CRIME DE RESISTÊNCIA
COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
Sumário

I - O crime de resistência e coação é de resultado cortado, pelo que a sua perfetibilização não está dependente da criação de um efetivo estado de obnubilação ou constrangimento no destinatário, impossibilitando a prática do ato, bastando-se com a adequação da conduta para a predito efeito e, aqui, embora as caraterísticas concretas do funcionário possam relevar no indicado juízo de adequação, não pode transmutar-se em critério subjetivo e mutável que degrade a objetividade de um comportamento violento.
II - e se refere que, só reflexamente, a incriminação protege a pessoa do próprio funcionário, dado que a incriminação se dirige direta e primacialmente à proteção da autonomia intencional do Estado, não poderão as subjetivas caraterísticas daquele funcionário concreto influenciar sobremaneira o processo subsuntivo de forma a aparentemente subverter o bem jurídico tutelado e sob o risco da insegurança e subjetividade que o enfoque na pessoa concreta do visado, como fator tornado essencial, necessariamente acomoda.
III - Se é verdade que os agentes policiais não são “homens médios”, a sobrevalorização das suas potenciais qualidades e caraterísticas, no tratamento do critério objetivo-individual necessário à densificação da adequação da conduta à obtenção do resultado prevenido pela norma, não poderá transformá-los em “super-homens”, capazes de estoica e insensivelmente, suportarem todos os atos, quando estes já são, objetivamente, violentos e com expressão em ameaças graves.
IV - Essencial e nuclear é que a ação do agente se traduza, objetivamente, na adoção de um comportamento violento capaz de, no plano da adequação, deduzir oposição ou constranger o agente que personifica a ação, poder e interesse do Estado, na execução das ações a desenvolver, sendo estas compreendidas no plano das suas atribuições e, por isso, legítimas, não hiperbolizando uma pressuposta capacidade acrescida para a desvalorização da conduta violenta, ou assumindo que um militar da G.N.R. ou um agente da P.S.P., pelo simples facto de o serem, deverão resistir e com indiferença a essa mesma ação, objetivamente violenta (sendo este, para nós, o critério aferidor essencial), tornando-a inidónea a pôr em causa o bem jurídico protegido.

(da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Proc. n.º 175/22.8GAVFR.P1







Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto




I.

I.1
Nos autos de processo comum n.º 175/22.8GAVFR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença de 19.02.2024 foi julgada procedente a acusação e, em consequência, decidiu-se (transcrição):
a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso real, de:
i. Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º n.º 1, al. a), do CP, na pena principal de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o montante global de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);
ii. Um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do CP, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, substituída por 480 (quatrocentas e oitenta) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade;
b) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 5 (cinco) meses, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do CP.

*

I.2
Inconformado, veio o arguido AA interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 15913353) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1. O presente recurso tem por objeto matéria de facto e de Direito;
2. A sentença recorrida contém erro de julgamento ao dar como provados os factos, ou pelo menos alguns segmentos dos mesmos, constantes dos n.º 7, 17 e 19 da Fundamentação de Facto.
3. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do artigo 412º, n.º3, alínea b), do C.P.P. são os seguintes;
a) As declarações prestadas pelo arguido na sessão de julgamento de 01-02-2024, das 10:03 às 10:29, nos momentos assinalados no corpo desta alegação;
b) o documento junto pelo arguido com a contestação, na data de 19/06/2023;
c) o depoimento das testemunhas arroladas na acusação: BB (sessão de julgamento do dia 01-02-2024, das 10:29 às 11:04, mas apenas até ao minuto 23:15), CC (sessão de julgamento do dia 01-02-2024, depoimento distribuído por dois ficheiros áudio, o primeiro, das 10:29 às 11:04, a partir do minuto 23:30 e, o segundo, das 11:07 às 11:26), DD (sessão de julgamento do dia 12-02-2024, das 14:20 às 14:35) e EE (sessão de julgamento do dia 01-02-2024, das 11:26 às 11:38), todas nos minutos assinalados no corpo da alegação;
d) o depoimento da testemunha de defesa FF, na sessão de julgamento do dia 01-02-2024, das 11:52 às 12:14, nos minutos assinalados no corpo da alegação.
4. O recorrente, pese embora reafirme que não se recorda de nada do ocorrido entre 17h30 e a chegada dos bombeiros ao posto da GNR, já para além das 22h00 do dia 24 de abril de 2022, não questiona a ocorrência do acidente em que interveio, ou, sequer, a deslocação ao local dos militares da GNR.
5. Também não coloca em causa que, na interação com os militares da GNR, com a reserva já referida supra, se tenha mostrado exaltado ou que, pelo menos, tenha tentado agarrar as fardas daqueles militares.
Porém,
6. O recorrente já questiona que, tendo-se dirigindo-se aos referidos militares, em tom de voz alto, tenha proferido a expressão constante dos n.ºs 7 dos factos provados, em “tom sério”.
7. Também não aceita que tenha sido dado como provado que, ao proferir as expressões referidas em 7, 9 e 12 dos factos provados tenha pretendido intimidar aqueles militares, bem como lhes provocar inquietação e receio de virem a sofrer ato atentatório das suas vidas,…”, como provado em 17.
Na verdade,
8. O recorrente, reafirmando não se recordar de nada do ocorrido, apenas se lembra de ter estado na festa e de, após ter ido à casa de banho, se sentar numa cadeira, ficar estático, sem conseguir mexer os olhos, tendo ficado tudo preto, e “ter apagado”, e de, quando voltou a si, quando começou a ver e a ouvir “já estava algemado dentro da cela”.
9. A testemunha BB confirmou que o arguido, além de estar aparentemente alcoolizado, “estava muito alterado), tendo adotado, no local do acidente, perante a força policial um comportamento fora do normal, falando muito alto, sentando-se, ajoelhando-se e pedindo perdão.
10. A testemunha CC, militar da GNR que ocorreu ao local do acidente, confirma igualmente o estado de agressividade e de embriaguez do arguido, mais tendo dito que o arguido “não dizia coisa com coisa” e “que não estava dentro dele”, querendo com esta expressão significar que “não era um comportamento normal para uma pessoa que estivesse só alcoolizada.”
11. O comportamento agressivo e fora do normal do arguido acentuou-se, aliás, já no posto da GNR, após a realização do teste de pesquisa de álcool, resultando na sua colocação em cela, tendo então o arguido começado às cabeçadas as paredes e portas, com berros e gritos.
12. Estes comportamentos do arguido motivaram inclusive a condução do mesmo ao hospital.
13. A testemunha DD, igualmente militar da GNR que ocorreu primeiramente ao local do acidente com a testemunha CC, além de confirmar o estado de embriaguez e a agressividade verbal do arguido, refere também que, já o posto da GNR, aquele adotou um estado de descontrolo, atirando-se contra as paredes e porta da cela, com gritos, que “nós achamos por bem acionar a ajuda médica”.
14. Esta testemunha confirmou, ainda que no dia seguinte o arguido pediu desculpas, mais tendo afirmado que não se recordava de nada.
15. Os militares EE e GG, confirmaram no essencial, o ocorrido no local do acidente, o estado de embriaguez do arguido e o comportamento deste aquando da detenção e a sua colocação no carro patrulha (batia com a cabeça nos vidros, empurrava os bancos com os joelho, estava aos berros e gritava).
Por sua vez,
16. Do depoimento, pungente e sofrido, da testemunha FF, mãe do arguido, que se deslocou ao local do acidente em momento anterior à chegada da patrulha da GNR, não assistindo à interação do recorrente com os militares da GNR, resulta que o arguido não estava apenas em estado de embriaguez.
17. Relatou a testemunha que, chegada ao local do acidente, o arguido estava ainda dentro do automóvel, com a cara encostada ao airbag, completamente alheado, não reconhecendo a própria mãe, num estado em que nem se movia, “ficou ali a olhar para o infinito”.
18. Perante este quadro de completo bloqueio do arguido, e tendo já a experiência do seu outro filho, diagnosticado com esquizofrenia, a testemunha decidiu levar para casa a filha e a ex-companheiro do arguido.
19. Ora, a comprovar o estado muito alterado do recorrente, esta testemunha referiu ter recebido uma chamada telefónica da GNR a informar que o ora recorrente não se encontrava muito bem, e a questioná-la se o recorrente sofria de algum problema de saúde mental, até para, “ficarmos um bocadinho mais aliviados”.
20. A testemunha em referência foi, ainda, contactada por elemento da força policial uma segunda vez, via telefone, a dar conta do comportamento do arguido após ter sido colocado em cela no posto da GNR (cfr. supa 11).
21. Estas diligência da GNR apenas se compreendem devido a uma atitude e comportamento do arguido que fosse completamente fora do normal.
22. Assim, a afirmação perentória, constante da motivação da matéria de facto, de que “apesar de o arguido ter procurado por diversas vezes, realçar que não possuía qualquer memória do sucedido, é evidente que o mesmo tinha consciência dos atos que praticava”, não encontra sustentação na prova testemunhal produzida em julgamento.
23. Da mesma forma, aparece como infundada a afirmação de que o recorrente tentou enganar os militares da GNR quanto à hora da ocorrência do acidente, desde logo, porque o próprio militar CC declarou que o arguido “não dizia coisa com coisa” e “não estava dentro dele”.
24. Aparece, assim, como evidente que o estado do arguido não derivava apenas e somente do estado de embriaguez, como, aliás, amiúde referido pelos militares da GNR (“não era um comportamento normal para uma pessoa que estivesse só embriagada”).
25. Não foi feita prova, ainda, do que foi dado como provado sob os pontos 17 e 18 da fundamentação de facto.
26. A atestar que o recorrente padece de problemas do foro psicológico/psiquiátrico o documento junto pelo mesmo em sede contestação, que prescreve medicação apropriada para esse fins.
27. Posto o que, o comportamento do arguido no posto da GNR, o qual motivou, aliás, a sua condução ao hospital, deveria constar da matéria de facto considerada provada, designadamente em complemento do que consta no n.º 13 dos factos provados.
28. Por tudo o exposto, reforça-se a ideia de que existe erro na apreciação da matéria de facto quando, no ponto 7 da mesma, se considera provado que “o arguido, dirigindo-se aqueles quatro militares em tom de voz alto e sério, proferiu …”.
29. Apresenta-se, aliás, como muito duvidoso, que o arguido tivesse sequer consciência do conteúdo das ameaças proferidas, as quais, se não se podem negar, nunca se poderão considerar que foram proferidas em “tom sério”.
30. De igual forma, tendo presente o estado em que o arguido se encontrava, é infundada a conclusão de que, com as expressões, o mesmo tivesse a intenção de intimidar os militares da GNR, bem como lhes “provocar inquietação e receio de virem a sofrer ato atentatório das suas vidas.”
31. Acresce, ainda, que, sendo evidente, por provado, que o arguido tinha uma taxa de álcool no sangue de 1,83 g/l, poderá existir uma dependência alcoólica, que, mesmo sem implicar uma eventual “inimputabilida diminuída”, lhe diminuiu, pelo menos, a capacidade intelectual e volitiva.
32. Em conclusão, e ao contrário do considerado provado em 19, extrai-se da prova produzida em julgamento que o arguido, nem quis agir da forma descrita nem, por outro lado, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Prosseguindo, e quanto à matéria de Direito,
33. Foi o recorrente condenado, além do mais, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e. p. pelo artigo 347, n.º 1 do C.P. .
34. E, mesmo considerando que a sentença recorrida não padece dos erros de julgamento da matéria de facto supra apontados, nem por isso, a fatualidade considerada assente permite a condenção do arguido pela prática do citado crime.
35. Para a verificação do tipo legal exige-se, desde logo, quantos aos meios de execução, que seja empregue “violência, incluindo ameaça grave ou aofensa à integridade física”.
36. No caso sub judice, mais que a violência física, onde é quase inócuo o agarrar da farda dos agentes pelo arguido, foram relevantes na condenação as expressões proferidas pelo mesmo, consideradas graves, uma vez que se traduziam em retirar a vida aos militares, ou, pelo menos, em agredi-los fisicamente.
37. Ora, sendo conhecida a dissonância na doutrina e jurisprudência sobre a idoneidade, em concreto, da “violência” apta a prosseguir ou obstaculizar, no caso, a atuação do membro das forças militarizadas (GNR), sempre se dirá que, conforme informa o douro acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18/05/2022, processo n.º 10/20.1PACVL.C1, disponível emwww.dgsi.pt, “A posição maioritária na nossa jurisprudência defende que para a integração do tipo, devem ser tido em conta para além das circunstâncias em que é praticado, as características do agente, e as especiais qualidades do destinatário (v.g. se é agente policial, que normalmente se faz acompanhar de arma fogo); quanto a este último ponto, defende-se que a idoneidade da violência há-de ser apreciada através de um critério objectivo-individual, pelo que membros das forças de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios…).”
38. Por outro lado, sendo incontroverso que o arguido estava, além do mais, em estado de embriaguez, como decidido já por este Alto Tribunal, no acórdão datado de 06/12/2023, processo n.º 567/20.7GBVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt – que, aliás, apresenta bastantes similitudes com o presente processo –, poderemos afirmar que: “I – Uma ameaça de morte proferida por pessoa visivelmente embriagada, exalando forte odor a álcool e de postura bamboleante, a par de verborreica, não terá o mesmo impacte no visado que teria essa mesma ameaça proferida por pessoa sóbria; nesta última hipótese, uma tal ameaça assumiria foros de seriedade de que se não revestirá a ameaça proferida pelo arguido dirigida a membros das forças de segurança, considerando as capacidades físicas e psíquicas e instrumentos de defesa destes relativamente ao cidadão comum.”
39. Pelo que, como concluído no mesmo acórdão, “No caso em apreço, a descrita atuação do arguido nas circunstâncias de visível intoxicação pelo álcool em que se encontrava e perante dois membros das forças de segurança não constitui violência adequada a coagir, para efeitos de preenchimento do crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo. 347.º, n.º 1, do Código Penal.”
40. Com entendimennto similar, também, o acórdão deste mesmo Tribunal da Relação do Porto, datado de 17/04/2013, processo n.º 579/12.2GCOVR.P1, disponível em www.dgsi.pt, de cujo sumário se transcreve o seguinte: “IV - Não comete o crime de resistência e coação sobre funcionário o agente que, ao ser-lhe dada voz de detenção, empurra dois agentes da GNR, começando a debater-se, a empurrar e a esbracejar para evitar a detenção, ao mesmo tempo que grita: “seus filhos da puta, eu vou-vos foder, eu mato-vos, vocês vão pagar por isto, estão fodidos” já que tal conduta não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais dos agentes da GNR.”
41. Pelo que, o arguido não praticou o crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e. p. pelo artigo 347, n.º 1 do C.P. .
Por outro lado, e sem prescindir,
42. Pese embora o aqui recorrente não conteste a sua condenação, em pena de multa, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ou, por outro lado, os dias de multa em que foi condenado, ou, ainda, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, já o mesmo não sucede relativamente ao quantitativo diário daquela pena de multa.
43. Na verdade, entende o recorrente que o tribunal a quo também não teve na devida consideração o que dispõe o artigo 47.º, n.º 2, do mesmo Código Penal, quanto ao quantitativo diário da multa.
44. Apurou-se (condições pessoais, sociais e económicas do arguido e com interesse para a decisão de mérito) o seguinte: (21) O arguido é operário fabril e aufere o salário mínimo nacional; (22) O arguido vive sozinho, nuns anexos pertencentes à casa da sua mãe, por cuja utilização não paga qualquer valor, a não ser as despesas inerentes ao fornecimento de serviços públicos essenciais; (23) O arguido tem uma filha com 4 anos de idade; (24) O arguido paga uma pensão de alimentos à filha no valor de € 75,00 mensais e tem um crédito pessoal, para o automóvel, no valor mensal de € 110,00.
45. De acordo com o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal que “Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.”
46. O tribunal recorrido condenou o arguido, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez – que, repete-se, aqui não se discute –, na pena principal de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), ou seja, no montante global de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros).
47. Na fixação do quantitativo diário da pena de multa, como decidido no Acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 09/02/2011, processo n.º 32/10.0GBVNH.P1, disponível em www.dgsi.pt, é necessário realizar uma ponderação essencialmente económica, considerando não só os rendimentos mensais do arguido, mas toda a situação económico-financeira do mesmo, e que “a multa é uma verdadeira reação criminal de índole económica (...), pelo que a sua aplicação deve ser submetida a critérios de igualdade de sacrifícios e ónus, originando uma agravação da situação económica do condenado”, e que, por outro lado, “Naturalmente que nesta ponderação, deverá igualmente ter-se em atenção “o mínimo dos mínimos” de subsistência económica de qualquer pessoa...”
48. Pelo que, considerando o valor atual da retribuição mínima mensal garantida, que é no montante de € 820,00 (oitocentos e vinte euros), de acordo com o D.L. n.º 107/2003, de 17 de novembro, o valor do indexante dos apoios sociais fixado, de acordo com a Portaria n.º 421/2023, de 11 de dezembro, no valor de € 509,26 (quinhentos e nove euros e vinte e seis cêntimos), e a situação pessoal, familiar e económica do arguido, o quantitativo diário da pena de multa deve ser fixado em valor não superior a €6,00 (seis euros).
49. Em conclusão, a sentença recorrida violou, interpretou incorretamente ou não aplicou, entre outros, os artigos 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 2 e 347.º, n.º 1, todos do Código Penal.
TERMOS em que, e sempre com o douto suprimento, deve o presente recurso ter provimento, e, em consequência:
absolver-se o arguido da prática do crime de resistência e coação sobre funcionário;
sem prescindir,
reduzir-se o quantitativo diário da pena de multa em que o arguido foi condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a valor não superior a € 6,00 (seis euros),
Assim se fazendo, como é timbre, JUSTIÇA.
*

