JUSTO IMPEDIMENTO
DOENÇA
ADVOGADO EM CAUSA PRÓPRIA
MEIOS DE PROVA
Sumário

1 – O prazo para a apresentação de uma reclamação contra a não admissão de um recurso assume natureza peremptória.
2 – Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto.
3 – O justo impedimento funciona como uma cláusula geral de salvaguarda contra os efeitos das omissões involuntárias, bastando assim que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário.
4 – Este juízo de culpa é apreciado à luz do critério geral do n.º 2 do artigo 487.º[19] do Código Civil, de acordo com o critério da diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
5 – O certificado de doença que atesta a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem esclarecer a gravidade do mal, ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento.
6 – Se é certo que o mandatário não está obrigado a diligenciar por advogado substituto, no plano reflexo, nas situações de doença prolongada, o risco de não concessão de poderes representativos a outrem poderá correr por conta daquele que, negligentemente, não prevê essa impossibilidade de praticar o acto por mão própria, quando podia tomar as devidas cautelas exigíveis no quadro da sua situação clínica.
7 – Se não são nomeadas as circunstâncias factuais do caso que permitam considerar que o evento foi imprevisto e que a parte ficou impossibilitada de praticar atempadamente o acto, ou se não foi arregimentada a prova conducente à formulação desse juízo prudencial, o Tribunal não pode reconhecer que houve justo impedimento.
8 – Mesmo nos casos de doença impeditiva, a intervenção profissional não pode ser selectiva, sendo que a partir do momento em que o destinatário de qualquer notificação acede ao sistema informático e nele prática actos processuais têm de diligenciar pela leitura das notificações que lhe foram enviadas e, se não o fizer, fica sujeito ao efeito preclusivo do decurso do prazo e, consequentemente, é afastada a integração da situação na esfera do justo impedimento.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 86/16.6T8CCH.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém –Juízo de Competência Genérica de Coruche – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por (…) contra (…) e outros, a Autora veio interpor recurso da decisão que indeferiu o incidente de justo impeditivo relativamente à reclamação contra a não admissão de recurso previamente interposto.
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(…) é advogada e exerce o patrocínio em causa própria.
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Na parte com pertinência para a causa, por decisão datada de 28/09/2023, o Tribunal a quo decidiu:
«i) não ser aplicável aos autos o disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea b), do CPC, nem ocorrer nos autos motivo justificado que imponha a suspensão dos presentes autos ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, indefere-se o requerido pela Autora.
ii) julgar deserta a presente instância, uma vez que o processo se encontrava a aguardar impulso processual há mais de 6 meses».
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Em 10/11/2023, a (…) veio interpor recurso da referida decisão, solicitando o prosseguimento dos autos, com a designação de nova data para audiência de julgamento.
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Em 18/01/2024, foi rejeitado o recurso apresentado pela Autora por o mesmo não ser legalmente admissível, uma vez que o valor da acção era inferior ao valor da alçada do Tribunal recorrido.
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Em 22/04/2024, a Autora veio requerer que se julgasse verificado o justo impedimento e se reconhecesse que a parte se apresentou a requerer o incidente logo que ele cessou, julgando assim tempestiva a apresentação do recurso interposto.
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Constam dos autos dois certificados de incapacidade temporária para o trabalho: um emitido a 15/01/2024 que atesta que, por doença natural, a Autora esteve incapacitada entre os dias 08/01/2024 e 22/01/2024 e outro datado de 22/01/2024 que certifica a incapacidade no período compreendido entre 23/01/2024 e 21/02/2024.
Os referidos documentos mencionam que foi autorizada a ausência do domicílio no período compreendido entre as 11h e as 15h e das 18h às 21h.
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Ordenada a notificação da parte contrária, (…) e (…) pronunciaram-se, dizendo que a Autora não alegou nem provou de forma consistente a existência de justo impedimento para os efeitos pretendidos.
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Após a enunciação do historial do processo e a convocação de diversa jurisprudência relativa ao incidente de justo impedimento, o Tribunal a quo concluiu que «não ocorreu uma impossibilidade absoluta de a autora praticar o acto. De facto, tem sido entendimento da Jurisprudência que a doença de um advogado só releva para efeitos de integrar o conceito de justo impedimento se o incapacitar totalmente de avisar o cliente ou substabelecer em colega (…), o que manifestamente não aconteceu no presente caso, desde logo porquanto a autora não se encontrou internada em estabelecimento hospitalar e a doença não a incapacitava de sair do domicílio».
