CITAÇÃO DE PESSOA COLECTIVA
SEDE SOCIAL
REGISTO NACIONAL DE PESSOAS COLECTIVAS
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário

I. A citação das pessoas colectivas rege-se pelo disposto no artigo 246.º do CPCiv., que manda aplicar ao acto de citação, no que não estiver especialmente regulado, o regime constante da subsecção anterior, aplicável às pessoas singulares (vide n.º 1 do preceito).
II. No regime que emerge do preceito em análise resulta que a citação da pessoa colectiva faz-se para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do RNPC e, vindo a carta devolvida, é enviada nova carta com A/R, observando-se o n.º 5 do artigo 229.º, ou seja, é deixada a carta, contendo cópia de todos os elementos referidos no artigo 227.º e a advertência de que a citação se considera efectuada na data certificada, certificando o distribuidor a data e local exacto em que depositou o expediente.
III. Observada a prescrita tramitação, a citação tem-se como efectuada na data certificada pelo distribuidor postal, por aplicação do n.º 2 do artigo 230.º, ex vi da remissão do n.º 4 do artigo 246.º, operando portanto a presunção de que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados.
IV. A aludida presunção, juris tantum, pode ser ilidida mediante a prova pelo destinatário de que não chegou a ter conhecimento do acto por facto que não lhe é imputável (artigo 188.º, n.º 1, alínea e)), ou seja, há-de provar que a sua conduta em nada contribuiu, em termos de causalidade objectiva, para que as cartas enviadas para citação não tenham chegado ao seu destinatário.
V. Estando em causa uma associação sem fins lucrativos, encontra-se sujeita ao dever de inscrição no Registo Nacional das Pessoas Colectivas, conforme prevê a alínea a) do artigo 4.º do respectivo Regime Jurídico (RJRNPC) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/98, de 13 de Maio, pelo que se encontra excluída da previsão do n.º 4 do artigo 246.º.
VI. Tendo a requerida mudado a sua sede há mais de 1 ano, sem inscrição do facto no RNPC e sem ter assegurado o reencaminhamento da correspondência ou, em alternativa, a verificação periódica da eventual chegada de correspondência à antiga morada, não pode considerar-se que o desconhecimento do acto não lhe é imputável, pelo que não beneficia do regime da alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do Código de Processo Civil..
VII. Encontrando-se provado nos autos que a requerida em processo de insolvência, para além de ser devedora à Fazenda Nacional, mantém em dívida quotizações e contribuições à Segurança Social respeitantes a período que em muito ultrapassa o prazo de seis meses e é devedora à autora de quantia emergente da cessação do contrato de trabalho que com esta celebrara, verificados estão os factos índice de insolvência previstos nas alíneas b) e g), i. e iii., pelo que, encontrando-se a devedora em situação de insolvência, assim deve ser declarado.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 220/24.2 T8ELV-B.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre
Juízo Local Cível de Elvas - Juiz 1


I. RELATÓRIO
(…), solteira, maior, residente na Av. (…), Lote 8 R/C, em Portalegre, veio requerer a declaração de insolvência da pessoa coletiva Associação (…), contribuinte fiscal n.º (…), com sede na Rua de(…), n.º 24-B, freguesia de (…), concelho de Elvas.
Alegou, em síntese, deter um crédito no valor de € 9.000,00 sobre a requerida a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho, quantia que esta se comprometeu a pagar em 4 (quatro) prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de € 2.250,00 cada, devendo a 1.ª prestação ser paga até ao dia 31 de Janeiro de 2024, que esta não pagou, tal como não pagou nenhuma das que se venceram posteriormente.
Mais alegou que a requerida não prossegue actualmente o seu fim social, utilizando exclusivamente os recursos humanos para prestar serviço às empresas do grupo, apresenta dívidas à Autoridade Tributária, à Segurança Social, a fornecedores e a trabalhadores, não tendo património que possa responder pelas mesmas, encontrando-se a sua sede sem qualquer actividade.