I.3
Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou articulado de resposta (Ref.ª 16060785), manifestando-se pela preservação da peça impugnada, referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
I. A sentença recorrida revelou adequadamente e com suficiência como chegou à fixação da matéria de facto provada e não provada, tendo apreciado a versão apresentada pelo arguido, por todas as testemunhas, cujos depoimentos analisou criteriosa e exaustivamente, explanando as razões do seu crédito ou descrédito;
II. Assistida a prova pessoal em audiência de julgamento conjugada com a prova documental e, depois de efetuada a leitura da sentença que se debruçou sobre ela na fundamentação da matéria de facto, não se pode concluir que o Tribunal “a quo” tenha apreciado arbitrariamente a prova e que se impunha uma decisão diversa;
III. Não é possível alterar a matéria de facto, ainda que os sujeitos processuais tenham convicções pessoais diferentes sobre a valoração da prova que foi feita;
IV. Na ausência de confissão, a factualidade objetiva dada como provada permite de acordo com os parâmetros da normalidade dar por verificado o elemento subjetivo do crime de resistência e coação;
V. Diga-se que da prova produzida em audiência de julgamento não se impôs qualquer dúvida relativamente à capacidade intelectual e volitiva do arguido na prática do crime de resistência e coação, pois que o arguido quando foi abordado pelos militares da GNR estava perfeitamente consciente, na medida em que lhes relatou que “o acidente tinha ocorrido nessa manhã, sendo que, após, se tinha dirigido a um café, aí tendo estado a ingerir bebidas alcoólicas, e, entretanto, tinha regressado ao veículo”, ou seja, foi capaz de contar, o que na sua opinião, tinha acontecido;
VI. Por conseguinte, não houve erro de julgamento por violação do artigo 127.º, do C.P.P.;
VII. O arguido foi interveniente num acidente de viação e, momentos depois, quando foi abordado pelos agentes de autoridade, dirigiu-se a eles de forma exaltada e agarrou-lhes pela farda;
VIII. Perante a postura do arguido, os militares da GNR solicitaram a presença de outra patrulha no local;
IX. Na presença dos militares da GNR, o arguido manteve a sua postura agressiva e em voz alta e tom sério disse: “eu mato-vos a todos!”;
X. Mesmo sendo advertido pelos militares da GNR, o arguido persistiu e disse: “Ou me deixam ir embora ou mato-vos a todos!”;
XI. Já no posto da GNR e após ter feito o teste de despistagem de álcool no sangue o arguido encostou a cabeça à do militar CC e proferiu a seguinte expressão: “se não me deixas ir embora, dou-te já aqui uma cabeçada!”;
XII. Nesse momento, o arguido “foi algemado e conduzido à cela ali existente, onde voltou a proferir as expressões mencionadas”;
XIII. A manutenção de reiteração dos atos de violência (física\psicológica) dados como provados na sentença, no contexto e na forma que ocorreram, permitem concluir que a conduta global do arguido foi idónea a obstaculizar de forma relevante a referida ação interventiva dos militares da GNR, encontrando-se, deste modo, preenchido o tipo de crime previsto no artigo 347.º, n.º 1 do C.P.;
XIV. O facto de uma pessoa estar alcoolizada pode exponenciar comportamentos violentos e descontrolados que não podem deixar de ter significado para os visados dessas condutas;
XV. O argumento de que os militares da GNR têm especiais capacidades e aptidões que são inerentes à sua função, como sejam as decorrentes da formação, treino ou adestramento ministrados com vista a poder resistir a níveis de oposição e constrangimento que sejam normalmente de esperar no exercício das suas funções, como se de “máquinas” ou “robots” se
tratassem, não deve prevalecer em termos absolutos, afastando a verificação do tipo legal de crime de resistência e coação, sobretudo quando em causa estão condutas manifestamente hostis, reiteradas, diversificadas, de violência física e psíquica, que sobre eles é dirigida com o propósito de os intimidarem e levarem-nos a abster-se de praticarem atos relativos ao exercício das suas funções;
XVI. Ainda que por hipótese, que não se concede, a conduta do arguido não integrasse o conceito de “violência adequada a coagir” os agentes de autoridade a absterem-se de praticar atos relativos ao exercício das duas funções, ela não deixará de, no mínimo, atingir a liberdade de ação e decisão dos agentes de autoridade, ali se abarcando a paz jurídica individual e o sentimento de tranquilidade e segurança pessoal, motivo pelo qual sempre teria de ser condenado pela prática dos crimes de ameaças agravadas, p. e p. pelo art.ºs 153º e 155º, n.º 1, als. a) e c) do C.P. sem que isso representasse qualquer alteração substancial dos factos;
XVII. O arguido é operário fabril e aufere o salário mínimo nacional, vive sozinho, nuns anexos pertencentes à casa da sua mãe, por cuja utilização não paga qualquer valor, a não ser as despesas inerentes ao fornecimento de serviços públicos essenciais, tem uma filha com 4 anos de idade e paga uma pensão de alimentos no valor de € 75,00 mensais, tem um crédito pessoal, para o automóvel, no valor mensal de € 110,00 e possui o 9.º ano de escolaridade;
XVIII. O quantitativo diário de 5,00€ apenas deverá ser aplicado aos condenados de mais baixos rendimentos, designadamente àqueles que nem sequer ganham o suficiente para fazer face às necessidades mais elementares;
XIX. Assim, afigura-se-nos ajustada à situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, a taxa diária de 7,00€ que foi fixada na sentença, razão pela qual não foi violado o disposto no art.º 47º, n.º 2 do C.P.
Termos em que, deve o recurso interposto pelo ora recorrente ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida.
V.ª(s) Ex.ª(s), porém, e como sempre farão, JUSTIÇA
*

I.4
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do não provimento do recurso, aderindo à fundamentação constante da resposta (Ref.ª 18115164).
*

I.5
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*

II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso, apreciar:
a) Do erro de julgamento;
b) Do crime de resistência e coação sobre funcionário;
c) Da adequação do quantitativo diário da multa.
*

III.
Apreciando.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença recorrida, nas partes relevantes para o conhecimento do objeto do recurso:
(…)

