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ACORDO
TRANSACÇÃO
PROVA
Sumário
I - O acordo validamente celebrado, entre credor e devedor, mediante o qual as partes acertam o montante em dívida e o devedor se obriga a pagar a dívida segundo um plano de amortizações acordado, constitui um contrato, análogo à transacção, não obstante dele resultarem obrigações, apenas para o devedor. II - Em tais situações o devedor não deverá ser admitido a fazer prova da inexistência da obrigação. (Sumário do Relator)
Texto Integral
2931/21.5T8STR.E1
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. (…), Unipessoal Lda., com sede na Rua da (…), Zona Industrial, Lote …, Golegã, instaurou contra (…) – Prestação de Serviços (…), Lda., com sede na Quinta das (…), Azambuja, acção declarativa com processo comum.
Alegou que no exercício da sua atividade forneceu à Ré, a pedido desta, adubos, fertilizantes, produtos fitofármacos, sementes, sacos para embalagens vazias, entre outros, emitindo as respectivas facturas que a Ré não pagou na sua totalidade, vindo ambas a celebrar, em de 30 de Julho de 2020, um acordo de reconhecimento e regularização da dívida existente à data, no valor de € 140.938,21, acrescido da quantia de € 22.579,47, a título de juros de mora, perfazendo o total de € 163.517,68, a liquidar pela Ré, em três prestações através de transferência bancária. Entretanto, após a celebração do referido acordo, a Autora forneceu à Ré outros produtos e artigos do seu comércio, emitindo as respectivas facturas e a Ré veio a realizar pagamentos por conta, encontrando-se em dívida a quantia de € 140.331,31.
Pediu a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 140.331,31, acrescida de juros.
A Ré contestou considerando, em resumo, que o alegado acordo de reconhecimento e regularização da dívida «constitui uma declaração unilateral sobre uma eventual dívida o que não determina a sua existência “ipso facto”», que a dívida não existe nos termos nele exarados e que, entre 10 de Agosto de 2018 a 10 de Agosto de 2020, pagou à Autora valores muito elevados, que discrimina, por conta dos fornecimento de produtos destinados à sua produção, valores estes que a Autora, sem acordo o seu acordo, imputou parcialmente a pagamento de dívidas da sociedade (…) – Sociedade de Agricultura de (…), Lda..
Concluiu pela absolvição do pedido.
2. Foi proferido despacho saneador a afirmar a validade e regularidade da instância, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Teve lugar a audiência final e depois foi proferida sentença, a dispor a final:
“Pelo exposto, julgando totalmente procedente a presente acção: a) Condeno a Ré (…) – Prestação de Serviços (…)Lda. a pagar à A. (…), Unipessoal, Lda, a quantia de € 140.331,31 – cento e quarenta mil trezentos e trinta e um euros e trinta e um cêntimos – acrescida de juros de mora à taxa de juros comerciais, contados sobre aquele capital desde a, data da citação e até integral pagamento”.
3. A Ré recorre da sentença, motiva o recurso e conclui:
“1ª) – A recorrente impugnou a douta decisão sobre matéria de facto dada por provada pelo tribunal de 1ª instância nos termos do preceituado no artigo do CPCivil;
2ª) – A recorrente indicou as questões de facto que considerou incorrectamente julgadas, os meios de prova (incluindo gravações) que em seu entender impunham decisão diferente da que foi doutamente proferida e o sentido da decisão que devia ter sido tomada;
3ª) – Entre as decisões que deviam ter sido tomadas importa desde logo realçar que a autora tem por objecto social o comércio de adubos, produtos fitofarmacêuticos, correctivos de solo, assistência técnica e formação;
4ª) – Em 30 de Julho de 2020, foi assinado pela Autora na pessoa do seu gerente, por (…), enquanto representante da ré, por (…), (…) e de novo por (…), o documento junto com a petição com o número dois;
5ª) – Embora o documento número dois junto com a petição inicial refira um anexo, esse anexo não estava junto ao documento no momento das assinaturas;
6ª) – O pretenso anexo junto aos autos é uma mera listagem intitulada de “pendentes” sem mais elementos, mormente sem lançamentos de pagamentos;
7ª) – A 01 de Março de 2021 a Ré fez uma transferência para a Autora no valor de € 60.000,00;
8ª) – O legal representante da Autora conhece os sócios da Ré há mais de 20 anos;
9ª) – O documento junto como n.º dois foi assinado pela legal representante da ré e pelos demais sócios daquela, pelo facto de o legal representante da autora lhes ter feito esse pedido expresso, dizendo ter problemas de financiamento junto da banca;
10ª) – O representante legal da autora disse-lhes que, caso assinassem aquele documento, a autora poderia apresentá-lo junto dos bancos e deste modo fazer a sua restruturação financeira;
11ª) – A ré apenas é devedora à autora da quantia de € 18.492,22 por conta de todos os fornecimentos de factores de produção que a autora lhe fez.