E, como tal, julgou não verificado o justo impedimento alegado pela Autora e entendeu que a reclamação à não admissão do recurso era extemporânea, por ter sido apresentada fora do prazo previsto no n.º 1 do artigo 643.º do Código de Processo Civil.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1 – Em 22/02/2024 a recorrente reclamou ao abrigo do disposto no artigo 643.º do CPC, da não admissão do recurso interposto em 09/11/2023, e no mesmo dia apresentou requerimento onde alegou a existência de justo impedimento para apresentar a reclamação apenas em 22/02/2024 tendo apresentado prova documental e requerido a produção de prova.
2 – Os certificados de incapacidade temporária juntos ao requerimento de 22/02/2024 atestam que a recorrente esteve doente e incapacitada para a sua actividade profissional nos períodos entre 08/01/2024 e 22/01/2024 e entre 23/01/2024 e 21/02/2024 e foram assinados por médico.
3 – Sobre esse requerimento de 22/03/2024 foi proferido o despacho de que ora se recorre, o qual não apreciou o requerimento de produção de prova.
4 – A produção de prova requerida destina-se a provar que a notificação do despacho de não admissão do recurso apenas teve lugar no dia 22/02/2024, por doença da recorrente.
5 – Tal prova destina-se a ilidir a presunção júris tantum do 248.º, n.º 1, do CPC.
6 – O despacho não se pronúncia acerca do requerido, o que constitui nulidade prevista no artigo 615.º/1/d), CPC, aplicável aos despachos ex vi do artigo 613.º/3, CPC.
7 – E o despacho ora recorrido padece também da nulidade de omissão de pronúncia pois que apenas se pronuncia acerca do justo impedimento da recorrente ter sido notificada (por alegadamente poder ir ao escritório …) , mas não se pronuncia acerca dos também alegados impedimentos, durante o período de doença, de conduzir, trabalhar, designadamente aceder a computador, fazer processamento de texto, e manusear legislação, documentos e dossiers, e porque por razões de segurança só a Autora tem conhecimento do nome de utilizador e palavra-passe que lhe dão acesso ao sistema Citius / Signius (artigo 615.º/1/d), do CPC, ex vi do artigo 613.º/3, do CPC).
8 – O Tribunal a quo decidiu considerar a alegação e prova do justo impedimento improcedentes.
9 – Não se compreende nem se pode aceitar que o Tribunal a quo tenha decidido considerar a alegação e prova do impedimento improcedentes.
10 – Partindo do artigo 140.º, n.º 1, do CPC, constata-se desde logo que o conceito de “justo impedimento” assenta na não imputabilidade do facto obstaculizador da prática tempestiva do acto à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste: artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil), justamente por se evidenciar que não houve culpa (e seu juízo de censurabilidade) na sua produção.
11 – De acordo com os atestados médicos juntos, a advogada signatária esteve doente no decorrer dos dias 08/01/2024 a 21/02/2024 e por esse motivo impedida do exercício da sua actividade profissional, na qual cabe indubitavelmente o receber notificações e elaborar reclamações.
12 – Não se descortina motivo, à luz do NCPC, para afirmar, como se afirmou no despacho recorrido, que “a doença de um advogado só releva para efeitos de integrar o conceito de justo impedimento se o incapacitar totalmente de avisar o cliente ou substabelecer em colega” e for súbita como releva da jurisprudência citada no despacho recorrido.
13 – Aliás, quanto ao facto de “avisar o cliente” estamos conversados, visto que a signatária é advogada em causa própria – por isso, por este raciocínio, nunca poderia estar justamente impedida de praticar actos.
14 – Enquanto o artigo 146.º, n.º 1, do CPC, na versão anterior ao DL n.º 329-A/95, de 12.12, determinava que se considera “(…) justo impedimento o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto por si ou por mandatário”, o DL 329/95 introduziu uma definição conceitual de “justo impedimento” muito mais flexível que a anterior, como se refere no respectivo Relatório, “em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração e densificação e concretização, centrados essencialmente na ideia de culpa, que se afastem da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam.”
15 – A norma na redacção do DL n.º 329/95 foi integralmente transposta , sem alterações, para o novo CPC e, de acordo com a mesma, para ocorrer “justo impedimento” basta que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por não ter tido culpa na sua produção.