3. Fundamentação de facto
3.1. Factos provados
Da instrução e discussão da causa, com relevância para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos relativos à acusação pública:
1. No dia 24 de abril de 2022, pelas 20H45, na Travessa ..., ..., ..., o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-SJ, onde transportava a sua filha menor, tendo sido interveniente em acidente de viação.
2. Devido a tal acidente, o veículo conduzido pelo arguido ficou imobilizado, com os airbags acionados e saídos, mantendo-se o arguido no interior do veículo, no lugar do condutor.
3. Tal acidente foi comunicado, através de telefone, à GNR e, por isso, pelas 20H50, desse dia, CC e DD, Guardas da GNR que se encontravam fardados e no exercício das suas funções de patrulha às ocorrências, no Posto da GNR de ..., dirigiram-se àquele local.
4. Aí chegados, abordaram o arguido com vista a perceber o que havia ocorrido e com vista a efetuarem a participação de acidente.
5. De imediato, o arguido, mostrando-se exaltado, abeirou-se dos referidos militares agarrando-lhes as fardas, tendo sido pelos mesmos advertido de que o não deveria fazer e para se manter calmo.
6. Nessa altura, foi solicitada pelos referidos militares a presença no local de uma outra Patrulha da GNR de ..., esta constituída pelos militares da GNR EE e GG.
7. No decorrer da elaboração do expediente sobre o acidente, o arguido, dirigindo-se àqueles quatro militares, em tom de voz alto e sério, proferiu a seguinte expressão: “eu mato-vos a todos!”.
8. Foi então advertido pelos mesmos que se continuasse com tal comportamento seria detido.
9. Apesar das advertências que os referidos militares iam fazendo ao arguido para este se acalmar e findar com aquelas expressões senão ia ser detido e presente a tribunal, o arguido persistiu proferindo a seguinte expressão: “Ou me deixam ir embora ou mato-vos a todos!”.
10. Nesta altura, foi dada voz de detenção ao arguido, tendo o mesmo sido conduzido ao Posto da GNR de ....
11. No interior do Posto, pelas 21H59, foi submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, com a utilização do aparelho da marca DRAGER ALCOTEST, 9510 PT, série ARME- 0069, tendo acusado uma TAS de 1,83 g/l, correspondente a uma TAS de 1,684 g/l após dedução do erro máximo admissível.
12. Após efetuar tal teste e conhecer a taxa de álcool, o arguido voltou a ficar exaltado, encostou a cabeça à do militar CC e proferiu a seguinte expressão: “se não me deixas ir embora, dou-te já aqui uma cabeçada!”.
13. Ato contínuo o arguido foi algemado e conduzido à cela ali existente, onde voltou a proferir as expressões mencionadas.
14. Antes de iniciar a condução, o arguido tinha ingerido bebidas alcoólicas.
15. O arguido sabia que antes de iniciar a condução do aludido veículo havia ingerido bebidas alcoólicas e que a quantidade destas bebidas por si ingeridas lhe determinaria uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l e, não obstante, quis conduzir o aludido veículo em via pública nas circunstâncias descritas.
16. O arguido quis agir da forma descrita e agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
17. O arguido sabia que tinha perante si agentes da autoridade e, não obstante, opôs-se verbalmente à sua atuação, proferindo as expressões enunciadas com o propósito de os intimidar e de lhes provocar inquietação e receio de virem a sofrer ato atentatório das suas vidas, e de os perturbar e impedir a prática dos atos que resultavam do desempenho de tarefas compreendidas nas suas atribuições, designadamente a elaboração da participação de acidente e o expediente relativo à condução em estado de embriaguez.
18. O arguido sabia que os Guardas supra identificados eram militares da GNR e que atuavam no exercício das suas funções de polícia e por causa delas, sendo as referidas atitudes determinadas por causa de tais funções.
19. O arguido quis agir da forma descrita e agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
20. No dia seguinte a estes acontecimentos, o arguido pediu desculpa pelo sucedido aos militares da GNR CC e DD.
No que respeita às condições pessoais, sociais e económicas do arguido e com interesse para a decisão de mérito, provaram-se ainda os seguintes factos:
21. O arguido é operário fabril e aufere o salário mínimo nacional.
22. O arguido vive sozinho, nuns anexos pertencentes à casa da sua mãe, por cuja utilização não paga qualquer valor, a não ser as despesas inerentes ao fornecimento de serviços públicos essenciais.
23. O arguido tem uma filha com 4 anos de idade.
24. O arguido paga uma pensão de alimentos à filha no valor de € 75,00 mensais e tem um crédito pessoal, para o automóvel, no valor mensal de € 110,00.
25. O arguido possui o 9.º ano de escolaridade.
26. O arguido foi condenado no âmbito dos seguintes processos:
a. No processo comum n.º 35/14.6GEVFR, foi condenado por factos praticados a 30/11/2014 e sentença transitada em julgado a 21/01/2016, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 7,00, o que perfaz o montante global de € 420,00, a qual foi substituída por trabalho e declarada extinta por pagamento da multa em 28/10/2018.
b. No processo comum n.º 7/18.1GGVNG, foi condenado por factos praticados a 22/02/2018 e sentença transitada em julgado a 15/06/2020, pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.
*
3.2. Factos não provados
Não ficaram por provar outros factos, sendo que os demais não foram referidos por serem irrelevantes, conclusivos, por conterem matéria de direito ou por se apresentarem em contradição com os factos provados.
*
3.3. Motivação da matéria de facto
No âmbito do processo penal, vigoram, entre outros, os princípios da investigação e da verdade material, por um lado, e os princípios da acusação e da presunção de inocência, por outro. A ser assim, impõe-se que o Tribunal produza a sua decisão através dos meios de prova validamente produzidos, independentemente de quem os ofereceu, e ainda que investigue e esclareça oficiosamente os factos em busca da verdade material, sem, contudo, atropelar os direitos do arguido, boa parte deles constitucionalmente consagrados.
Deste modo, a convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados e não provados foi formada pela análise, crítica e global, das provas produzidas em sede de audiência de julgamento, a qual assenta nas regras legais quanto às provas e meios de prova admissíveis, nas regras da experiência comum, e ainda na livre convicção do julgador (cfr. artigos 125.º e 127.º e 374.º, n.º 2, do CPP), tal como se passa a expor de seguida.
O arguido prestou declarações em sede de julgamento. Todavia, limitou-se a circunstanciar os momentos que antecederam o episódio descrito no libelo acusatório, bem como os que se lhe seguiram, afirmando insistentemente que não possuía qualquer memória referente ao período compreendido entre as 17h30 e o final da noite, quando já se encontrava na cela do posto da Guarda Nacional Republicana (doravante, GNR) de ....
Com efeito, o arguido referiu que, no dia 24/04/2022, pela hora de almoço e durante a tarde (pelo menos até ao momento de que tem memória), se encontrava na festa da comunhão de uma prima da sua ex-companheira, em .... Confirmou ainda que, ao almoço, tinha “bebido dois copos de vinho”, e que, durante a tarde, estava “relativamente bem, ainda tinha noção das coisas, não estava ourado”. No entanto, recordava-se de ter ido à casa de banho por volta das 17h30, momento a partir do qual o seu “campo de visão fechou e apaguei”, não tendo mais nenhuma memória desse dia, até ter “acordado na cela”.
Ainda assim confirmou que a sua ex-companheira lhe havia relatado, nos dias imediatamente subsequentes, que o mesmo tinha saído a conduzir da referida festa, transportando no seu veículo automóvel, para além da sua ex-companheira, a filha de ambos, e ainda o seu “sogro”. Mais confirmou que o veículo automóvel ligeiro de passageiros de que é proprietário, com a matrícula ..-..-SJ, tinha sido interveniente num acidente de viação também nessa altura, tendo sido capaz de descrever os danos provocados no mesmo.
Deste modo, as declarações do arguido em nada contribuíram para infirmar o descrito no libelo acusatório, permitindo até precisar as características do veículo em causa, bem como o facto de transportar a sua filha menor no referido veículo (factos que, por não traduzirem uma alteração substancial de factos e terem resultado do alegado pela defesa foram, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.os 1 e 2, do CPP, aditados àquela acusação).
Pelo contrário, as declarações da testemunha BB, que reside na Travessa ..., ... (local do acidente), e que assistiu ao embate do veículo automóvel de matrícula ..-..-SJ num poste situado nesse arruamento, bem como das quatro testemunhas militares da GNR que se deslocaram ao local do embate (CC, DD, EE e GG) foram essenciais para formar a convicção do Tribunal sobre a verificação dos factos dados como provados.
Com efeito, o relato da testemunha BB foi absolutamente imparcial e claro, tendo a mesma esclarecido o Tribunal que, quando se encontrava na zona do quintal de sua casa, pouco depois das 20h00, ouviu o barulho de um veículo automóvel a movimentar-se com velocidade, tendo de seguida visto o mesmo a bater contra o poste de madeira que se encontra na Travessa ... (cfr. fotografias n.os 6 e 7 do relatório fotográfico de fls. 24-25 e participação do acidente de fls. 27-28) e a ficar imobilizado nesse local com os airbags disparados. A testemunha relatou ainda que conseguiu ver que era o arguido (que reconheceu na sala de audiências) quem conduzia o referido veículo, nele se fazendo também transportar uma pessoa adulta do sexo feminino, uma pessoa adulta mais velha do sexo masculino e ainda uma criança pequena. A testemunha foi perentória ao afirmar não ter dúvidas de que era o arguido quem conduzia o veículo automóvel.
Após o embate, a testemunha esclareceu que os ocupantes adultos, incluindo o arguido, saíram do veículo e começaram a discutir entre si (“estavam enervados”), tendo a testemunha conseguido perceber que a pessoa do sexo feminino se dirigia ao arguido dizendo que o tinha avisado para que não bebesse. Durante esse momento, a testemunha BB conseguiu perceber que o arguido aparentava estar alcoolizado, uma vez que estava “muito alterado”, falava muito alto, tanto se sentava como se colocava de pé, e em alguns momentos desequilibrava-se.
A testemunha BB referiu ainda que o arguido e a pessoa do sexo masculino que o acompanhava empurraram o veículo automóvel para um descampado existente no final do arruamento, conforme resulta das fotografias n.os 1 e 2 do relatório fotográfico de fls. 24-25 com as quais a testemunha foi confrontada e que confirmou.
Do depoimento da testemunha BB resultou ainda que foi esta quem ligou para a GNR, dando conta do acidente, sendo que, quando a patrulha chegou ao local, já só lá se encontrava o arguido.
As testemunhas CC e DD são militares da GNR e à data dos factos, exerciam funções no posto de ..., tendo sido os primeiros a chegar ao local do acidente. Nos seus depoimentos, as testemunhas relataram ao Tribunal, de forma clara e concisa, os factos ocorridos no dia e hora constantes da acusação, corroborando o teor do auto de notícia que deu origem aos presentes autos e que consta de fls. 16-17 (ao qual se atendeu nos termos dos artigos 355.º e 356.º, n.º 1, al. a), do CPP).
Assim, ambas as testemunhas confirmaram o motivo pelo qual a patrulha havia sido acionada àquele local (ocorrência de acidente) e que, à sua chegada, apenas o arguido ali se encontrava, sentado no lugar do condutor do veículo com a matrícula ..-..-SJ com os airbags disparados, tal como o demonstram as fotografias n.os 3 a 5 do relatório fotográfico de fls. 24-25. Confirmaram ainda que, quando o questionaram sobre o que tinha acontecido, o arguido começou por relatar que o acidente tinha ocorrido nessa manhã, sendo que, após, se tinha dirigido a um café, aí tendo estado a ingerir bebidas alcoólicas, e entretanto tinha regressado ao veículo.
Estranhando tal relato e porque o arguido se mostrava relutante em responder às perguntas que lhe estavam a ser feitas, os militares insistiram para que contasse o que efetivamente tinha sucedido, tendo o arguido adotado uma postura agressiva, e procurando insistentemente agarrar a farda dos militares (“para ele falar connosco, tinha que estar a agarrar-nos e a puxar pela farda”; “ele não conseguia falar connosco sem nos tocar, tinha que nos puxar para ele”).
Ambos os militares esclareceram que tentaram acalmar o arguido, e o advertiram que não se devia aproximar dos mesmos. Todavia, este não acatava a recomendação, mantendo-se alterado e pouco colaborante, aumentando a hostilidade à medida que aqueles iam colocando mais questões.
Atento o comportamento agressivo do arguido e o odor a álcool que se sentia, quer quando o arguido se aproximava das testemunhas, quer no interior do veículo (conforme referido pela testemunha DD), estes solicitaram o auxílio de outra patrulha.
De acordo com ambas as testemunhas, aquando da chegada da patrulha do posto de ..., o comportamento do arguido tornou-se ainda mais agressivo, momento em que disse que os ia matar a todos senão o deixassem ir embora.
Ainda nessa sequência, a testemunha CC relatou que tentaram novamente acalmar o arguido e que o advertiram que se continuasse com as ameaças (segundo as quatro testemunhas, o arguido repetiu várias vezes que os mataria), seria detido. Todavia, uma vez que aquele não tinha acatado tal advertência e tinha reiterado que mataria os militares caso não o deixassem ir embora, foi efetuada a detenção do mesmo.
No que respeita às testemunhas EE e GG, militares da GNR e à, data dos factos, a exercer funções no posto de ..., confirmaram que, quando a patrulha de ... pediu auxílio, tiveram a perceção de que os mesmos “chamaram aflitos ao rádio”. Sendo que, à chegada ao local, de imediato ouviram o arguido dizer que os mataria a todos, expressão que, afirmaram convictamente, o arguido repetiu diversas vezes.
A testemunha EE esclareceu que não se chegou a aproximar do arguido, uma vez que este estava bastante agressivo e “imprevisível”, sentando-se e levantando-se sem motivo e alterando o tom de voz. Assim, a testemunha negou que o arguido lhe tivesse agarrado a farda, embora confirmasse que o tinha feito quanto aos elementos da patrulha de ....
As testemunhas EE e GG acrescentaram ainda que, mesmo após a detenção, o arguido se mostrou muito agitado no carro patrulha, batendo com a cabeça no vidro, empurrando os bancos com os joelhos e gritando.
Cumpre referir que o relato das duas testemunhas do posto da GNR de ... se circunscreveu ao momento decorrido na Travessa ... após a sua chegada, porquanto aquela patrulha não se deslocou ao posto de ....
Também nesta parte, importa realçar que a testemunha BB informou não ter presenciado toda a atuação dos militares, uma vez que, por um lado, toma conta de uma criança com deficiência (como comunicou em sede de audiência de julgamento, por forma a que fosse ouvida em primeiro lugar), pelo que em alguns momentos estava no interior da sua habitação, não vendo nem ouvindo o que se passava na rua. Por outro, a partir de certa altura, os militares e o arguido estavam apenas na zona do descampado, onde se encontrava o veículo acidentado – o que foi confirmado por todos os militares –, pelo que já não era possível ver nem ouvir o que quer que fosse. Ainda assim, e apesar de ter procurado realçar que em nenhum momento se tinha apercebido de palavras ameaçadoras proferidas pelo arguido e dirigidas aos militares da GNR, confirmou que aquele adotou uma postura pouco colaborante, pedindo para que tivessem “pena e o deixassem ir”.
No que tange ao sucedido no posto da GNR, relevam apenas os depoimentos das testemunhas CC e DD, que confirmaram que, à chegada ao mesmo, o arguido aparentava estar mais calmo, tendo até dado mais pormenores sobre o acidente.
Todavia, ambas as testemunhas referiram que, após ser confrontado com o resultado do teste de pesquisa de álcool no sangue – teste que o arguido efetuou mediante sopro e sem qualquer dificuldade, segundo a testemunha CC –, o arguido adotou novamente um comportamento de elevada agressividade, já que se levantou da cadeira onde estava sentado junto à secretária em que a testemunha CC estava a elaborar o expediente da ocorrência e se aproximou da testemunha “a encostar-se, a desafiar-me”, encostando a sua cabeça à daquele e dizendo que lhe dava uma cabeçada se não o deixasse ir embora. Mais acrescentaram que o arguido voltou a dizer que os mataria se não o deixassem ir embora.
Por esse motivo, as testemunhas CC e DD esclareceram que sentiram a necessidade de colocar o arguido na cela, por forma a garantir a segurança de todos os presentes.
Estas testemunhas referiram também ao Tribunal que, após ter sido colocado na cela, o arguido ficou ainda mais agitado, tendo começado a bater com a cabeça nas paredes e na porta, pelo que acionaram ajuda médica, tendo os bombeiros transportado o arguido para o hospital, conforme consta do auto de notícia de fls. 16-17.
O depoimento das quatro testemunhas revelou-se objetivo e isento, não se evidenciando qualquer exagero no relato efetuado, nem denotando qualquer intenção de prejudicar o arguido. Acresce que as mesmas depuseram de forma coerente, inclusivamente entre si, motivo pelo qual mereceram a credibilidade do Tribunal e foram, por isso, valoradas.
Assim, não restam dúvidas ao Tribunal de que o arguido conduziu o veículo de matrícula ..-..-SJ no dia 24/04/2022 na Travessa ..., ... e que o fez com uma taxa de álcool no sangue superior ao limite legal, conforme decorre da análise do talão de fls. 18.
De igual modo, dúvidas inexistem sobre o concreto comportamento adotado pelo arguido aquando da chegada dos militares da GNR ao local do acidente nem tampouco no interior do posto da GNR.
Com efeito, apesar de o arguido ter procurado, por diversas vezes, realçar que não possuía qualquer memória do sucedido, é evidente que o mesmo tinha consciência dos atos que praticava.
De resto, conforme relatado pelas testemunhas CC e DD, os primeiros militares a chegar ao local, o arguido estava consciente o suficiente para os tentar enganar ao dizer que o acidente havia ocorrido de manhã e que, após, tinha ido para um café ingerir bebidas alcoólicas e só mais tarde tinha regressado ao local do acidente. O arguido sabia, pois, que se aqueles militares se apercebessem que o acidente tinha ocorrido há instantes, o iriam submeter ao teste de despistagem de álcool, o que este pretendia evitar.
A testemunha FF, mãe do arguido, também procurou evidenciar que o arguido não estaria consciente das suas ações. Com efeito, esclareceu a testemunha que, apesar de não ter assistido a nenhum dos episódios descritos no libelo acusatório, se tinha deslocado ao local do acidente, por ter sido contactada pela ex-companheira do arguido, a dar conta do acidente. Assim, a testemunha referiu que, à sua chegada ao local do acidente, se tinha abeirado do arguido, mas que este, apesar de ter olhado para a testemunha, “foi como se nem me tivesse visto”, acrescentando que o mesmo apresentava um “olhar alheado”.
Em virtude do diagnóstico de esquizofrenia do irmão mais novo do arguido, também filho da testemunha, e de o arguido ser uma pessoa bastante ansiosa, a testemunha relatou ter ficado “muito preocupada e em choque” por o ter visto naquele estado.
Todavia, e não obstante a descrição que fez do estado do arguido, a testemunha também referiu que a primeira preocupação tinha sido levar a sua “nora” e a sua neta a casa, deixando o arguido sozinho no descampado, dentro do carro. Isto, apesar de a testemunha se ter feito acompanhar pelo seu cônjuge e de ambos possuírem carta de condução. Motivo pelo qual, se o arguido estivesse efetivamente num tal estado catatónico como a testemunha tentou fazer crer, não teria sido deixado sozinho no local, ainda que com a intenção de depois regressarem para o ir buscar (o que não chegaram a fazer).
Assim, e embora também os militares da GNR tenham referido que, para além de agressivo, o arguido se encontrava bastante alterado, o que os levou a contactar a mãe deste antes de acionar o apoio médico, a verdade é que nenhum elemento foi junto autos que afastasse a simples – e mais que provável – hipótese de tal estado se dever ao consumo de bebidas alcoólicas. De resto, as próprias testemunhas referiram já ter assistido a diversos episódios em que as pessoas se apresentam descontroladas pelo facto de estarem embriagadas.
Por conseguinte, não obstante, em sede de alegações, a defesa ter suscitado a questão da inimputabilidade do arguido, ou, pelo menos da sua imputabilidade diminuída – ainda que apenas quanto ao crime de resistência e coação sobre funcionário – é consabido que o consumo de bebidas alcoólicas traz, como efeito necessário, a perda das inibições naturais do córtex cerebral, criando sentimentos de relaxamento e excesso de confiança. Todavia, por si só, não determina a eliminação, nem é impeditivo da manutenção das faculdades mentais a que são inerentes a vontade e a intenção de agir, bem como a consciência da ilicitude dos factos.
De resto, nenhum elemento probatório concreto foi carreado para os autos relativamente à saúde mental do arguido e respetiva capacidade de autodeterminação e de avaliação da ilicitude dos seus atos à data dos factos. Note-se que o documento junto com a contestação, datado de 15/06/2023, corresponde a um relatório médico que se limita a referir que o arguido foi observado em consulta de psiquiatria em dezembro de 2022 e que se trata de “doente sem antecedentes psiquiátricos de relevo que iniciou acompanhamento por apresentar sintomatologia ansiosa e depressiva com vários meses de evolução e agravamento progressivo”. Mais refere que o quadro clínico apresentado pelo arguido se caracterizava por “desregulação emocional, aumento dos níveis de ansiedade cognitiva e neurovegetativa, irritabilidade, abulia, adinamia, sentimentos de tristeza, alterações do sono (…) assim como anedonia (…)”.
Ora, da análise do teor do referido documento constata-se um quadro clínico de relativa falta de motivação e de iniciativa, fraqueza muscular, tristeza e perda de satisfação e interesse em realizar atividades do quotidiano, o qual se verificava em dezembro de 2022 e já preexistia há alguns meses, vindo a agravar-se.
Donde, para além de inexistir qualquer referência expressa ao concreto período temporal a que os autos se reportam (abril de 2022), inexistem igualmente elementos de onde se possa retirar seja a falta de capacidade de autodeterminação e de avaliação da ilicitude dos seus atos naquela dala, seja uma justificação médica para a excessiva agressividade e exaltação do arguido.
No que respeita, por isso, à consciência e vontade de atuar nos termos descritos no libelo acusatório, uma vez que se tratam de realidades não diretamente apreensíveis, estas resultam do cotejo da matéria objetiva dada como provada, a qual permite a este Tribunal, com base nas regras de experiência comum e da razoabilidade, inferir a sua verificação, não obstante o alegado pela defesa e pela testemunha FF.
As circunstâncias apuradas revelam, pois, que a atuação do arguido foi livre, voluntária e consciente, querendo efetivamente conduzir o veículo automóvel de matrícula ..-..-SJ, não obstante saber que tinha ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a atividade de condução e que tal ingestão lhe provocaria uma taxa de alcoolemia superior a 1,2 gramas/litro.
Demonstram ainda que o arguido agiu live, voluntária e conscientemente ao proferir aquelas expressões e ao dirigi-las aos militares da GNR que se encontravam em funções e devidamente fardados, de modo a constrangê-los a não realizarem as tarefas a que estavam adstritos por terem sido chamados na sequência do acidente em que o arguido havia sido interveniente. Assim, e não obstante se encontrar embriagado, o arguido sabia o significado de tais expressões e os efeitos que elas e o seu comportamento iam produzir naqueles.
Atendendo às concretas condutas adotadas pelo arguido, é manifesto que conhecia a ilicitude das mesmas, bem como a sua punibilidade pela lei penal. As regras da experiência comum não permitem uma conclusão diversa.
Relativamente ao pedido de desculpas apresentado pelo arguido às testemunhas CC e DD no dia seguinte ao sucedido, estes confirmaram a ocorrência do mesmo, nos termos em que tal tinha sido relatado pelo arguido nas suas declarações.
No que respeita às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, foram tidas em consideração as declarações prestadas pelo mesmo em sede de julgamento, as quais foram merecedoras de credibilidade e nenhuma reserva suscitaram a este Tribunal nesta parte. Acresce que, no que respeita aos rendimentos do arguido, as suas declarações não são infirmadas pela pesquisa realizada nas bases de dados da Segurança Social a 24/01/2024 e junta aos autos nessa data.
Por fim, no que tange aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal baseou-se na análise do Certificado de Registo Criminal datado de 24/01/2024, igualmente junto aos autos nessa data.
Foi, então, nestes termos que o Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade carreada pela acusação pública.
*