12ª) – O restante valor de € 121.839.09 diz respeito a facturas com os seguintes dizeres “Comissões, encargos, imposto de selo debitados pelo banco”, com excepção de uma factura que se refere a juros;
13ª) – Essas facturas não se encontram suportadas pela evidenciação dos gastos suportados pela Autora ou que justifiquem a sua emissão;
II) – SOBRE O DIREITO:
14ª) – O documento número dois junto com a petição constitui-se como um negócio jurídico unilateral, no que concerne ao reconhecimento, também uniliteral, de uma dívida, apesar do instrumento formal estar assinado, outrossim, pelo gerente da autora que surge como credora;
15ª) – Essa declaração, de um só sentido, consta da cláusula segunda do documento, bastando atentar na sua redacção;
16ª) – No mais o documento número dois, junto com a petição inicial, é um acordo que comporta um feixe de situações jurídicas complementares, mas acessórias, emergentes do princípio da liberdade contratual (artigo 405.º do Código Civil);
17ª) – O documento número dois, apesar dos considerandos nele apostos é subsumível à previsão genérica e abstracta do artigo 458.º do Código Civil, e isto porque, além do reconhecimento da uma divida, contém uma promessa de pagamento em prestações pecuniárias.
18ª) – E esta figura da promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida permite a convolação para o regime instituído e previsto no artigo 458.º do Código Civil na sua totalidade.
19ª) – E na verdade a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida consome o instituto da confissão ou, rectius, afasta-o à luz do princípio da uma norma especial acrescenta elemento próprio à descrição típica prevista.
20ª) – A recorrente deita mão do princípio de especialidade[1] no sentido de que o conteúdo normativo do artigo 458.º do Código Civil deve prevalecer, por ser norma especial, sobre o regime da confissão.[2]
21ª) – A recorrente logrou provar que todos os pagamentos que efectuou imputados ao pagamento de facturas de fornecimentos de factores de produção apenas deve a quantia de € 18.492,22 (dezoito mil, quatrocentos e noventa e dois euros e vinte e dois cêntimos).
22ª) – E o douto tribunal a quo não podia validar com os dizeres “Comissões, encargos, imposto de selo debitados pelo banco“, por não se referirem a juros de mora dado que não continham o valor do capital em dívida, a data do vencimento, o tempo de mora e a taxa aplicada ou aplicável.
23ª) – As facturas com aqueles dizeres não podem ser imputadas a juros de mora como se disse acima na conclusão anterior por se tratar de um abuso de direito manifesto.
24ª) – A recorrida abusou ilegitimamente do seu direito, porque excedeu, de forma clamorosa, os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico do direito a juros, de forma capciosa, o que se diz sem ofensa, mas com o sentido de esconder a sua verdadeira intenção;
25ª) – O abuso de direito foi cometido nos termos do artigo 334.º do Código Civil e é manifesto porque se apurou que as ditas facturas ascendem a um valor que é manifestamente exorbitante sendo o instituto de interesse e ordem pública.
26ª) – E isto porque a figura do abuso de direito é uma norma de interesse e ordem pública, como e disse, já que, operando entre privados, protege a realização de interesses sociais, como o de boa-fé, o fim social e económico do direito e dos bons costumes.
27ª) – Trata-se de orientações teleológicas que merecem a tutela do direito e se revelam importantes porque são socialmente úteis “impondo” que os sujeitos de direito ajam como pessoas de bem.