16 – Como bem referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: “À luz do novo conceito, basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao seu mandatário, por ter tido culpa na sua produção. (…) Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário”.
17 – O facto de a recorrente não estar impedida de sair do seu domicílio – embora só o pudesse fazer em horas determinadas – não tem como consequência que a sua doença não fosse (seja) grave e impeditiva de exerce a sua actividade profissional.
18 – O estado clínico de qualquer paciente constitui uma matéria sensível e que está sujeita ao sigilo dos respetivos profissionais.
19 – Razão pela qual os médicos que atestam qualquer incapacidade ou impossibilidade inibem-se de explicações sobre a respetiva gravidade associada à descrição da doença.
20 – Até porque a conclusão de tal incapacidade ou impossibilidade é uma conclusão médica, que resulta da análise do estado clínico do paciente.
21 – Rege, a este propósito, o artigo 44.º do Regulamento n.º 707/2016, de 21 de Julho (Regulamento de Deontologia Médica).
22 – Não sendo posta em causa a fidedignidade do atestado médico, não há qualquer dúvida que o mesmo é idóneo a comprovar a situação de doença e a incapacidade que ela gera no caso.
23 – Sendo evidente que o atestado médico não pode fazer menção à doença de que a signatária padece, salvo consentimento expresso da mesma, ter-se-á de aceitar o juízo de impossibilidade de exercício da profissão que é dado pelo clínico que o subscreve.
24 – Mas mesmo que por hipótese o atestado especificasse o diagnóstico de que o doente sofre, nem por isso, o Tribunal ficaria habilitado, à míngua de um juízo médico, a determinar se a doença que fosse identificada, no caso daquele paciente, era ou não impeditiva da prática do acto processual.
25 – Também não existe na lei qualquer indicação de que a parte que alegar o impedimento deve provar não só esse mesmo impedimento como também a impossibilidade de substabelecimento.
26 – Aliás, a possibilidade de substabelecimento é facultativa, e não obrigatória, isto é, concede ao Mandatário a possibilidade de substabelecer em Colega os poderes que lhe foram conferidos, se aferir que o próprio Colega se encontra em condições de praticar o acto.
27 – No caso concreto, nem se trataria de um substabelecimento e sim de um mandato.
28 – Ora, a escolha do mandatário é realizada de forma pessoal e livre pelo representado, (assim não será quando o representado beneficie de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, visto que nesse caso o mandatário é nomeado pela Ordem dos Advogados).
29 – O artigo 66.º, n.º 3, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei 145/2015, de 09 de Setembro, refere expressamente que “o mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza”.
30 – Por sua vez, o artigo 69.º do EOA refere que, salvo quanto às restrições aplicáveis aos advogados-estagiários, “os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor não podem ser impedidos, por qualquer autoridade pública ou privada, de praticar actos próprios da advocacia”.
31 – E de forma cristalina o artigo 67.º/2, do EOA determina que “O mandato forense não pode ser objeto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha pessoal e livre do mandatário pelo mandante”.
32 – É assim claro que não é possível, no actual ordenamento jurídico português, que algum tribunal pretenda impedir um advogado de exercer o seu mandato e imponha que o seu cliente seja representado por outro advogado, que ele não escolheu.
33 – Resulta do artigo 20.º, n.º 2, da Constituição que a decisão sobre a representação de advogado não pode caber ao juiz, tendo sempre que resultar de uma decisão livre do cidadão a escolha do advogado que entende estar em condições de o representar.
34 – É, na verdade, um imperativo ético-jurídico não se exigir a quem se encontra acometido de doença incapacitante que pratique o acto ou, menosprezado as indicações médicas e a situação de saúde, diligencie em substabelecer, ainda que algum Colega o aceitasse.
35 – Como de forma cristalina se afirma no Acórdão do TCA norte, de 20.03.2015 “o instituto do justo impedimento tem o seu fundamento num imperativo de natureza ético-jurídica, cuja inteleção é de fácil apreensão e que se prende com o facto de não poder exigir-se a ninguém que pratique actos, em processos judiciais ou administrativos, que esteja absolutamente impossibilitado de, em determinado momento, levar a cabo, por razões que não lhe sejam imputáveis. O contrário consubstanciaria uma restrição inaceitável ao núcleo essencial do direito fundamental de acesso ao Direito previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa”.