Por despacho proferido em 11/4/2024 [Ref.ª 33388720] foi ordenada a citação pessoal da requerida “para, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, devendo oferecer desde logo todos os elementos de prova de que disponha, sob pena de se terem por confessados os factos alegados na petição inicial e ser de imediato decretada a sua insolvência – [cfr. artigos 29.º, n.º 1 e 2, 30.º, n.º 1 e 5, 246.º e 25.º, n.º 2, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas]”.

Enviada carta para citação da requerida para a morada indicada na petição, a mesma veio devolvida.
Expedida 2.ª carta para a mesma morada, certificou o distribuidor postal a impossibilidade de entrega e o seu depósito no receptáculo em 7 de Maio de 2024. A carta veio a ser posteriormente devolvida com a indicação “desconhecida na morada”.
Na sequência da devolução, veio a requerente informar que a requerida tem “o seu escritório de funcionamento na seguinte morada, de acordo com a sua página (…), requerendo a citação daquela na Rua (…), n.º 81, Loja E, Piso 1, 7300-205 Portalegre.
O requerimento não foi objecto de despacho, tendo de seguida sido proferida sentença na qual, dando a requerida por regularmente citada, a Sr.ª Juíza julgou assentes os factos alegados na petição inicial por aplicação do disposto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE e decretou a insolvência.
Foram expedidas cartas para notificação da sentença, dirigidas à requerida, para a morada indicada na petição, e para o seu legal representante, Sr. (…), esta endereçada para a Rua (…), 81, Loja E, 1.º, em Portalegre, tendo a primeira sido devolvida.

A requerida veio apresentar tempestivo recurso e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1. O Tribunal a quo deu como provados factos que não deveria ter dado, em virtude da insuficiência de prova produzida.
2. Da matéria de facto dada como provada não resulta qualquer facto que demonstre a situação de insolvência da recorrente, nem sequer qualquer indício que possa consubstanciar uma situação de insolvência iminente.
3. Não podia o desconhecimento sobre o património da recorrente significar uma presunção de que aquela não tem condições para pagar as suas dívidas ou cumprir com as suas obrigações.
4. Não ficou provado que a recorrente se encontre impossibilitada de cumprir com as suas obrigações.
5. Estando os valores em dívida a ser amortizados, deverá ser afastada a presunção decorrente das alíneas b) e g) do artigo 20.º do CIRE.
6. A situação económico-financeira da recorrente não pode ser enquadrada no artigo 3.º do CIRE, pois não se verificam os requisitos necessários para a existência de uma situação de insolvência.
7. A sede de facto da recorrente localiza-se em Portalegre desde 2022, apenas não tendo sido alterada no Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
8. A recorrente só teve conhecimento da insolvência com a publicação do edital na porta do espaço de coworking onde foi a antiga sede.
9. A recorrente não teve oportunidade de deduzir oposição, pois não tinha conhecimento da ação instaurada.
10. A citação foi efetuada em pessoa alheia à recorrente, violando o disposto no artigo 223.º do Código de Processo Civil.
11. A sentença proferida terá necessariamente que ser revogada, em virtude de a ação padecer de uma nulidade processual, designadamente a nulidade da citação, prevista no artigo 191.º do Código de Processo Civil”.
Conclui pela procedência do recurso e consequente revogação da sentença recorrida.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Indagar se se verifica falta de citação, com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição;
ii. Determinar se os factos apurados fundamentam a decretada insolvência.