4. Fundamentação de direito
(…)

*
III.2
Do erro de julgamento
Neste segmento da peça em apreciação considera o recorrente incorretamente julgados os pontos 7, 17 e 19 da matéria de facto.
Para tanto, contrapõe à valoração seguida na decisão recorrida as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas BB, CC, DD, EE, GG e FF, destes meios de prova se alcançando, a seu ver, que, ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, o recorrente não estaria no seu “estado normal”, não teria consciência dos atos que praticava, não estando, pois, em condições de avaliar a ilicitude da sua conduta, jamais tendo proferido quaisquer expressões “em tom sério” e com a intenção preconizada na decisão recorrida.
Apreciando.
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo (…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique, já que, na esteira do afirmado por Bacon, os depoimentos não se contam, pesam-se.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras de experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões, argumentos ou imponderáveis puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação e não se detetará o pressuposto erro de julgamento. Será, tão só, a materialização da afirmação motivada do convencimento do Tribunal que, naturalmente, se sobreporá a outras avaliações subjetivas concorrentes, maxime a do arguido.
Neste percurso, note-se, não raras vezes louvar-se-á o julgador em elementos indiciários/probatórios obtidos por via indireta, consequentemente envolvendo presunções obtidas por via judicial sendo até, amiúde, o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores ou para a afirmação e exteriorização do conhecimento e intenção que, à falta de confissão, são do foro íntimo do agente.
Como se escreve no acórdão desta Relação de 18.03.2015 [proc. n.º 400/13.6PDPRT.P1, Rel. Neto de Moura, acedido em www.dgsi.pt], a propósito do papel preponderante, da atendibilidade e da valoração da prova indireta, “I – Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.”.
Em síntese, neste capítulo, a prova indireta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objetivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado e nela contido. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar: - o Tribunal.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual o recorrente expressa forte dissídio – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação, mesmo oficiosa, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No primeiro caso, o substrato para a verificação do(s) vício(s) deverá colher-se no (e bastar-se com o) texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos (designadamente probatórios) concretizando-se na (i) insuficiência dos factos provados para suportar a correlativa decisão de direito (o que não pode confundir-se com uma putativa insuficiência das provas para alicerçar a decisão de facto), na (ii) contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão (entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma) e (iii) o erro notório na apreciação da prova (ante o padrão do homem médio e evidente a partir do escrutínio do texto da decisão) (cfr. art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), vício que, neste contexto, não se verifica quando a fonte do dissídio resulta, tão só, do inconformismo com a versão acolhida pelo Tribunal que, aos olhos do recorrente, deveria ter sido distinta.
No segundo caso – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Em síntese, no caso da denominada impugnação restrita, tendo por fundamento os vícios decisórios, apenas se consente o escrutínio da sentença na sua literalidade e sob o espartilho apontado supra. Já no caso da impugnação ampla, esta já pode visar o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida. Porém, ainda assim e nesta última hipótese, não se trata, aqui, de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e pela imediação. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Só assim se notará a presença de erro de julgamento.
Mais.
No caso da impugnação alargada, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que qualquer recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que ”Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponha(m), como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação da divergência, a apreciação crítica do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de um novo julgamento, já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua, num terceiro juízo ex novo a juntar ao da primeira instância e ao do recorrente. Por isso, antes se impõe ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
*
Tendo em conta os sobreditos conceitos e em análise agora especificamente dirigida ao caso vertente, situa o recorrente a sua pretensão recursória sob o enfoque do erro de julgamento. Efetivamente, a matéria de facto discutida é impugnada com base na prova produzida em audiência e não no teor e literalidade da decisão. Lida esta, não se surpreendem os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2 do C.P.P., quer por insuficiência fáctica para o preenchimento objetivo e subjetivo dos tipos legais em causa (sem prejuízo da análise do afirmado estado de inimputabilidade, a reter infra e que pressupõe a alteração da matéria de facto, ou da correção, sob o ponto de vista do Direito e da subsunção, quanto ao crime de resistência e coação sobre funcionário, que também constitui objeto do presente recurso), quer em eventual contradição ou entorse lógico patente no texto da motivação.
Apreciando.
Nesta parte, contesta o recorrente alguns segmentos da matéria de facto provada expressa em 7, 17 e 19. Em síntese apertada, a dissociação com a argumentação seguida pelo Tribunal a quo deriva de afirmações contidas nos meios de prova que o recorrente convoca e que, aos olhos deste, imporiam que se decidisse diferentemente, designadamente quanto ao estado de consciência do agente e a intencionalidade pressuposta para a comissão do crime de resistência e coação sobre funcionário.
Assim, concentra-se o recorrente na seguinte linha argumentativa:
(i) – O recorrente, nas declarações prestadas (20240201100355_4254981_3993042.wma), afirma não se recordar de nada, aceitando o sucedido apenas com base no que lhe relataram. Recorda-se de estar numa festa e, num momento seguinte, de estar algemado e numa cela, sem qualquer memória para o hiato intermédio e de nele proferir expressões dirigidas aos militares da G.N.R.;
(ii) – A testemunha BB (20240201102952_4254981_3993042.wma) referiu que o arguido aparentava estar alcoolizado, não tendo presenciado que o mesmo tenha agarrado ou empurrado os militares ou, inclusivamente, a estes dirigido qualquer ameaça;
(iii) – A testemunha CC (20240201102952_4254981_3993042.wma e 20240201110742_4254981_3993042.wma), militar da G.N.R., terá referido que o recorrente não “dizia coisa com coisa”, estando notoriamente embriagado, com um comportamento que “não era normal”, tendo, já na cela, desferido cabeçadas na parede e na porta, sendo conduzido ao hospital;
(iv) – A testemunha DD (20240212142039_4254981_3993042.wma), militar da G.N.R., referiu que o arguido não concretizou quaisquer agressões e, depois de colocado em cela, adotou um comportamento de total descontrolo, razão pela qual solicitaram ajuda médica, tendo o mesmo, no dia seguinte, pedido desculpas, afirmando não se recordar do que tinha sucedido;
(v)– As testemunhas EE (20240201112633_4254981_3993042.wma) e GG (20240201113949_4254981_3993042.wma), ambos militares da G.N.R., terão confirmado o referido pelos sobreditos camaradas, quanto ao notório estado de embriaguez e comportamento agitado;
(vi) – A testemunha FF (20240201115254_4254981_3993042.wma), mãe do arguido, embora se tenha retirado antes da chegada da G.N.R., terá referido que quando chegou ao local o seu filho ainda se encontrava no carro acidentado, com a cara encostada ao airbag, com o olhar completamente alheado, não a reconhecendo, a “olhar para o infinito”, tendo sido ulteriormente contatada pela G.N.R. a questioná-la se o filho tinha algum problema mental, fazendo-a recordar os surtos psicóticos que tinham acometido o seu filho mais novo.
Da concatenação dos elementos convocados entende o recorrente que não se encontrava no seu “estado normal”, que não estaria em condições para avaliar a ilicitude da sua conduta, não podendo o Tribunal concluir o contrário ou que, inclusivamente, o arguido tenha procurado enganar os elementos da patrulha, referindo que o acidente havia ocorrido de manhã ou, ainda, que tenha proferido as expressões que lhe são imputadas em “tom sério”. Questiona o arguido, ora recorrente, que se o arguido estivesse em plena posse das suas capacidades, estivesse capaz de se determinar livremente, qual a razão de ter adotado tais comportamentos, quer no local do acidente, quer no posto da G.N.R.?
Relembrados os argumentos do recorrente e tendo procedido à audição dos depoimentos em causa (cujos ficheiros áudio identificámos), avançamos, desde já, que aquela argumentação e os trechos convocados não infirmam a convicção do Tribunal a quo - aliás magistralmente fundamentada - e, muito menos, impõem decisão diversa.
O arguido convoca, para o episódio relevante, um estado amnésico que, conforme notado pelo Tribunal, não é coerente ou consequente, sendo o processo mnemónico circunstanciado e as vivências precisas e pormenorizadas até certo momento daquele dia, interrompendo-se, apenas, no hiato relevante, sobrepassando as regras da experiência.
Por outro lado, com base nos depoimentos das testemunhas BB e dos militares intervenientes no evento e com suporte nos documentos mencionados (fotografias e auto de notícia), foi possível apurar as circunstâncias espácio temporais em que o acidente ocorreu, o exercício da condução por parte do arguido, a postura ébria deste, as expressões proferidas dirigidas aos militares e as atitudes agressivas mantidas, com reflexo nos factos provados e que, na verdade, o recorrente não contesta.
A principal fonte de divergência reside no facto de, no entender do impetrante, o seu estado ser elucidativo da ausência de consciência, degradando a exigência típica da culpa.
Ora – como muito bem notou a Mm.ª Juiz – o arguido, quando questionado pelos militares e ante a evidência da ocorrência recente de um acidente, ainda com o primeiro posicionado no lugar do condutor, começou por relatar que o acidente havia ocorrido de manhã, que após esse evento tinha estado num café a ingerir bebidas alcoólicas e que, entretanto, havia regressado ao veículo, com isto querendo fazer crer que não exercia a condução embriagado, tendo esse estado sobrevindo à intercorrência no café. Tal relato, por si, mesmo que inverosímil, denota a capacidade de articulação e de raciocínio por parte do arguido para procurar alijar responsabilidades, consciente, por isso, da incorreção da sua conduta e das consequências que daí poderiam advir.
Sintomático é também o facto de, sendo questionado/pressionado para relatar o que, efetivamente, havia sucedido, o arguido ter passado a assumir uma postura agressiva, em crescendo, agarrando os militares e proferindo as expressões que lhe são imputadas.
Ademais, retendo a afirmação, veiculada pela mãe do arguido, de que este se encontrava num estado de alheamento, “catatónico”, convém referir que esse estado relatado de prostração, normalmente identificado com uma absoluta rigidez motora e sensorial, mesmo que se possa manifestar, em casos raros, com movimentos motores associados, estes não são consequentes ou dirigidos a alguém em particular, ou com arrimo numa lógica subjacente. Ora, no caso, a amplitude de movimentos ou o estado de agitação motora não existiram per se ou de forma inconsequente. Manifestaram-se em atitudes concretas, violentas, dirigidas aos militares e acompanhadas de verbalização coerente e concordante com o fito de evitar a sua condução ao posto/condicionamento/detenção, o que é compatível com um estado vígil e consciente, dirigido e motivado a evitar as potenciais consequências dos seus atos, em que os militares personificavam essa chamada à responsabilidade.
Acresce que, segundo os depoimentos de CC e DD, embora o arguido aparentasse estar mais sereno à chegada ao posto, depois de, sem dificuldades na exalação, ter efetuado o teste de pesquisa de álcool no sangue, quando confrontado com o respetivo resultado positivo, terá adotado novamente um comportamento muito agressivo, com o fito de se ausentar, denotativo da capacidade de percecionar que daquele resultado e com aquela TAS lhe adviriam, certamente, consequências adversas.
Por fim, um estado de completa alheação, como aquele que é exponenciado nas alegações, seria até incompatível com o exercício da condução automóvel, sendo a invocação de um estado de inimputabilidade parcial, apenas para o momento da interação com os militares da G.N.R., salvo o devido respeito, contraditório nos seus próprios termos. O exercício da condução automóvel pressupõe, necessariamente, mesmo com a TAS detetada, um estado mínimo de vigilância, orientação, consciência e coordenação motora.
Não escamoteamos (nem a decisão recorrida o fez) que o arguido se encontraria exaltado, “alterado”, irascível, agressivo, sintomatologia e potenciação da passagem do pensamento ao ato que o álcool facilita.
Questão diversa é a de saber se aquele estado o inibiu de percecionar a inadequação dos seus comportamentos e de se determinar de acordo com essa avaliação, concluindo-se negativamente, como o fez a decisão recorrida. Não podemos, neste contexto, confundir embriaguez, comportamentos bizarros, temerários, desadequados, fora do cânone da normalidade do cidadão comum, irascibilidade ou irresponsabilidade (de que é exemplo pronto o exercício da condução automóvel, notoriamente embriagado, envolvendo-se em acidente, transportando no veículo uma criança) com inimputabilidade.
Assim, subscrevemos, na íntegra, o trecho da motivação da decisão de facto onde se refere:
“Por conseguinte, não obstante, em sede de alegações, a defesa ter suscitado a questão da inimputabilidade do arguido, ou, pelo menos da sua imputabilidade diminuída – ainda que apenas quanto ao crime de resistência e coação sobre funcionário – é consabido que o consumo de bebidas alcoólicas traz, como efeito necessário, a perda das inibições naturais do córtex cerebral, criando sentimentos de relaxamento e excesso de confiança. Todavia, por si só, não determina a eliminação, nem é impeditivo da manutenção das faculdades mentais a que são inerentes a vontade e a intenção de agir, bem como a consciência da ilicitude dos factos. De resto, nenhum elemento probatório concreto foi carreado para os autos relativamente à saúde mental do arguido e respetiva capacidade de autodeterminação e de avaliação da ilicitude dos seus atos à data dos factos. Note-se que o documento junto com a contestação, datado de 15/06/2023, corresponde a um relatório médico que se limita a referir que o arguido foi observado em consulta de psiquiatria em dezembro de 2022 e que se trata de “doente sem antecedentes psiquiátricos de relevo que iniciou acompanhamento por apresentar sintomatologia ansiosa e depressiva com vários meses de evolução e agravamento progressivo”. Mais refere que o quadro clínico apresentado pelo arguido se caracterizava por “desregulação emocional, aumento dos níveis de ansiedade cognitiva e neurovegetativa, irritabilidade, abulia, adinamia, sentimentos de tristeza, alterações do sono (…) assim como anedonia (…)”.
Aqui chegados, realçando que, no âmbito da impugnação da matéria de facto e como decorre do estatuído no art.º 412.º, n.º 3, al. b) do C.P.P., a alteração do decidido, com base nas provas indicadas, não se basta com meras hipóteses de decisão alternativa (da conveniência do recorrente e na linha da apreciação própria e subjetiva que faz da prova produzida), devendo aquelas impor decisão diversa, não se alcança que aquele desiderato, necessário para a procedência, tenha sido atingido.
Assim e em conclusão, salvo o devido respeito e apreciando o iter seguido pela julgadora, não da forma espartilhada e compartimentada como o faz o recorrente mas, ao invés, na perspetiva global como é percecionada na decisão recorrida, as inferências extraídas e as afirmações contidas na fundamentação da decisão de facto – neste particular – encontram respaldo nos meios de prova elencados, apreciados de forma que não colide com as regras da experiência comum e da lógica, defluindo numa reconstrução possível e verosímil da realidade, que a argumentação recursória não desconstrói ou abala, fornecendo, apenas, uma versão alternativa para a valoração dos mesmos meios de prova mas que, como se viu, não impõe decisão diversa.
A posição do Tribunal a quo é apodítica e encontra-se sustentada na prova produzida e nas inferências dela extraídas, de acordo com a livre apreciação da prova, não evidenciando qualquer juízo arbitrário ou extrapolação esdrúxula da prova, nenhuma censura merecendo a afirmação, como provados, dos factos contestados, não se alcançando que o Tribunal a quo devesse chegar a conclusão distinta da sufragada na decisão revidenda, ou que tenha proferido decisão de facto que extravase os limites da liberdade de apreciação da prova e de formação da convicção que lhe assistem (art.º 127.º do C.P.P.).
O erro de julgamento, com a virtualidade de conduzir à modificação da decisão de facto, não se identifica com a diferente valoração da prova produzida, proposta pelo recorrente, mas, antes, apenas existe quando se evidencie um erro flagrante de valoração ou de aquisição que, ante determinado acervo probatório (ou falta dele), impusessem decisão diversa. No caso, tal não se vislumbra, verificado que foi o iter lógico seguido pela julgadora, o encadeamento e confronto crítico dos meios de prova disponíveis e as conclusões a que chegou sem que, nessa sua atividade, sejam notados desvios às regras da lógica e da experiência comum, não sendo o resultado da exegese qualificável de inverosímil ou inadequado – sendo, aliás, o único possível - acrescendo, no processo valorativo, o préstimo único das perceções, dos gestos, as interjeições, os silêncios que fazem parte do património único da imediação e da oralidade.
Da mesma forma não se concede que o Tribunal, ao decidir como decidiu, tenha violado o princípio in dubio pro reo, referência que o recorrente faz de forma indireta e cuja desconsideração por tal princípio a sua argumentação pressupõe.
A dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo que houve, a montante, todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do princípio.
Revertendo ao caso em apreço e entroncando na improcedência, já apontada, da parte atinente à impugnação alargada, também aqui e em confluência lógica, não se verifica qualquer violação do proclamado princípio.
Efetivamente e lida a fundamentação exarada pelo Tribunal a quo, não foi a entidade decisora assaltada, no percurso, por qualquer dúvida e, muito menos, que esta fosse razoável ou insanável. O Tribunal obteve a certeza dos factos que afirmou, em raciocínio motivado, pelo que não subsistindo quaisquer dúvidas, inexistia, outrossim, qualquer razão - porque desprovida de objeto - para resolvê-las a favor do arguido. O que na prática se verifica é que o recorrente, em face da valoração que subjetivamente fez da prova, entende que, ante o seu próprio convencimento, o Tribunal deveria ter tido dúvidas. Mas não teve, nem se notaram supra razões para que se questionasse a valoração que efetuou.
O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe nem se aponta que, em face da argumentação utilizada, devesse ter existido.
Assim e quanto à questão formulada pelo arguido, referida supra, só o mesmo e a sua consciência poderão responder.
*

