I - Ocorre nulidade insanável, prevista no artigo 119º, al. c), do C. P. Penal, se a audiência de discussão e julgamento foi realizada, na sua totalidade, na ausência do arguido e à sua revelia, estando este preso preventivamente no Estabelecimento Prisional e não tendo sido conduzido ao Tribunal por motivo de greve dos serviços prisionais.
II - A audiência podia iniciar-se sem a presença do arguido, não existindo impedimento legal a que tal acontecesse, conquanto ficasse assegurado o direito de o arguido vir a comparecer na audiência e a prestar declarações até ao respetivo encerramento, devendo ser designada nova data para o efeito, só desse modo podendo ser assegurados ao arguido os direitos de audição, efetiva defesa e ao contraditório.
III - A circunstância que determinou a não comparência do arguido na 1ª sessão da audiência de julgamento, à qual é totalmente alheio, não difere daquela em que, por motivo de doença, o arguido fica impossibilitado de comparecer na audiência, podendo esta ter início, na sua ausência, nos termos previstos no artigo 333º, nº 1, a contrario sensu, e nº 2, do C. P. Penal.
IV - Porém, na concreta situação ocorrida nos autos, e visto o motivo que determinou a falta de comparência do arguido na 1ª sessão da audiência de julgamento, tinha de lhe ser assegurado o direito de estar presente e de ser ouvido, devendo, para o efeito, ser designada data, para a continuação da audiência, o arguido ser dela notificado e diligenciar-se pela sua comparência.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigo 412º, n.º 1 do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões extraídas da motivação de recurso apresentada pelo arguido/recorrente, a questão suscitada é a de saber se foi cometida uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, por a audiência de julgamento se ter realizado, na ausência do arguido e à sua revelia, estando preso preventivamente no Estabelecimento Prisional e não tendo sido conduzido ao Tribunal, por motivo de greve dos serviços prisionais.
2.2. Com relevância para a apreciação da questão da nulidade suscitada, colhem-se nos autos, os seguintes elementos/ocorrências processuais:
a) No dia 04/07/2023, o arguido, ora recorrente, prestou Termo de Identidade e Residência nos autos, indicando como morada para efeito de notificações: Rua (…..) (cf. fls. 208);
b) Seguindo o processo os seus trâmites legais, recebida a acusação deduzida pelo Ministério Público, contra o arguido, foram designadas datas para a realização da audiência de discussão e julgamento, concretamente, 1.ª data, o dia 14/02/2024, pelas 14:00 horas; e 2.ª data, nos termos dos artigos 312º, n.º 2 e 333º, n.ºs 1 e 3, ambos do CPP, o dia 19/02/2024, pelas 14.00 horas (cf. Citius Ref. 95004919).
c) Existindo informação nos autos de que o arguido/recorrente se encontrava preso preventivamente, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, à ordem de outro processo, foi o mesmo pessoalmente notificado, pelos Serviços Prisionais, em 09/01/2024, das datas designadas para a realização da audiência de julgamento (cf. Citius Ref. 10321046).
d) Na 1ª data designada para a realização da audiência de julgamento, os Serviços Prisionais, não conduziram o arguido/recorrente a Tribunal, por motivo de greve, decretada pelo Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, conforme comunicação efetuada aos autos e exarada na ata da audiência de julgamento (cf. Citius Ref. 95695689).
e) A 1.ª sessão da audiência de julgamento teve lugar na ausência do arguido/recorrente, ficando a sua não comparência a dever-se ao motivo enunciado em d).
- Tendo o Ministério Público promovido que a audiência se iniciasse na ausência do arguido, ao que a Ilustre defensora oficiosa não se opôs, requerendo, no entanto, que fosse designada data para a audição do arguido.
- Pela Exma. Juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento foi decidido dar início à mesma sem a presença do arguido, nos termos do disposto artigo 333º do Código de Processo Penal e que, oportunamente, seria designada data para a sua audição.
- Ainda nessa 1.ª sessão da audiência de julgamento, finda a produção da prova testemunhal, pela Il. defensora do arguido/recorrente foi dito prescindir da requerida audição do arguido.
- Nessa sequência foram produzidas as alegações orais e, após foi designada, para a continuação da audiência de julgamento, com a leitura da sentença, o dia 22 de fevereiro de 2024, pelas 14.00 horas (cf. Citius Ref. 95695689).
f) A sentença foi lida no dia 22/02/2024, não tendo o arguido/recorrente sido notificado dessa data, por isso, não tendo estado presente, nesse ato (cf. Citius Ref. 95785845).
2.3. Conhecimento do mérito recurso
Como supra referimos, a questão suscitada no recurso em apreço é a de saber se foi cometida uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, por a audiência de julgamento se ter realizado, na ausência do arguido e à sua revelia, estando o mesmo preso preventivamente no Estabelecimento Prisional e não tendo sido conduzido ao Tribunal, por motivo de greve dos serviços prisionais.
