JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
ARGUIDO PRESO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

I - Ocorre nulidade insanável, prevista no artigo 119º, al. c), do C. P. Penal, se a audiência de discussão e julgamento foi realizada, na sua totalidade, na ausência do arguido e à sua revelia, estando este preso preventivamente no Estabelecimento Prisional e não tendo sido conduzido ao Tribunal por motivo de greve dos serviços prisionais.
II - A audiência podia iniciar-se sem a presença do arguido, não existindo impedimento legal a que tal acontecesse, conquanto ficasse assegurado o direito de o arguido vir a comparecer na audiência e a prestar declarações até ao respetivo encerramento, devendo ser designada nova data para o efeito, só desse modo podendo ser assegurados ao arguido os direitos de audição, efetiva defesa e ao contraditório.
III - A circunstância que determinou a não comparência do arguido na 1ª sessão da audiência de julgamento, à qual é totalmente alheio, não difere daquela em que, por motivo de doença, o arguido fica impossibilitado de comparecer na audiência, podendo esta ter início, na sua ausência, nos termos previstos no artigo 333º, nº 1, a contrario sensu, e nº 2, do C. P. Penal.
IV - Porém, na concreta situação ocorrida nos autos, e visto o motivo que determinou a falta de comparência do arguido na 1ª sessão da audiência de julgamento, tinha de lhe ser assegurado o direito de estar presente e de ser ouvido, devendo, para o efeito, ser designada data, para a continuação da audiência, o arguido ser dela notificado e diligenciar-se pela sua comparência.

Texto Integral



Acordam, em conferência, na Secção Criminal (2.ª Subsecção), do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, n.º 340/21.5GBCCH, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Coruche, foi submetido a julgamento, com a intervenção do tribunal singular, o arguido C (…), melhor identificado nos autos, acusado da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.ºs 1, alíneas a) e f) e 2, al. e), por referência ao disposto no artigo 202º, al. d), todos do Código Penal.
1.2. Realizado o julgamento, na ausência do arguido, estando o mesmo preso preventivamente no EP de Lisboa, à ordem de outro processo, foi proferida sentença, em 22/02/2024 – a qual foi depositada e notificada ao arguido nessa mesma data –, decidindo:
«(…) julga-se a acusação do Ministério Público procedente por provada e, em consequência, decide-se:
a) Condenar o arguido C, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203º, 204º, nº 2, alínea e), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
b) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela demandante M contra o demandado parcialmente procedente, e em consequência condena-se o demandado C no pagamento à demandante da quantia de € 2.624,29 (dois mil seiscentos e vinte e quatro euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos por esta, em virtude da prática do crime praticado, com custas a cargo do demandado e da demandante na proporção do decaimento.
c) Condenar o arguido no pagamento de 2 U.C.´s de taxa de justiça, e a suportar os demais encargos decorrentes com o processo.
(…).»

1.3. Inconformado, o arguido interpôs recurso para este Tribunal da Relação, apresentando a respetiva motivação da qual extraiu as seguintes conclusões:
«1- O arguido está preso no EP Lisboa há mais de um ano; em 14-2-2024 conforme consta da Acta de Audiência a Ilustre Defensora pugnou para que se designasse dia e hora para que o arguido fosse ouvido.
2- O EP Lisboa não transportou o arguido ao Tribunal a fim de assistir ao julgamento porque o Sindicato determinou GREVE; a MMa. Juiza a quo realizou o julgamento, não quis ver nem ouvir o arguido e decidiu condená-lo em 22-2-2024 a 2 anos e 6 meses de prisão; sem ver nem ouvir o arguido, sem garantir o direito de defesa, sem propiciar o Princípio do Contraditório condenou-se o arguido e pronto!
3- O Tribunal a quo não respeitou o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não cumpriu as regras de "… exame equitativo da causa, de acesso ao Tribunal, a ser ouvido, a defender-se, a dispor do tempo necessário…” artº 6º - 1 e b), c) e d) da CEDH, o Tribunal julgou in absentia e condenou!!!!