28ª) – O douto tribunal de 1ª instância, ao decidir como decidiu a matéria de facto, agiu de modo simplista e ligeiro, violando o artigo 607.º, n.º 4, do CPCivil, comando normativo que determina que o tribunal deve analisar criticamente as provas e deve tomar em consideração os factos provados por documento.
29ª) – O douto tribunal a quo não levou em consideração o documento junto pela ré aos autos na audiência prévia da autoria da testemunha (…) que depôs, nada sugerindo que não tivesse analisado de modo imparcial as contas entre autora e ré e não tivesse testemunhado com seriedade, honestidade e rigor.
30ª) – O douto tribunal de 1ª instância, ao eleger e aplicar o regime jurídico da confissão em detrimento do instituto do regime jurídico da promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida fez inadequada aplicação dos artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1 e 376.º do Código Civil e do 458.º do mesmo compêndio.
31ª) – A Ré ilidiu a presunção prevista no artigo 458.º do CC mas reconheceu dever € 18.492,22 (dezoito mil e quatrocentos e noventa e dois euros e vinte e dois cêntimos).
32ª) – É neste valor e só neste valor é que a ré pode vir ser condenada.
Nestes termos e os melhores de Direito que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, suprirão, se requer que julguem as presentes conclusões por provadas e fundamentadas, revoguem a douta sentença proferida, absolvendo parcialmente a Recorrente do pedido formulado, condenando-a na parte em dívida por ela reconhecida, neste processo, com todas as devidas e legais consequências,
Pois assim se fará a costumada JUSTIÇA!”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir: (i) a impugnação da decisão de facto, (ii) se o denominado “reconhecimento de dívida e acordo de regularização” constitui um negócio jurídico unilateral, com a faculdade da Ré ilidir a presunção de existência da dívida, (iii) se a Autora age com abuso de direito.
III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A decisão recorrida julgou assim os factos: Provado:
1- A Autora tem por objecto social o comércio de adubos, produtos fitofarmacêuticos, correctivos de solo, assistência técnica e formação.
2- Em 30 de Julho de 2020, a Autora representada pelo sócio-gerente (…), na qualidade de Primeira Contraente ou credora, a Ré representada por (…), na qualidade de Segunda Contraente ou devedora e (…), (…) e (…), na qualidade de fiadores, assinaram o documento denominado “reconhecimento de dívida e acordo de regularização”, do qual constam, designadamente, os seguintes dizeres:
“Considerando que: B) A Segunda Contraente incorreu em mora no pagamento à Primeira Contraente dos montantes devidos por (…) fornecimentos, que totalizam a esta data o montante total de € 140.938,21, em Dívida; (…) D) Deve ainda Segunda Contraente à Primeira Contraente os juros de mora vencidos que ascendem à presente data à quantia € 22,579,47, conforme anexo I que aqui se reproduz para todos os devidos e legais efeitos; E) As partes pretendem estabelecer um acordo de pagamento com vista a que o montante total em dívida de € 168.517,68, seja liquidado; É celebrado e reciprocamente aceite pelas partes o presente reconhecimento de dívida e acordo de regularização da mesma que, incluindo os considerandos anteriores, se rege pelas cláusulas seguintes e no que for omisso, pela legislação aplicável. (…) Cláusula segunda (Dívida) A Segunda Contraente reconhece e confessa a Dívida no montante de € 168.517,68 (…) conforme resulta da conta corrente que se anexa ao presente Acordo, obrigando-se esta a pagar o referido montante nos termos da cláusula seguinte. Cláusula terceira (Pagamento) 1. O montante acima referido será pago em 3 prestações mensais no montante de € 54.505,90, a primeira das quais será paga no último dia do mês de Fevereiro de 2021, a segunda prestação de igual valor será paga no último dia do mês de Maio de 2021 e a terceira prestação no montante de € 54.505,90, acrescida de juros a computar no dia, será paga no último dia do mês de Dezembro de 2021. 