Defende o arguido/recorrente que tendo a audiência de discussão e julgamento sido realizada na sua ausência e considerando o motivo da sua não comparência, sem que fosse informado de que estava em curso o julgamento, in absentia, não lhe sendo assegurado o direito de ser ouvido, com a consequente violação do princípio do contraditório, da presunção de inocência e da defesa efetiva, consagrados nos artigos 20º e 32º da CRP, 5º e 6º da CEDH e 11º da DUDH, foi cometida a uma nulidade insanável, prevista no artigo 119º, n.º 1, al. c), do CPP.
Pugna o arguido/recorrente para que em decorrência da assinalada nulidade, seja declarada a invalidade das sessões de julgamento e da sentença recorrida e designada data para a audiência, assegurando-se o direito de audição do arguido.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao arguido/recorrente, uma vez que a Il. Defensora do arguido, não se opôs ao início da respetiva audiência sem a presença do mesmo e conquanto tivesse requerido que o mesmo fosse ouvido em data a designar, a final, após a produção da prova, prescindiu da requerida audição do arguido, o que fez no uso da prerrogativa que lhe assiste, pelo que, não se verifica a invocada nulidade e, como tal, a sentença recorrida deve ser mantida.
Vejamos:
A regra geral é a da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, conforme previsto no artigo 332º, n.º 2, do CPP.
As exceções a tal regra, em que a audiência pode decorrer na ausência do arguido, encontram-se previstas nos artigos 333.º, n.ºs 1 e 2 e 334.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
O artigo 333º do CPP e que aqui nos importa considerar, epigrafado de “Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência”, dispõe:
«1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas e ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º.
3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do nº 2 do artigo 312º.
4. O disposto nos artigos anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do n.º 2 do artigo 334º.
(…).»
A realização da audiência de julgamento, na ausência do arguido, pressupõe sempre que este esteja regular e devidamente notificado para nela comparecer.
O que decorre, desde logo, do direito que o arguido tem de estar presente em todos os atos processuais que diretamente lhe disserem respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência, conforme estatuído nos artigos 61º, n.º 1, alínea a) e 333º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Na situação em que o julgamento tenha inicio na ausência do arguido, na data para que foi notificado, nos termos previstos no n.º 2, do artigo 333º do CPP, caso seja(m) designada(s) nova(s) data(s) para a sua continuação, o arguido tem de ser notificado dessa(s) nova(s) data(s), sem o que, se impediria, na prática, a materialização, daqueles direitos[1]
E a lei comina com a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, a ausência do arguido, na audiência de julgamento – entenda-se a qualquer das sessões que tenham lugar, incluindo a da leitura da sentença, assistindo-lhe o direito de estar presente – quando essa ausência se verifique, não estando o arguido devida e regularmente notificado da(s) data(s) designada(s) para a respetiva realização.
A audiência de julgamento pode iniciar-se, na ausência do arguido, nos termos previstos no artigo 333º, n.º 2, do CPP e pode mesmo ser concluída sem que o arguido esteja presente, designadamente, se ocorrer na primeira data marcada e o mandatário ou o defensor do arguido não requerer que este último seja ouvido na segunda data designada pelo juiz, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 333º do CPP, mas desde que o arguido esteja devida e regularmente notificado da data designada para a realização da audiência (cf. n.º 10 do artigo 113º do CPP), sendo-lhe, dessa forma, assegurado o direito de comparência e de prestar declarações até ao encerramento da audiência.
Nos casos em que o tribunal considere não ser indispensável à descoberta da verdade a presença do arguido desde o início da audiência e que esta pode começar na sua ausência, não é cometida qualquer ilegalidade, nem se verifica qualquer invalidade da sessão da audiência realizada, por não terem sido tomadas medidas para assegurar a presença do arguido.
Neste contexto e baixando ao caso dos autos:
Tendo o arguido/recorrente sido notificado da 1.ª data designada para a realização da audiência de discussão e julgamento, o dia 14/02/2024, notificação essa efetuada na sequência de requisição dirigida ao diretor do estabelecimento prisional onde o arguido se encontrava preso preventivamente, à ordem de outro processo, nos termos do disposto no artigo 114º, n.º 1, do CPP, ocorreu que o arguido não foi, naquela data, conduzido ao tribunal, pelos serviços prisionais por motivo de greve destes serviços.
A não comparência do arguido/recorrente na audiência de julgamento, na data de 14/02/2024, ficou, pois, a dever-se a razões que lhe não são imputáveis e às quais é totalmente alheio.
Tendo o arguido o direito de estar presente desde o início da audiência de julgamento, a questão que se coloca é a de saber se, na concreta situação ocorrida no presente caso, podia a audiência iniciar-se sem a presença do arguido, por determinação do tribunal, que considerou não ser essa presença, desde o inicio da audiência, absolutamente indispensável à descoberta da verdade, nos termos previstos no artigo 333º, n.º 2, do CPP, o que não foi posto em causa pela Il. defensora oficiosa nomeada ao arguido, não se tendo oposto ao início da audiência.
Entendemos que a enunciada questão merece resposta positiva, ou seja, que a audiência podia iniciar-se sem a presença do arguido, não existindo impedimento legal a que tal acontecesse, conquanto ficasse assegurado o direito de o arguido vir a comparecer na audiência e a prestar declarações até ao respetivo encerramento, devendo ser designada nova data para o efeito, só desse modo podendo ser assegurado ao arguido, os direitos de audição, efetiva defesa e ao contraditório.