4- O julgamento realizou-se sem que o arguido tivesse tido conhecimento pessoal, directo ou indirecto, das provas apresentadas, sem ver nem ser aconselhado pela Ilustre Defensora, sem conhecimento pessoal e ou sequer informado…
5- Inexistiu defesa efectiva!!! todo o processado 14-2-2024 até hoje é nulo, de nenhum efeito ou INEXISTENTE pois ocorreu preterição de formalidades legais como o dever de informar, de notificar, o direito de estar presente, de se defender e impugnar toda e qualquer decisão desfavorável; é assim no direito administrativo; e no direito processual penal e em Coruche não pode ser diferente.
6- Ao abrigo dos artigos 5º-1 da Decisão Quadro 2002/584/JAI, 6º- I da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 32º da Lei Fundamental, o Tribunal deve ordenar a realização de NOVO JULGAMENTO: o arguido não foi levado ao Tribunal nem ouvido em julgamento; nunca foi informado que estava em curso o julgamento in absentia entre 14 e 22-2-2024.
7- O arguido não beneficiou de um julgamento justo para estar presente e defender-se. Não teve acesso a um Tribunal sob o artº 6º- 1 da CEDH; o Tribunal deveria ter alertado o arguido para o facto de que estava a correr julgamento e que poderia deveria ser ouvido no mesmo para se defender…numa segunda sessão...
8- O artº 6º -1 da Convenção garante a todos o direito a um Tribunal; o direito de defesa do arguido não foi acautelado pelo Estado Português.
9- O Tribunal não informou o arguido que estava a realizar o julgamento "in absentia".; o arguido foi privado de defesa e do dever de informação por parte do Tribunal. O processo não foi justo nem equitativo;
10- Num caso em que um individuo havia sido condenado in absentia o TEDH considerou que em matéria de acesso a um Tribunal importa que as regras relativas às possibilidades de recurso e aos prazos estejam definidas com clareza, mas também, que sejam levadas ao conhecimento dos interessados do modo mais explicito possível, de modo a que estas possam delas fazer uso de acordo com a Lei:
11- No caso FANIEL contra a Bélgica o Tribunal Europeu decidiu que:
30. De l'avis de la Cour, ce qui importe en matiêre d'accês à un tribunal, c'est non seulement que les rêgles concernant, entre autres, les possibilités des voies de recours et les délais soient posées avec clarté, mais qu'elles soient aussi portées à la connaissance des justiciables de la maniêre la plus explicite possible, afin que ceux-ci puissent en faire usage conformémentà la loi. II en est particuliêrement ainsi lorsqu'une personne qui a été condamnée par défautest détenue ou n'est pas représentée par un avocat lorsqu'elle reçoit notification d'un jugement de condamnation : elle doit pouvoir être immédiatement informéede maniêre fiable et officielle des possibilités de recours et des délais d'introduction. II ne s'agit pas d'interpréter le droit ni de prodiguer des conseils que seul un avocat peutfaire, mais d'indiquer le suivi qui peut être donné à unjugement.... TEDH.• affaire 11892/08 de 1-3-2011 in https://hudoc.echr.coe.int/eng#{0/022itemid%22:[%22001-1037150/022]}
em Português:
30. Na opinião do Tribunal, o que é importante em termos de acesso a um tribunal não é apenas que as regras relativas, inter alia, à disponibilidade de recursos e prazos sejam claramente estabelecidas, mas que eles também sejam levados ao conhecimento dos litigantes da maneira mais explicita possível para que possam usá-los de acordo com a lei. Este é particularmente o caso quando uma pessoa que foi condenada por padrão é detida ou não é representada por um advogado quando recebe notificação de uma sentença de condenação: ele deve poder ser imediatamente informado de maneira confiável e oficial das possibilidades de recurso e prazos para introdução. Não se trata de interpretar o direito nem de dar o aconselhamento que apenas um advogado pode fazer, mas informar do seguimento que pode dar-se ao processo após a sentença...
12- Num outro caso em que um cidadão Português de nome R foi preso na Alemanha, a Bélgica foi condenada por não indicar ao mesmo as formalidades a respeitar para formar oposição à Decisão do Tribunal - proc. 50049/09 de 24-8-2007- affaire R contra Bélgica - publicado em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-806090/022]}
13- O Tribunal decidiu realizar o julgamento sem que o arguido tivesse sido notificado pessoalmente para estar presente.