Finalmente, uma breve nota.
No caso importa referir que a contestação (Ref.ª 14724522) se limitou a oferecer o merecimento dos autos, sem a invocação de um incapacitante estado de embriaguez que integrasse o objeto do processo e sobre o qual o Tribunal devesse pronunciar-se para o subsequente tratamento da agora invocada inimputabilidade. Ainda que assim não fosse e porque a sentença – se fosse esse o caso – deveria contemplar essa eventualidade, dando-a como provada no seu segmento factual para que pudesse merecer o respetivo tratamento, não teria que fazê-la constar dos factos não provados se, como sucedeu, a desconsiderou.
Ainda assim, a sentença avaliou essa linha argumentativa, concluindo pela imputabilidade.
Referiu oportunamente o recorrente que não estaria em condições de querer e entender, convocando o estatuído no art.º 20.º do C.P. como causa de exclusão da culpa.
A prática de factos que preenchem, objetivamente, a previsão de determinado tipo legal, por si só, não deflui na responsabilização criminal do seu autor. É que, no plano subjetivo, aquela responsabilização pressupõe que o agente atribua aos factos que perpetra um valor correspondente àquele que a ordem jurídica lhes confere. O agente deverá estar ciente de que, com a sua conduta, lesa um bem jurídico tutelado [Vd. Günter Stratenwerth, Derecho Penal – Parte General, vol I, Madrid, 1982, pág. 96] agindo em desconformidade, quanto podia e devia adotar comportamento diverso.
Em sede de culpa, constatada qualquer situação que possa ser reconduzida à figura da inimputabilidade, com os necessários reflexos no sentido crítico, incapacitantes de uma correta determinação ante a conduta proibida, diríamos que, pressupondo o preenchimento dos elementos subjetivos aquela capacidade de conformação, se inexistente, não poderia o agente ser punido.
Estabelece o art.º 20.º, n.º 1 do C.P. que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.”.
Concretizando e chamando à colação o entendimento de Carlota Pizarro de Almeida [Modelos de Inimputabilidade, Almedina, 2000, pág. 21] a inimputabilidade é um conceito normativo que implica, em certas circunstâncias fixadas legalmente, que o facto não possa, em termos consequenciais – pena – ser atribuído ao seu autor, sendo aquela noção normativamente delineada e conhecendo, como limites, os sentimentos de justiça e equilíbrio da sociedade.
O alcance da figura da inimputabilidade é definido por dois elementos: - o elemento intelectual e o elemento volitivo ou, se quisermos, na terminologia tradicional, a capacidade de entender e querer.
Quanto ao elemento intelectual, os estados passageiros não são excluídos da inimputabilidade, e a prova é o tratamento que é dado, na nossa lei, às situações de alcoolismo e toxicodependência. Aliás, também os transtornos ligados a uma anomalia psíquica, que produzam os seus efeitos num período limitado de tempo e tenham sido, nesse breve lapso, causa da comissão do delito podem, independentemente de se repetirem ou de existir risco de repetição, determinar a inimputabilidade do arguido. Qualquer transtorno mental transitório (desde que produza os efeitos normativos previstos no art.º 20.°, n.º 1), tornará o indivíduo penalmente incapaz.
No entanto, se as qualidades intelectuais e volitivas do indivíduo forem influenciadas por um estado afetivo intenso, mas sem anulação total da consciência e da liberdade de decisão, não deve aceitar-se a solução da inimputabilidade, mas, tão só, eventualmente, uma imputabilidade diminuida.
Quer a doutrina tradicionalmente aceite, quer a própria redação do art.º 20. °, n.º 1 do C.P., apontam no sentido de que os estados afetivos só devem relevar se consistirem em “anomalia psíquica”, isto é, se forem anómalos, desproporcionados, patologicamente exagerados. Com efeito, o artigo contempla as anomalias psíquicas e não as de carácter.
O conceito de inimputabilidade da lei penal portuguesa faz depender a decisão do Juiz de avaliação médica, que a precederá.
Ora, no caso em apreço, sendo a questão da inimputabilidade, também, uma questão de facto, soçobrou, como se evidenciou supra, a demonstração da existência daqueles pressupostos factuais. Não se demonstrou positivamente que o arguido estivesse tolhido na sua capacidade de entendimento, de avaliação e de ação por forma a poder desenvolver e concluir por uma situação de inimputabilidade ou sequer dúvidas de que esse estado pudesse existir.
Improcede, pois, quanto à alteração da matéria de facto, a pretensão do recorrente.
*

III.3
Do crime de resistência e coação sobre funcionário
Neste segmento da sua pretensão recursória alega o recorrente que, mesmo que mantida (como no caso se manteve) a decisão de facto, não se mostram preenchidos os elementos objetivos do tipo ínsito no art.º 347.º, n.º 1, do C.P..
Em abono, refere-se que a atuação preconizada pelo recorrente, avaliada em concreto e ante as especiais caraterísticas dos destinatários, não integra o conceito típico de violência idóneo a obstaculizar a ação dos militares.
Ademais, encontrando-se notoriamente embriagado, a sua ação não teria o mesmo impacte no visado que aquela proferida por alguém sóbrio, não constituindo, pois, violência adequada a coagir os militares para efeitos de preenchimento do crime de resistência e coação sobre funcionário.
Apreciando.
No caso em apreço ficou demonstrado que:
- De imediato, o arguido, mostrando-se exaltado, abeirou-se dos referidos militares agarrando-lhes as fardas, tendo sido pelos mesmos advertido de que o não deveria fazer e para se manter calmo.
- Nessa altura, foi solicitada pelos referidos militares a presença no local de uma outra Patrulha da GNR de ..., esta constituída pelos militares da GNR EE e GG.
- No decorrer da elaboração do expediente sobre o acidente, o arguido, dirigindo-se àqueles quatro militares, em tom de voz alto e sério, proferiu a seguinte expressão: “eu mato-vos a todos!”.
- Apesar das advertências que os referidos militares iam fazendo ao arguido para este se acalmar e findar com aquelas expressões senão ia ser detido e presente a tribunal, o arguido persistiu proferindo a seguinte expressão: “Ou me deixam ir embora ou mato-vos a todos!”.
- Após efetuar tal teste e conhecer a taxa de álcool, o arguido voltou a ficar exaltado, encostou a cabeça à do militar CC e proferiu a seguinte expressão: “se não me deixas ir embora, dou-te já aqui uma cabeçada!”.
- Ato contínuo o arguido foi algemado e conduzido à cela ali existente, onde voltou a proferir as expressões mencionadas.
- O arguido sabia que tinha perante si agentes da autoridade e, não obstante, opôs-se verbalmente à sua atuação, proferindo as expressões enunciadas com o propósito de os intimidar e de lhes provocar inquietação e receio de virem a sofrer ato atentatório das suas vidas, e de os perturbar e impedir a prática dos atos que resultavam do desempenho de tarefas compreendidas nas suas atribuições, designadamente a elaboração da participação de acidente e o expediente relativo à condução em estado de embriaguez.
- O arguido sabia que os Guardas supra identificados eram militares da GNR e que atuavam no exercício das suas funções de polícia e por causa delas, sendo as referidas atitudes determinadas por causa de tais funções.

Com base nestes factos e em sede subsuntiva, escreveu-se na decisão recorrida que:
(…)