2. As prestações serão pagas por transferência bancária (…) 3. Com o pagamento de todas as prestações, a Primeira Contraente considerar-se-á integralmente compensada da quantia inserta no anexo I e ficarão integralmente extintas as obrigações da Segunda Contraente emergentes dos fornecimentos desse material, não podendo a Primeira Contraente exigir à Segunda Contraente qualquer outra quantia pelos mesmos fornecimentos, seja a que título for. Cláusula quarta (Fiança) O(s) Terceiro(s) Contraente(s) assume(m)-se como devedor(es) e principal(is) pagador(es) da Dívida perante a Primeira Contraente, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia. (…) Cláusula oitava (Efeitos do acordo) 1. Com a celebração do presente acordo, a Primeira Contraente compromete-se a não recorrer a meios judiciais para satisfação da Dívida, enquanto a Segunda Contraente cumprir as obrigações que deste derivam. 2. Na falta de um dos pagamentos, a Primeira Contraente utilizará este documento como título executivo nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil para satisfação do valor total da Dívida, acrescido de todos os juros de mora. (…)”[3] 3- Anexa ao acordo referido em 2 estava um documento com os dizeres “Pendentes em conta corrente”, “(…) Prest. Serviços (…), Lda.”, com movimentos a débito (facturas) e a crédito (notas de crédito), discriminando os respectivos documentos por números, data e montantes e mencionando a final “Total entidade: € 140.938,21”, na coluna “pendentes”; “22.579,27” na coluna “juros”.[4]
4- O documento elencado em 2 tinha por base a venda por parte da A. à R. ao longo dos anos, que os recebeu, de produtos do seu comércio, a saber, adubos, produtos fitofarmacêuticos, correctivos de solo, sacos e assistência técnica.
5- Todos os produtos acima elencados, e que deram origem à emissão documento indicado em 2 são suportados pelos elementos contabilísticos “facturas” identificados no documento referido em 3.
6- Em 01 de Março de 2021 a Ré fez uma transferência para a Autora no valor de € 60.000,00.
7- Tal valor foi imputado no montante de € 23.186,37 ao acordo elencado em 2, e o restante a outros fornecimentos posteriores a esse acordo feitos pela Autora quer à Ré, quer a outra entidade de que eram sócios os mesmos sócios da Ré.
8- O legal representante da Autora conhece os sócios da Ré e sua gerente há mais de 20 anos. Não provado:
a- O documento que consta do facto provado n.º 2 foi assinado pela legal representante da Autora e pelos demais, sócios daquela, pelo facto de o legal representante da Autora lhes ter feito esse pedido expresso, dizendo ter problemas de financiamento junto da banca.
b- E caso os mesmos assinassem aquele documento, a Autora poderia apresentá-lo junto dos bancos e deste modo fazer a restruturação financeira da mesma.
c- Os assinantes daquele acordo não verificaram se o montante lá indicado era efectivamente aquele que a Ré devia à Autora.
d- Que por via do acordo referido em 2, a Ré tenha feito outros pagamentos para fazer face ao valor aí referido, para além do montante de € 23.186,37 a que se alude em 5.
e- A Ré apenas é devedora à Autora da quantia de € 18.492,22 por conta de todos os fornecimentos que a Autora lhe fez, sendo que o restante montante de € 121.839.09 diz respeito a juros e outros encargos sendo que as respectivas facturas não se encontram suportadas com evidenciação dos gastos suportados.
f- (…) não é gerente da Ré.
1.2. A impugnação da decisão de facto
Com fundamento nos depoimentos das testemunhas … (sócio da Ré) e … [funcionária da Ré de 2014, com funções administrativas], a Autora impugna a matéria de facto julgada não provada sob as alíneas a) a c) dos factos não provados – “a - O documento que consta do facto provado nº 2 foi assinado pela legal representante da Autora e pelos demais, sócios daquela, pelo facto de o legal representante da Autora lhes ter feito esse pedido expresso, dizendo ter problemas de financiamento junto da banca”; “b- E caso os mesmos assinassem aquele documento, a Autora poderia apresentá-lo junto dos bancos e deste modo fazer a reestruturação financeira da mesma”; “c- Os assinantes daquele acordo não verificaram se o montante lá indicado era efectivamente aquele que a Ré devia à Autora”.