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II. Fundamentação
De facto
Na sentença recorrida, “em face da não oposição da requerida, e atentos os documentos juntos aos autos”, foi julgada assente a seguinte factualidade:
1. A requerida é uma associação de direito privado com o n.º NIPC (…) e dedica-se à promoção e implementação de diversos projetos de educação e de formação profissional para cidadãos de todas as idades; ao desenvolvimento de projetos de investigação de âmbito social, académica e/ou científica diretamente ou em parceria com instituições reconhecidas, portuguesas e/ou estrangeiras para a promoção do desenvolvimento do conhecimento técnico e científico, e sensibilidades sociais; ao apoio a crianças e jovens carenciados; ao apoio à família; ao fomento, desenvolvimento e promoção da prática desportiva, cultural e artística, como meios de desenvolvimento da comunidade e de promoção e integração social; ao desenvolvimento, no âmbito da inovação social de diversos projetos de apoio às comunidades, nomeadamente na promoção da igualdade de oportunidades no acesso à cultura, educação, desporto e empregabilidade; à promoção da inclusão social e a diminuição de assimetrias sociais, nomeadamente nos casos de pobreza, velhice, desigualdade de género, minorias étnicas, deficiência e doença; à realização e desenvolvimento do empreendedorismo e inovação sociais, como meios de potenciar a dignidade da pessoa humana e da realização pessoal e profissional; potenciar a implementação e promoção do turismo desportivo, inclusivo, educativo, religioso, ou social, designadamente, nas pessoas portadoras de deficiência, jovens e idosos; à produção de conhecimento na área social e educativa, bem como, da transferência do conhecimento nas mencionadas áreas; à promoção do emprego e do desenvolvimento nas comunidades locais; à transferência de tecnologia ligada ao setor social e educacional.
1.a) A requerida tem registada a sua sede na Rua (…), n.º 24-B Código Postal: 7350 075 (…) Distrito: Portalegre Concelho: Elvas Freguesia: … e … (facto extraído da certidão permanente junta aos autos, aditado nos termos do artigo 607.º, n.º 4, ex vi do n.º 2 do artigo 663.º, ambos os preceitos pertencendo ao CPCiv.).
2. A requerente celebrou um contrato de trabalho sem termo com a requerida, em 01-11-2022, para exercer funções de administrativa e secretária especializada.
3. Por sentença proferida em 08-01-2024, no âmbito do processo especial de impugnação judicial de regularidade e licitude do despedimento, que correu termos no Juízo de Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre sob o n.º 1042/23.3T8PTG, foi homologado um acordo celebrado entre a requerente e a requerida.
4. No âmbito do referido acordo, a requerente e a requerida declararam o seguinte
1.º – A Autora reduz o seu pedido para a quantia de € 9.000,00 (nove mil euros), a título de compensação pecuniária de natureza global líquida pela cessação do contrato de trabalho, quantia esta que a Ré aceita pagar; 2.º – A Ré compromete-se a efectuar o pagamento da quantia supra referida em 4 (quatro) prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de 2.250,00 euros cada, sendo a 1.ª prestação paga até ao dia 31 de Janeiro de 2024, a 2.ª prestação até ao dia 29 de Fevereiro de 2024, a 3.ª prestação até ao dia 31 de Março de 2024 e a 4.ª e última prestação até ao dia 30 de Abril de 2024. 3.º – O pagamento das prestações referidas no ponto anterior deverá ser feito através de transferência bancária para o IBAN da autora, onde a mesma recebia o seu vencimento; 4.º – Com o pagamento das 4 (quatro) prestações a Autora considera-se ressarcida dos créditos laborais devidos, nada mais havendo a pedir à Ré; 5.º – O não pagamento de qualquer uma das prestações referidas implica o vencimento das demais, nos termos previstos pela lei. 6.º – Prescindem ambos de custas de parte; 7.º – As custas devidas a juízo serão suportadas em partes iguais.”
5. A requerida não pagou à requerente qualquer valor, mesmo depois de interpelada para tal.
6. No balancete do ano 2023 a requerida declarou um resultado líquido de € 392,41.
7. A requerida apresenta dívidas à Autoridade Tributária, a fornecedores e a trabalhadores de valor não concretamente apurado.