4.1.2. Do crime de resistência e coação sobre funcionário

Dispõe o artigo 347.º, n.º 1, do CP que “Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido (…)”.
O bem jurídico tutelado por esta norma é a autonomia intencional do Estado, ainda que seja necessário ter em consideração que o conceito de funcionário que aqui releva inclui ainda os gestores e trabalhadores das empresas privadas concessionárias de serviços públicos (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 1176). Assim, o que se visa é impedir que a liberdade do Estado para prosseguir determinadas finalidades seja prejudicada ou anulada ou sofra “ataques externos, de fora” por haver terceiros que tentam impedir a efetiva realização desses interesses estaduais (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 336).
O dever de não violação deste bem jurídico apenas surge na esfera jurídica de cada indivíduo quando este se depara com uma situação em que é objeto de uma legítima decisão da autoridade pública, caso em que o “seu dever genérico de respeitar a autoridade (…) concretiza-se na obrigação principal de obedecer àquele mandado ou de respeitar determinadas providências tomadas pela autoridade” (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 336).
Apenas acessoriamente se protege a pessoa do próprio funcionário (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e Especial com notas e comentários, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1167). Em boa verdade, é uma proteção meramente reflexa, na medida em que o que verdadeiramente se acautela é “a liberdade de ação pública do funcionário, não a sua liberdade de acção privada” (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 339).
Trata-se de um crime de perigo quanto ao grau de lesão do bem jurídico, já que não implica uma efetiva lesão do mesmo, sendo suficiente a sua colocação em perigo (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 339). É ainda crime de resultado, na medida em que a sua consumação pressupõe uma alteração do mundo físico decorrente (e distinta) da conduta adotada, obrigando a averiguar a adequação (imputação objetiva) do resultado àquela conduta (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 342). Todavia, é um crime de resultado cortado, porquanto a prática ou não do ato coagido pelo funcionário não releva para a consumação do crime.
Atendendo aos elementos do tipo objetivo de ilícito, o crime de resistência e coação sobre funcionário é um crime de execução vinculada, já que o seu modo de execução está descrito no tipo (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 118).
O tipo objetivo previsto no preceito em análise pode ser preenchido através de uma das seguintes formas: i) a oposição a que o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança pratique ou continue a praticar ato legítimo relativo ao exercício das suas funções; ou ii) o constrangimento a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres (ato ilegítimo) (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, op. cit., pp. 1169-1170).
Não constitui, por isso, crime de resistência e coação sobre funcionário, mas antes meramente o crime geral de coação, o constrangimento do funcionário para exercer um ato que seja devido no âmbito das suas funções ou ainda o constrangimento para exercer um ato que esteja fora do âmbito das suas funções, desde que o agente saiba que o ato coagido está fora dessas funções (cfr. P. Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 1176). Também não constituirá crime de resistência e coação a situação em que o funcionário atua ilegitimamente, conquanto que a ilegitimidade do ato seja notória ou manifesta (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., pp. 343-344).
Para aquilatar da verificação do crime de resistência e coação sobre funcionário, há que apreciar, por um lado, se a conduta do agente obedece ao fim da ação previsto por este ilícito criminal – evitar que a autoridade pública exerça as suas funções –, por outro, qual o meio utilizado para o atingimento desse fim – por meio de violência ou ameaça (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 340). Por outro ainda, é necessário averiguar se o sujeito passivo da atuação do agente é funcionário nos termos em que tal é entendido pelo 386.º do CP, ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 340). Não existindo esta conjugação, poderemos estar perante outro crime, como o de coação, ou o de ofensa à integridade física ou de ameaça, mas não perante este crime especial (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 340).
Relativamente à atuação do agente, esta terá de evidenciar que este se opõe, obsta ou não consente a prática do ato legítimo pelo funcionário ou que impõe, compele ou obriga a prática de ato contrário aos deveres daquele (cf. M. Leal Henriques e M. Simas Santos, Código Penal Anotado, Vol. II, 3.ª Ed., Editora Rei dos Livros, Porto, 2000, p. 1494).
No que concerne aos meios através dos quais o crime de resistência e coação sobre funcionário pode ser cometido, estes subsumem-se ao emprego de violência, onde se inclui a ameaça grave ou a ofensa à integridade física, tal como previstas a propósito do crime de coação (artigo 154.º do CP) e do crime de ameaça (artigo 153.º do CP) (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 341).
Assim, a violência tanto pode corresponder a uma “intervenção da força física”, seja absoluta ou relativa, consoante elimine, ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido (“vis phisica” absoluta ou “vis phisica” relativa ou compulsiva), como a uma violência psíquica, que afeta os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, ou seja, a própria capacidade para decidir (cfr. A. Taipa de Carvalho (Coord.) in J. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 569-570).
Por sua vez, a ameaça terá de corresponder à comunicação de um mal futuro, que, tendo de assumir gravidade, não tem de representar um mal jurídico-criminal, e terá de ser um mal cuja concretização esteja na dependência da vontade do agente (cfr. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, op. cit., p. 637). Há que ter ainda presente que este mal sempre terá de ser adequado a constranger o ameaçado a comportar-se conforme pretendido pelo agente do crime, para o que revelarão as circunstâncias do caso concreto. Assim sendo, “mal importante é igual a mal adequado a constranger o ameaçado, e mal adequado é igual a mal que, tendo em conta as circunstâncias concretas (idade, pobreza, dependência económica do coagido face ao ameaçante, sensibilidade individual e social do ameaçado, etc.) do ameaçado, é visto pelo homem comum como suscetível de coagir o ameaçado” (cfr. A. Taipa de Carvalho in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 573). Trata-se, por isso, de um critério objetivo-individual, uma vez que apela ao juízo do homem comum em concomitância com a consideração das concretas circunstâncias em que é proferida a ameaça e que são, ou deviam ser, conhecidas do agente (cfr. A. Taipa de Carvalho in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., pp. 573-574).
Sucede que, em alguns casos, os destinatários da coação possuem especiais qualidades no que concerne à sua capacidade de suportar pressões ou comportamentos de maior hostilidade, estando munidos de instrumentos e técnicas de defesa que, em regra, os cidadãos comuns não portadores. Com efeito, os “os membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios”, nem tampouco funcionários médios (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 341). Donde, o grau de violência ou de ameaça necessário para que se possa considerar preenchido o tipo objetivo terá de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de ação daquela “categoria” de funcionário, atentas as suas “sobre-capacidades” (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 341). Por conseguinte, é admissível que “uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar” (cfr. C. Líbano Monteiro in J. Figueiredo Dias (Coord.), op. cit., p. 341).
Todavia, conforme se realçou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2016, relatado por Conceição Gonçalves, “se é correcta esta distinção tendo em conta a sensibilidade do coagido, não pode, no entanto, tratando-se de agentes da autoridade policial exigir-se para o preenchimento do tipo legal formas extremas de violência ou de ameaça contando com a especial preparação dos agentes, o que seria contraproducente tendo em conta os fins em vista” (disponível em www.dgsi.pt).
Em suma, o que releva é que se verifique uma conexão entre os meios empregados e o resultado pretendido pela coação, isto é, entre a natureza e intensidade da violência, ameaça ou ofensa à integridade física, e a repercussão que ela tem na liberdade de ação do funcionário, sendo que “a violência aqui prevista não necessita de ser grave e nem sequer tem de consistir numa qualquer agressão física, consistindo antes num ato de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir, a impedir ou dificultar a atuação legítima do funcionário ou equiparado” (cfr. M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, op. cit., p. 1170).
Tratando-se de um crime de resultado cortado, como se disse, a consumação não exige que, no caso concreto, a atuação do agente tenha surtido a sua eficácia, punindo-se igualmente os casos em que, muito embora a atuação seja idónea a obstar à prática do ato pelo funcionário, ela não haja logrado obter esse resultado.
Considerando os meios através dos quais o crime de resistência e coação sobre funcionário terá de ser cometido, importa referir que, em regra, ele estará em concurso aparente com os crimes de coação, de ameaça ou de ofensa à integridade física, devendo a punição ser obtida na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante, ou seja, o crime de resistência e coação sobre funcionário, que consumirá os demais. Com efeito, conforme pugnou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 251/2022, “Entendemos que a resposta a esta questão passará pela adoção de uma visão global do acontecimento, isto é, através do critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global, sopesar-se-á essa imagem e ter-se-á de analisar se o comportamento do agente preenche apenas o crime de resistência e coação sobre funcionário, sendo, assim, o ilícito dominante, ou se, pelo contrário, a sua conduta ultrapassa aquele ilícito” (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Por conseguinte, apenas haverá concurso efetivo, e não consunção, se a violência, a ameaça ou a agressão física ultrapassarem o patamar adequado ao objetivo de oposição ou constrangimento à prática do ato pelo funcionário.
Por fim, no que ao sujeito passivo do crime de resistência e coação respeita, cumpre referir que, nos termos do artigo 386.º, n.º 1, al. a), do CP, para efeito da lei penal, o conceito de funcionário abrange, além do mais, o empregado público civil e o militar.
De acordo com a lei orgânica da GNR, esta é definida como uma força de segurança de natureza militar constituída por militares (cfr. artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 63/2007, de 6 de novembro).
Donde, seja pela previsão expressa do artigo 347.º do CP quanto aos membros das forças de segurança, seja pelo disposto no artigo 386.º, n.º 1, al. a), do CP, os membros da GNR são abrangidos pela previsão do artigo 347.º do CP.
Considerando o bem jurídico em causa no crime de resistência e coação, há que ter em atenção que comete um só crime o agente que resiste ou coage vários funcionários na mesma ocasião, “por a tal situação corresponder, numa compreensão global da conduta do arguido, uma unidade de sentidos de ilicitude típica” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/09/2016, relatado por Fernando Chaves, disponível em www.dgsi.pt).
Revertendo ao caso sub judice, temos que, no dia 24/04/2022, pelas 20h50, dois guardas da GNR do posto de ..., devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, se dirigiram ao arguido, que tinha acabado de ser interveniente num acidente de viação, com vista a apurar o que havia acontecido e, consequentemente, participar o acidente. Todavia, o arguido, perante a interpelação daqueles militares, adotou uma postura hostil, procurando a aproximação física com os mesmos, tendo agarrado a farda daqueles.
Temos ainda que, já após a chegada de mais dois militares da GNR, desta feita, do posto de ..., e após ter sido advertido de que se devia acalmar, por forma a permitir a elaboração do expediente relativo ao acidente, o arguido dirigiu-lhes as seguintes expressões “eu mato-vos a todos” e “ou me deixam ir embora ou mato-vos a todos”.
Nessa sequência, após ter sido detido e conduzido ao posto, o arguido voltou a dirigir-se a um dos militares da GNR dizendo “se não me deixas ir embora, dou-te já aqui uma cabeçada”, e fê-lo assim que lhe foi comunicado o resultado do teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado, o qual era superior ao limite legal.
Ora, as expressões proferidas pelo arguido e as circunstâncias em que tal ocorreu evidenciam, por um lado, que o arguido anunciou a prática de um mal futuro, o qual estava na dependência da sua vontade. E por outro, que tal mal assume particular gravidade, já que se traduzia em retirar a vida àqueles militares ou, pelo menos, em agredir um deles fisicamente.
A circunstância de, nessas ocasiões, o arguido ter utilizado o presente do indicativo no anúncio do mal (“eu mato-vos” e “dou-te já aqui uma cabeçada”) não obsta a que se considere, ainda assim, uma ameaça de um mal futuro, porquanto “A expressão «vou-te matar!» utilizada e repetida por três vezes, com foros de seriedade, embora usada no presente do indicativo, não deixa de assumir também, na linguagem corrente, uma usual projeção de futuro, na medida em que não indica o momento exato da ação anunciada. Sendo por isso perfeitamente adequada a integrar o conceito de ameaça, sempre que as demais circunstâncias do caso não excluam tal entendimento” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/10/2017, relatado por Fátima Furtado, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, não resulta da factualidade provada que o arguido estivesse na iminência de concretizar qualquer dos males anunciados. Com efeito, mesmo no que à agressão física diz respeito, a verdade é que, tendo o arguido encostado a cabeça dele à do Guarda CC, não chegou a adotar qualquer ato de execução propriamente dito. De resto, e ainda que o tivesse feito, a tentativa de agressão física sempre seria, ainda assim, enquadrável num ato de violência subsumível aos meios de execução do crime de resistência e coação.
