I – A quantificação que se procura efetuar no incidente de liquidação tem de respeitar os limites substantivos e adjetivos que foram traçados, em moldes definitivos e irrevogáveis, na ação propriamente dita, não sendo permitido às partes repisarem questões já debativas e resolvidas nessa fase principal dos autos ou carrearem mesmo para o incidente respetivo temáticas que deveriam ter sido anteriormente alegadas e apreciadas, por extravasarem, de uma forma mais ou menos direta e imediata, as fronteiras materiais e formais legalmente delineadas para aquele.
II - O tempo de deslocação entre a casa e o local de trabalho e entre este e aquela não constitui, por regra, tempo de trabalho nem configura um uso profissional da viatura de serviço atribuída pela empregadora ao trabalhador para tal uso e também para utilização pessoal.
III - O regime jurídico do acidente in itinere não permite defender, só por si, como de trabalho ou profissional, o tempo de deslocação do trabalhador entre a sua residência e o seu local de trabalho e vice versa, por referência à utilização, para esse efeito, de uma viatura de serviço atribuída aquele para uso profissional e particular.
Recorrente: CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A.
Recorrido: AA
(Processo n.º 2887/20.1T8PRT – Tribunal Judicial da Comarca do ... -Juízo do Trabalho do ... - Juiz ...)
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I – RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa de condenação com processo comum laboral, no dia 07/02/2020, contra CAIXA LEASING E FACTORING – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., atualmente CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., no âmbito da qual, no final da sua Petição Inicial, formulou as seguintes pretensões:
«Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser julgada procedente, por provada, a presente ação e a Ré condenada a:
a) Ser declarado que o direito à atribuição de uma viatura automóvel ao Autor para uso exclusivo quer pessoal quer profissional, sem qualquer limite, suportando o empregador todas os encargos para o efeito se encontra entre as condições remuneratórias acordadas entre a Autora com a sociedade S..., S.A., para a sua admissão e como tal integra a sua retribuição e como tal tem natureza retributiva.
b) Ser declarado que o direito à atribuição de uma viatura automóvel ao Autor para uso exclusivo pessoal, representava uma vantagem patrimonial no valor mensal de 800,00 € para o Autor.
c) Ser declarado que a decisão unilateral da Ré de retirar ao Autor a viatura automóvel que este utilizava, em exclusivo, e para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a S..., S.A. e depois a Ré, todas as despesas, sem qualquer limite, constitui uma violação do disposto no artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código do Trabalho.
d) Ser a Ré, condenada a atribuir uma viatura automóvel ao Autor, dentro da Gama que lhe estava atribuída – de marca SEAT, modelo Leon ST 1.6 TDI -, para este utilizar, em exclusivo, e para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a Ré, todas as despesas.
e) Ser a Ré, condenada a disponibilizar um lugar de aparcamento para a viatura automóvel utilizada pelo Autor e para este utilizar em exclusivo, para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a Ré, todas as despesas.
f) Ser a Ré condenada a pagar a quantia mensal de 800,00 €, desde o dia 30 de Novembro de 2017 e assim sucessivamente, até à data de atribuição efetiva da viatura a que o Autor tem direito.
No entanto, caso se entenda que os autos não contêm todos os elementos que permitam a fixação de um valor relativo ao benefício pessoal usufruído pelo Autor com a disponibilização da viatura, haverá que se proferida uma condenação ilíquida, remetendo o apuramento do quantum devido a esse título para liquidação de sentença, o que desde igualmente já se requer.
g) Quantias essas acrescidas dos juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos desde as respetivas datas de vencimento (30 de cada mês) e até integral pagamento;
h) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor o montante de 4.000,00 €, a título de danos não patrimoniais.».
Na sua contestação veio a Ré alegar que o uso do veículo pelo Autor na sua vida pessoal não resultou de qualquer obrigação contratual assumida pela Ré mas antes de uma tolerância, sendo que a atribuição do veículo, o foi, para o desempenho das funções atribuídas, enquanto se justificasse, ou seja, de forma precária, o que era do conhecimento daquele.
“Nestes termos, julgo parcialmente procedente a presente ação e, consequentemente:
a) Declaro que o direito à atribuição de uma viatura automóvel ao Autor para uso exclusivo, quer pessoal quer profissional, sem qualquer limite, suportando o empregador todas os encargos para o efeito, se encontra entre as condições remuneratórias acordadas entre o Autor com a sociedade S..., S.A., para a sua admissão e como tal integra a sua retribuição e como tal tem natureza retributiva.
b) Declaro que a decisão unilateral da Ré de retirar ao Autor a viatura automóvel que este utilizava, em exclusivo, e para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a S..., S.A. e depois a Ré, todas as despesas, sem qualquer limite, constitui uma violação do disposto na al. d), do n.º 1 do art.º 129.º, do Código do Trabalho.
c) Condeno a Ré a atribuir uma viatura automóvel ao Autor, dentro da Gama que lhe estava atribuída – de marca SEAT, modelo Leon ST 1.6 TDI -, para este utilizar, em exclusivo, e para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a Ré, todas as despesas.
d) Condeno a Ré a disponibilizar um lugar de aparcamento para a viatura automóvel utilizada pelo Autor e para este utilizar em exclusivo, para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a Ré, todas as despesas.
e) Condeno a Ré a pagar ao Autor o montante de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.
f) Condeno a Ré a pagar ao Autor as quantias correspondentes à retribuição em espécie constituída pela utilização pessoal do veículo automóvel que lhe estava atribuído e de que esteve privado desde 30 de Novembro de 2017, cujo apuramento se relega para incidente de liquidação de sentença, acrescidos de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da data do trânsito da decisão da respetiva liquidação.
No demais, vai a Ré absolvida do pedido.”.
«A. Ser declarado que o direito à atribuição de uma viatura automóvel ao Autor para uso exclusivo pessoal, representava uma vantagem patrimonial no valor mensal líquido 1.209,48 €.
B. Ser a Ré condenada a pagar a quantia mensal líquida de 1.209,48 €, desde o dia 30 de Novembro de 2017 e assim sucessivamente, até à data de 27 de Junho de 2022.
C. Ser a Ré condenada a pagar a quantia global líquida de 63.970,86 €, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4%, a contar da data do trânsito da decisão da respetiva liquidação.
D. Quantia a qual deverá ser deduzida o valor devidamente comprovado resultante do peticionado nos pontos 18 e 19 do presente articulado.»
“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o presente incidente e, consequentemente, liquido em € 30.195,00 (trinta mil, cento e noventa e cinco euros) a quantia correspondente à retribuição em espécie constituída pela utilização pessoal do veículo automóvel que lhe estava atribuído e de que esteve privado desde 30 de Novembro de 2017 até 27 de Junho de 2022, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da data do trânsito desta decisão.
A este valor devem ser deduzidos todos os montantes pagos pela Ré ao Autor a título de deslocações pessoais.”.
“Pelo exposto, acorda-se em rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, implicitamente deduzida pelo requerente, e julgar parcialmente procedentes ambas as apelações, de requerente e requerida, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, que é substituída pelo presente acórdão, condenando-se a requerida a pagar ao requerente a quantia líquida global de € 26.371,76 (vinte e seis mil, trezentos e setenta e um euros e setenta e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4%, a contar da data do trânsito desta decisão e até integral pagamento.
No mais, designadamente quanto ao desconto dos valores já liquidados pela requerida, mantém-se a decisão sob recurso.”.
A Ré CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., inconformada com tal acórdão veio interpor, no dia 2/4/2024, recurso do mesmo para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido por despacho judicial de 08/05/2024, como de Revista, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
“1. O presente recurso de Revista vem interposto do douto Acórdão proferido a fls…, no qual se decidiu fixar a indemnização devida ao Recorrido desde o dia 30 de Novembro de 2017 até 27 de Junho de 2022, em 26.371,76 € (vinte e seis mil trezentos e setenta e um euros e setenta e seis cêntimos), deduzido de todos os montantes pagos pela Ré ao Autor a título de deslocações pessoais.
2. Com o devido respeito, que é muito, não pode a Recorrente concordar com o douto Acórdão ora recorrido, dele recorrendo no que respeita à consideração das despesas efetuadas pelo Recorrido nas deslocações de casa para o trabalho e regresso.
3. A Recorrente não discorda de que o tempo de deslocação pendular casa-trabalho e trabalho-casa não é tempo de trabalho.
4. A utilização que o trabalhador faz de uma viatura automóvel nesse período não deve, salvo o devido respeito, ser imputado à utilização pessoal do veículo.
5. A razão de ser dessa deslocação é estritamente profissional dado que o trabalhador se desloca de casa para o trabalho e do trabalho para casa.
6. Como assinala JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, Volume I, 2007, pág.ª 663: “O próprio trajeto do local de trabalho para a residência ou domicílio do trabalhador não será normalmente tempo de trabalho – o trabalhador não se acha a realizar a sua prestação, tratando-se apenas de tempo conexo com uma atividade preparatória ou complementar da própria prestação: para poder trabalhar e/ou oferecer a sua disponibilidade no local de trabalho, o trabalhador tem que se deslocar até esse local de trabalho e, quando a prestação chega ao fim, regressar desse local de trabalho.”
7. Salvo melhor opinião, a utilização de viatura de serviço no tempo de deslocação desta natureza não deve considerar-se como utilização pessoal mas sim profissional.
8. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou, designadamente, o disposto no artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil.
Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso e, consequentemente, deve revogar-se o douto Acórdão recorrido, fixando-se o valor mensal do dano estritamente no montante mensal de 316,00 € (166,00 € + 150,00 €), assim se fazendo JUSTIÇA!”
«I. A Recorrente, apesar de não discordar de que o tempo de deslocação pendular casa-trabalho e trabalho-casa não é tempo de trabalho, pretende através do presente recurso configurar o uso do veículo, após o horário de trabalho e no percurso mencionado, não como um uso particular do veículo, mas antes como um uso profissional, porquanto, segundo alega, a razão de ser dessa deslocação é estritamente profissional.
II. Porém, atendendo à matéria de facto dada como provada, nomeadamente o douto Acórdão da Relação do Porto proferido nos autos principais, sabemos que o Autor utilizava a viatura que lhe estava atribuída nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho.