14- lnexistiu defesa efectiva: mais grave que tudo isto é o facto de o Tribunal ter conhecimento do paradeiro do arguido limitando-se a proferir Decisão condenatória, sem dar ao arguido a garantia de ser ouvido pessoalmente !!!!.
15- O Tribunal podia e deveria ter adiado o julgamento face ao conhecimento oficioso do paradeiro do arguido numa cela fria e húmida do EPL e, só após este ter sido informado da data e local do julgamento, é que deveria designar data e hora a fim de este estar presente e defender-se; todo o processado desde 14-2-2024 até hoje deve ser declarado nulo, de nenhum efeito ou INEXISTENTE; a Convenção Europeia dos Direitos do Homem é direito positivo Português à luz do artº 8º da C.R.P.;
16- No caso "DRIDI contra Alemanha" - affaire 35778/11- o Tribunal Europeu condenou pela violação do artº 6º- I da Convenção porque o queixoso não teve oportunidade de ser ouvido no julgamento nem uma defesa efectiva;
17- No affaire ARTICO contra ITÁLIA - proc. 6694/74 de 13-5-1980 - o Tribunal Europeu condenou pela falta de defesa efectiva relembrando que:
§33 "La Cour rappelle que le but de la Convention consiste a proteger des droits non pas théoriques ou illusoires mais concrets et effectifs ,,, l'article 6 par.3c) (art. 6-3-c). parle d' "assistente " et non de "nominatin”…
em Português:
"a Corte lembra que o fim da Convenção consiste em proteger os direitos não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efectivos...o artigo 6 par 3c) (art. 6-3-c) refere "assistência" e não "nomeação"
18- Nomear um defensor é diferente de ter uma defesa efectiva real e concreta!!! Na verdade, o artº 6º da Convenção Europeia impõe que:
Direito a um processo equitativo
l. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial.
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e deforma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação no interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação
19- "A presença do arguido em audiência de julgamento é um direito que lhe assiste - art 32-1 e 6 da CRP que decorre da: Convenção Europeia Direitos Homem- art. 6º-3 - c), da Declaração Universal Direitos Homem - art. 10º do Pacto Internacional S. Direitos Civis e Políticos - art. 14º - 3 - d), e da CRP: artº 32º, normas vinculantes na Ordem jurídica Portuguesa como resulta do artigo 16º da CRP - que impõem que o julgamento não ocorra in absentia.
20- A realização de julgamento conduz à NULIDADE do PROCESSADO desde 14-2-2024 até hoje: arts. 61-1-a), 119-c) 333-1 e 334 do CPP; a ausência do arguido determinava que o Tribunal considerasse indispensável a sua presença em Julgamento na Acta de 14-2-2024.
21- Os arts. 119- c) e 61- 1 - a) do CPP mostram-se violados no caso sub judice: a realização do julgamento na ausência do arguido é acto inútil; os actos-sessão de julgamento, prolacção da Sentença condenatória, leitura e depósito constituem igualmente actos inúteis. Daí a nulidade do processado desde 14-2-2024 por manifesta violação do Princípio da Defesa, do Contraditório e da obrigatoriedade da presença do arguido em julgamento. Há concluir pela INVALIDADE DO JULGAMENTO E da DECISÃO CONDENATÓRIA...
22- No mesmo sentido o Acórdão da Relação Lisboa de 24-9-2003: - Proc 22288/ 2003- Y Secção in www.dgsi.pr/tr1.nsf/33182: 0 ARGUIDO NUNCA RENUNCIOU AO DIREITO DE ESTAR PRESENTE NA AUDIÊNCIA; O JULGAMENTO OPERADO NA SUA AUSÊNCIA VIOLOU O ARTO 6º - 1 DA CONVENÇÃO EUROPEIA - Caso T.C. # Itália 1992.10.12; acórdão do TRL de 16-12-2002, Proc. 0069093 in dgsi.pt:
23- O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decidiu em 13-5-1980 num caso similar que, inexistindo "defesa-assistência judiciária efectiva", a Itália deveria ser condenada conforme "AFFAIRE ARTICO c. ITALIE ", Requête no 6694/74, ARRÊT STRASBOURG de 13-5-5 1980:
Face ao exposto é óbvio que o Tribunal a quo não respeitou os Princípios da Presunção de Inocência, da Defesa e do Contraditório.