8. A requerida deve à Segurança Social a título de contribuições e quotizações, relativas ao período de Outubro de 2022 a Janeiro de 2024, a quantia de € 23.074,94.
9. Corre termos na Autoridade Tributária um número não concretamente apurado de processos executivos.
10. A requerida não tem registado no Serviço de Finanças qualquer imóvel ou veículo automóvel em seu nome.
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Com relevância para a decisão a proferir, não resultou provado que
a) A requerida deve à Segurança Social a quantia de € 16.712,39.
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De Direito
Da falta de citação
Relevando para a decisão desta primeira questão os factos relatados em I., verifica-se ter a requerida/apelante arguido a falta de citação uma vez que, alega, desde Novembro de 2022 que a sua sede se encontra na Rua (…), n.º 81, Loja E, Piso 1, 7300-205 Portalegre, o que era do conhecimento da requerente, que foi admitida precisamente na altura da mudança e, tendo encarregado uma Sr.ª Advogada para proceder ao registo da nova morada, confiou que tal alteração tinha sido efectuada, o que não se verificou.
Mais alegou não ter tido conhecimento da propositura da acção, o que se verificou apenas quando, tendo sido afixados editais na antiga morada, que era um espaço partilhado, foi advertida desse facto, pretendendo a revogação da sentença, uma vez que não teve oportunidade de deduzir oposição.
Apreciemos, pois, este fundamento de recurso.
A pela apelante alegada falta de citação ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do CPCiv.[2] constitui nulidade principal, conducente à anulação de todo o processo posterior à petição inicial, salvando-se apenas esta (cfr. artigo 187.º, al. a), do CPCiv). Sendo de conhecimento oficioso, pode ser invocada a todo o tempo, enquanto não deva considerar-se sanada, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 196.º, 198.º, n.º 2 e 200.º, n.º 1, todos do citado diploma legal.
Como se dá conta no acórdão deste mesmo TRE de 14 de Julho de 2021 (processo n.º 1610/20.5T8STR.E1, acessível em www.dgsi.pt), via de regra, “o recurso da decisão final não configura o meio processual adequado à arguição de nulidades processuais, designadamente se reportadas a momento anterior, as quais deverão ser deduzidas perante a 1.ª instância, apenas podendo o recurso ser interposto da decisão que vier a ser proferida sobre tal arguição. No entanto, nos casos em que a nulidade se corporiza na decisão recorrida e só com a notificação desta se manifesta, a arguição da nulidade mostra-se incindível da impugnação da decisão, assim sendo de admitir tal arguição nas alegações do recurso interposto daquela decisão, considerando os efeitos decorrentes daquele vício e as consequências dele emergentes no âmbito da decisão recorrida”. Tal é justamente a situação que se verifica nos presentes autos, posto que, segundo alega a apelante, apenas quando confrontada com os editais tomou conhecimento da pendência do processo.
Acresce que, tratando-se, como se referiu, de nulidade de conhecimento oficioso, podendo ser suscitada em qualquer estado do processo enquanto não deva considerar-se sanada, nada obsta ao seu conhecimento nesta sede.
Feita tal prévia precisão, cumpre averiguar se a citação se deve ter por regularmente efectuada, entendimento que presidiu à prolação da sentença recorrida, com a consequência de terem sido considerados assentes os factos alegados pela requerente na petição inicial por aplicação do artigo 30.º, n.º 5, do CIRE, ou antes se verifica a arguida nulidade da falta de citação visto resultar dos autos que, efectivamente, não foi recebida pela ré nenhuma das cartas enviadas para citação.
A citação, di-lo a lei, é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219.º do CPCiv.). Momento de inquestionável importância na vida do processo pelos efeitos que lhe estão associados, a lei rodeou a prática do acto de particulares cautelas, em ordem a assegurar-se que chega ao conhecimento do seu destinatário.