36 – Ou seja, a interpretação do artigo 140.º, n.º 1, do CPC adoptada pelo tribunal recorrido padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º da CRP, para além de não ter qualquer apoio no texto da lei na sua redacção vigente, que não fala em imprevisibilidade, nem em substabelecimento, nem em avisar o cliente.
37 – Foram interpretadas incorrectamente e violadas as normas constantes do artigo 140.º do CPC, uma vez que a norma apenas exige a alegação e prova de justo impedimento para a prática do acto dentro do prazo devendo ter sido neste sentido tais normas interpretadas e aplicadas.
38 – Deve ser julgado verificado o justo impedimento, revogando-se a decisão que assim o não considerou e que julgou extemporânea a apresentação da reclamação contra a não admissão do recurso.
39 – Mas a actuação do tribunal recorrido é ainda mais grave, porquanto sabe ou devia saber qual a doença de que padece a signatária.
40 – O atestado médico de incapacidade para a actividade profissional junto como doc. n.º 1 ao requerimento de 20/09/2023 foi o atestado inicial para a doença em causa e foi emitido no Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil, EPE, da mesma forma que o doc. n.º 7 junto ao mesmo requerimento e relativo à inclusão em lista para cirurgia tem o endereço de correio electrónico do serviço do IPO responsável pela gestão de doentes.
41 – Tais documentos constam dos autos e deveriam ter sido considerados, sem necessidade que a signatária se espraiasse em mais considerações.
42 – Mas como dizia Miguel Torga “Neste mundo desapiedado e devassado não há mais lugar para o sofrimento íntimo, recolhido, que os bichos ainda podem sentir na toca. Agora já ninguém é dono de si e do seu pudor. Somos públicos e baldios”.
43 – A signatária considera ofensivo o comentário, feito no despacho, de que se escuda na sua doença para impedir o normal andamento dos autos, e não pode deixar de pensar que só quem passa pelo diagnóstico e tratamentos pelos que quais passou e continua a passar aprende a valorar a situação.
44 – Sem atentar que a principal interessada no normal andamento dos autos – de cobrança de honorários – é precisamente a recorrente, que, ao contrário de trabalhadores por conta de outrem e funcionários, se não trabalhar não ganha, visto que o seu sistema de previdência (obrigatório) não conhece o conceito de subsídio por doença, e se vê aqui impedida de cobrar até aquilo que lhe corresponde por já ter trabalhado.
45 – Normal andamento dos autos que de facto não se verificou (como a signatária explicou resumidamente nas alegações do recurso não admitido), pois que uma acção que é proposta em 2007 vê a sua primeira marcação de julgamento efectuada para Abril de 20021.
Nestes termos e nos mais de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente e ser revogado o despacho recorrido, sendo substituído por outro que considere procedente a alegação e prova do justo impedimento da advogada em causa própria, por verificação dos seus pressupostos legais, com as demais consequências, pois só assim se fará Justiça!».

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A parte contrária não contra-alegou. *
A fim de ser solucionada a questão da omissão de pronúncia quanto a diligência preterida pelo Tribunal a quo, foi ordenada a realização de perícia à actividade processual da Autora no Citius, tal como esta havia requerido, cujo resultado foi inserido nesses sistema informático no dia 24/07/2024.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de justo impedimento.
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III – Da factualidade com interesse com interesse para a justa resolução do recurso:
A factualidade com interesse para a justa decisão do recurso consta do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
O prazo para a interposição de recurso, apresentação de uma reclamação contra a não admissão de um recurso ou qualquer um que seja estabelecido para a prática de um determinado acto assume natureza peremptória. E, nesse espectro lógico-jurídico, o decurso do mesmo por inacção do interessado ou do seu mandatário conduz à extinção do direito de praticar tal acto, em conformidade com o n.º 3 do artigo 139.º[1] do CPCivil.
Este regime preclusivo comporta duas excepções. A primeira está relacionada com a possibilidade de a parte praticar o acto fora de prazo havendo justo impedimento. E a segunda é ultrapassada nos casos em que, independentemente de justo impedimento, a parte pratique o acto num dos três dias seguintes ao seu termo, pagando a multa fixada na lei.
Considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto[2].