Deve ser declarado nulo o processado, impondo-se uma audiência no Tribunal da Relação de Lisboa onde o recorrente deve ser ouvido e confrontado com a Acusação e indicações das provas do Ministério Público, em obediência aos Princípios da Presunção de Inocência, da Defesa efectiva, do Contraditório, como impõem os arts. 20º e 32º da Lei Fundamental, 5º e 6º da Convenção Europeia e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Normas violadas: arts. 6º da CEDH, 61-1-a), 333 e 334 do CPP; o Tribunal a quo realizou o julgamento sem o arguido estar presente; o arguido entende que deveria ser adiado a fim de ali comparecer e ser ouvido e defender-se.
Revogando a Sentença e declarando a nulidade do processado V. Exas Venerandos Desembargadores farão a mais Lidima Justiça!»

1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta pronunciando-se no sentido de deve ser negado provimento ao recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1- Nos presentes autos, o arguido C foi condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203º, 204º, nº 2, alínea e), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2- Insurge-se o arguido/recorrente contra a sentença proferida, designadamente, pelo facto de o arguido não ter sido ouvido em audiência de discussão e julgamento, violando assim o princípio do contraditório, da presunção de inocência e da defesa efetiva do arguido.
3- Para tanto, alega em síntese que, a Mma. Juiz a quo decidiu realizar o julgamento na ausência do arguido, não quis ver nem ouvir o arguido e decidiu condená-lo em 22-2-2024 a 2 anos e 6 meses de prisão. Sem ver nem ouvir o arguido, sem garantir o direito de defesa, sem propiciar o Princípio do Contraditório.
4- No entanto, entendemos que não lhe assiste razão, pois que, resulta da ata de discussão e julgamento do dia 14 de fevereiro de 2024, que a I. Defensora daquele, não se opôs ao início da respetiva audiência sem a presença do arguido e que, a final, prescindiu da requerida audição do arguido.
5- Neste âmbito, estabelece o artigo 333.º, do Código Processo Penal, o seguinte:
2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º.
3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º”.
6- No caso em apreço, temos que, a I. Defensora do arguido, no uso da prerrogativa que lhe assiste, entendeu não ser necessária a audição do arguido, razão pela qual, prescindiu da mesma.
7-Assim, entendemos que inexistiu qualquer nulidade do processado e bem assim, qualquer violação dos princípios do contraditório, da presunção de inocência e da defesa efetiva do arguido, pelo que, a sentença recorrida deverá manter-se na íntegra.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra, só assim se fazendo a INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!»

1.5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não dever merecer provimento, por não merecer reparo a decisão recorrida, aderindo à fundamentação expendida pelo Ministério Público, na 1.ª instância, na resposta ao recurso.
1.6. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, o recorrente exerceu o direito de resposta, reiterando o alegado na motivação do recurso e concluindo nos mesmos termos.
1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigo 412º, n.º 1 do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões extraídas da motivação de recurso apresentada pelo arguido/recorrente, a questão suscitada é a de saber se foi cometida uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, por a audiência de julgamento se ter realizado, na ausência do arguido e à sua revelia, estando preso preventivamente no Estabelecimento Prisional e não tendo sido conduzido ao Tribunal, por motivo de greve dos serviços prisionais.

2.2. Com relevância para a apreciação da questão da nulidade suscitada, colhem-se nos autos, os seguintes elementos/ocorrências processuais:
a) No dia 04/07/2023, o arguido, ora recorrente, prestou Termo de Identidade e Residência nos autos, indicando como morada para efeito de notificações: Rua (…..) (cf. fls. 208);
b) Seguindo o processo os seus trâmites legais, recebida a acusação deduzida pelo Ministério Público, contra o arguido, foram designadas datas para a realização da audiência de discussão e julgamento, concretamente, 1.ª data, o dia 14/02/2024, pelas 14:00 horas; e 2.ª data, nos termos dos artigos 312º, n.º 2 e 333º, n.ºs 1 e 3, ambos do CPP, o dia 19/02/2024, pelas 14.00 horas (cf. Citius Ref. 95004919).
