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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INTENÇÃO DE MATAR
Sumário
I - Para que os destinatários da decisão e o tribunal de recurso consigam acompanhar e compreender a convicção a que chegou o tribunal “a quo”, é necessário que a fundamentação da matéria de facto seja clara e esclarecedora. II - Concluindo o tribunal pela intenção de matar por parte do arguido, é imperioso que da fundamentação se consiga extrair, recorrendo às provas e ao seu exame crítico, qual foi o percurso percorrido até chegar a essa conclusão. III - Não o tendo feito, o Acórdão é nulo ao abrigo das disposições conjugadas dos arts.379º, nº 1, al. a) e 374º, n.º 2, do CPP, impondo-se a sua reformulação.
(da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Criminal do Porto – Juiz….
Processo: 629/22.6PEGDM.P1
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
Por Acórdão proferido a 03.04.2024 foi decidido:
Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material e concurso real de Um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do C.P. Condenar o arguido AA, da prática, em autoria material e concurso real de:
- Um crime de homicídio, na forma tentada, p.p. pelo art.º 131º, 22º e 23º, do C.P. na pena de 4 anos de prisão;
- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelo art.º 132º, n.º 1, e n.º 2, al. b), do C.P. na pena de 5 anos de prisão;
- Um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art.º 86º, n.º 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano de prisão;
- Um crime de dano, p.p. pelo art.º 212º, do C.P. na pena de 9 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 7 anos de prisão.
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Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente BB totalmente procedente e, em consequência, condenar o arguido no pagamento da quantia de € 21. 432, 95, acrescida de juros de mora, contados desde a notificação para contestar até efectivo e integral pagamento.
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Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente CC, parcialmente procedente e, em consequência:
- Condenar o arguido no pagamento da quantia de € 30850, 25, acrescida de juros de mora contados desde a notificação para contestar até efectivo e integral pagamento.
- Condenar o arguido no pagamento da indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
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RECURSO
Não se conformando com a decisão veio o arguido AA recorrer.
Após motivação, apresenta as seguintes
CONCLUSÕES:
I. Por Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal a quo, foi o Arguido, aqui Recorrente, condenado pela prática, em autoria material e concurso real, de 1 (um) crime de homicídio, na forma tentada, p.p. pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º, do Código Penal (doravante C.P), na pena de 4 (quatro) anos de prisão; 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos artigos 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. b), do C.P., na pena de 5 (cinco) anos de prisão; 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano de prisão; e 1 (um) crime de dano, p.p. pelo artigo 212.º, do C.P., na pena de 9 (nove) meses de prisão, sendo que, em cúmulo jurídico, o Tribunal a quo condenou o arguido na pena única de 7 (sete) anos de prisão. Concomitantemente, foram julgados procedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos pelos Assistentes, sendo o Arguido condenado no pagamento da quantia de quantia de € 21.432,95, à Assistente e na quantia de quantia de € 30.850,25, ao Assistente, bem como, veio o Arguido condenado no pagamento da indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença.
II. Por consequente, considera o Recorrente que o Acórdão em sindicância andou mal quando, num primeiro momento, deu como provados factos em sentido diverso do apontado pela prova produzida e, num segundo momento, reputou como necessária, justa adequada e proporcional a pena unitária de 7 (sete) anos de prisão, bem como a condenação no pagamento das quantias indemnizatórias supra referenciadas.
III. O Tribunal a quo, incompreensivelmente, deu como provados os seguintes factos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 21 e 22, sendo que, pela leitura e análise de tais factos dados como provados, concluímos que, efetivamente, são muitos os pontos em que a lógica e a experiência nos transmitem entendimentos diferenciados daquele a que o Tribunal a quo chegou, designadamente com a Decisão de que se recorre, até mesmo porquanto a mesma não encontra âncora em nenhum outro elemento probatório junto aos autos.
IV. Nesta senda, sempre se considere que Tribunal a quo, na formação da sua convicção, teve em consideração, aliás, com particular relevância, os depoimentos dos Assistentes, tendo praticamente desatendido a prova produzida pelo Recorrente, designadamente, as suas declarações e as declarações das testemunhas arroladas pelo mesmo.