Donde, as expressões proferidas pelo arguido consubstanciam ameaças graves dirigidas aos militares da GNR que se encontravam perante o arguido.
Por outro lado, da conjugação da atuação do arguido com as circunstâncias em que a mesma ocorre, resulta evidentemente que era intenção do arguido obstar a que os militares da GNR elaborassem o expediente inerente à participação do acidente de viação e de condução de veículo em estado de embriaguez. Ou seja, impedir que fossem praticados atos legítimos relativos ao exercício das funções daqueles.
Acresce ainda que a atuação do arguido foi idónea a afetar o exercício daquelas funções, já que era suscetível de desencadear, pelo menos, potencialmente, o resultado por si pretendido. Com efeito, os dois militares do posto da GNR de ..., perante o comportamento do arguido, exaltado e a agarrar-lhes a farda, sentiram a necessidade de pedir o auxílio de outra patrulha. Esta circunstância, por si só, é ilustrativa do constrangimento experienciado pelos mesmos (neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 21/12/2022, relatado por Maria Joana Grácio, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, não obstante as especiais qualidades e preparação dos visados pelo comportamento e palavras do arguido, entendemos que este excedeu o limiar da reação negativa no confronto com a autoridade pública, tendo violado o concreto dever de respeito que sobre si impendia. Donde, com tal atuação, efetivamente obstaculizou, pelo menos, momentaneamente, ao exercício das funções daqueles.
Quanto ao sujeito passivo sobre o qual o crime de resistência e coação recai, resultou igualmente provado que o arguido atuou em relação a quatro militares da GNR, que são funcionários para estes efeitos.
Perante o que se enunciou supra, é, pois evidente, que a atuação do arguido, ao dirigir as ameaças aos guardas da GNR, visava apenas obstar a que estes concretizassem os atos a que estão obrigados, não tendo sido ultrapassado o patamar a partir do qual aquelas ameaças ganham autonomia necessária para que sejam punidas autonomamente, em concurso real com o crime de resistência e coação. Com efeito, realizando uma apreciação global do episódio em análise, as mesmas consideram-se consumidas por este.
No que respeita ao tipo subjetivo de ilícito, enquanto conhecimento e vontade de concretizar factos que preencham os elementos do tipo, cumpre referir que o crime de resistência e coação sobre funcionário exige a presença de dolo, em qualquer uma das modalidades previstas pelo artigo 14.º do CP e acima já enunciadas.
Deste modo, o agente terá, pelo menos, de ter a consciência, por um lado, da violência ou da ameaça que realiza e dirige ao visado, e, por outro, que a(s) mesma(s) é idónea a impedi-lo de praticar o ato relacionado com as suas funções ou a constrangê-lo a praticar ato ainda relacionado com aquelas, mas contrário aos seus deveres. Terá ainda de ter a consciência de que está perante um funcionário, membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança.
(…)
Da sobreposição de argumentos e da manutenção do decidido em sede de impugnação da matéria de facto resulta inamovível, como base de elaboração, que o arguido produziu as expressões que lhe são imputadas, ante militares da G.N.R. no exercício de funções e por causa delas, visando intimidá-los, inquieta-los e assim, por via da oposição ativa, evitar que aqueles praticassem atos inseridos no seu espectro funcional, assim como assumiu a postura corporal e verbal hostil que lhe é assacada (agarrando as fardas, encostando a sua cabeça à de outro militar, falando em tom de voz elevado).
É também dado assente que o arguido se encontrava alcoolizado (até porque lhe foi detetada uma TAS de 1,684 g/l).
Tendo presentes e por repristinadas as judiciosas considerações gerais sobre o tipo legal em causa e bem jurídico protegido expressas na decisão recorrida, resta, no fundo, determinar se, no plano concreto e ante o factualismo apurado, a atuação do arguido integra o conceito de violência idónea a afetar a atuação do agente do Estado constante da formulação típica objetiva.
Entendemos que sim.
Mesmo tendo em conta que não existirão duas situações de facto idênticas, não ignoramos a existência da jurisprudência convocada pelo recorrente que, de alguma forma, convoca um grau superlativo à ação do agente da prática do crime, tendo em conta as especiais qualidades dos visados, ou relativizando a idoneidade da ação, perante o estado ébrio do primeiro.
Temos também presente que, atento o seu caráter de ultima ratio, o Direito Penal deve ater-se e prevenir a violação de bens jurídicos fundamentais, não suficientemente acautelados pela intervenção de outros ramos do Direito. Tal princípio de intervenção mínima, figurando perante o legislador na tipificação das condutas puníveis importa, perante o tipo legal concreto e no preenchimento da previsão típica, o apelo a critérios mínimos objetivos que permitam a intervenção deste ramo do Direito, face à gravidade da conduta, que terá de ser objetivamente idónea a por em causa o bem jurídico protegido e conter um mínimo de anti juridicidade que legitime essa intervenção.
Como refere Germano Marques da Silva [Direito Penal Português – Parte Geral, Vol. I, Introdução e Teoria da Lei Penal, Verbo, 2001, 2ª Ed., pp. 15 e segs.], no decurso da história da Ciência Penal a doutrina tem tentado conceitos materiais de direito penal e de crime, sendo as orientações de formulação mais modernas as que entendem o direito penal como a proteção de bens jurídicos especialmente relevantes para a vida em sociedade e, por isso, merecedores da tutela penal, sendo o crime comportamento humano que lesa ou põe em perigo de lesão tais bens.
O Direito Penal é considerado por todos os autores como um instrumento poderoso de intervenção social. Por tal, e pelo seu carácter aflitivo, só deve ser usado como medida extrema, porque as suas sanções afetam o que de mais precioso há no ser humano: - a liberdade.
Assim, num Estado de Direito democrático, as incriminações estabelecidas pelo Direito Penal são justificadas por razões materiais, de elevada e injustificada danosidade social do comportamento proibido.
O Direito Penal não visa obter a conformidade dos comportamentos humanos com quaisquer imperativos morais, mas tão-só a sua conformação com os imperativos jurídicos que são determinados em razão da sua utilidade social e não para formar ou reforçar a consciência moral das pessoas.
Tais princípios, ainda que sejam direcionados na perspetiva da construção típica e da seleção dos bens jurídicos a salvaguardar, também não deixarão de estar presentes no momento da subsunção e do preenchimento objetivo do tipo que, no caso, não se compadecerá com comportamentos dirigidos aos agentes do Estado que não assumam a pressuposta relevância e se notem meramente indelicados ou rudes.
Ora o Estado entendeu proteger a sua autonomia intencional e, reflexamente, a integridade dos seus agentes, por assumir que a prossecução das suas finalidades de interesse comum e as correlativas necessidades de imposição e constrangimento de interesses particulares, não se compadece com a ameaça de ataques externos ou resistência reativa dos destinatários, sob pena de completa inoperância. Assim e como é referido na decisão recorrida e citando C. Líbano Monteiro, “O dever de não violação deste bem jurídico apenas surge na esfera jurídica de cada indivíduo quando este se depara com uma situação em que é objeto de uma legítima decisão da autoridade pública, caso em que o “seu dever genérico de respeitar a autoridade (…) concretiza-se na obrigação principal de obedecer àquele mandado ou de respeitar determinadas providências tomadas pela autoridade”.
No caso, tratando-se de militares da G.N.R. no exercício das suas funções, devidamente uniformizados, perante a ocorrência de um acidente de viação, impende sobre aqueles o dever funcional de aquilatarem das circunstâncias do mesmo, elaborando a respetiva participação e submetendo o condutor ao exame de pesquisa de álcool no sangue, procedimento cujo conhecimento é, aliás, pressuposto por todos os condutores legalmente habilitados.
Nesta medida, sobre o arguido impendia a obrigação de, perante uma abordagem legítima, proceder com urbanidade e postura de acatamento às determinações daqueles representantes da autoridade e do interesse do Estado, sendo-lhe vedada a adoção de qualquer comportamento violento e disruptivo que visasse impedir a prossecução daquelas finalidades.
Ora, no caso vertente, tal não sucedeu, tendo o arguido adotado o comportamento já elencado, com postura hostil, incumpridora, envolvendo, no percurso, o agarrar dos militares pela farda, o encostar da cabeça a um deles e a produção, em tom sério, de expressões como “eu mato-vos a todos”, “ou me deixam ir embora ou mato-vos a todos” ou “se não me deixas ir embora, dou-te já aqui uma cabeçada”.
Objetivamente, o comportamento que se surpreende ao arguido é, semântica, impressiva e materialmente violento, incluindo a produção de ameaça grave, criando escolhos, entraves, potenciando a criação de um estado de inquietação, visando obstar à execução das solicitações dos militares, compreendidas estas no exercício das suas funções.
Contesta o recorrente afirmando que, atendendo ao seu estado (embriagado) e às especiais qualidades dos destinatários da sua ação (militares da G.N.R.), aquele seu comportamento não era (suficientemente) violento nem idóneo a produzir qualquer tipo de constrangimento capaz de antolhar um obstáculo eficaz à concretização dos intentos dos militares.
Ora, diz-se na sentença recorrida – e aqui por trasladação – que o crime de resistência e coação é de resultado cortado, pelo que a sua perfetibilização não está dependente da criação de um efetivo estado de obnubilação ou constrangimento no destinatário, impossibilitando a prática do ato, bastando-se com a adequação da conduta para a predito efeito e, aqui, embora as caraterísticas concretas do funcionário possam relevar no indicado juízo de adequação, não pode transmutar-se em critério subjetivo e mutável que degrade a objetividade de um comportamento violento.
Se se refere que, só reflexamente, a incriminação protege a pessoa do próprio funcionário, dado que a incriminação se dirige direta e primacialmente à proteção da autonomia intencional do Estado, não poderão as subjetivas caraterísticas daquele funcionário concreto influenciar sobremaneira o processo subsuntivo de forma a aparentemente subverter o bem jurídico tutelado e sob o risco da insegurança e subjetividade que o enfoque na pessoa concreta do visado, como fator tornado essencial, necessariamente acomoda.
Se é verdade que os agentes policiais não são “homens médios”, a sobrevalorização das suas potenciais qualidades e caraterísticas, no tratamento do critério objetivo-individual necessário a densificação da adequação da conduta à obtenção do resultado prevenido pela norma, não poderá transformá-los em “super-homens”, capazes de estoica e insensivelmente, suportarem todos os atos, quando estes já são, objetivamente, violentos e com expressão em ameaças graves.
Se assim fosse, então que tipo de violência imensurável seria adequada ao constrangimento ou perturbação de um membro do Corpo de Intervenção ou da Unidade Especial de Polícia? Poderia a mesma ação ser idónea ou inadequada, típica ou atípica, simultaneamente, ante uma patrulha composta por um agente em final de carreira, franzino e mais impressionável e outro jovem, encorpado, alto e destemido?
Essencial e nuclear é que a ação do agente se traduza, objetivamente, na adoção de um comportamento violento capaz de, no plano da adequação, deduzir oposição ou constranger o agente que personifica a ação, poder e interesse do Estado, na execução das ações a desenvolver, sendo estas compreendidas no plano das suas atribuições e, por isso, legítimas, não hiperbolizando uma pressuposta capacidade acrescida para a desvalorização da conduta violenta, ou assumindo que um militar da G.N.R. ou um agente da P.S.P., pelo simples facto de o serem, deverão resistir e com indiferença a essa mesma ação, objetivamente violenta (sendo este, para nós, o critério aferidor essencial), tornando-a inidónea a pôr em causa o bem jurídico protegido.
Vista a atuação do arguido, no plano da imagem social, é aquele objetivamente violenta e adequada a exercer oposição eficaz à ação dos visados e ao seu constrangimento.
Da mesma forma, agora no plano do agente, a circunstância objetiva de se encontrar alcoolizado, por si só, não induz a conclusão de que a sua atuação deveria, somente por isso, ser desvalorizada, tratando-se de meras palavras e atos inconsequentes próprios de alguém embriagado.
Se a avaliação se faz no plano concreto, então, não escamoteando que se tratava de militares da G.N.R., aquela atuação preconizada pelo arguido, atentas as formas e o conteúdo que assumiu, é idónea e adequada à criação do estado de impedimento/oposição à pratica dos atos, sendo exemplo disso o facto de a primeira patrulha ter convocado reforços, atendendo à não complacência do arguido e à forma disruptiva como atuava. Por outro lado, no plano do agente da prática do crime, o seu estado ébrio não desonerava ou degradava essa oposição ativa, os matizes da violência, a seriedade da ameaça ou o risco de concretização, sendo impressivo o estado de agitação em que aquele se encontrava, a ponto de se auto mutilar e carecer de assistência médica.
Concordamos, assim, com o decidido e pela completude do preenchimento típico: - a ação do arguido obedece à finalidade prevista no tipo – evitar que a autoridade pública exerça as suas funções – sendo o meio utilizado para esse fim, com erupções de violência verbal, tendo em conta as ameaças proferidas e o seu teor, em contexto impressivo de agitação e proximidade física, idóneo. Em contraponto, os destinatários da ação são membros de força militarizada, para efeitos do estatuído no art.º 386.º do C.P., atuando no plano legítimo das suas funções.
Claro que o grau maior ou menor da violência exercida, ou a maior ou menor suscetibilidade dos destinatários e os efeitos nestes concretamente produzidos são dados que interessam à equação, no caso não tornando a conduta atípica, como pretendido, mas podendo influenciar a medida concreta da pena.
Improcede, por tudo isto e também nesta parte, o recurso.
*