c) Existindo informação nos autos de que o arguido/recorrente se encontrava preso preventivamente, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, à ordem de outro processo, foi o mesmo pessoalmente notificado, pelos Serviços Prisionais, em 09/01/2024, das datas designadas para a realização da audiência de julgamento (cf. Citius Ref. 10321046).
d) Na 1ª data designada para a realização da audiência de julgamento, os Serviços Prisionais, não conduziram o arguido/recorrente a Tribunal, por motivo de greve, decretada pelo Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, conforme comunicação efetuada aos autos e exarada na ata da audiência de julgamento (cf. Citius Ref. 95695689).
e) A 1.ª sessão da audiência de julgamento teve lugar na ausência do arguido/recorrente, ficando a sua não comparência a dever-se ao motivo enunciado em d).
- Tendo o Ministério Público promovido que a audiência se iniciasse na ausência do arguido, ao que a Ilustre defensora oficiosa não se opôs, requerendo, no entanto, que fosse designada data para a audição do arguido.
- Pela Exma. Juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento foi decidido dar início à mesma sem a presença do arguido, nos termos do disposto artigo 333º do Código de Processo Penal e que, oportunamente, seria designada data para a sua audição.
- Ainda nessa 1.ª sessão da audiência de julgamento, finda a produção da prova testemunhal, pela Il. defensora do arguido/recorrente foi dito prescindir da requerida audição do arguido.
- Nessa sequência foram produzidas as alegações orais e, após foi designada, para a continuação da audiência de julgamento, com a leitura da sentença, o dia 22 de fevereiro de 2024, pelas 14.00 horas (cf. Citius Ref. 95695689).
f) A sentença foi lida no dia 22/02/2024, não tendo o arguido/recorrente sido notificado dessa data, por isso, não tendo estado presente, nesse ato (cf. Citius Ref. 95785845).

2.3. Conhecimento do mérito recurso
Como supra referimos, a questão suscitada no recurso em apreço é a de saber se foi cometida uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, por a audiência de julgamento se ter realizado, na ausência do arguido e à sua revelia, estando o mesmo preso preventivamente no Estabelecimento Prisional e não tendo sido conduzido ao Tribunal, por motivo de greve dos serviços prisionais.
Defende o arguido/recorrente que tendo a audiência de discussão e julgamento sido realizada na sua ausência e considerando o motivo da sua não comparência, sem que fosse informado de que estava em curso o julgamento, in absentia, não lhe sendo assegurado o direito de ser ouvido, com a consequente violação do princípio do contraditório, da presunção de inocência e da defesa efetiva, consagrados nos artigos 20º e 32º da CRP, 5º e 6º da CEDH e 11º da DUDH, foi cometida a uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, n.º 1, al. c), do CPP.
Pugna o arguido/recorrente para que em decorrência da assinalada nulidade, seja declarada a invalidade das sessões de julgamento e da sentença recorrida e designada data para a audiência, assegurando-se o direito de audição do arguido.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao arguido/recorrente, uma vez que a Il. Defensora do arguido, não se opôs ao início da respetiva audiência sem a presença do mesmo e conquanto tivesse requerido que o mesmo fosse ouvido em data a designar, a final, após a produção da prova, prescindiu da requerida audição do arguido, o que fez no uso da prerrogativa que lhe assiste, pelo que, não se verifica a invocada nulidade e, como tal, a sentença recorrida deve ser mantida.
Vejamos:
A regra geral é a da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, conforme previsto no artigo 332º, n.º 2, do CPP.
As exceções a tal regra, em que a audiência pode decorrer na ausência do arguido, encontram-se previstas nos artigos 333.º, n.ºs 1 e 2 e 334.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
O artigo 333º do CPP e que aqui nos importa considerar, epigrafado de “Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência”, dispõe:
«1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas e ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º.
3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do nº 2 do artigo 312º.
4. O disposto nos artigos anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do n.º 2 do artigo 334º.
(…).»
A realização da audiência de julgamento, na ausência do arguido, pressupõe sempre que este esteja regular e devidamente notificado para nela comparecer.