V. No que às declarações do Recorrente concerne, sempre se note que o Recorrente prestou declarações, sérias, consentâneas, credíveis e uniformes durante todo o processo, confirmando as circunstâncias da relação com a Assistente e afirmando o exercício pacifico das relações parentais, até aos factos, as quais foram, incompreensivelmente, desconsideradas.
VI. Aqui chegados, considere-se que o Recorrente afirmou que no dia dos factos se deslocou a casa dos Assistentes, de táxi, a fim de «recuperar» o filho que a Assistente lhe «havia retirado», quando estava à sua guarda, negou a intenção de agredir qualquer um dos Assistentes, insistindo na defesa de ataques a que foi sujeito por parte do Assistente.
VII. Ainda nesta sequência de eventos, importa atentar que o Recorrente, ao chegar ao edifício onde residiam os Assistentes tocou a duas campainhas, por não saber ao certo qual o apartamento e chamou pela Assistente, tendo o Assistente vindo ao seu encontro, aberto a porta e mandando-o embora, tendo, de seguida tentado fechar a porta do edifício, no que foi impedido pelo Recorrente, que colocou o pé entre a porta e o aro, sendo que aquele, de imediato e ato continuo, imediato, lhe desferiu uma facada atingindo-o no joelho esquerdo – tendo o Assistente iniciando assim o confronto em crise nos autos.
VIII. Neste seguimento, o Recorrente, que tinha o pé esquerdo preso na porta – onde o havia colocado para obstar ao fecho da porta – e porque não conseguia retirá-lo, chutou a porta com o pé direito, tendo partido o vidro, logrando assim que o Assistente deixasse de exercer pressão sobre a porta.
IX. Logo que conseguiu desbloquear a porta e entrar, o Assistente subiu as escadas do patamar, em fuga, sendo que foi aí que aquele lhe puxou as calças fazendo-o cair, ficando com a faca em seu poder. Posto isto, o Recorrente envolveu-se em luta corporal com o Assistente tentando este tirar-lhe a faca, segurando no gume e cortando-se nos moldes descritos.
X. De seguida, o Assistente deslocou-se para o interior de sua casa e foi então que o Recorrente, deixando a faca junto da porta de entrada do edifício, abandonou o local.
XI. Isto considerado, importa ainda atentar no depoimento da testemunha DD, depoimento esse que não sedimentou a versão dos Assistentes, porquanto o mesmo atesta que não viu qualquer faca, nem no táxi, nem à porta do prédio, sendo que uma faca com lâmina de 26 centímetros não se revela fácil de esconder, sobretudo em indumentária de verão.
XII. Mais se diga que, no que respeita à prova pericial, e uma vez que em causa esteve uma luta onde o Recorrente tentava retirar a faca ao Assistente, resulta normal que os vestígios hemáticos recolhidos na faca, designadamente, no gume, sejam do Assistente. Ora, como é consabido, o ferimento no joelho, pelos seus contornos, não causa jorramento de sangue de forma desenfreada, pelo que é natural que não existam vestígios hemáticos do Recorrente na faca em causa - o que por si, não é bastante para descredibilizar a tese do Recorrente, como o Tribunal a quo aqui fez.
XIII. Já no que diz respeito aos vestígios relativos à Assistente, sempre se note que o Recorrente, posteriormente aos factos, abandonou o local, deixando lá a faca, não sabendo o que foi feito depois, nomeadamente, para o incriminar.
XIV. Mas mais, atente-se ainda no testemunho da mãe do Recorrente que indicou que o mesmo, nesse dia, não chegou a entrar em casa, não se podendo munir do que nos autos é evidenciado ser uma faca de cozinha.
XV. Face ao antedito, é por demais evidente que a realidade factual difere cabalmente da realidade apresentada pelos Assistentes e em que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção, sendo que tal versão não se coaduna com as regras da experiência comum, devendo assim tal matéria ser dada como não provada.
XVI. A acrescer, diga-se que o Tribunal a quo, para fundamentar a sua decisão, esclareceu que formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em Audiência de Julgamento e bem assim na prova constante dos autos, apreciada segundo as regras da lógica e da experiência comum, movendo-se ainda no âmbito da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
XVII. Nessa medida, sempre se refira que não se concebe como é que é contrário às regras da experiência comum e normal do decurso das coisas que o Assistente surja a empunhar uma faca à porta da sua própria casa. E tampouco este tê-la utilizado, desferindo facadas na perna do Recorrente, quando este se recusou a ir embora e colocou a perna esquerda no caminho para não permitir que a porta fechasse – aliás, tal parece mais do que conforme às regras da experiência comum e normal decurso das coisas.