1.2.1. Sobre as alíneas a) e b) foram produzidos depoimentos contraditórios; segundo as declarações de parte do sócio-gerente da Autora, (…), o acordo de reconhecimento de dívida (documento reproduzido no ponto 2 dos factos provados) teve causa “nos atrasos dos pagamentosda Ré” com o acumular da dívida, “impossível de continuar”, tornado necessário “um plano de pagamentos com datas” [minutos 2:23 a 3:20 do depoimento]; no dizer das testemunhas (…) e (…), o acordo destinava-se ser entregue junto da banca pela Autora, uma vez que esta, segundo o seu gerente, “estava a ter problemas com os juros” ou “problemas com a banca” [minutos 3:00 a 3:20 e 8:10 a 8:20 e 12:00 a 12:30 dos respectivos depoimentos].
A decisão recorrida considerou ‘pouco crível’ os depoimentos das testemunhas (…) e (…) e julgou os factos não provados.
Decisão acertada, a nosso ver.
A explicação do legal representante da Autora é verosímil; a celebração de um plano de pagamentos entre o credor e o devedor cuja dívida se vai acumulando, privilegiando a manutenção da relação comercial que a ambos interessa, comporta um acto de gestão aceitável compaginável com as regras da experiência da vida.
A celebração de um plano de pagamentos fictício destinado a ser apresentado pelo credor junto da banca para facilitar ou tornar menos oneroso o acesso ao crédito, como explicaram as testemunhas, será menos frequente e, a verificar-se, constitui uma situação extraordinária, sobretudo quando verificada entre empresas, ainda que subsistam laços de cordialidade ou de amizade entre os respectivos titulares dos órgãos sociais.
Situação extraordinária a exigir provas extraordinárias que, no caso, não se verificam; pelo contrário, decorre do depoimento da testemunha (…) que, à data da assinatura do acordo, a Autora era credora da Ré – “uma vez que a gente naquela altura tínhamos alguns créditos a pagar ao Senhor” [minutos 3:10-3:10] – o que significa que o acordo não era fictício, a Ré, pelo menos, em alguma medida era devedora da Autora. Depois, as partes fizeram constar no acordo sob a designação “Fornecimentos futuros” o seguinte: “As partes acordam que, durante a vigência do presente acordo, a entrega de produtos por parte da Primeira Outorgante à Segunda Outorgante só será feita após pagamento do preço dos respectivos produtos encomendados”; cláusula hostil para a Ré, ante o histórico das relações comerciais entre as sociedades e até pessoais entre os respectivos sócios e gerentes e, decisivamente, escusada para os apontados fins de credibilização da Autora junto dos bancos; faz, porém, todo o sentido no âmbito de um plano de pagamentos.
A decisão proferida conforma-se, a nosso ver, com a prova produzida e, decisivamente, esta não impõe decisão diversa da empreendia em 1ª instância quanto a esta matéria (cfr. artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
A impugnação improcede quanto à decisão de facto constante sob as alíneas a) e b) dos factos não provados.
1.2.2. Quanto à alínea c) dos factos não provados, resulta do depoimento de parte do legal representante da Autora que a minuta do acordo de reconhecimento de dívida (documento reproduzido no ponto 2 dos factos provados) “foi levado para assinarem e, depois, de alguns dias devolveram” [minutos 14:32 a 15:00]. O depoimento da testemunha (…) tem o mesmo sentido, segundo ele o documento foi deixado na instalações da Ré para assinar “quando tivessem tempo” e foi a testemunha quem entregou o documento, depois de assinado, ao legal representante da Autora [minutos 12:00 – 12:30]; acresce, constituir incumbência desta testemunha conferir as facturas, designadamente, verificar da sua conformidade com os produtos entregues, é sua a expressão “confiro tudo” e, isto desde, 2014/2015 e a testemunha, segundo afirma, já havia verificado irregularidades nas facturas emitidas pela Autora (a existência de comissões, juros e encargos) e alertado os sócios da Ré (o pai, o tio) e a gerente (mãe); neste contexto é particularmente inverosímil que todas estas pessoas, já “alertadas” houvessem reconhecido uma dívida e assinado o documento, sem confirmarem o montante da dívida.