III. E que, em consequência da retirada da mesma, em 30 de Novembro de 2017, o Autor viu-se “forçado” a adquirir uma viatura para efetuar as suas deslocações, fora do horário de trabalho, nomeadamente para efetuar a sua deslocação diária de ..., onde reside, para o ... onde tinha e tem o seu domicílio profissional e vice versa, cfr. ponto 49 dos factos provados.
IV. Sendo que, a partir dessa mesma data, o Autor continuou a laborar apresentando-se no seu local de trabalho, desenvolvendo as suas funções, suportando as despesas de deslocação para o efeito, cfr. ponto 66 dos factos provados.
V. Da matéria de facto apurada por ambas as instâncias resulta que o Autor após 30 de novembro de 2017, continuou a laborar apresentando-se no seu local de trabalho, desenvolvendo as suas funções, suportando as despesas de deslocação para o efeito, cfr. ponto 66 dos factos provados.
VI. O Autor suportou essas despesas por estar necessariamente fora do local e do tempo de trabalho e por tais deslocações estarem obviamente fora da sua atividade profissional que, de acordo com a matéria provada, correspondem às funções inerentes à categoria de Técnico de grau III.
VII. Que sentido faria o Autor suportar as despesas de deslocação se as mesmas estivessem enquadradas na sua atividade/utilização profissional?
VIII. Quais são as funções que o Autor exerce, no referido percurso, após o horário de trabalho, que levam a concluir que o referido percurso se enquadra na atividade/utilização profissional do Autor?
IX. Como se pode enquadrar na atividade/utilização profissional as deslocações que o Autor possa fazer, a título pessoal e após o seu horário de trabalho, entre o seu local de trabalho e o destino que escolha? Seja o seu domicílio ou outro?
X. Note-se que um trabalhador com um local de trabalho fixo, como é o caso do Autor, tem o poder e a liberdade de utilizar e organizar livremente o seu tempo no trajeto de e para o local de trabalho para consagrar os seus próprios interesses.
XI. Como tal, a referida deslocação fica para lá do artigo 197.º do CT, sem prejuízo do enquadramento específico previsto para os acidentes in itinere.
XII. Além disso, durante a deslocação do local onde o Autor se encontra (seja o seu domicílio ou outro) para a empresa (e vice versa), o Autor não se encontra à disposição do empregador, na medida em que esse período não está ligado à obrigação jurídica do cumprimento das instruções dadas por aquele.
XIII. Sendo certo que as partes nada estipularam de modo diferente, não sendo esse sequer um período remunerado.
XIV. Por outro lado, deverá ser tido em conta que o Tribunal de 1.ª Instância determinou o seguinte: “…o valor fixado tem de ser expurgado de todas as importâncias pagas pela entidade patronal a título de deslocações pessoais…bem como da quantia de 173,55 €, atribuída ao Autor para as suas deslocações pessoais.”.
XV. O que se manteve no douto Acórdão tendo sido doutamente determinado que “No mais, designadamente quanto ao desconto dos valores já liquidados pela requerida, mantém – se a decisão sob recurso.”
XVI. As importâncias pagas pela entidade patronal a título de deslocações pessoais bem como da quantia de 173,55 €, atribuída ao Autor para as suas deslocações pessoais correspondem às deslocações do Autor entre o seu domicílio pessoal e profissional.
XVII. Sendo que, a referida quantia de 173,55 €, atribuída ao Autor para as suas deslocações pessoais, corresponde ao subsídio de mobilidade para pagamento do passe de comboio para as deslocações do Autor entre o seu domicílio pessoal e profissional, cfr. docs. 38 a 41 da ação declarativa.
XVIII. Ou seja, a própria entidade empregadora, ora Recorrente, considera as referidas deslocações, entre o domicílio e o local de trabalho, como deslocações pessoais e nem de outro modo poderia ser.
XIX. Sendo certo que a mesma cai numa evidente contradição quando pretende agora a qualificação de tais deslocações como sendo de natureza profissional mas ao mesmo tempo aceitou e pretende a dedução dos montantes pagos por si, a título dessas mesmas deslocações, por serem, deslocações pessoais.
XX. O que só por si, em modesta opinião, seria suficiente para fazer naufragar a pretensão da Empregadora, ora Recorrente.
XXI. Caso assim não se entenda, o que não se receia mas por dever de patrocínio se equaciona, nunca tal pretensão poderia proceder sob pena de existir um abuso de direito.
XXII. A Recorrente exerce nos presentes autos uma conduta contraditória que visa obter um duplo ganho, por um lado a consideração da utilização do percurso em causa como utilização profissional de forma a não ressarcir o Autor dos danos impostos por via do direito que lhe suprimiu (a retirada da viatura).
XXIII. E, por outro lado, a dedução dos montantes pagos por si, a título dessas mesmas deslocações, por serem, deslocações pessoais, conforme reconhecido na douta Sentença e douto Acórdão proferido nestes autos.
XXIV. O que constitui comportamento abusivo, subsumível à previsão do art.º 334.º, do Código Civil.
XXV. Em face do exposto, não se poderão incluir as deslocações do Autor entre o domicílio pessoal e do trabalho no uso profissional (ou seja o benefício obtido com o uso do veículo ao serviço da entidade empregadora), pois estamos no âmbito do uso pessoal da viatura.
XXVI. Sendo o trabalhador livre de se deslocar a qualquer sítio antes de ir para o trabalho ou antes de regressar ao seu domicílio, como por exemplo levar ou ir buscar as suas filhas ao infantário e à escola, sendo que tais deslocações nada têm a ver com a sua atividade profissional, cfr. ponto 66 dos factos provados.
XXVII. Num juízo que deverá ser equitativo, entendemos que essas deslocações efetuadas após o horário de trabalho não devem refletir-se no uso profissional, pelos motivos supra expostos, e deverão igualmente ser contabilizadas para encontrar o valor efetivo do benefício em que se traduz o uso do veículo pelo trabalhador para fins pessoais, o que desde já se alega e se requer.
XXVIII. Nesse sentido, douto Acórdão proferido pela Relação do Porto, Secção Social, no âmbito do processo 3987/18.3T8PRT.1.P2, que lapidarmente refere:
a. “II - No cálculo da retribuição correspondente ao valor da utilização pessoal do veículo deve ter-se em conta a utilização efetuada para além do horário normal de trabalho, isto é, tanto nos fins de semana, feriados e férias, como nos dias úteis, fora do horário de trabalho.” cfr. sublinhado nosso.
Termos em que, Deve ser negado provimento ao recurso sob resposta, mantendo-se a douta decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!»
Cumpre apreciar e decidir em Conferência.
II – OS FACTOS
O tribunal da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
«1. A 30 de Novembro de 2017 o Autor tinha na sua posse o automóvel de marca SEAT, modelo Leon ST, 1.6 TDI STYLE, cor cinza, com a matrícula ..-QO-.. (desde 2016).
2. Desde essa data, a viatura foi sempre utilizada exclusivamente pelo Autor quer a nível profissional, quer a nível pessoal, tendo a S..., S.A. suportado todas as despesas de impostos, seguros, revisões e manutenções, gasolina, portagens, lavagens e parqueamento inerentes à utilização da referida viatura.
3. Inclusivamente nos períodos em que o Autor, não se encontrava ao serviço, nomeadamente, nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho, fins-de-semana, férias, feriados e demais momentos de lazer.
4. A Ré veio a atribuir uma viatura ao Autor, no passado dia 27 de Junho de 2022, realizando um auto de entrega e entregando-lhe as chaves, documentos, cartões, nomeadamente de combustível, identificador da via verde e demais elementos afetos à utilização da mesma.
5. Posteriormente, disponibilizou um cartão para efeitos de estacionamento para uso da viatura atribuída ao Autor no parque ..., no ...,
6. Desde o ano de 2000, o domicílio pessoal do Autor é na cidade de ..., a saber: na Rua ... ....
7. O Autor recebeu as quantias que lhe foram atribuídas, a título de deslocações pessoais, entre Novembro 2017 e Janeiro de 2019, que o Autor não consegue, quantificar, mas que têm de ser atendidas.
8. O Autor recebeu a quantia de 173,55 €, atribuída pela Ré, para as suas deslocações pessoais durante o período de 14 meses, concretamente entre Setembro de 2019 a Junho de 2022, no montante global de 2.429,70 € (173, 55 € x 14 meses).
9. O Autor sempre utilizou o veículo depois do horário de trabalho, durante os fins-de-semana e dias não úteis.
10. O Autor teve/tem a filha mais velha a residir, em diferentes momentos, em ..., ... e ..., deslocando-se para as cidades em causa utilizando o veículo em causa nos autos.
11. O Autor utilizava o veículo nas suas deslocações de férias, designadamente, nas viagens que fazia para o ....
12. A renda mensal, sem IVA, pela locação de um automóvel SEAT Leon 2.0 TDI STYLE, pelo período de 60 meses, anda na ordem dos € 451,80, com a quilometragem máxima de 200.000,00 km.
13. A contratação do automóvel de marca SEAT, modelo Leon ST, 1.6 TDI STYLE pelo período de 46 meses cifrava-se, à data dos factos, na ordem do € 400,00 mensais.
14. Em combustível, portagens, manutenção, numa utilização média, a título particular, um trabalhador, que confira uma utilização razoável do automóvel, tem um benefício na ordem dos € 150,00.
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 679.º, 639.º e 635.º, n.º 4, todos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).
Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos autos dos quais depende o presente recurso de revista, atendendo à circunstância da instância da ação declarativa com processo comum laboral ter sido intentada no dia 07/02/2020, com a apresentação, pelo Autor, da Petição Inicial, ou seja, já depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.
Tal ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.
Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Revista.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos recursórios terem ocorrido sucessivamente na vigência da LCT e legislação complementar e dos Códigos de Trabalho de 2003 e 2009, que, como se sabe, entraram respetivamente em vigor em 1/12/2003 e 17/02/2009, sendo, portanto, os regimes deles decorrentes que aqui irá ser chamado à colação em função da factualidade a considerar e consoante as normas que se revelarem necessárias à apreciação e julgamento do objeto do presente recurso de Revista.
B – OBJETO DA PRESENTE REVISTA
A única questão de índole substantiva que se discute neste recurso de revista é se, no caso concreto dos autos, a utilização de viatura de serviço nas deslocações efetuadas pelo Autor de casa para o local de trabalho e vice-versa deve ser considerada como utilização para uso pessoal ou profissional.
C – FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA
A sentença do Juízo do Trabalho do ... reconheceu, nos moldes constantes da sua argumentação que adiante se reproduz, o direito do Autor a receber da Ré uma compensação pecuniária pelo período em que não gozou do benefício retributivo em espécie em que se traduziu a utilização própria – não se considerando aqui e para esse efeito, o uso profissional concomitantemente dado às mesmas - das viaturas automóveis que sempre lhe foram atribuídas pela Ré e anteriores empregadoras desde o início da relação laboral dos autos, com o suporte pelas mesmas dos encargos de manutenção inerentes, assim como das despesas de combustível e da VIA VERDE -, tendo tal privação se verificado entre 1/12/2017 e 26/6/2022, por força da retirada por parte da recorrente do último veículo de serviço entregue ao Autor, o que aconteceu no dia 30/11/2017:
«Com vista a realizar o devido enquadramento jurídico dos factos, começamos por dizer que nos escusamos de tecer quaisquer considerações quanto à natureza da remuneração e demais aspectos relacionados com a utilização do veículo a título pessoal, pois já foi feito na Sentença principal.
Aqui, apenas se impõe quantificar o valor que tal utilização configura, tratando-se o valor da prestação retributiva resultante da atribuição de uma viatura para uso profissional e pessoal de um benefício económico no que toca à sua utilização em proveito próprio.
Porém, não se pode, sem mais, confundir esse valor com aquele que a entidade empregadora despende com essa viatura. Consideramos que o valor dessa retribuição em espécie corresponde ao benefício económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal ou particular da viatura. Não bastante, resulta para nós razoável que tenha de ser peneirado o seu uso profissional, ou seja, o benefício que a entidade patronal obtém com o uso da viatura ao seu serviço.
Como tal, não podemos considerar que as deslocações do Autor entre ...-... e o trajecto inverso, pois somos do entendimento que não configura uso particular do veículo, mas antes profissional, porquanto, se pode enquadrar na sua actividade profissional, trata-se da disponibilização pelo empregador de meio de transporte ao trabalhador para o exercício da sua actividade profissional. Considerando-se, assim, a vertente profissional desta utilização. E tanto assim é que, por maioria de razão, se o trabalhador tiver um acidente de viação entre tais deslocações será caracterizado como um acidente de trabalho. Como tal, não pode o Tribunal deixar de qualificar tal deslocação como de natureza profissional.
E o mesmo se diga relativamente à avença contratada com o parque de estacionamento e da qual o Autor beneficia.
Dito isto, fica para nós vincado que a deslocação para o local de trabalho e deste para ... se reporta a uma utilização profissional da viatura, o que se decide.
Desta feita, destinando-se a viatura (e, naturalmente, o combustível) não apenas ao uso pessoal, mas também ao uso profissional, o valor mensal do benefício económico dessas prestações em espécie proporcionadas ao trabalhador não pode reputar-se equivalente ao valor mensal do custo do aluguer de viatura idêntica e das despesas com ela relacionadas, já que desse custo advinham também vantagens económicas para a sua entidade empregadora (pela sua utilização em serviço), vantagens essas cujo valor, manifestamente, não pode deixar de excluir-se do referido custo, para se apurar o valor exacto da retribuição em espécie.
É jurisprudência uniforme que o valor de uso de uma viatura atribuída pelo empregador para o trabalhador usar na sua vida particular ou particular e profissional, suportando aquele as respectivas despesas de manutenção, acontecendo tal uso de forma regular, é um direito, mas não pode o trabalhador exigir, nesta sede, um valor desproporcional à utilização em causa.
Salvo entendimento diverso e sem mais, adiantamos, desde já, que o valor de €1.209,48/mensal, peticionado pelo Autor, é excessivo.
Vejamos, um veículo automóvel da gama do automóvel cedido a Autor (que, note-se, tem a cilindrada de 1.6 TDI e não 2.0 TDI como consta da cotação junta aos autos), tenderá a configurar uma renda pela sua aquisição na ordem dos € 400,00 mensais, o que é um facto notório pois acessível a todos, em qualquer simulador on line da especialidade. A este valor devem acrescer as despesas com o combustível, portagens e manutenção que configuramos razoável fixar em €150,00, a título global e em média, pois, naturalmente, a utilização mensal varia consoante os meses do ano e as necessidades do trabalhador. Sendo, consideravelmente, superior nos meses de férias, com as inerentes deslocações do trabalhador em gozo de férias. Como, aliás, consta do articulado do Autor e dos factos provados.
Nesta medida, em termos de benefício de facto, a título particular, sublinhe-se, consideramos que, assente em juízos de proporcionalidade e razoabilidade, a utilização do veículo configura um benefício que, em média, podemos quantificar o montante mensal de € 550,00, ficcionando o custo de aquisição e uma utilização média e regrada por parte do trabalhador, como se exige, norteada pelo bom senso e razoabilidade. Sem esquecer que em causa está apenas a utilização particular da viatura.
Conclui-se, assim, assistir, parcialmente, razão ao Autor, fixando em € 550,00 o valor a atribuir ao rendimento em espécie pela utilização pessoal do automóvel que lhe fora atribuído pela Ré.
De notar que o valor que vier a ser fixado tem de ser expurgado de todas as importâncias pagas pela entidade patronal a título de deslocações pessoais, entre Novembro 2017 e Janeiro de 2019 e que as partes não concretizaram, mas cuja dedução é simples e operada por mero cálculo aritmético. Bem como a quantia de € 173,55 €, atribuída ao Autor para as suas deslocações pessoais durante o período de 14 meses, concretamente entre Setembro de 2019 a Junho de 2022, no montante global de 2.429,70 € (€173, 55 € x 14 meses).
Tendo em conta que o Autor esteve privado de automóvel de 30 de Novembro de 2017 até 27 de Junho de 2022 está em causa o período de 54 meses e 27 dias, pelo que, impõe-se liquidar o valor em causa em € 30.195,00 (€ 550 x 54 meses = € 29.700,00 + € 495 = 27 dias).
Repete-se que, a este valor devem ser deduzidos todos os montantes pagos pela Ré ao Autor a título de deslocações pessoais.
Mais se condena a Ré no pagamento de juros de mora à taxa legal de 4%, a contar da data do trânsito da presente decisão e até efectivo e integral pagamento..».
D – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
O Tribunal da Relação do Porto, chamado a decidir os recursos de Apelação que foram interposto pela Ré e pelo Autor da mencionada sentença final, veio a julgar os mesmos parcialmente procedentes com base na seguinte fundamentação jurídica:
«3. Valor da remuneração em espécie (cedência de veículo para uso pessoal e encargos) – recurso da requerida
[…]
Segunda questão: da determinação do valor do uso pessoal do veículo, tendo em consideração o seu uso profissional.
Na sentença sob recurso entendeu-se fixar o valor do uso pessoal do veículo em € 550,00 mensais, sendo € 400,00 de valor da renda pela sua aquisição e € 150,00 de despesas com o combustível, portagens e manutenção. Nas alegações sustenta a recorrente que, havendo que proceder ao desconto do uso profissional do veículo, tal valor “não deverá corresponder a mais de metade do custo total, ou seja, nunca deveria ser superior a 225,00 € mensais”.
A questão da determinação do valor do uso pessoal de veículo enquanto remuneração não se apresenta de solução fácil, nem pacífica. Esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se no acórdão de 23 de Janeiro de 2023, processo 338/15.2Y3VNG.P1, supõe-se que não publicado, subscrito pelo aqui relator como adjunto, nos seguintes termos: “O valor da referida retribuição em espécie será, como tem sido entendido pela jurisprudência, o correspondente ao benefício económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal ou particular da viatura, nele não se podendo incluir o uso profissional (ou seja o benefício obtido com o seu uso ao serviço da entidade empregadora), pois que a viatura destina-se não apenas ao uso pessoal, mas também ao uso profissional – cfr. Acórdão do STJ de 27.05.2010, Processo 684/07.9TTSTB.S1, no qual se refere que “Essa privação de uso corresponde a um valor quantificável em termos pecuniários, tendo vindo a ser entendido por este Supremo Tribunal que o valor dessa retribuição em espécie é o correspondente ao beneficio económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal da viatura, competindo ao trabalhador o ónus de alegar e provar aquele valor, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1 CC.” [E, no mesmo sentido, cfr. Acórdãos também do STJ de 08.11.06 (Proc. 06S1820), de 22.03.06 (Proc. 3729/05) e de 10.05.06 (Proc. 3490/05), todos in www.dgsi.pt]. E assim também no Acórdão do STJ de 17.11.2016 – in www.dgsi.pt, de cujo sumário resulta que destinando-se a viatura fornecida pela entidade empregadora ao uso profissional e pessoal do trabalhador, o valor decorrente da utilização da viatura a considerar para efeitos de retribuição é o correspondente ao benefício patrimonial obtido pelo trabalhador com o uso pessoal e não o correspondente ao custo mensal suportado pelo empregador com o uso profissional e pessoal.”
Mais se acrescenta no acórdão do STJ de 18 de Dezembro de 2013, processo 248/10.0TTBRG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt: “nos termos do artigo 259.º do Código do Trabalho, “[a] prestação retributiva não pecuniária deve destinar-se à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família e não lhe pode ser atribuído valor superior ao corrente na região”. Decorre deste preceito que o valor da componente retributiva em espécie equivale ao benefício económico pessoal que a mesma representa para o trabalhador ou sua família. Como constitui jurisprudência pacífica, o valor da retribuição em espécie, consubstanciada na utilização de veículo automóvel proporcionada pelo empregador é o correspondente ao benefício económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal, ou particular da viatura, nele se não incluindo o uso profissional (...).”
Veja-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2017, processo 5210/12.5TTLSB.L1, acessível em www.pgdlisboa.pt, no qual se acrescenta: “A jurisprudência tem fornecido alguns contributos, como sucede com a afirmação de que o valor do benefício económico a considerar não pode coincidir com o dispêndio que o empregador suporta com a aquisição do veículo (custo do aluguer e similares) pois a este dispêndio corresponde, desde logo, o benefício que tira o próprio empregador.”