O que decorre, desde logo, do direito que o arguido tem de estar presente em todos os atos processuais que diretamente lhe disserem respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência, conforme estatuído nos artigos 61º, n.º 1, alínea a) e 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Na situação em que o julgamento tenha inicio na ausência do arguido, na data para que foi notificado, nos termos previstos no n.º 2, do artigo 333º do CPP, caso seja(m) designada(s) nova(s) data(s) para a sua continuação, o arguido tem de ser notificado dessa(s) nova(s) data(s), sem o que, se impediria, na prática, a materialização, daqueles direitos[1]
E a lei comina com a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, a ausência do arguido, na audiência de julgamento – entenda-se a qualquer das sessões que tenham lugar, incluindo a da leitura da sentença, assistindo-lhe o direito de estar presente – quando essa ausência se verifique, não estando o arguido devida e regularmente notificado da(s) data(s) designada(s) para a respetiva realização.
A audiência de julgamento pode iniciar-se, na ausência do arguido, nos termos previstos no artigo 333º, n.º 2, do CPP e pode mesmo ser concluída sem que o arguido esteja presente, designadamente, se ocorrer na primeira data marcada e o mandatário ou o defensor do arguido não requerer que este último seja ouvido na segunda data designada pelo juiz, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 333º do CPP, mas desde que o arguido esteja devida e regularmente notificado da data designada para a realização da audiência (cf. n.º 10 do artigo 113º do CPP), sendo-lhe, dessa forma, assegurado o direito de comparência e de prestar declarações até ao encerramento da audiência.
Nos casos em que o tribunal considere não ser indispensável à descoberta da verdade a presença do arguido desde o início da audiência e que esta pode começar na sua ausência, não é cometida qualquer ilegalidade, nem se verifica qualquer invalidade da sessão da audiência realizada, por não terem sido tomadas medidas para assegurar a presença do arguido.
Neste contexto e baixando ao caso dos autos:
Tendo o arguido/recorrente sido notificado da 1.ª data designada para a realização da audiência de discussão e julgamento, o dia 14/02/2024, notificação essa efetuada na sequência de requisição dirigida ao diretor do estabelecimento prisional onde o arguido se encontrava preso preventivamente, à ordem de outro processo, nos termos do disposto no artigo 114º, n.º 1, do CPP, ocorreu que o arguido não foi, naquela data, conduzido ao tribunal, pelos serviços prisionais por motivo de greve destes serviços.
A não comparência do arguido/recorrente na audiência de julgamento, na data de 14/02/2024, ficou, pois, a dever-se a razões que lhe não são imputáveis e às quais é totalmente alheio.
Tendo o arguido o direito de estar presente desde o início da audiência de julgamento, a questão que se coloca é a de saber se, na concreta situação ocorrida no presente caso, podia a audiência iniciar-se sem a presença do arguido, por determinação do tribunal, que considerou não ser essa presença, desde o inicio da audiência, absolutamente indispensável à descoberta da verdade, nos termos previstos no artigo 333º, n.º 2, do CPP, o que não foi posto em causa pela Il. defensora oficiosa nomeada ao arguido, não se tendo oposto ao início da audiência.
Entendemos que a enunciada questão merece resposta positiva, ou seja, que a audiência podia iniciar-se sem a presença do arguido, não existindo impedimento legal a que tal acontecesse, conquanto ficasse assegurado o direito de o arguido vir a comparecer na audiência e a prestar declarações até ao respetivo encerramento, devendo ser designada nova data para o efeito, só desse modo podendo ser assegurado ao arguido, os direitos de audição, efetiva defesa e ao contraditório.
A circunstância que determinou a não comparência do arguido/recorrente na 1.ª sessão da audiência de julgamento, à qual é totalmente alheio, não difere daquela em que, por motivo de doença, o arguido fica impossibilitado de comparecer na audiência, podendo esta ter início, na sua ausência, nos termos previstos no artigo 333º, n.º 1, a contrario sensu e n.º 2, do CPP.
Porém, na concreta situação ocorrida nos autos, que determinou a falta de comparência do arguido/recorrente na 1.ª sessão da audiência de julgamento, tinha de lhe ser assegurado o direito de estar presente e de ser ouvido, devendo, para o efeito, ser designada data, para a continuação da audiência, o arguido ser dela notificado e diligenciar-se pela sua comparência.