A circunstância que determinou a não comparência do arguido/recorrente na 1.ª sessão da audiência de julgamento, à qual é totalmente alheio, não difere daquela em que, por motivo de doença, o arguido fica impossibilitado de comparecer na audiência, podendo esta ter início, na sua ausência, nos termos previstos no artigo 333º, n.º 1, a contrario sensu e n.º 2, do CPP.
Porém, na concreta situação ocorrida nos autos, que determinou a falta de comparência do arguido/recorrente na 1.ª sessão da audiência de julgamento, tinha de lhe ser assegurado o direito de estar presente e de ser ouvido, devendo, para o efeito, ser designada data, para a continuação da audiência, o arguido ser dela notificado e diligenciar-se pela sua comparência.
Dito de outro modo, mesmo que a audiência de julgamento se inicie sem a sua presença, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, para o que tem de ter conhecimento da continuação do julgamento e ter a possibilidade de poder estar presente.
A situação em apreço nos autos não consente a aplicação do regime estabelecido para a falta de comparência do arguido à audiência, no caso de o arguido, devidamente notificado, faltar injustificadamente, incumprindo os deveres decorrentes do TIR (cf. artigo 196º, n.º 3, al. d), do CPP) ou a sua falta ter como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117º do CPP, em que a audição do arguido, em data a designar, ao abrigo do n.º 2 do artigo 312º, do CPP, pressupõe que tal seja requerido pelo respetivo defensor, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 333º do CPP.
In casu, ficando a não comparência do arguido, na audiência, a dever-se à circunstância de, estando preso em estabelecimento prisional, à ordem de outro processo, não ter sido conduzido a tribunal, por motivo de greve dos serviços prisionais, a realização de toda a audiência, na sua ausência, só podia ter lugar se o arguido nisso consentisse, pessoalmente ou através da sua defensora, mas nesta última hipótese desde que a mesma se encontrasse munida de procuração com poderes especiais para o efeito.
Na concreta situação verificada, não podia, legitimamente, a Il. defensora oficiosa do arguido, em representação deste e sem dispor de poderes especiais para tal, prescindir do direito de o arguido ser ouvido, na audiência, em data a designar, para o efeito.
Acresce que o arguido/recorrente não foi notificado da data designada para a leitura da sentença, que teve lugar no dia 22/02/2024, na sua ausência.
Tendo sido preterido o direito do arguido estar presente e poder prestar declarações, na audiência de julgamento, a qual teve lugar na sua ausência, pelos motivos e nas circunstâncias sobreditos, conquanto a audiência se pudesse iniciar sem a sua comparência, nos termos determinados pela Mmª. Juiz do tribunal a quo, teria de ser assegurado ao arguido o direito de comparência e de audição, com a designação de data para o efeito, o que não aconteceu, constituindo essa omissão uma nulidade insanável, nos termos previstos na alínea c) do artigo 119º do CPP.
Consequentemente e de harmonia com o disposto no artigo 122º do CPP, declaram-se inválidos/nulos o despacho proferido na 1ª sessão da audiência de julgamento (realizada em 14/02/2024), que deu por terminada a produção da prova e as alegações orais produzidas, a 2.ª sessão da audiência (que teve lugar em 22/02/2024), bem como, a sentença nesta última proferida e ora recorrida e, em substituição, determina-se que seja(m) designada(s) data(s), para a continuação da audiência, com vista a ser assegurado o direito de comparência do arguido e a sua audição, nos termos legais e repetidos os atos ora declarados inválidos/nulos, ser, a final, proferida nova sentença, em conformidade.
O recurso merece, pois, provimento.
3. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal (2.ª Subsecção) deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido C e, em consequência:
- Julgando-se verificada a nulidade insanável prevista na al. c), do artigo 119º do CPP, declarar inválidos o despacho proferido na 1ª sessão da audiência de julgamento (realizada em 14/02/2024), que considerou terminada a produção da prova, as alegações orais produzidas, a 2ª sessão da audiência (que teve lugar em 22/02/204), bem como, a sentença nesta última proferida e ora recorrida, determina-se que seja(m) designada(s) data(s), para a continuação da audiência, com vista a ser assegurado o direito de comparência do arguido e a sua audição, nos termos legais, e repetidos os atos ora declarados inválidos/nulos, e ser, a final, proferida nova sentença, em conformidade.
Sem tributação.
Notifique.
Évora, 24 de setembro de 2024
Fátima Bernardes
Beatriz Marques Borges
Maria Perquilhas
_________________________________________________
[1] Cf., entre outros, Acórdãos desta Relação de Évora de 23/01/2018, proc. n.º 112/15.6GESLV.E1 e de 26/03/2019, proc. n.º 268/17.3PAPTM.E1; Ac. da RG de 02/12/2013, proc. n.º 503/10.9EAPRT-A.G1; Ac. da RC de 08/10/2014, proc. n.º 22/14.4GBSRT.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.