Assim, não questionando a recorrente requerida o valor referido no ponto 13 dos factos provados, é esse o que importa considerar, conforme decidido na sentença.
Quanto à percentagem do valor do “renting” a considerar como sendo o uso particular do veículo, refere Rui Filipe Fondinho Duarte, em Atribuição de Viatura como Prestação Incluída ou Excluída da Retribuição, Dissertação de mestrado, na área de especialização em Ciências Jurídico-Empresariais/Menção em Direito Laboral, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, julho/2017, págs. 55-56, acessível em estudogeral.sib.uc.pt:
“Se a entidade patronal não for proprietária da viatura, a determinação do valor do uso particular, passará pela aferição da somatória das prestações pagas à empresa locadora.
“É nestes casos que se torna imperativo um critério específico de alocação de custos. A repartição desses custos, baseada na disponibilidade da viatura da empresa, pode ser feita imputando, por exemplo, 1/12 avos do custo anual (correspondente ao mês de férias) mais 2/7 avos dos restantes 11/12 avos (os dois dias de descanso em cada semana dos restantes onze meses) como retribuição ao trabalhador (...).
Sistemas mais evoluídos não atenderão já apenas aos dias de trabalho e não trabalho mas ao período de trabalho em cada dia, observando-se então que em cada dia normal de trabalho o trabalhador dispõe da viatura da empresa para uso pessoal antes do início e após o final de cada jornada de trabalho (...).” [FILIPE FRAÚSTO DA SILVA, Reflexões em torno do valor do uso pessoal de viatura da empresa que integre a retribuição do trabalhador, in: Para Jorge Leite Escritos Jurídico Laborais, Volume I, Coimbra Editora, 2014, pág. 975]
Tendo uma semana 168 horas (24 horas multiplicadas por 7 dias), nessa mesma semana, 40 horas (8 horas multiplicadas por 5 dias) correspondem ao normal período de trabalho. Assim, o uso pessoal da viatura corresponderia a 128/168 avos.”
Na sentença sob recurso somaram-se o valor total do “renting” e o valor fixado para combustível, portagens, manutenção, daí derivando os € 550,00, ou seja, de forma diversa de todos os apontados entendimentos.
Seguindo o segundo dos apontados critérios, pronunciou-se o acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Setembro de 2012, processo 749/10.0TTPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta: “No cálculo da retribuição correspondente ao valor da utilização pessoal do veiculo deve ter-se em conta a utilização efetuada para além do horário normal de trabalho, isto é, tanto nos fins de semana, feriados e férias, como nos dias úteis, fora do horário de trabalho.”
Concretizando, considera-se no citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2017:
“Na doutrina e jurisprudência estrangeira, de que dá notícia Fraústo da Silva, vários métodos são aventados, desde o sistema da quilometragem (o número de quilómetros percorridos em serviço pessoal é traduzido em rendimento pecuniário variável) ao método do preço base da viatura (imputa-se uma determinada percentagem desse preço a cada período de utilização pelo trabalhador em uso pessoal), havendo também métodos que combinam estes dois sistemas. Além disso, distingue-se consoante a viatura é propriedade da empresa ou objecto de contrato de leasing ou renting, e consoante há um uso particular total ou misto (profissional e pessoal).
(...)
Ponderando estes elementos de facto e o raciocínio expresso na sentença para alcançar um valor correspondente ao benefício económico obtido pelo trabalhador por via do uso particular do veículo, bem como a alegação da recorrente, entendemos que é mais adequado à justiça do caso concreto e espelha de um modo mais fidedigno a realidade da partilha entre o empregador e o trabalhador das utilidades que se extraem de um mesmo bem, um valor que tenha em vista que, para ambos os beneficiários do bem, há um período do dia em que, segundo a natureza das coisas, nenhum deles (o empregador por intermédio do uso profissional do trabalhador e este através do uso do veículo que fazia na sua vida particular) pode extrair quaisquer utilidades do veículo.
(...) entendemos não ser aceitável a tese de que uma pessoa utiliza um carro ininterruptamente durante 24 horas por dia, sem comer, sem dormir, sem descansar, sem se deslocar de outra forma, antes se devendo, no mínimo, que considerar o tempo normal de descanso de qualquer pessoa, habitualmente de 8 horas diárias.
Assim, embora se nos afigure correcto partir do valor do renting como base de cálculo para alcançar o valor do benefício que se procura quantificar, aplicando-lhe uma percentagem que aproximadamente corresponda ao uso do veículo na vida privada, não seguimos o raciocínio da sentença quando conclui que o valor do benefício em que se consubstancia o uso do veículo para o trabalhador equivale a 77/prct. do valor do renting.
(...)
Sendo o efectivo utilizador do veículo apenas um (quer para benefício do empregador, quer para benefício próprio), o tempo médio de indispensável descanso do utilizador é um tempo em que nenhum dos beneficiários tira, em princípio, utilidades do veículo, e traduz por isso, para qualquer deles, um custo necessário.
Estando nós a tentar encontrar um valor para um benefício que é partilhado por dois sujeitos, não faz sentido que se impute apenas a um deles o desvalor da impossibilidade de uso decorrente da normal necessidade humana de descanso diário. É justo que, quer o trabalhador, quer o empregador, suportem o custo inerente ao tempo de provável inactividade do veículo, o que nos leva a divergir, quer da tese da sentença (que perspectiva apenas o trabalhador como beneficiário desse tempo, quando lhe imputa 77/prct. do valor do renting), quer da tese da recorrente (que perspectiva apenas o empregador como beneficiário desse tempo, quando lhe imputa 59,26/prct. do valor do renting). Se é verdade que o trabalhador pode ter necessidade de utilizar o veículo durante o seu período de sono, e o tem ao seu dispor para o efeito, é igualmente verdade que, se se verificarem os respectivos pressupostos, o empregador pode determinar a prestação de trabalho suplementar fora do período normal de trabalho diário. Em tais hipóteses, ambos usufruem do veículo fora do período em que, em princípio, seria normal utilizá-lo, mas trata-se de hipóteses de excepção, que não infirmam a constatação da existência de um tempo médio de indispensável descanso do utilizador.
Assim, entendemos que é conforme com as regras da prudência, do bom senso prático e da criteriosa ponderação das realidades da vida pressupostos num juízo de equidade, ter em consideração a situação normal ou padrão em que o empregador apenas beneficia do uso do veículo nas horas semanais de actividade do trabalhador e em que o trabalhador beneficia do uso do mesmo veículo no tempo restante, com excepção do seu período normal de descanso em que nenhum dos beneficiários retira do veículo quaisquer utilidades.
Não se computando este último período como benefício de qualquer deles, corrige-se o raciocínio expresso na sentença e faz-se recair equitativamente sobre a empresa e o trabalhador o benefício/custo de ter a viatura na sua disponibilidade, mas sem utilização, naquele período normal de descanso.
Assim, num juízo equitativo, entendemos que esse tempo de não utilização não deve reflectir-se no valor do renting quando tomado este como base de cálculo para, como se pretende com o presente incidente, encontrar o valor do efectivo benefício em que se traduz o uso do veículo pelo trabalhador para fins pessoais.”
Voltando ao citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 2017, com cuja formula de cálculo se concorda: “Em conformidade com o juízo enunciado, e tendo em atenção os factos acima expostos, cabe ponderar o seguinte: Às 8.760 horas que contém cada ano, deve deduzir-se o período correspondente ao tempo em que, de acordo com as regras da experiência comum, o utilizador do veículo não estará em condições de proceder à sua utilização atentas as normais necessidades humanas de descanso diário. Tal período a abater é de 2.920 horas (365 dias x 8 horas). Alcança-se assim o período de 5.840 horas (8.760 - 2.920) como período global de efectiva possibilidade de utilização do veículo por ambos os beneficiários para fins pessoais e patrimoniais, alternadamente. E a este período que deve equivaler o valor do renting quando o mesmo é tomado como base de cálculo do valor que o benefício inerente à sua utilização significava para cada um dos beneficiários. E por isso importa apurar, dentro deste período, quanto tempo o veículo se mostra afecto ao serviço particular do trabalhador e quanto tempo se mostra afecto ao serviço da empresa.”
De facto, como se refere no mesmo acórdão antes desta conclusão, “não sendo de todo conforme à natureza das coisas considerar que o trabalhador está 24 horas por dia apto a conduzir o veículo que o empregador lhe atribuiu, entendemos, como a recorrente, que não deverá atender-se, no período a ponderar em cada ano, a 2.920 horas (8 horas diárias x 365 dias do ano). De acordo com as regras da experiência, este tempo corresponde a um período médio de sono do utilizador do veículo, pelo que a possibilidade de efectiva utilização do veículo para fins pessoais deve ser amputada do período correspondente”.
Por outro lado, importa considerar o seguinte:
O ónus de alegação e prova do período de utilização do veículo em contexto particular, ou não laboral, impende sobre o requerente na liquidação, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil. Ora, no caso, o requerente não alegou, nem demonstrou, quer no incidente de liquidação, quer na acção declarativa que o precedeu, qual o seu horário de trabalho, apenas referido o período de oito horas diárias para cálculo do benefício do uso particular do veículo em sede de alegações de recurso, pelo que haverá que considerar para os efeitos do presente recurso que o requerente cumpria 48 horas de trabalho semanais, nos termos do disposto no art.º 211.º, n.º 1, do Código do Trabalho, conforme BB, em O Trabalho e o Tempo: Comentário ao Código do Trabalho, Porto: Universidade do Porto, 2018, págs. 198-199 e 262.
Neste mesmo sentido pronunciou-se esta Secção Social em acórdão de 6 de Fevereiro de 2023, processo 3987/18.3T8PRT.1.P1, ao que se supõe não publicado, relatado igualmente pelo ora relator, e que aqui se reproduziu no essencial.
Analisando o caso concreto, importa considerar o seguinte:
- Um ano tem 8.760 horas (365 dias x 24 horas);
- Um ano tem 229 dias úteis de trabalho efectivo (251 dias úteis - 22 dias úteis de férias;
- Num ano o requerente prestaria 2.198,4 horas de trabalho [(251 - 22) x (48 horas / 5) = 2.198,4)];
- Num ano haverá que considerar um período de descanso de 2.920 horas (365 dias x 8 horas);
Haverá, pois, que considerar como período de uso particular do veículo 3.641,6 horas anuais, o que corresponde a 41,5%. Percentagem a incidir sobre o valor mensal de € 400,00, o que dá um valor mensal remuneratório de € 166,00.