O facto, aliás, sempre seria irrelevante para a solução da causa segundo as várias soluções para a questão de direito, uma vez que não se vê, nem a Ré explica - apesar da minuta do recurso constituir uma peça processual com apontamentos notáveis – como lhe poderia aproveitar uma falta de cuidado (reconhecer uma dívida sem a verificar) a si exclusivamente imputável.
Sobre este ponto ainda se dirá algo mais infra.
A prova produzida não impõe decisão diversa sobre esta matéria.
A impugnação, nesta parte, improcede.
A Ré impugna ainda a decisão de facto relativamente aos pontos 3, 4 e 5 dos factos provados e alínea e) dos factos não provados; o conhecimento da a impugnação desta matéria surgirá, porém, prejudicada ante a solução encontrada para a questão de direito como, adiante, se procurará deixar esclarecido.
2. Direito
Fundada no incumprimento do denominado reconhecimento de dívida e acordo de regularização, de que dá conta o ponto 2 dos factos provados, para liquidação do qual a Ré (apenas) pagou a quantia de € 23.186,37, a Autor veio a juízo pedir a condenação da Ré no pagamento do remanescente (€ 140.331,31).
A decisão recorrida deu-lhe razão; qualificou o acordo havido entre as partes como uma confissão extrajudicial escrita em documento particular – “(…) pode-se concluir que aquele documento constitui a já referida confissão extrajudicial fazendo o mesmo prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento; da mesma forma os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e 376.º do CC)” – afirmou inexistirem “razões que impeçam, modifiquem ou extingam o pedido formulado” e condenou a Ré no pagamento da quantia de € 140.331,31, acrescida de juros.
A Ré não converge com a solução; considera que o documento designado por “reconhecimento de dívida e acordo de regularização”, “constituiu-se como um negócio jurídico unilateral, no que concerne ao reconhecimento, também unilateral, subsumível à previsão genérica e abstracta do artigo 458.º do Código Civil”, cujo regime lhe permitia ilidir a presunção de existência da dívida, o que logrou fazer ao provar “que todos os pagamentos que efectuou imputados ao pagamento de facturas de fornecimentos de factores de produção apenas deve a quantia de € 18.492,22”[cls. 14ª a 21ª] e termina suscitando o abuso de direito da Autora ao pretender o pagamento de “comissões, encargos, imposto de selo debitados pelo banco”, por não se referirem a juros de mora [cls. 22ª a 28ª].
Vejamos se com razão.
2.1. Dispõe o n.º 1 do artigo 458.º do Código Civil, doravante CC:
“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
E o n.º 2: “A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental”.
São requisitos da previsão: i)a simples declaração unilateral da promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida; ii) a ausência de indicação da respectiva causa.
Verificados estes requisitos, o credor fica dispensado de provar a existência da relação fundamental, a qual se presume (artigo 350.º, n.º 1, do CC), sem prejuízo de, ilidindo a presunção, provar que a relação fundamental não existe, por inválida ou ineficaz ou se verificar em relação a ela qualquer facto extintivo da obrigação.
A simples declaração unilateral significa que a promessa da prestação ou o reconhecimento da dívida, para produzir efeitos, não carece da aceitação do credor.[5] Ocorrendo a aceitação do credor o negócio jurídico não é unilateral, (não há somente a manifestação de uma vontade) é plurilateral (ao menos quanto à sua formação) e designa-se por contrato, ainda que dele derivem obrigações só para uma das partes, caso em que se qualifica por contrato unilateral.
Com efeito, o negócio unilateral distingue-se do contrato unilateral, “que é unilateral nos seus efeitos (dele derivam obrigações só a cargo de uma das partes), mas não o é na respectiva formação (nasce de um acordo de vontades). Ao passo que o negócio unilateral resulta de uma vontade isolada, verificando-se, pois, uma unilateralidade tanto nos efeitos como na formação.”[6]
O negócio reduzido a escrito pela Autora e pela Ré, em 30 de Julho de 2020, por elas denominado “reconhecimento de dívida e acordo de regularização” (ponto 2 dos factos provados) foi celebrado e aceite por ambas as partes – designadas por 1ª e 2ª contraente – e indica expressamente a causa: o incumprimento da Ré no pagamento de produtos que a Autora lhe vinha fornecendo e cujo montante acumulado, de acordo com o registo contabilístico da A. se cifrava em € 140.938,21,a que acresciam juros.