O efeito do justo impedimento é o de «suspender o términus ad quem desse prazo, diferindo-o para o dia imediatamente subsequente àquele que que tenha sido o último da duração do invocado impedimento» e a invocação só será atendível se ainda não decorrido o prazo normal para a prática do acto, devendo a parte, logo que cesse o impedimento, praticá-lo alegando simultaneamente o justo impedimento, não o podendo fazer em data ulterior»[3] [4].
O justo impedimento funciona como uma cláusula geral de salvaguarda contra os efeitos das omissões involuntárias[5]. E, como tal, o instituto está centrado na ideia da não culpabilidade das partes, dos seus representantes ou dos mandatários[6]. Basta assim que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário[7].
No comentário de Lopes do Rego o que deverá relevar decisivamente para a verificação do “justo impedimento” «mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário (…) a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil»[8].
Porém, como adverte Teixeira de Sousa, o justo impedimento pode ser reconhecido mesmo quando não tenha ocorrido nenhum facto imprevisível. Basta, neste caso, que a omissão do acto resulte de um erro desculpável da parte, para que se deva considerar relevante o referido justo impedimento", uma vez que o que releva é «a eventual censurabilidade dessa omissão e não a ocorrência de um facto exterior à vontade da parte»[9].
O conceito de “justo impedimento” repousa assim no critério da não imputabilidade do facto obstaculizador da prática atempada do acto à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste, por força da extensão do 800.º[10] do Código Civil), quando não existam sinais da existência de um juízo de censurabilidade na sua produção.
Este juízo de culpa é apreciado à luz do critério geral do n.º 2 do artigo 487.º[11] do Código Civil, de acordo com o critério da diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Em função da prova produzida, o julgador tem de firmar a convicção que (i) o evento não é imputável à parte nem aos seus representantes, por não ter havido culpa (nomeadamente sob a forma de negligência) e (ii) obsta à prática tempestiva do acto.
Cumpre ao juiz apurar se o fundamento invocado reúne os requisitos legais e se ocorreu um cenário de impossibilidade absoluta de praticar directamente o acto, mesmo usando a diligência devida.
Nos Tribunais a corrente dominante aceita que a doença é um evento estranho à vontade da parte, mas entende que nem todas as patologias clínicas são imprevistas e obstam à prática atempada de um acto processual.
A invocação de doença por parte do mandatário só constituirá justo impedimento se se provar a total impossibilidade da prática do acto, o que exclui a situação de mera difficultas agendi or operandi.
Na jurisprudência é estabelecida uma linha de actuação em que é afirmado que o certificado de doença que atesta a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem esclarecer a gravidade do mal, ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento, uma vez que não indicia que não pudesse ser encarregada outra pessoa de praticar o acto[12].
Noutro aresto pode ler-se que, apesar de ser reconhecida a força plena da declaração constante do atestado, não se pode considerar abrangida pelo documento factualidade que não consta dessa declaração, designadamente aquela permitiria «considerar não ter havido culpa, negligência ou imprevidência do mandatário»[13]. Também nos Tribunais da Relação é idêntico o raciocínio do reconhecimento condicionado do justo impedimento fundamentado em doença do mandatário[14].
Regressando a Miguel Teixeira de Sousa, seja qual for a causa, de todo o modo, incumbe sempre à parte faltosa o ónus relativo à alegação e prova de factos que comprovem que essa causa se traduziu na impossibilidade não culposa da prática do acto[15]. Ou, na concepção de Lebre de Freitas, cabe à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo[16].
Podemos assim afiançar que só existe justo impedimento quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade "absoluta" de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligência normais não faziam prever.
No plano casuístico, as situações de doença súbita da parte ou do mandatário constituem justo impedimento quando configurem um obstáculo razoável e objectivo à prática do acto[17] [18].
Mesmo que exista uma protecção da intimidade e dos direitos personalidade do interessado que obstem à menção concreta da doença, devem ser mencionados os factos que viabilizem o vencimento da tese que a doença de que padeceu o advogado impediu a prática atempada do acto.
Se é certo que o mandatário não está obrigado a diligenciar por advogado substituto, no plano reflexo, nas situações de doença prolongada, o risco de não concessão de poderes representativos a outrem poderá correr por conta daquele que, negligentemente, não prevê essa impossibilidade de praticar o acto por mão própria, quando podia tomar as devidas cautelas exigíveis no quadro da sua situação clínica – recorde-se que, para além das suas sucessivas faltas a audiências de julgamento, a parte invoca que, desde a data em que foi proferido o despacho de não admissão do recurso interposto, com repercussão directa no andamento na regular tramitação do processo, se encontrou impedida de ter intervenção nos presentes autos, pelo menos, entre 08/01/2024 a 23/02/2024 e 22/05/2024 a 15/09/2024.