Nesta medida, redução do valor da atribuição do veículo de € 400,00 para € 166,00, procede a apelação da recorrente requerida.
Mas já não na parte em que pretende igualmente a redução do valor do uso do mesmo, ou seja, da parte referente a combustível, portagens, manutenção, porquanto o facto provado 14 se refere já à utilização “a título particular” do veículo, nada havendo aqui a alterar na decisão recorrida.
4. Consideração das despesas efectuadas pelo requerente nas deslocações de casa para o trabalho e regresso – recurso do requerente
Alega o recorrente requerente:
[…]
Pedro Romano Martinez, em Direito do Trabalho, 3.ª edição, Coimbra: Almedina, 2006, pág. 522, define o «tempo de trabalho» como o “o período em que o trabalhador desempenha a sua actividade ou está adstrito a realizá-la.” Acrescentando António Monteiro Fernandes, em Direito do Trabalho, 14.ª edição, Coimbra: Almedina, 2009, pág. 353, “Temos, pois, que a concreta configuração da prestação do trabalho no tempo (isto é, na organização de vida do trabalhador) deriva do horário de trabalho que, por sua vez, traduz o modo pelo qual o período normal de trabalho se enquadra no período de funcionamento.” E Maria do Rosário Palma Ramalho, no Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Coimbra: Almedina, 2012, pág. 445, que “O tempo de trabalho traduz o período durante o qual o trabalhador está adstrito à execução da sua actividade laboral ou se encontra disponível para essa execução.” Pelo que “a determinação do tempo de trabalho limita a subordinação do trabalhador perante o empregador e assegura a sua liberdade pessoal, que constitui um pressuposto axiológico fundamental do vínculo laboral” (mesma autora e obra, pág. 446).
E a isto não obsta a protecção infortunístico-laboral concedida ao trabalhador em caso de acidentes ocorridos “in itineri”, contrariamente ao defendido na sentença sob recurso.
Seguindo-se o acórdão desta Secção Social de 23 de Junho de 2021, processo 3793/17.2T8MAI.P1, acessível em www.dgsi.pt, igualmente relatado pelo ora relator, importa referir o seguinte: “A este propósito considerou-se no acórdão do STJ de 29 de Junho de 2005, processo 05S574, acessível em bdjur.almedina.net, “o fundamento da responsabilidade objectiva, no domínio dos acidentes de trabalho, começou por assentar apenas na teoria do risco, no pressuposto de que a actividade profissional tinha, em potência, um risco. Para haver lugar à indemnização bastava demonstrar que o acidente era causa normal do risco próprio daquela actividade (risco de exercício de actividade). Acontece que, posteriormente, se entendeu que a responsabilidade objectiva por acidentes de trabalho também encontrava justificação no risco de integração empresarial (inclusão do trabalhador na estrutura da empresa, sujeitando-o à autoridade do empregador) – teoria do risco de autoridade. Ora esta teoria assenta numa noção ampla de acidente de trabalho, considerando que o risco não deriva só da actividade profissional desenvolvida. E como sabemos a crescente socialização do risco tende a amplificar ainda mais aquela noção.” Conforme refere Pedro Romano Martinez, em Direito do Trabalho, 3.ª edição, 2006, pág. 809, “a responsabilidade objectiva emergente de acidentes de trabalho, não obstante assentar no risco profissional. em certos casos tem sido alargada com base na ideia de risco empresarial, também designado risco de autoridade. Trata-se do risco de ter trabalhadores, que não deriva só da actividade desenvolvida.”
Acrescentando-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24 de Setembro de 2019, processo 564/15.4T8EVR.E1, acessível em www.dgsi.pt, “A teoria do risco económico ou de autoridade em que assenta o conceito de acidente de trabalho e as suas extensões, previstos, respetivamente, nos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), remete não para um risco específico de natureza profissional, mas para um risco genérico ligado ao conceito amplo de autoridade patronal, ou seja, o acidente tem de ter uma conexão com a relação laboral e não propriamente com a prestação laboral em si.”
Também no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 11 de Setembro de 2017, processo 62/15.6Y7PRT.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt, se considerou que “A teoria do risco de autoridade, assentando na responsabilidade do empregador decorrente da possibilidade do exercício da autoridade por parte deste sobre os seus trabalhadores, dispensa o referido nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, bastando-se com alguma relação entre o trabalho e o acidente.”
Ou seja, a protecção concedida pela lei aos acidentes “in itineri”, não permite a conclusão extraída na sentença, não encontrando fundamento na prestação efectiva do trabalho, mas antes no “no risco de integração empresarial”, pelo que nada impede o trabalhador de não se deslocar para casa quando sai do trabalho, ou de fazer os desvios que bem entender ao seu “trajecto habitual” para esse efeito, ainda que aí possa perder a aludida protecção, uma vez que, a partir do momento em que termina a sua actividade profissional recupera de pleno a sua “liberdade pessoal”.
Assim, procede a apelação do recorrente requerente, importando considerar no valor inerente à utilização do veículo a título pessoal as despesas com a deslocação da sua residência habitual, em ..., e o local de trabalho, no ....
Porém, como se deixou expresso acima, o recorrente não fez prova das despesas que invocou, restando apenas como provado que, no período aqui em questão, o recorrente despendia com tal deslocação a quantia mensal de € 179,30, pelo que apenas esta importa considerar, descontando-se o período de férias, ou seja, no montante mensal de € 164,36.
Considerando o período em referência, entre 30 de Novembro de 2017 e 27 de Junho de 2022, 54 meses e 27 dias, como referido na sentença, o valor total a considerar é de € 26.371,76 [€ 166,00 x 54 meses e 27 dias) + (€ 150,00 x 54 meses e 27 dias) + (€ 164,36 x 54 meses e 27 dias)].»
E – ENQUADRAMENTO PROCESSUAL DO INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Importa começar por realçar aqui que nos movemos apenas no quadro do incidente de liquidação que foi suscitado ao abrigo dos artigos 609.º, número 2 e 358.º e seguintes do NCPC, onde se visa apenas quantificar o prejuízo sofrido pelo trabalhador e aqui recorrido com a privação, ao longo de 54 meses, da viatura automóvel que lhe foi retirada pela empregadora e que lhe havia sido atribuída para uso total, ou seja, para utilização em termos profissionais como pessoais ou particulares.
Trata-se de um fase processual secundária que nasce apenas pela circunstância de na sentença ou Acórdãos prolatados na fase primeva e principal de uma dada ação de natureza declarativa existirem condenações genéricas ou ilíquidas que demandam a sua concretização, em regra, pecuniária por via do referido incidente de liquidação.
Este incidente liquidatório acha-se, nessa medida, fortemente condicionado pelo que foi analisado, julgado e determinado pelas mencionadas decisões singulares ou coletivas, o que implica que a natureza, contornos e conteúdo jurídicos dos direitos a quantificar no mesmo se encontrem já previamente enquadrados e definidos por aquelas, com a força de caso julgado material.
A quantificação que aí se procura efetuar – inclusive, por via da equidade, quando os normais mecanismos probatórios e processualmente consentidos falharem – tem de respeitar os limites substantivos e adjetivos que foram traçados, em moldes definitivos e irrevogáveis, na ação propriamente dita, não sendo permitido às partes repisarem questões já debativas e resolvidas nessa fase principal dos autos ou carrearem mesmo para o incidente respetivo temáticas que deveriam ter sido anteriormente alegadas e apreciadas, por extravasarem, de uma forma mais ou menos direta e imediata, as fronteiras materiais e formais legalmente delineadas para aquele.
F - LITÍGIO DOS AUTOS
O que deixámos exposto no Ponto anterior cruza-se, estreitamente, com a a única questão que se coloca nesta Revista e que se radica na qualificação jurídica do tempo dispendido pelo trabalhador Autor entre a sua residência e o seu local de trabalho [aqui encarado em termos latos], quer num sentido, quer noutro, respetivamente antes do início e depois do fim da sua jornada de trabalho, ao volante da sua viatura de serviço.
A esse propósito, dir-se-á, como JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, no excerto transcrito nas conclusões de recurso da recorrente, que, tal tempo de deslocação entre a casa e o trabalho não constitui, por regra, tempo de trabalho, em qualquer uma das modalidades que tem sido considerada pela legislação nacional [cf., por exemplo, o artigo 197.º, que deve, no entanto, ser devidamente concatenado com o disposto nos artigos 198.º, 199.º, 200.º, 213.º e 214.º, todos do Código do Trabalho de 2009] e que tem sido debatida pela doutrina e jurisprudência portuguesa e também por aquela proveniente do TJUE.
As deslocações assinaladas e o tempo habitual ou normal que demoram, não obstante se poderem ainda se considerar conexionados com a atividade subordinada do assalariado, não configuram juridicamente - já, quando se tem como destino as instalações da empregadora onde normalmente se presta serviço ou, ainda, quando se regressa das mesmas, no fim do dia, à residência habitual ou secundária - tempo de trabalho.
Salvo regulamentação coletiva de trabalho ou acordo individual entre empregador e trabalhador que aponte nesse sentido, o tempo de tais deslocações não é tempo de trabalho, não integra o horário de trabalho e o período normal de trabalho nem é pago enquanto tal, em paralelo com o tempo efetivo de prestação de trabalho em concreto pelos trabalhadores em questão.
Pensamos que essas idas e vindas na viatura de serviço se traduzem já num tempo pessoal, particular, que, por exclusão de partes e face aos termos [pouco felizes?] consagrados na lei laboral, pode, em última análise, ser reconduzido já ao período de descanso [diário] referido nos citados artigos 199.º e 214.º do CT/2009.
O Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça, relatado no Processo n.º 1071/21.1T8TMR.E1.S1 pelo Juiz-Conselheiro DOMINGOS MORAIS e apreciado na mesma sessão do presente Aresto [dia 25/9/2024], com recurso a diversa doutrina, discorre acerca da problemática que gira em torno dos conceitos de «tempo de trabalho» e de «tempo de decanso» e da bipartição do tempo com relevância laboral que o legislador do trabalho faz apenas entre essas duas noções ou perspetivas:
«A questão que importa, pois, apreciar é a qualificação jurídica do tempo despendido pelo Autor entre a sua residência e o seu local de trabalho, e vice-versa, respetivamente, antes do início e depois do fim da sua jornada de trabalho.
JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, in Direito do Trabalho, Vol. I, págs. 659 e segts., aludindo ao Acórdão Jaeger do Tribunal de Justiça, escreve: “Uma pura bipartição do tempo entre tempo de trabalho e tempo de descanso, sem que exista qualquer terceira categoria, embora tenha a vantagem da simplicidade, suscita sérios problemas”, que identifica, mas considerando que “o próprio trajecto do local de trabalho para a residência ou domicílio do trabalhador não será normalmente tempo de trabalho”.
FRANCISCO LIBERAL FERNANDES, na obra citada [in “O Trabalho e o Tempo: Comentário ao Código do Trabalho”, Biblioteca RED, 2018, edição online, da Universidade do Porto, consultável em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/111840/2/264530.pdf], no comentário aos artigos 197.º e 199.º do Código do Trabalho, págs. 73 e segts., afirma: “o CT concebe a noção tempo de descanso por contraposição a tempo de trabalho, o que significa que, formalmente, não prevê categorias intermédias ou mistas.”. Como “Consequência desta dicotomia (…), a noção de período de descanso abrange assim o tempo de deslocação para o local de trabalho, o período durante o qual o trabalhador não está a desempenhar efectivamente a sua actividade nem permanece à disposição do empregador”.
E “Embora o tempo gasto na deslocação do domicílio para a empresa ou para o local de trabalho normal ou fixo (e vice-versa) - o local definido pelas partes no contrato ou, na ausência de estipulação, o local onde o trabalhador exerce em termos predominantes as suas funções - seja um período de relativa indisponibilidade para o trabalhador, a respectiva duração não se integra por regra no período normal de trabalho (cf. art. 199º); porém, nada impede que as partes, individual ou colectivamente, estipulem de modo diferente, caso em que passará a ser um período remunerado.”.
[…]
MILENA DA SILVA ROUXINOL e JOANA NUNES VICENTE, in Direito do Trabalho, Relação Individual, 2.ª ed, AA. VV., Almedina, 2023, p. 803) também consideram que “(…) o conceito de tempo de trabalho se inscreve num esquema dito binário, em cujos termos o tempo ou é de trabalho, ou é de repouso, sem tertium genus.”. E acrescentam que esse “(…) sistema binário adotado pelo legislador português deriva do Direito da EU. Com efeito, resulta (atualmente) da referida Diretiva 2003/88/CE, que aquela dupla de conceitos é exclusiva e eles são mutuamente excludentes.”»
A Ré, ao dizer, por um lado, que concorda em que o tempo das deslocações não deve ser visto como tempo de trabalho mas, em simultâneo, defende que aquelas também não se traduzem em uso pessoal da viatura de serviço mas antes em uso profissional, que será, então, uma realidade distinta do tempo de trabalho mas, ainda assim, muito próxima dela, parece sustentar uma classificação jurídica tripartida que não tem acolhimento normativo, dado tal uso ou tempo profissional, segundo a doutrina antes reproduzida e a bipartição temporal aí sustentada, deverá coincidir ainda e em regra com o referido tempo de trabalho, sendo, para este efeito e em geral, uma e a mesma coisa [será juridicamente concebível sustentar um uso profissional da viatura de serviço durante o tempo de descanso do trabalhador, que é como se configura já tal trajeto entre a casa e o local de trabalho e vice-versa?] .
Não nos impressiona, por outro lado, como base de sustentação da qualificação do tempo de deslocação entre a casa e o trabalho e vice-versa como tempo de trabalho ou tempo juridicamente equiparado [utilização ou tempo profissional], que se convoque, para o efeito, o regime especial constante da Lei dos Acidentes de Trabalho, por referência à proteção legal dos sinistrados que sofram acidentes in itinere [cf. artigos 8.º e 9.º desse diploma legal], dado nos parecer que, a não existir a consagração excecional dessa proteção dos trabalhadores no que respeita aos acidentes de trajeto, os mesmos não seriam, em princípio, abrangidos pelas disposições legais da LAT, atenta a sua natureza de tempo de não trabalho [cf. a respeito deste tipo muito específico de acidente de trabalho, JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, “O acidente de trabalho – o acidente in itinere e a sua descaracterização”, Outubro de 2013, 1.ª Edição, Coimbra Editora, páginas 168 e seguintes, quando afirma, por exemplo, que «em primeiro lugar, sublinhe-se que o acidente in itinere é um acidente ocorrido fora do tempo e local de trabalho» ].
Se atendermos ao conceito legal de tal acidente de trajeto - e não obstante a interpretação jurídica bastante generosa e abrangente que a nossa jurisprudência e alguma da nossa doutrina vem fazendo do mesmo e do respetivo regime jurídico -, constatamos que tal qualificação jurídica só pode ser invocada desde que o evento ocorra no percurso normal que se situa entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho, apesar de aquela não ser coartada por «interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito».
Logo, nem toda a deslocação entre a casa e o trabalho ou vice versa se acha amparada e confortada pelo regime legal em questão nem este obriga, de qualquer forma, o trabalhador a seguir tal trajeto legal, nada obstando assim a que o mesmo, por sua exclusiva vontade e interesse ou até por engano ou distração, não satisfaça esses parâmetros e, nessa medida, caia fora do âmbito de aplicação do artigo 9.º da LAT, o que implica que o acidente que então aconteça passe a assumir apenas uma natureza civilística, se for tal o caso ou nem essa, se o sinistro não convocar sequer o instituto da responsabilidade civil.
Logo, entendemos que o regime jurídico do acidente in itinere não permite defender como profissional o tempo de deslocação do aqui Autor entre a sua residência e o seu local de trabalho e vice versa, por referência à utilização de uma viatura de serviço para uso profissional e particular.
Não será despiciendo realçar aqui que o recorrido, entre 1/12/2017 e dia incerto de 20919 se deslocou na dita viatura de serviço, que adquiriu à recorrente e que passou a ser um veículo próprio e pessoal, com todos os seus inerentes custos de manutenção, combustível e portagens e no restante período em que deixou de circular em veículo automóvel [dia indeterminado do ano de 2019 a 26/6/2022], viajou em transportes públicos entre um e outro local, despendendo para o efeito um tempo diário bastante superior ao que ficou provado gastar quando se fazia transportar no referido carro - de serviço ou particular - e que nunca foi encarado pela Ré como deslocações profissionais ou tempo de trabalho.
Concebemos, naturalmente, que as viagens que se iniciem na residência do trabalhador possam ter, desde logo, tal natureza de tempo de trabalho, como será o caso dos vendedores das empresas que saem de sua casa para irem, direta e imediatamente, visitar clientes da sua empregadora ou os motoristas que já estão na posse dos seus veículos de mercadorias, devidamente carregados, e que partem das suas habitações para os seus destinos comerciais ou ainda funcionários que tenham ordens da sua entidade empregadora para prestarem serviços específicos do interesse e em benefício daquela ou desempenharem as suas funções com ponto de partida sediado na sua casa.
Não é o caso dos autos, até por força do que, a esse propósito, foi decidido neste autos, pela 2.ª instância, na primeira fase desta ação.
Não será, com efeito, despiciendo a este respeito e por referência até ao que antes deixámos defendido quanto ao âmbito de aplicação e decisão do incidente de liquidação, citar o que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/6/2022, já transitado em julgado e que encerrou a fase inicial e principal dos presentes autos, argumentou a esse respeito:
«Retira-se destes factos, no essencial, que a atribuição da viatura para utilização diária para uso profissional e pessoal, fazia parte das condições remuneratórias que vigoravam na empresa S..., S.A. para a contratação dos técnicos comerciais/analista de crédito, sendo nesse contexto que foi atribuída viatura ao autor, gerando neste a convicção de que tal era um complemento atribuído pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário, tendo esse factor sido essencial para que aceitasse celebrar o contrato de trabalho com a S..., S.A.. Por via dessa atribuição, desde o início da relação laboral até 30 de Novembro de 2017, ou seja, ao longo de mais de 25 anos, foram-lhe sucessivamente atribuídas viaturas, que sempre utilizou exclusivamente, quer a nível profissional quer a nível pessoal, neste último caso inclusivamente nos períodos em que não se encontrava ao serviço, nomeadamente, nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho, fins-de-semana, férias, feriados e demais momentos de lazer, sempre assumindo as entidades empregadoras que se sucederam e a quem foi sendo transmitido o contrato de trabalho do autor, todas as despesas de impostos, seguros, revisões e manutenções, gasolina, portagens, lavagens e parqueamento inerentes à utilização da referida viatura. Mercê dessa atribuição, ao longo desses anos nunca necessitou de um veículo automóvel a título particular.» [negrito da nossa responsabilidade] [2]
Também, a este respeito, é oportuno transcrever aqui o Parecer do ilustre Procurador Geral Adjunto colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça, quando refere o seguinte:
«Ora, adianta-se, desde já, que se afigura que não assiste razão à recorrente.
Conforme a mesma reconhece, o tempo de deslocação de casa para o trabalho e vice-versa não é tempo de trabalho, à luz da noção legal prevista no art.º 197.º do Código do Trabalho.
A este propósito opinam Milena da Silva Rouxinol e Joana Nunes Vicente que “(…) o conceito de tempo de trabalho se inscreve num esquema dito binário, em cujos termos o tempo ou é de trabalho, ou é de repouso, sem tertium genus.” (em Direito do Trabalho, Relação Individual, 2.ª ed, AA. VV., Almedina, 2023, p. 803). É o que resulta da conjugação do disposto no já citado art.º 197.º e do art.º 199.º, ambos do CT.
E como escrevem, ainda, aquelas autoras, esse “(…) sistema binário adotado pelo legislador português deriva do Direito da EU. Com efeito, resulta (atualmente) da referida Diretiva 2003/88/CE, que aquela dupla de conceitos é exclusiva e eles são mutuamente excludentes.” (obra e local cit.).