Estando em causa uma pessoa colectiva, rege o disposto no artigo 246.º, que manda aplicar ao acto de citação, no que não estiver especialmente regulado, o regime constante da subsecção anterior, aplicável às pessoas singulares (vide n.º 1 do preceito).
Nos termos do n.º 2, “A carta referida no n.º 1 do artigo 228.º é endereçada para a sede da citada inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas.
3. Se for recusada a assinatura do aviso de recepção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citada, o distribuidor postal lavra nota antes de a devolver e a citação considera-se efectuada face à certificação da ocorrência.
4. Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de recepção à citada e advertindo-a da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º.”

No regime que emerge do CPC agora em vigor, a citação da pessoa colectiva faz-se para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do RNPC e, vindo a carta devolvida, é enviada nova carta com A/R, observando-se o n.º 5 do artigo 229.º, ou seja, é deixada a carta, contendo cópia de todos os elementos referidos no artigo 227.º e a advertência de que a citação se considera efectuada na data certificada, certificando o distribuidor a data e local exacto em que depositou o expediente.
No caso dos autos foi observada a referida tramitação, tendo-se a citação por efectuada no dia 07 de Maio, data certificada pelo distribuidor como aquela em que deixou o expediente relativo à 2.ª carta na morada correspondente à sede da citanda, ora apelante.
Cumpre ainda referir que a requerida, sendo embora uma associação sem fins lucrativos, encontra-se sujeita ao dever de inscrição no Registo Nacional das Pessoas Colectivas, conforme prevê a alínea a) do artigo 4.º do respectivo Regime Jurídico (RJRNPC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/98, de 13 de Maio (e entretanto alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 247-B/2008, de 30 de Dezembro e 2/2005, de 04 de Janeiro), pelo que se encontra excluída da previsão do n.º 4 do artigo 246.º.
Resultando dos autos que foi observada a tramitação prescrita na lei, a citação tem-se como efectuada na data certificada pelo distribuidor postal, por aplicação do n.º 2 do artigo 230.º, ex vi da remissão do n.º 4 do artigo 246.º, tal como foi entendido, operando portanto a presunção de que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados.
A aludida presunção, juris tantum, pode ser ilidida mediante a prova pelo destinatário de que não chegou a ter conhecimento do acto por facto que não lhe é imputável, ou seja, há-de provar que a sua conduta em nada contribuiu, em termos de causalidade objectiva, para que as cartas enviadas para citação não tenham chegado ao seu destinatário.
Não é, porém, o que se verifica no caso dos autos. Com efeito, mesmo admitindo a veracidade do alegado pela recorrente no sentido de ter incumbido Ilustre Advogada para proceder à alteração da sede nos ficheiros do RNPC – facto de inscrição obrigatória, como resulta da alínea d) do artigo 6.º do R RJRNPC –, o que verificou não ter sido executado, a verdade é que tal não é suficiente para afastar a culpa da apelante. Tal como se fez notar no acórdão do TC n.º 476/2020, de 1 de Outubro de 2020, (processo n.º 755/2019), que se pronunciou no sentido da não desconformidade à Constituição “(d)a norma extraída dos n.ºs 2 e 4 do artigo 246.º e do n.º 5 do artigo 229.º, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, quando interpretado no sentido de que é válida a citação efetuada por depósito do respetivo expediente na morada da sociedade comercial citanda, constante do ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, apesar de a carta de citação prévia, expedida para a mesma morada, ter sido devolvida com a indicação “Mudou-se””[3], “(…) a circunstância de a citanda não ter procedido à atualização da sua sede no registo pode não ser considerada fundamento atendível nos termos e para os efeitos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do CPC. (…)
Em princípio, a não atualização das inscrições que devem ser levadas ao registo só à sociedade pode ser imputada. Simplesmente, em caso de alteração informal da sede da sociedade, o não conhecimento do ato de citação, a ocorrer, não ficará a dever-se, em rigor, à inobservância do ónus de atualização dos elementos constantes do registo, mas antes ao facto de a citanda não ter tomado as providências necessárias, seja através da contratação do serviço de reexpedição de correspondência, seja encarregando um terceiro de proceder à recolha e entrega das cartas e avisos depositados na respetiva caixa postal, de modo a assegurar que a correspondência que, naquelas circunstâncias, continuará a ser remetida para o endereço correspondente à sede registral venha a ser por si efetivamente recebida”.