XVIII. A acrescer, também nos parece conforme o facto do Recorrente, com a perna esquerda presa, ter pontapeado a porta com o pé direito. Mas mais, também se assemelha razoável que o Assistente, sabendo que o Recorrente é segurança privado e tem formação em defesa pessoal, mesmo munido de uma faca e tentando impedir a abertura da porta, tentasse se refugiar em casa, tendo deixado cair a faca quando o Recorrente o apanhou pelas calças nas escadas e o fez cair.
XIX. Porém, contrariamente ao determinado em Acórdão, não pode ser considerado de acordo com as regras da experiência comum e do normal decurso das coisas que o Recorrente, que supostamente desferiu pontapés nas almofadas da porta, tivesse tentado introduzir uma faca nestes para atingir os Assistentes quando, seria fácil, qualquer um deles com um pontapé, o fazer largar a dita.
XX. A este facto, coaduna-se um conjunto de outros que atestam as evidentes discrepâncias e incoerências na análise de prova produzida, designadamente, o facto da porta, que referem que caiu para o lado da residência, tivesse depois caído em cima do Recorrente fazendo-o perder a consciência; a impossibilidade de alguém que perde os sentidos, os recuperar de imediato, como se diz aqui do Recorrente; bem como que alguém agarre uma faca pela lâmina e a retire da mão de outrem; mais sendo certo que, também não se revela de acordo com as regras da experiência comum que o Assistente que, alegadamente, se encontrava com receio do Recorrente, o conseguisse expulsar de casa pelas escadas – isto quando não tinha qualquer faca nas mãos e o seu intuito seria, alegadamente, matá-lo a ele e à Assistente; a acrescer o facto de que em pleno verão, o Recorrente transportasse uma faca com 26 centímetros de lâmina sem que a mesma fosse vista por quem o transportou no táxi; por último, sempre se diga que quem possua a intenção de tirar a vida a alguém jamais agrediria outrem nas pernas, braços e mãos.
XXI. Posto isto, não se entende como pôde esta tese proceder, não estando ancorada em quaisquer outros elementos probatórios que não as declarações dos Assistentes. Isto em detrimento da realidade expendida pelo Recorrente no decurso de todo o processo – sem alterar uma vírgula que fosse.
XXII. Tudo considerado, é por demais patente que, in casu, estamos perante um evidente erro de julgamento, na medida em que houve uma incorreta apreciação da prova produzida, determinando o Tribunal a quo indevidamente como provados, factos que deveriam ter sido julgados como não provados.
XXIII. A acrescer ao exposto, e uma vez que no espírito do julgador permanecia incerteza da prática dos factos pelo Recorrente, uma vez que sobre si não se apagou a chama da dúvida – que é evidente –, deveria o Tribunal a quo ter proferido uma decisão final favorável ao Arguido, ora Recorrente.
XXIV. Ao não o fazer, e ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo sacrificou, inexoravelmente, o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no n.º 2 do artigo 32.º, da CRP, pois, tal princípio impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos, e aqui salientada, fosse valorada a favor da posição processual do Arguido, ora Recorrente, e aquele fosse absolvido.
XXV. Sem prescindir, considera o Recorrente estar perante uma errónea subsunção dos factos em apreço ao crime de homicídio/homicídio qualificado, na forma tentada, isto porquanto sempre se considere que associado ao ato característico deste ilícito penal «causar a morte» encontra-se inerente a respetiva «intenção de matar» - intenção esta que no caso nunca existiu.
XXVI. Ora, in casu, resulta evidente dos elementos objetivos ao dispor do Tribunal a quo que o Recorrente nunca havia agido munido da referida intenção – o que desde logo é evidenciado pelo facto de não ter sido o Recorrente, como supra se explanou, a iniciar as hostilidades.
XXVII. Como se não bastasse, relembre-se que no que respeita a alegada intenção, o Tribunal a quo abstém-se de enunciar quais os factos concretos que permitem concluir da sua verificação - e abstém-se porque, de facto, inexistem.