III.4
Da (in)adequação da taxa diária da multa.
Não contestando o recorrente a aplicação da pena de multa, quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na vertente dos dias de multa determinados, nem tão pouco contestando a pena acessória concretamente fixada, põe, no entanto, em causa, a taxa diária encontrada (€ 7,00) que considera desadequada, propondo a sua fixação em quantia não superior a € 6,00.
Apreciando.
Na sentença posta em crise, neste particular, deixou-se consignado o seguinte:
“O nosso legislador consagrou, quanto à pena de multa, o sistema dos dias de multa, por forma a garantir a integral realização das intenções político-criminais, com observância dos parâmetros constitucionalmente impostos pelo princípio da culpa e pelo princípio da igualdade. Daí que a pena de multa seja determinada através de dois atos autónomos, nos quais se consideram, em separado e sucessivamente, os fatores relevantes para atingir as finalidades da punição, sempre com a limitação inerente à medida da culpa, e os fatores relevantes para a situação económico-financeira do agente. Assim, fixado o número de dias a que este deve ser condenado, há que determinar o quantitativo diário.
Dispõe, então, o artigo 47.º, n.º 2, do CP que a “cada dia de multa corresponde a quantia entre € 5,00 (cinco euros) e € 500,00 (quinhentos euros) que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.
Não obstante o legislador ter pretendido que a pena de multa consubstanciasse uma verdadeira condenação, através da imposição de um real sacrifício ao condenado, não só não quis que isso colocasse em causa mínimos de subsistência, como pretendeu evitar que a realidade económica do arguido impedisse que este pudesse cumprir a pena de multa a que foi condenado por ver a mesma convertida em prisão subsidiária (cfr. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Ed. Notícias, Lisboa, 1993, pp. 118-120).
Por outro lado, a amplitude dada ao montante diário da multa prende-se com a realização do princípio da igualdade de ónus e sacrifícios por forma a esbater a crítica que pode ser apontada a esta pena que é a de ter um impacto distinto, consoante a situação económica do agente (cfr. Maia Gonçalves apud M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, op. cit., pp. 312-313).
Assim, com este sistema, o que se pretende é, por um lado, garantir que a pena de prisão é, de facto, uma medida de ultima ratio e que não será aplicada, designadamente, através da prisão subsidiária, pelo facto de estarmos perante alguém com uma situação económica mais precária, por outro, que a concreta situação económica do agente é tida em consideração de modo a que a pena consubstancie um sacrifício ou ónus proporcional em relação a todos os que nela são condenados.
In casu, ficou demonstrado que o arguido trabalha e aufere o salário mínimo nacional (atualmente de € 820,00), sendo que reside sozinho, em dependência que pertence à casa da mãe, não pagando qualquer valor a título de renda ou semelhante.
Todavia, é responsável pelo pagamento das despesas referentes aos serviços públicos essenciais. Além disso, tem uma filha de quatro anos de idade, relativamente à qual paga uma pensão de alimentos de € 75,00 mensais, a que acresce a prestação de um crédito pessoal no valor de € 110,00.
Assim sendo, considerando os rendimentos do arguido, por um lado, bem como a composição do seu agregado familiar e as despesas inerentes, por outro, entende este Tribunal adequado fixar o quantitativo diário no valor de € 7,00 (sete euros).”.
*
Sindicando o decidido, subscrevemos integralmente os fundamentos e o sentido da decisão.
Quanto à taxa diária, o Código Penal português adotou o chamado modelo de dias de multa, com a fixação posterior de um quantitativo diário como multiplicando para os dias de multa determinados, defluindo o produto no montante global em espécie, transpondo o modelo escandinavo ao nosso sistema, permitindo que os critérios operativos do art.º 71.º do C.P. laborem na fixação do primeiro fator, situando a ulterior quantificação da taxa diária à margem da correspetividade ao crime praticado e em consonância com a concreta situação económica do agente.
São duas operações distintas e diversos os critérios teleológicos que lhe subjazem. No primeiro momento, de acordo com a moldura penal abstrata, o tribunal fixa os dias de multa à luz dos critérios do art.º 71.º do C.P., em função da culpa e das exigências de prevenção, operação que o recorrente não contesta.
Num segundo momento, fixada a pena, o tribunal atribui o quantitativo diário a incidir sobre cada dia de multa da pena concreta, entre um mínimo de € 5,00 e um máximo de € 500,00 diários, em função da situação económica e financeira do condenado.
Neste particular, a decisão recorrida fixou um quantitativo diário de € 7,00, tendo considerado, além do mais, que o recorrente aufere o salário mínimo nacional, sendo que reside sozinho, em dependência habitacional que pertence à mãe, não despendendo, por isso, qualquer importância a título de renda. Tem uma filha de 4 anos de idade, pagando uma prestação de alimentos de € 75,00 mensais, ao que acresce a prestação de um crédito pessoal de € 110,00.
Ainda que a fixação da taxa diária não assuma uma função preventiva e de correspetividade com o crime praticado, não podemos perder de vista que a multa criminal acarreta a inevitável inflição de um sacrifício no destinatário, que se materializará, por referência ao crime concreto e suas circunstâncias, nos dias de multa fixados, mas sem escamotear que a determinação ulterior da taxa diária (ou a jusante o fracionamento do pagamento) não poderá desvirtuar aquela natureza de verdadeira pena, afetando a finalidade desta enquanto tal, quer do ponto de vista da prevenção geral, quer especial.
Conforme se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.09.2017 [proc. n.º 634/15.9PBSTB.E1, Rel. António Latas], diz F. Dias, ob. cit. p. 119, “Impõe-se…que a pena de multa represente em cada caso uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada”. Assim, até porque a multa é muitas vezes percebida mais como uma taxa que como uma pena, a sua credibilidade enquanto consequência jurídica do crime não pode deixar de assumir caráter aflitivo para o condenado, sendo igualmente inerente a esta pena, como às demais, que possa afetar o modo de vida do próprio e dos que dele dependam, mesmo na sua vertente patrimonial.
Note-se, ainda, que as condutas contraordenacionais propõem, para infrações menos gravosas e de mera ordenação social – no caso particular da condução de veículo em estado de embriaguez - montantes líquidos consideráveis que impelem a uma ponderação que não introduza disfuncionalidades no sistema e que tornem a prática criminal mais vantajosa do que o comportamento sem a censura ética dirigida à personalidade do agente, própria das sanções administrativas.
Nestes parâmetros, retendo que a individualização se faz, como já se referiu, entre €5,00 e €500,00 diários, reservando-se o referencial mínimo para situações-limite de quase indigência, a fixação em €7,00 não se nos afigura desadequada, inexistindo desproporcionalidade no decidido na, aliás, douta sentença, que convoque a sua modificação substancial em obediência à imanente proibição constitucional do excesso.
*

IV.

Decisão:

Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
*








Porto, 03 de julho de 2024
José Quaresma (Relator)
Maria Luísa Arantes (1.ª Adjunta)
Raúl Esteves (2.º Adjunto)