Tais considerações têm plena aplicação ao caso dos autos, uma vez que, independentemente de ter encarregado outrem para promover a necessária alteração da morada nos ficheiros do RNPC – sendo-lhe em todo o caso imputável a circunstância de, decorrido mais de ano e meio sobre a alegada mudança, não ter verificado se a alteração fora ou não feita- a apelada devia ter assegurado o reencaminhamento da correspondência ou, em alternativa, verificar periodicamente se tinha chegado correspondência à antiga morada (cfr., neste preciso sentido, os acórdãos deste mesmo TRE de 25 de Maio de 2023, proferido no processo n.º 6881/21.7T8STB-A.E1 e de 6 de Setembro de 2022, no processo n.º 164/21.0T8RMZ.E1, e ainda o acórdão do TRL de 7 de Março de 2022, no processo n.º 891/17.6T8OER-A.L1-2[4], com recenseamento de jurisprudência conforme, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Alega ainda a recorrente que não tendo a citação sido efectuada na pessoa de um seu funcionário ou representante legal, foi inobservada a formalidade imposta pelo artigo 223.º, n.ºs 1 e 3. Mas também aqui lhe falece a razão, uma vez que tendo a carta sido enviada para a sede, caberia também à citanda promover uma organização dos seus serviços que garantisse um tratamento rigoroso da correspondência oficial, designadamente aquela que provém dos Tribunais[5], em ordem a evitar que fosse recepcionada por pessoas estranhas à empresa pelo que, também aqui, não poderia afirmar-se que o não conhecimento do acto se tenha ficado a dever a facto que lhe é de todo estranho.
Resulta do que vem de se expor que tendo sido observadas as formalidades legais na realização da citação e não tendo a apelante logrado fazer prova de que o não conhecimento do facto não lhe pode ser objectivamente imputado, subsiste a presunção legal, termos em que se desatende a arguida nulidade da falta de citação.
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Da situação de insolvência
Arrogando-se um crédito de natureza laboral sobre a requerida, reconhecido por sentença proferida pelo Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial da comarca de Portalegre que homologou o acordo das partes, e que se encontra em incumprimento, bem como a existência de dívidas à Segurança Social e à Fazenda Nacional, veio a requente pedir em juízo que fosse declarada a insolvência da ora recorrente Associação Fuso, prevalecendo-se das alíneas a), b), c), d), e) e g) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, assim invocando “factos ou situações cuja ocorrência objectiva pode, nos termos da lei, fundamentar o pedido.”[6]. Nas diversas alíneas do preceito estão em causa, conforme sem divergência vem sendo entendido, factos-índice ou presuntivos, cuja verificação indicia ou revela uma potencial situação de insolvência “(…) tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”[7], assim facilitando ao requerente, quando se trate de um dos legitimados previstos no n.º 1 do artigo 20.º, a alegação e prova desse estado. Estão em causa presunções “iuris tantum”, cabendo ao devedor ilidir a presunção emergente do facto-índice, conforme resulta do disposto no n.º 3 do artigo 30.º do mesmo diploma legal.
No caso, a apelante veio a ser declarada em situação de insolvência por se ter considerado na sentença recorrida resultar da factualidade apurada que se mostravam preenchidos os factos índice previstos nas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, juízo cujo acerto contesta, porquanto, alega, não pode “o desconhecimento sobre o seu património” conduzir à presunção de que “não tem condições para pagar as suas dívidas ou cumprir com as suas obrigações”.