Assim, nem a declaração da Ré é unilateral, nem a dívida carece de causa; o negócio jurídico mediante o qual a Ré reconheceu a dívida para com a Autora não constitui uma “promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida”.
Trata-se, a nosso ver, de um contrato, não de um simples reconhecimento de dívida e embora dele derivem, essencialmente, obrigações para a Ré, não deixa de ser, pelas razões antes referidas, um contrato.
Contrato mediante o qual as partes acertaram o montante em dívida em € 168.517,68, a Ré reconheceu, confessou e obrigou-se a pagar o montante da dívida decorrente do acertamento[cláusula 2ª] e as partes estabeleceram um plano para o pagamento da dívida em prestações e com prazos (cláusula 3ª) [cfr. ponto 2 dos factos provados].
Neste contexto inexistem, a nosso ver, razões para interpretar o negócio, como uma mera confissão de dívida, isto é, para isolar a confissão da dívida, como o alfa e o ómega da disciplina contratual em detrimento da obrigação dela decorrente – obrigando-se esta a pagar o referido montante nos termos da cláusula seguinte [cláusula 2ª; ponto 2 dos factos provados] – esta sim, o epílogo de que a confissão não é mais do que pressuposto [note-se que o contrato não deixaria de produzir efeitos, isto é, de obrigar a Ré ao pagamento, ainda que no contrato inexistisse qualquer declaração expressa de confissão da dívida].
Contrato sujeito, como os demais em geral, a liberdade de estipulação (artigo 405.º, n.º 1, do CC) e a obrigatoriedade do cumprimento (artigo 406.º, n.º 2, do CC).
As partes são livres, dentro dos limites da lei, de fixar o conteúdo dos contratos, mas uma vez fixada e aceite a disciplina contratual esta torna-se vinculativa para os contraentes – faz lei para eles – e só pode modificar-se por acordo dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
“O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”[artigo 406.º, n.º 1, do CC].
A questão central colocada no recurso (e na contestação da Ré) prende-se com a modificação unilateral do contrato, isto é, segundo a Ré a dívida acertada entre ela e Autora não corresponde ao real valor que resultaria da diferença entre os valores dos produtos e serviços que a Autora lhe prestou e os pagamentos que lhe fez.
Não se aponta para – nem se defende – uma modificação das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, argumenta-se que as circunstâncias existentes à data do contrato eram diferentes (a dívida era menor) daquelas que serviram de base à elaboração do acordo (a dívida acertada foi maior do que a devida) e foram aceites pela Ré no âmbito da relação de confiança que mantinha no legal representante da Autora.
A ser assim, o que se admite por mera necessidade de raciocínio, trata-se de ligeireza ou imponderação da Ré na formação da sua vontade de contratar irrelevante, se bem vemos, para efeitos da perfeição da sua declaração negocial, ou seja, de uma circunstância que lhe é exclusivamente imputável e da qual não pode retirar qualquer proveito; solução diferente, isto é, a invalidação da declaração negocial – pensamos ser este o ponto, uma vez que a Ré alega os factos, mas omite o direito aplicável – assente na imponderação ou irreflexão dos contraentes na formação da declaração – fora dos casos em que a lei a admite, no caso, sem aplicação[7] – subverteria toda a lógica contratual inerente à obrigatoriedade do cumprimento e criaria a maior das dificuldades na segurança jurídica.
Assim, o negócio mediante o qual a Autora e a Ré acordaram um plano de pagamento de uma dívida, acertada no valor de € 168.517,68, obrigando-se a Ré a pagar a referida quantia em três prestações, com vencimentos, respectivamente, nos últimos dias dos meses de Fevereiro Maio e Dezembro do ano de 2021, é um contrato – análogo à transacção – que, como os demais, dever ser pontualmente cumprido e só pode modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
Fora destas situações, isto é, em caso de uma das partes visar a modificação unilateral do contrato não é de admitir a produção de prova sobre a inexistência, total ou parcial, da obrigação.[8]
Solução que prejudica o conhecimento da impugnação da decisão de facto relativamente aos pontos 3, 4 e 5 dos factos provados e alínea e) dos factos não provados, destinada como se mostra, toda ela, a demonstrar a inexistência parcial da obrigação de pagamento assumida pela Ré.