XXVIII. Ademais, revela-se improvável, que o Recorrente tivesse vislumbrado as zonas do corpo do Assistente que atingiu – e apenas ficaram feridas em virtude da reação de defesa do próprio Recorrente –, como idóneas a causar a sua morte; pelo contrário, o Recorrente apenas pretendeu afastar a intenção que o Assistente tinha de o lesar, pelo que somente com a sua atuação é que o Recorrente conseguiu afastar o perigo iminente em que se encontrava. Nestes termos, deverá o Acórdão ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta.
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RESPOSTA DO SR PROCURADOR ADJUNTO NA 1º INSTÂNCIA
1 – O Arguido condenado, como autor material e concurso real, de 1 crime de homicídio tentado dos art.os 131.º, 22.º e 23.º, do C. Penal, na pena de 4 anos de prisão; 1 crime de homicídio qualificado tentado dos art.os 132.º, n.º 1, e n.º 2, aL. b),do C. Penal, na pena de 5 anos de prisão; 1 crime de detenção de arma proibida do art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano de prisão; e 1 crime de dano do art.º 212.º, do C. Penal, na pena de 9 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos de prisão, recorre discordando da matéria de facto fixada, escolha da pena, da pena única aplicada e da condenação ao pagamento de indemnizações aos assistentes. 2 – O Ministério Público, que não responderá quanto à última questão por falta legitimidade, entende que lhe não assiste razão. 3 – Quanto ao recurso de facto, o recorrente não dá cumprimento ao comando do art.º 412.º, n.ºs 1, 3 e 4 do Código de Processo Penal (CPP), porquanto ao impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar e não indica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; [al. b) do n.º 3], e fazer as especificações previstas nessa alínea b) por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º, indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação (n.º 4), o que não acontece neste recurso.4 – A lei pretende que o recorrente indique precisamente os erros que se pretende terem sido cometidos na decisão impugnada, respeitando o figurino acima apontado, e não a substituição da convicção do tribunal recorrido pela convicção subjectiva do recorrente, através da realização de um novo e irrestrito julgamento da causa no Tribunal Superior, como se o julgamento da primeira instância não tivesse existido.5 – Daí que não deva ser conhecido o recurso em matéria de facto. 5 – Aliás, em relação ao facto n.º 4 ele próprio acaba por o retomar, como verdadeiro, na sua motivação. 6 – A ser conhecido, o mesmo deverá ser julgado improcedente, pois que o recorrente entende que foram ilegitimamente provados os factos dos n.º 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 21 e 22, o que significa que não impugna designadamente os factos considerados provados nos n.ºs 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, factos que estabelecem a sua culpabilidade quanto aos crimes pelos quais foi condenado, propondo assim ao Venerando Tribunal da Relação uma versão factual que nos atreveríamos a apelidar de esquizofrénica. 8 – Mencionou a violação da presunção da inocência, afirmou, mas não demonstrou que no espírito do Tribunal recorrido permanecia a “incerteza”, sem dizer exactamente sobre o quê, escudando-se na sua evidência, que o dispensaria de qualquer demonstração. 9 – Ora, não tendo o Tribunal ficado em estado de “incerteza”, não há que fazer pelo àquele princípio. 10 – Sendo, aliás, certo que o Tribunal clara e justamente considerou inverosímil a sua versão. 11 – No que se refere à escolha da pena quanto aos crimes de dano e de detenção de arma proibida, as circunstâncias do caso, demonstram uma culpa intensa e grande ilicitude, atenta a actuação global de foram instrumentais, como bem o entendeu o douto Tribunal Colectivo, impondo a opção pela pena de prisão. 12 – quanto às penas parcelares referentes aos outros crimes o recorrente verdadeiramente não as impugna, não quantificando sequer as penas que tinha por justas e adequadas, sendo certo que também aqui não deu cumprimento aos comandos do n.º 2, als a) e b) do art.º 412.º do CPP, ao prescrever que «2 – Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: (a) As normas jurídicas violadas; (b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada;». 13 – Pelo que não deve ser apreciada essa questão. 14 – Quanto à forma como é impugnada a pena única que o recorrente (conclusão XLII) pretende “necessariamente, mais baixa, como supra se propôs, pena esta que sempre se situaria no limite mínimo previsto dos ilícitos-típicos. não podendo originar o seu cúmulo uma pena única superior a 4 (quatro) anos e 1 (mês)”, significa que o horizonte possível desta impugnação se reduz à pena única que eventual resulta da procedência do recurso quanto à medida concreta das penas parcelares. 