Vejamos se procede tal argumentação.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, e para o que aqui releva “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Caracteriza-se no transcrito n.º 1 do preceito o pressuposto substantivo essencial de cuja verificação depende o reconhecimento da situação de insolvência.
Segundo o conceito básico aqui vertido, e que vinha já do CPEREF, a situação de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, sendo certo que apenas quando verificada em relação às vencidas fundamenta a apresentação do requerimento de insolvência por outro legitimado que não o próprio.
Esta impossibilidade, conceito mais exigente do que o mero incumprimento -sendo todavia de reconhecer que a mora, a par do incumprimento definitivo, são as duas manifestações típicas do estado insolvente, sobretudo quando generalizados, tal como decorre da sua consagração como factos-índice da insolvência nas alíneas a) e b) do artigo 20.º – não exige uma pluralidade de incumprimentos, nem tão pouco uma pluralidade de credores, pressupondo e traduzindo “a ideia de incapacidade económico-financeira do devedor, reportando-se portanto à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa para dar satisfação às obrigações vencidas”[8]. A verificação desta situação de incapacidade de cumprir, consagrada genericamente no artigo 3.º como pressuposto objectivo da insolvência, exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as suas obrigações vencidas.
Acresce que do facto da pontualidade não vir agora referenciada no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, não resulta que tal requisito não continue a ser exigido. Com efeito, por um lado, é “(…) inerente à ideia do cumprimento a realização atempada das obrigações a cumprir, visto que só dessa forma se satisfaz, na plenitude, o interesse do credor e se concretiza integralmente o plano vinculativo a que o devedor está adstrito” e, por outro, “a menção legal à impossibilidade de cumprir obrigações vencidas – e, logo, exigíveis –, é suficiente para justificar a necessidade da pontualidade na actuação do devedor”[9]. Neste contexto, não interessa que o devedor ainda possa cumprir num momento futuro qualquer e eventualmente num contexto de remodelação da dívida, verificando-se a entrada em situação de insolvência a partir do momento em que comprovadamente não pode cumprir as obrigações vencidas, nem poderá fazê-lo num futuro próximo. Deste modo, se os meros atrasos no pagamento não justificam a declaração de insolvência, também não se exige que a impossibilidade seja duradoura, só obstando à declaração de insolvência a falta transitória de liquidez recuperável a curto prazo.
Finalmente, conforme era já entendimento pacífico, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas, bastando para tanto que o devedor não se encontre em condições de satisfazer aquelas que, pelo seu significado no conjunto do passivo, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a sua incapacidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Por assim ser, parece que a autonomização da alínea b) do artigo 20.º seria, em rigor, desnecessária, tanto mais que ao requerente cabe fazer a prova, não só do incumprimento de alguma ou algumas das obrigações, como ainda, no caso específico desta alínea, das circunstâncias reveladoras da situação de penúria generalizada do devedor. Certo é, porém, que feita a prova destes factos, sobre o devedor recai o ónus da prova da inexistência do facto que fundamenta o pedido ou da inexistência da sua situação de insolvência, de modo a ilidir a presunção emergente do facto-índice[10].
No caso dos autos está provado que a requerente é credora da apelante do montante de € 9.000,00, crédito emergente da cessação do contrato de trabalho antes celebrado, quantia que esta se obrigou a pagar em quatro prestações iguais e sucessivas, devendo a primeira ser paga até 31 de Janeiro e as restantes nos meses subsequentes, sendo certo que nem uma única foi paga.
Relevante ainda a pendência de execuções fiscais e de dívida ao Instituto de Segurança Social no montante de € 23.074,94, com origem em contribuições e quotizações não pagas abrangendo o período de Outubro de 2022 e Janeiro de 2024. Tais montantes em dívida terão de ser relacionados com o facto de no balancete relativo ao exercício do ano de 2023 se ter apurado um saldo no valor de € 392,41, tornando evidente que a apelante não dispõe de liquidez para satisfazer as suas obrigações vencidas, ao que acresce o facto, apurado, de não ser titular de quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.
