriormente a 31 de Outubro de 1979;
d) Ressegurar e retroceder os riscos recusados.
2 - Relativamente aos duodécimos referidos no número anterior, o FAT só assume as responsabilidades decorrentes de acidentes ocorridos até à data da entrada em vigor do presente diploma. 3 - O FAT não é responsável pela reparação ou substituição de aparelhos quando consequência de acidente, salvo nos casos previstos na alínea a) do n.º 1.”
No segmento que agora nos importa registe-se que a lei consagrava, pois, que ao FAT competia garantir “o pagamento das prestações devidas por acidentes de trabalho”.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se à data do acidente, o pagamento de compensações por danos não patrimoniais se incluía no elenco das prestações devidas por acidentes de trabalho.
O Acórdão recorrido destaca que o artigo 39.º n.º 1 da Lei dos Acidentes de Trabalho em vigor à data do sinistro – a Lei n.º 100/97 de 13 de setembro – dispunha que: “A garantia do pagamento das pensões por incapacidade permanente ou morte e das indemnizações por incapacidade temporária estabelecidas nos termos da presente lei que não possam ser pagas pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, serão assumidas e suportadas por fundo dotado de autonomia administrativa e financeira, a criar por lei, no âmbito dos acidentes de trabalho, nos termos a regulamentar”. Dir-se-á, no entanto, que esta norma, que correspondia a uma mera previsão legal da criação futura (futura à data da promulgação da Lei n.º 100/97) de um fundo não tem a virtualidade de prevalecer sobre o que veio a constar efetivamente como competência ou âmbito de garantia do fundo. Este, quando veio a ser criado, garantia “o pagamento das prestações devidas por acidente de trabalho (…)”.
A resposta resulta, contudo, do artigo 18.º da Lei n.º 100/97. Importa, com efeito, sublinhar que o regime constante desse artigo 18.º da Lei n,º 100/97 era substancialmente distinto ao regime constante do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, presentemente em vigor,
Esta última lei procede a um agravamento da responsabilidade por acidente de trabalho, “quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho” (n.º 1 do artigo 18.º). Nesta situação verifica-se uma ampliação do dano que pode ser indemnizado ou compensado resultante de um acidente de trabalho. Ou seja, e sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal (n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009) a responsabilidade por acidente de trabalho passa aqui a abranger a totalidade dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo sinistrado e seus familiares, nos termos gerais.
Mas a solução consagrada na Lei n.º 100/97, em vigor à data do acidente, era muito diversa. O artigo 18.º da referida Lei n.º 100/97 dispunha o seguinte:
“1 - Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes: a) Nos casos de incapacidade absoluta, permanente ou temporária, e de morte serão iguais à retribuição; b) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, terão por base a redução de capacidade resultante do acidente.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade por danos morais nos termos da lei geral nem a responsabilidade criminal em que a entidade empregadora, ou o seu representante, tenha incorrido.
3 - Se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante da entidade empregadora, esta terá direito de regresso contra ele”.
Ou seja, o agravamento da responsabilidade por acidente de trabalho quando este tivesse sido provocado pelo empregador ou seu representante ou resultasse da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho circunscrevia-se ao agravamento das pensões. Estas as prestações devidas por acidente de trabalho. O n.º 2 limitava-se a estabelecer que a responsabilidade por acidente de trabalho não excluía, não prejudicava a responsabilidade por danos morais “nos termos da lei geral”, mas então tratar-se-ia já da responsabilidade civil geral e não do regime específico da responsabilidade por acidentes de trabalho. Como se pode ler no Parecer do Ministério Público junto aos autos neste Tribunal, “a indemnização por danos não patrimoniais não corresponde a uma prestação devida por acidente de trabalho, no sentido que tal indemnização não resultava da lei dos acidentes de trabalho, mas sim de responsabilidade subjetiva, não prevista diretamente naquela legislação”.
Entendemos, também, que esta interpretação não padece de qualquer inconstitucionalidade à luz das normas constantes dos artigos 20.º, n.º 1, 59.º, n.º 1, al. f), 202.º, 209.º e 210.º da CRP. Aliás, e como bem se destaca no Parecer, a propósito do artigo 59.º n.º 1 alínea f), o Tribunal Constitucional já decidiu que “a intervenção subsidiária do Fundo reveste o carácter de um direito prestacional, de natureza positiva, a cargo do Estado, pelo que não tem, em princípio, um conteúdo que possa ser determinado a nível constitucional, dependendo o seu âmbito de concretização desde logo das opções do legislador, que age neste domínio de acordo com aquilo que lhe for historicamente possível” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 161/2011).
Decisão: Negada a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pelos Recorrentes sem prejuízo do apoio judiciário.
Lisboa, 25 de setembro de 2024
Júlio Gomes (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Domingos José de Morais
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