A Ré exercitou ainda um outro argumento: alegou que o acordo se destinava a ser apresentado pela Autora junto da banca que é como quem diz não se destinava a ter qualquer eficácia entre as partes ou, mais expressivamente, não era para cumprir. Sem o dizer expressamente parece apelar para o negócio simulado (artigo 240.º do CC).
Não demonstrou os factos [cfr. alíneas a) e b) dos factos não provados]. A simulação do negócio não se prova.
O recurso, improcede quanto a estas questões.
2.2. Abuso de direito
Depois de considerar que o tribunal “a quo não podia validar com os dizeres “comissões , encargos , imposto de selo debitados pelo banco, por não se referirem a juros de mora dado que não continham o valor do capital em dívida, a data do vencimento, o tempo de mora e a taxa aplicada ou aplicável” [cls. 22ª] afirma a Ré que a “recorrida abusou ilegitimamente do seu direito”, “porque se apurou que as ditas facturas ascendem a um valor que é manifestamente exorbitante” [cls. 23ª a 27ª].
A lei considera “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” – artigo 334.º do Código Civil.
Como desde há muito tem sido acentuado o direito cessa onde começa o abuso,[9] de modo que o uso, quando convertido em abuso, não pode colher da ordem jurídica a tutela que, em princípio, deveria merecer.[10]
O abuso de direito ocorre no exercício do direito, havendo reconhecimento do direito, a questão coloca-se de modo diferente, não será o seu exercício que é abusivo, será a decisão que o declara que está errada; e isto porque a decisão judicial que declara o direito não exercita o direito declarado, cumpre o dever de administrar a justiça.
Reconhecido o direito por sentença, o abuso no seu exercício não se configura.
A razão não parece, pois, estar do lado da Ré.
Acresce, que o abuso de direito vem configurado por referência a factos – “comissões, encargos, imposto de selo debitados” de “valor que é manifestamente exorbitante” – que não se provam (e sobre os quais a prova não é admissível) o que sempre obstaria a que tais factos (não provados) concorressem para a formação de um qualquer silogismo suposto pela decisão judicial [cfr. artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC].
O recurso improcede, restando confirmar a decisão recorrida
3. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Ré/recorrente o pagamento das custas [artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC].
Sumário da responsabilidade do relator (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)
IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 26/09/2024
Francisco Matos
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Eduarda Branquinho
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[1] Especialmente tratado no Direito Penal pode e deve ser usado no Direito Civil. A norma especial prevalece sobre a norma geral o que no modesto entender da recorrente se afere pela previsão da norma e depois pelo seu regime – a estatuição.
[2] Trata-se de evitar o “o bis in idem”.
[3] Suprimiu-se a “imagem” do documento que constava no original, por nos parecer errada, apesar de cómoda, a reprodução do meio de prova como facto discriminado como provado; a sentença deve discriminar os factos [artigo 607.º, nºs 3 e 4, do CPC], os quais não se confundem com os meios de prova destinados à sua demonstração.
[4] Pelas razões antes referidas, suprimiu a “imagem” do documento que constava no original.
[5] Cfr., v.g. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. 1º, 10ª ed., pág. 436; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed. pág. 463.
[6] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed. pág. 463.
[7] Note-se que mesmo o direito do consumidor à livre resolução do contratos tem um prazo para ser exercido (cfr. v.g. artigo 10.º do DL n.º 24/2014, de 14/2).
[8] Neste sentido, em caso com algumas semelhanças com o presente, cfr. Ac. STJ de 04-04-2024 (proc. 18679/21.8T8SNT-A.L1.S1), em www.dgsi.pt
[9] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, pág. 252, citando Planiol.
[10] Ac. RL de 16/05/2006 (proc. 3834/2006-7) disponível em www.dgsi.