Deste modo, considerando ainda que as dívidas à Segurança Social em muito ultrapassam o prazo de seis meses a que alude a alínea g) e a natureza do crédito da requerente, encontram-se verificados os factos índice de insolvência previstos nas alíneas b) e g), i. e iii., tal como se entendeu na sentença recorrida.
Visando contrariar a presunção daí decorrente fez a recorrente juntar aos autos documentos comprovativos da aprovação de planos de pagamento em prestações das dívidas ao ISS que se encontram em execução. Da análise dos documentos verifica-se que as primeiras prestações tinham vencimento em Junho e Julho do presente ano, sem que tenha sido junto qualquer comprovativo do respectivo cumprimento, pelo que em nada abalam o juízo sobre a situação de insolvência em que se encontra.
Insubsistentes os fundamentos do recurso, impõe-se confirmar a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam as juízas que constituem o colectivo da 2.ª secção do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
As custas do recurso recaem sobre a apelante, que nele decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Sumário: (…)
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Évora, 26 de Setembro de 2024
Maria Domingas Alves Simões (Relatora)
Eduarda Branquinho (1ª Adjunta)
Ana Margarida Leite 2ª Adjunta)

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[1] Sr.ªs Juízas Desembargadoras Adjuntas:
1.ª Adjunta – Sr.ª Juíza Desembargadora Eduarda Branquinho;
2.ª Adjunta – Sr.ª Juíza Desembargadora Ana Margarida Leite.
[2] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
[3] Juízo posteriormente reafirmado no acórdão do mesmo TC n.º 652/2022 (Proc. n.º 907/2021), de 18 de Outubro de 2022, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220652.html
[4] Assim sumariado:
I – No âmbito da citação das denominadas pessoas colectivas, conforme remissão operada pelo n.º 1 do artigo 246.º do Código de Processo Civil, a primeira opção ou modalidade legal é a citação (pessoal) postal inicial do artigo 228.º, mas condicionada com as especificidades do n.º 2 daquele normativo, devendo a citação operar-se na sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas;
II – reflecte tal normativo a natureza especial das pessoas colectivas, num juízo em que a criação ou participação numa inculca e comporta ónus e deveres, cuja imputabilidade recai sobre o ente colectivo, o que enforma ou justifica a relevância que o mesmo normativo concede ao registo obrigatório da sede (e eventual mudança desta);
III – a incondicional preferência legal, operada no Novo Código de Processo Civil – redacção conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06 –, é a da citação na sede estatutária, contrariamente ao antecedente regime de alternatividade de citação igualmente na sede de facto;
IV – tendo passado a recair sobre as pessoas colectivas (e sobre as sociedades) o ónus de correspondência efectiva entre o local inscrito como sendo o da sua sede e aquele onde esta se situa de facto, o que as obriga a atualizá-lo, em caso de alteração, sob pena de, não o fazendo, a sua citação poder vir a ser operatória em local correspondente a uma antecedente sede;
V – para a verificação do vício de falta de citação, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º, do Código de Processo Civil, determinante da verificação de nulidade principal, exige-se que se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável;
VI – não bastando à invocante a alegação de que não teve conhecimento do acto de citação, sendo ainda mister que alegue, e prove, não só que tal aconteceu, mas ainda que sucedeu por circunstâncias que não lhe são imputáveis.
[5] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 251.
[6] Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE anotado, QJ, 2.ª edição, em comentário ao preceito.
[7] Idem.
[8] Manuel Requicha Ferreira, “Estado de Insolvência”, incluído na Colectânea “Direito da Insolvência, estudos”, Coimbra Editora 2011, págs. 228/229, e também Catarina Serra, “A Falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito”, págs. 227 e seguintes.
[9] Carvalho Fernandes, João Labareda, ob. cit., págs. 83-84.
[10] Vide sobre este ponto específico, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 205.