Precisamente no mesmo sentido, refere Francisco Liberal Fernandes que “Com a dicotomia tempo de trabalho/tempo de descanso, o legislador nacional excluiu, em princípio, qualquer outra qualificação intermédia ou específica (tertium non datur) (…)” – em O trabalho e o tempo: comentário ao código do trabalho, 2018, edição online, consultável em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/111840/2/264530.pdf
Assim sendo, o tempo de deslocação de casa para o trabalho e vice-versa só pode ser qualificado legalmente como tempo que não é de trabalho.
Mas, insiste a recorrente na afirmação de que a deslocação do autor de casa para o trabalho e vice-versa tem natureza profissional e não pessoal.
Ora, uma deslocação do trabalhador para ter caráter profissional só pode ser determinada pela entidade empregadora, pelo que terá necessariamente de ser realizada no cumprimento de uma ordem emitida no exercício do poder de direção do empregador, nos termos que decorrem dos artigos 11.º e 97.º do CT.
Será, designadamente, o caso da prestação de trabalho ao serviço do empregador como condutor profissional de veículos pesados, seja de passageiros seja de mercadorias, tendo, por isso, o trabalhador a categoria profissional de motorista profissional, ou de deslocações a instalações de clientes para aí ser prestado um serviço ou vendido um produto.
A deslocação da sua residência para o trabalho e deste para aquela é sempre e necessariamente autodeterminada pelo trabalhador, dado que é este quem decide, naturalmente tendo em conta o seu horário de trabalho e a distância a percorrer, em que termos a faz, quer quanto à duração temporal quer quanto ao trajeto a efetuar quer quanto ao meio a utilizar para o efeito.
A tutela infortunística prevista no regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho na Lei 98/2009, de 4 de setembro (a LAT) em nada contende com essa autodeterminação do trabalhador.
Com efeito, a LAT prevê, como se sabe, a proteção legal relativamente aos designados acidentes in itinere, que abrangem, entre outras situações, os acidentes de trajeto entre a residência habitual ou ocasional e o local de trabalho, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, ambos, do art.º 9.º
Todavia, a qualificação do acidente in itinere depende, ainda, da verificação de outros dois requisitos, a saber: que o acidente se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, como se exige naquele n.º 2 do art.º 9.º.
Mas a realização da deslocação pelo trabalhador nessas condições especificamente exigidas pela lei para que, em caso de sinistro, possa operar a proteção legal depende exclusivamente da vontade do sinistrado, não podendo ser imposto por decisão do empregador que o trabalhador realize as suas deslocações naquelas condições. Se o trabalhador o fizer poderá gozar da tutela legal para os acidentes de trajeto e se o não fizer não poderá beneficiar dessa proteção da lei, mas essa verificação está apenas e só dependente da sua vontade.
Assim, o trabalhador pode usar trajetos sempre diferentes, afastando a noção de trajeto normal, e pode fazer interrupções e desvios na sua deslocação que não se enquadrem na extensão da proteção legal prevista no n.º 3 do art.º 9.º. Pode, por exemplo, ir encontrar-se com amigos para conviver, ir realizar atividades lúdicas, ir fazer compras, entre muitas outras possibilidades que a dinâmica da vida proporciona.
Como bem refere Júlio Manuel Vieira Gomes, “(…) o trajeto é normalmente da livre escolha do trabalhador, fora da área de controlo do empregador (…)” – O Acidente de Trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, p. 166.
E é esta autodeterminação que afasta a possibilidade de ter qualquer acolhimento a alegação da recorrente de que essa “deslocação é estritamente profissional”.
Pelo que, também, não merece aceitação a pretensão da recorrente de que se considere que a utilização de viatura de serviço no tempo de deslocação desta natureza não deve considerar-se como utilização pessoal mas sim profissional.
Afigura-se, assim, que carece totalmente de fundamento a pretensão da recorrente.»
Logo, pelo conjunto de argumentos deixados expostos, tem este recurso de Revista de ser julgado improcedente, assim se confirmando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 679.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o presente recurso de Revista interposto pela Ré CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., confirmando-se, nessa medida, o recorrido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
Custas do presente recurso a cargo da recorrente - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
Lisboa, 25 de setembro de 2024
José Eduardo Sapateiro (Relator)
Júlio Gomes
Albertina Pereira
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1. Pensamos que, para a exata e integral compreensão da Factualidade acima reproduzida e dada como assente no Incidente de Liquidação, tem de se convocar uma parte da Matéria de Facto dada como provada e não provada no âmbito do primeiro Acórdão do Tribunal da Relação do Porto e que manteve a Fundamentação de Facto constante da primeira sentença da 1.ª instância prolatada nos autos, traduzindo-se a mesma no seguinte:
«I – FACTOS PROVADOS
1. O Autor foi admitido para trabalhar sob a autoridade e direção da sociedade S..., S.A.
2. Desde essa data, a viatura foi sempre utilizada exclusivamente pelo Autor quer a nível profissional, quer a nível pessoal tendo a S..., S.A. suportado todas as despesas de impostos, seguros, revisões e manutenções, gasolina, portagens, lavagens e parqueamento inerentes à utilização da referida viatura.
3. Inclusivamente nos períodos em que o Autor, não se encontrava ao serviço, nomeadamente, nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho, fins-de- semana, férias, feriados e demais momentos de lazer.
4. Em 30 de dezembro de 2004, verificou-se a fusão com incorporação global do património das sociedades I..., S.A., L..., S.A. e Lu..., S.A., sendo todas integradas na CAIXA LEASING E FACTORING – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. (CLF), ora Ré.
5. Como tal, a transmissão da posição de empregadora para a ora Ré, por efeito da referida fusão, operou-se assumindo esta os direitos e deveres inerentes à relação contratual com o Autor.
6. Pelo que, o Autor não celebrou qualquer contrato de trabalho novo ou renunciou a quaisquer direitos laborais, como tal o respetivo vínculo não sofreu qualquer alteração ou interrupção.
7. Tendo a Ré assumido a categoria, o horário, a retribuição e demais complementos auferidos pelo Autor, nomeadamente, remuneração complementar, isenção de horário de trabalho, subsídio infantil, diuturnidades.
8. Atualmente o Autor detém a categoria de Técnico de grau III.
9. Assim, entre dezembro de 2004 e até 30 de novembro de 2017, ao Autor foram disponibilizadas as seguintes viaturas:
a) TOYOTA COROLLA, cor preta, com a matrícula ... (2007);
b) RENAULT MEGANE, cor branca, com a matrícula ... (2013);
c) RENAULT, cor preta, com a matrícula ... (2014);
d) SEAT LEON ST, 1.6 TDI STYLE, cor cinza, com a matrícula ..-QO-.. (2016).
10. A CAIXA DE CRÉDITO – SOCIEDADE FINANCEIRA PARA AQUISIÇÕES A CRÉDITO, S.A., por via do contrato de cedência celebrado em 13 de Junho de 2015 e, ainda que temporariamente, a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., por via do contrato de cedência celebrado em 15 de Setembro de 2017.
11. No dia 27 de outubro de 2017, pelas 11.50 horas, o Diretor de Recursos Humanos da Ré enviou um e-mail ao Autor com o seguinte teor:
«Bom dia,
Como é do seu conhecimento, no âmbito da atual “Política Corporativa de Viaturas de Serviço”, vigente no Grupo CGD e vertida na Ordem de Serviço n.º 27/2017 da CGD e na Ordem de Serviço n.º 06/2017 da CLF, foram definidas as regras no que respeita à aquisição, composição e gestão do parque de viaturas de serviço da CGD e das Empresas do Grupo do Perímetro Doméstico, bem como à atribuição e cessação do respetivo uso, não estando previsto no ponto 4.3. dos normativos a disponibilização de viaturas de serviço a colaboradores com as categorias/funções não indicadas nos quatro escalões.
Assim, deverá proceder ao cumprimento dos termos fixados nos normativos em vigor.
Para o efeito, informamos que a viatura poderá ser entregue a partir do próximo dia 31, após contacto prévio do S..., para assegurar os procedimentos logísticos necessários à recolha da viatura”.
12. No mesmo dia (27 de outubro de 2017), pelas 17.01 horas, o Diretor de Recursos Humanos da Ré enviou um novo e-mail ao Autor com o seguinte teor:
«No seguimento da comunicação hoje efetuada, quanto à devolução da viatura, informamos que a VIA VERDE e o Cartão de Combustível Frota deverão ser entregues ao DGF – Departamento de Gestão de Fornecedores, até ao próximo dia 31 de Outubro.».
13. O Autor adquiriu a viatura que lhe estava atribuída, SEAT LEON St 1.6 TDI STYLE, cor cinza, com a matrícula ..-QO-...
14. No final de novembro de 2017, o Autor, de acordo com as instruções recebidas, procedeu à entrega do cartão GALP FROTA, cartão de acesso ao Parque de estacionamento, tendo apenas solicitado a manutenção do identificador da VIA VERDE.
15. No entanto, após a aquisição do veículo pelo Autor e no decurso do contrato de cedência com a CGD apenas lhe foram liquidadas as despesas referentes aos quilómetros e portagens, entre novembro 2017 a janeiro de 2019.
16. A Ré atribuiu ao Autor a quantia mensal de € 173,55, para as suas deslocações.
Do julgamento:
17. O Autor foi admitido para trabalhar sob a autoridade e direção da sociedade S..., S.A., em 22 de junho de 1992, para a delegação do ... por tempo indeterminado e para desempenhar as funções inerentes à categoria de técnico comercial/analista de crédito.
18. No âmbito das condições remuneratórias inerentes ao contrato celebrado e no próprio dia 22 de junho de 1992 foi-lhe atribuída uma viatura para uso profissional e pessoal, de marca OPEL, modelo CORSA.
19. Desde essa data, a viatura foi sempre utilizada exclusivamente pelo Autor quer a nível profissional, quer a nível pessoal tendo a S..., S.A. suportado todas as despesas de impostos, seguros, revisões e manutenções, gasolina, portagens, lavagens e parqueamento inerentes à utilização da referida viatura,
20. Inclusivamente nos períodos em que o Autor, não se encontrava ao serviço, nomeadamente, nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho, fins-de-semana, férias, feriados e demais momentos de lazer, a viatura era exclusivamente utilizada por este.
21. A atribuição da viatura para utilização diária para uso profissional e pessoal, fazia parte das condições remuneratórias que vigoravam na empresa S..., S.A. para a contratação dos técnicos comerciais/analista de crédito.