Por conseguinte, se não são nomeadas as circunstâncias factuais do caso que permitam considerar que o evento foi imprevisto e que a parte ficou impossibilitada de praticar atempadamente o acto, ou se não foi arregimentada a prova conducente à formulação desse juízo prudencial, o Tribunal não pode reconhecer que houve justo impedimento.
E a recorrente não conseguiu demonstrar essa impossibilidade absoluta. Mais do que isso, no caso concreto, feito um exame ao sistema Citius, o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça evidencia que, no período entre 22/01/2024 e 22/02/2024, a ilustre advogada apresentou requerimentos em diversos processos e teve assim possibilidade de, nesse período, ter acesso à notificação remetida em 19/01/2024 (pelas 12:26:38) – desta sorte, ainda que houvesse a preterição de uma diligência probatória, a solicitação efectuada pelo Tribunal ad quem sanou essa hipotética nulidade.
Nesta ordem de ideias, independentemente da data efectiva da leitura da notificação, a consulta e a intervenção no sistema Citius não pode ser selectiva. Assim, a partir do momento em que o destinatário de qualquer notificação acede ao sistema informático e nele prática actos processuais têm de diligenciar pela leitura das notificações que lhe foram enviadas, salvo caso de força maior ou de impossibilidade que aqui não se mostra evidenciado.
Em função disso, julga-se improcedente o recurso interposto e mantém-se a decisão recorrida.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do presente recurso a cargo da apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 26/09/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Artigo 139.º (Modalidades do prazo):
1 - O prazo é dilatório ou perentório.
2 - O prazo dilatório difere para certo momento a possibilidade de realização de um ato ou o início da contagem de um outro prazo.
3 - O decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato.
4 - O ato pode, porém, ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento, nos termos regulados no artigo seguinte.
5 - Independentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:
a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é fixada em 10% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC;
b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é fixada em 25% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC;
c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é fixada em 40% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC.
6 - Praticado o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25% do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário.
7 - Se o ato for praticado diretamente pela parte, em ação que não importe a constituição de mandatário, o pagamento da multa só é devido após notificação efetuada pela secretaria, na qual se prevê um prazo de 10 dias para o referido pagamento.
8 - O juiz pode excecionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte.
[2] Artigo 140.º (Justo impedimento):
1 - Considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato.
2 - A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.
3 - É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o n.º 1 constitua facto notório, nos termos do n.º 1 do artigo 412.º, e seja previsível a impossibilidade da prática do ato dentro do prazo.
[3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 61.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/05/2012, cuja leitura pode ser feita em www.dgsi.pt.
[5] Paula Costa e Silva, Acto e Processo, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pág. 314.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 184.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 274.
[8] Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, pág. 125.
[9] Miguel Teixeira de Sousa, in "Apreciação de alguns aspectos da «Revisão do processo civil - Projecto»", Revista da Ordem dos Advogados, vol. II, 1995, pág. 387.
[10] Artigo 800.º (Actos dos representantes legais ou auxiliares):
1. O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.
2. A responsabilidade pode ser convencionalmente excluída ou limitada, mediante acordo prévio dos interessados, desde que a exclusão ou limitação não compreenda actos que representem a violação de deveres impostos por normas de ordem pública.
[11] Artigo 487.º (Culpa)
1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010, que está presente em www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2015, cuja leitura pode ser realizada em www.dgsi.pt.
[14] Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/04/2011 e do Tribunal da Relação do Porto de 23/06/2014, disponibilizados em www.dgsi.pt.
[15] Miguel Teixeira de Sousa, "Artigo 140º", CPC on line, Lei 41/2013: artigos 130.º a 149.º, in Blog do IPPC, 2021, pág. 15.
[16] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 275.
[17] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, págs. 275-276.
[18] São exemplificadas na jurisprudência diversas ocorrências relacionadas com a doença súbita e imprevista, designadamente nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31/10/2000, 21/02/2001, 31/05/2005 e 31/10/2013, publicitados em www.dgsi.pt
[19] Artigo 487.º (Culpa)
1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.