Dito de outro modo, mesmo que a audiência de julgamento se inicie sem a sua presença, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, para o que tem de ter conhecimento da continuação do julgamento e ter a possibilidade de poder estar presente.
A situação em apreço nos autos não consente a aplicação do regime estabelecido para a falta de comparência do arguido à audiência, no caso de o arguido, devidamente notificado, faltar injustificadamente, incumprindo os deveres decorrentes do TIR (cf. artigo 196º, n.º 3, al. d), do CPP) ou a sua falta ter como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117º do CPP, em que a audição do arguido, em data a designar, ao abrigo do n.º 2 do artigo 312º, do CPP, pressupõe que tal seja requerido pelo respetivo defensor, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 333º do CPP.
In casu, ficando a não comparência do arguido, na audiência, a dever-se à circunstância de, estando preso em estabelecimento prisional, à ordem de outro processo, não ter sido conduzido a tribunal, por motivo de greve dos serviços prisionais, a realização de toda a audiência, na sua ausência, só podia ter lugar se o arguido nisso consentisse, pessoalmente ou através da sua defensora, mas nesta última hipótese desde que a mesma se encontrasse munida de procuração com poderes especiais para o efeito.
Na concreta situação verificada, não podia, legitimamente, a Il. defensora oficiosa do arguido, em representação deste e sem dispor de poderes especiais para tal, prescindir do direito de o arguido ser ouvido, na audiência, em data a designar, para o efeito.
Acresce que o arguido/recorrente não foi notificado da data designada para a leitura da sentença, que teve lugar no dia 22/02/2024, na sua ausência.
Tendo sido preterido o direito do arguido estar presente e poder prestar declarações, na audiência de julgamento, a qual teve lugar na sua ausência, pelos motivos e nas circunstâncias sobreditos, conquanto a audiência se pudesse iniciar sem a sua comparência, nos termos determinados pela Mmª. Juiz do tribunal a quo, teria de ser assegurado ao arguido o direito de comparência e de audição, com a designação de data para o efeito, o que não aconteceu, constituindo essa omissão uma nulidade insanável, nos termos previstos na alínea c) do artigo 119º do CPP.
Consequentemente e de harmonia com o disposto no artigo 122º do CPP, declaram-se inválidos/nulos o despacho proferido na 1ª sessão da audiência de julgamento (realizada em 14/02/2024), que deu por terminada a produção da prova e as alegações orais produzidas, a 2.ª sessão da audiência (que teve lugar em 22/02/2024), bem como, a sentença nesta última proferida e ora recorrida e, em substituição, determina-se que seja(m) designada(s) data(s), para a continuação da audiência, com vista a ser assegurado o direito de comparência do arguido e a sua audição, nos termos legais e repetidos os atos ora declarados inválidos/nulos, ser, a final, proferida nova sentença, em conformidade.
O recurso merece, pois, provimento.

3. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal (2.ª Subsecção) deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido C e, em consequência:

- Julgando-se verificada a nulidade insanável prevista na al. c), do artigo 119º do CPP, declarar inválidos o despacho proferido na 1ª sessão da audiência de julgamento (realizada em 14/02/2024), que considerou terminada a produção da prova, as alegações orais produzidas, a 2ª sessão da audiência (que teve lugar em 22/02/204), bem como, a sentença nesta última proferida e ora recorrida, determina-se que seja(m) designada(s) data(s), para a continuação da audiência, com vista a ser assegurado o direito de comparência do arguido e a sua audição, nos termos legais, e repetidos os atos ora declarados inválidos/nulos, e ser, a final, proferida nova sentença, em conformidade.

Sem tributação.
Notifique.

Évora, 24 de setembro de 2024
Fátima Bernardes
Beatriz Marques Borges
Maria Perquilhas
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[1] Cf., entre outros, Acórdãos desta Relação de Évora de 23/01/2018, proc. n.º 112/15.6GESLV.E1 e de 26/03/2019, proc. n.º 268/17.3PAPTM.E1; Ac. da RG de 02/12/2013, proc. n.º 503/10.9EAPRT-A.G1; Ac. da RC de 08/10/2014, proc. n.º 22/14.4GBSRT.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.