22. Atribuição que foi efetuada ao Autor, nesse contexto, e sem qualquer enquadramento normativo, nomeadamente regulamentos internos, gerando no Autor a convicção de que a disponibilização da viatura de afetação profissional e pessoal era um complemento atribuído pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário.
23. Entre junho de 1992 e setembro 1995, ao Autor foram atribuídas pelo menos 3 viaturas, sendo uma um OPEL CORSA preto e posteriormente em sua substituição um Ford ESCORT CABRIOLET de cor branca e em substituição deste último um VOLKSWAGEN GOLF de cor preta, que o Autor as utilizou exclusivamente e ininterruptamente, quer na vida profissional, quer na vida pessoal.
24. Incluindo no gozo das licenças quer do seu primeiro casamento ocorrido em ... de abril de 1994, quer do segundo casamento ocorrido em ... agosto de 2006 e no gozo das licenças de parentalidade das suas duas filhas, CC (1998) e DD (2013)
25. A partir de meados de outubro de 1995, a S..., S.A. cedeu os seus funcionários à L..., S.A.
26. O Autor transitou então para a referida sociedade, sem prejuízo da antiguidade reportada a 22 de junho de 1992 e demais retribuições pecuniárias, nomeadamente a mesma viatura que lhe havia sido atribuída e que continuou a utilizar como sempre o fizera na S..., S.A..
27. No âmbito da L..., S.A. foram-lhe atribuídos, pelo menos, dois veículos novos, sendo um de marca Mitsubishi, modelo LANCER de cor verde, para substituição de outro anterior (WOLKSWAGEN GOLF de cor preta) e posteriormente, em sua substituição um de marca TOYOTA, modelo COROLLA, de matrícula ..-..-XA.
28. Na sequência da fusão a ora Ré continuou a assegurar ao Autor a sua retribuição e demais complementos remuneratórios, entre eles, uma viatura para uso profissional e pessoal, no caso de marca TOYOTA, modelo COROLLA, de matrícula ..-..-XA.
29. Entre dezembro de 2004 e até 30 de novembro de 2017, ao Autor foram disponibilizadas, para além das referidas em 9) as seguintes viaturas:
a) TOYOTA COROLLA SW, cor preta, com a matrícula ..-..-XA (2004);
b) RENAULT CLIO SW, cor branca, com a matrícula ... (2010);
c) RENAULT MEGANE, cor mel, com a matrícula ... (2012);
30. As quais, continuaram a ser sempre utilizadas exclusivamente pelo Autor quer a nível profissional, quer a nível pessoal tendo a CLF ou as empresas a quem esta cedeu o Autor, na qualidade de seu trabalhador, continuado a respeitar as condições remuneratórias atribuídas ao Autor pela S..., S.A..
31. Nomeadamente, a CAIXA DE CRÉDITO – SOCIEDADE FINANCEIRA PARA AQUISIÇÕES A CRÉDITO, S.A., por via do contrato de cedência celebrado em 13 de junho de 2015.
32. E, ainda que temporariamente, a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., por via do contrato de cedência celebrado em 15 de setembro de 2017.
33. Disponibilizando-lhe sempre uma viatura de afetação para uso profissional e pessoal, suportando todas as despesas inerentes à utilização da mesma, nomeadamente, impostos, seguros, revisões e manutenções, pneus, lavagens, gasolina através de um cartão GALP FROTA, portagens através da atribuição de um identificador da via verde, inclusive lugar de estacionamento pago a 150 metros seu local de trabalho, sem qualquer limite.
34. Quer nos períodos em que o Autor se encontrava de serviço, quer nos períodos em que o Autor não se encontrava ao serviço, nomeadamente, nos dias normais de trabalho após o horário de trabalho, fins-de-semana, férias, feriados e demais momentos de lazer.
35. Continuando a gerar no Autor, à semelhança dos seus colegas, a convicção de que a disponibilização da viatura de afetação profissional e pessoal era um complemento atribuído pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário.
36. Este complemento salarial, foi sempre disponibilizado ao Autor inicialmente pela S..., S.A., posteriormente pela L..., S.A. e após pela Ré bem como pelas sociedades a quem o Autor, na qualidade de trabalhador da Ré foi cedido, desde o ano da contratação, ou seja, há mais de 27 anos.
37. Em resultado da proposta de contrato de trabalho efetuada pela Ré (à data S..., S.A.) ao Autor há mais de 27 anos e por este aceite.
38. O referido complemento salarial foi e é um elemento essencial para que o Autor aceitasse celebrar o contrato de trabalho com a S..., S.A..
39. Este complemento foi sempre integralmente cumprido quer pela S..., S.A., quer pela L..., S.A., quer pela ora Ré (CLF), quer pelas sociedades a quem o Autor foi cedido enquanto trabalhador da CLF, até 30 de novembro de 2017, de forma mensal e ininterrupta, reiterada e sem reservas, mesmo nos períodos de licença de casamento e parental do Autor e independentemente da categoria e das funções atribuída ao Autor.
40. Gerando na Autor a convicção de que o referido complemento salarial constituí parte do seu salário.
41. Com o qual o Autor conta mensalmente e há mais de 25 anos para fazer face aos seus compromissos mensais, familiares e demais atividades de lazer.
42. De tal forma que o Autor durante este período (junho de 1992 a 30 de novembro de 2017) nunca necessitou de um veículo automóvel a título particular.
43. Quando o Autor se encontrava privado da utilização das referidas viaturas por questões inerentes à manutenção das mesmas ou por qualquer outro motivo, era-lhe prontamente disponibilizada uma viatura de substituição para seu uso exclusivo quer a nível profissional, quer a nível pessoal, sem qualquer custo.
44. Desde o ano de 2000, o domicílio pessoal do Autor é na cidade de ....
45. Correndo os encargos de manutenção ou reparação da viatura substituída por conta dos empregadores, inicialmente S..., S.A. e posteriormente a L..., S.A. e após a Ré ou das sociedades a quem prestava serviço no âmbito dos contratos de cedências.
46. Nos contratos de cedência celebrados com o Autor, a viatura que lhe estava atribuída acompanhava o Autor nas suas novas funções e para seu uso profissional e pessoal.
47. Sempre que o Autor tivesse de incorrer em alguma despesa quer no uso da viatura de substituição, quer no uso da viatura substituída, nomeadamente, gasolina, parques, inspeção periódica ou lavagens, a mesma era reembolsada quer pela Ré, quer pelas sociedades a quem o Autor foi cedido enquanto trabalhador da CLF, não suportando o Autor qualquer custo efetivo pela utilização das mesmas.
48. Sendo esta a realidade do Autor há mais de 25 anos.
49. Em consequência do referido em 11) e 12), o Autor viu-se “forçado” a adquirir uma viatura para efetuar as suas deslocações quer pessoais, quer profissionais, nomeadamente para efetuar a sua deslocação diária de ..., onde reside, para o ... onde tinha e tem o seu domicílio profissional.
50. A atribuição de viatura para utilização quer profissional quer pessoal pela Ré no âmbito do contrato de trabalho existente com o Autor manteve-se inalterada até final de novembro de 2017.
51. Data a partir da qual a Ré, não mais disponibilizou ao Autor, viatura para a sua utilização exclusiva, quer para uso profissional, quer para uso pessoal, não mais disponibilizou o lugar de estacionamento para uso do Autor, sito no parque ..., no ....
52. Retirando unilateralmente o valor do complemento mensal variável, de valor não apurado e com o qual se locupletou.
53. O Autor vendeu o seu veículo referido em 13) em 2019.
54. Após julho de 2019 o Autor regressou à CLF, mantendo o seu domicílio profissional no ....
55. O passe para que o Autor se desloque de ... ao ... para trabalhar tem um custo de € 179,30.
56. a 73. […]
Factos não provados:
a) Que a Ré retirou ao Autor um valor mensal não inferior a € 800,00, sendo:
1. € 350,00, mensais correspondentes à utilização nas horas em que a Autor. Não está ao serviço da Ré, englobando dias úteis, fins de semana, feriados, férias e demais momentos de lazer;
2. € 250,00, de custo mensais de combustível inerente à utilização;
3. €125,00, de custo mensal de portagens inerente à utilização;
4. €50,00, de custo mensal de seguro inerente à utilização;
5. €25,00, de custo mensal de parque de estacionamento inerente à utilização;
b) Que o Autor vendeu o veículo referido em 13) em janeiro de 2019;
c) a j) […]
l) Que aquando da admissão do Autor à L..., S.A., em 1 de abril de 1996, a atribuição da viatura ficou a constar da carta de admissão de fls. 81 e 82, dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
m) […]
n) […]
o) Que a viaturas de serviço que o Autor utilizou sempre lhe foram atribuídas de forma precária e o uso que o Autor possa ter feito na sua vida privada constituiu uma tolerância da Ré, uma mera liberalidade;
p) Que nunca a Ré ou as outras entidades assumiu com o Autor qualquer obrigação de lhe disponibilizar uma qualquer viatura para uso privado/pessoal;
q) Que o Autor bem sabia que a viatura em causa podia deixar de lhe ser atribuída a qualquer momento e, consequentemente, sabia que qualquer utilização que o Autor fizesse da mesma na sua vida pessoal sempre teria um caracter meramente precário;»↩︎
2. Se quisermos buscar doutrina que vai nesse preciso sentido, deparamo-nos com o estudo de FILIPE FRAÚSTO DA SILVA, intitulado “Reflexões em torno do valor do uso pessoal da viatura da empresa que integre a retribuição do trabalhador”, que se encontra a páginas 947 a 947 a 976 da obra coletiva “PARA JORGE LEITE – ESCRITOS JURÍDICO-LABORAIS”, Volume I, Coordenação de João Reis, Leal Amado, Liberal Fernandes e Regina Redinha, Outubro de 2014, 1.ª Edição, Coimbra Editora [«O valor da retribuição em espécie consubstanciada na utilização de viatura de empresa é, segundo a jurisprudência, o correspondente ao benefício obtido pelo trabalhador por via do seu uso pessoal ou particular, seja nas suas deslocações entre residência e local de trabalho, seja nas deslocações pós-laborais, em fins-de-semana, em férias, etc..»] [negrito da nossa responsabilidade]↩︎