15 – Com efeito, sendo, no quadro da decisão recorrida, de 5 anos a maior das penas parcelares e logo o limite mínimo da moldura penal do concurso (n.º 2 do art.º 77.º do C. Penal), o recurso da pena única, tal como formulada na conclusão XLII não tem objecto possível, pois a pena única nunca poderia ser inferior a 5 anos. 16 – Mas sempre se dirá, por dever funcional, que bem andou o Tribunal recorrido em entender que o grau de culpa com agiu o recorrente se mostra elevado, com efeito, está-se perante um dolo directo, o dolo mais grave dos que estão previstos no art.º 14.º do C. Penal. 17 – Diversamente do que parece entender o recorrente, “o facto do Recorrente não ter promovido qualquer contacto com os Assistentes após os eventos e de o mesmo se encontrar devidamente integrado na comunidade onde se insere” são alheios à culpa não a influenciando. 18 – Estes elementos que não permitem, portanto, a conclusão do recorrente de que a medida concreta da pena aplicada deve ser reduzida para próximo do mínimo legal previsto. 19 – Diferentemente do que sustenta o recorrente (conclusão XXXVI) na determinação da medida da pena não intervém as regras da experiência comum e os elementos probatórios, que só relevam para o juízo da culpabilidade e não para a individualização judiciária da pena. 20 – Sendo que todos os antecedentes criminais relevam e não só os por crimes da mesma natureza. 21 – Nenhuns argumentos tendo assim sido aduzidos que justifiquem a alteração das penas escolhidas e as medidas encontradas para as penas parcelares, na decisão recorrida. 22 – A pena única encontrada não merece qualquer censura, encontrando-se perto do valor, um pouco acima, do que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sugere. 23 – Na verdade, já entendeu o Supremo Tribunal que, no nosso sistema de pena única conjunta, o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares (numa concessão minimalista ao princípio da exasperação ou agravação — a punição do concurso correrá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave) mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade de crimes, sem que possa ultrapassar a soma das penas concretamente que seriam de aplicar aos crimes singulares (princípio da acumulação — a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico em que são determinadas as penas concretas aplicáveis a cada um dos crimes singulares, construindo-se depois uma moldura penal do concurso, dentro do qual é encontrada a pena unitária). Nessa óptica e num esforço para evitar as disparidades injustificadas detectadas naquelas penas, temvindo a considerar como ponto de partida na determinação dessas penas, a agravação da pena parcelar mais grave com um coeficiente do remanescente das restantes penas parcelares, que se situa em princípio ente um terço e um sexto da sua soma total, a precisar em função das circunstâncias do caso e a personalidade do agente. 24 – No caso, aplicando o critério legal para a determinação da pena única, verifica-se que a sua moldura se define, entre 5 e 10 anos e 9 meses de prisão e aplicando-se o factor de compressão de 1/3 teríamos 23 meses que adicionados ao limite mínimo (ou seja, à pena mais grave) daria 6 anos e 11 meses muito próximo, pois, da pena de 7 anos de prisão aplicados pela douta decisão recorrida e que assim não merece qualquer censura. Termos em que não deve ser conhecido o recurso quanto à matéria de factos e às penas parcelares respeitantes aos homicídios tentados e negado provimento quanto ao restante,
RESPOSTA DA ASSISTENTE BB
1. A Douta Sentença recorrida analisou criteriosamente os factos provados e decidiu de conformidade com os mesmos, nas suas dimensões criminal e civil.
2. Devem julgar-se improcedente o recurso e confirmar-se, na sua totalidade, a Douta Sentença recorrida, com as legais consequências daí decorrentes.
RESPOSTA DO ASSITENTE CC
I - Limita-se o Recorrido a pugnar pela manutenção do julgado, tendo para si que logrou correta apreciação dos factos e adequada subsunção e aplicação do direito pertinente. II - Devendo o recurso improceder, por falta de fundamento, estando expressamente afastada e explicitamente motivada a denegação da pretensão. III - Inexistindo o invocado erro de julgamento da matéria de facto por errada interpretação da prova produzida; IV – Sempre a decisão da questão de facto, adentro da livre apreciação da prova cometida ao Julgador, é irreversível aquisição processual. Na verdade, cabe ao Julgador da 1ª Instância, com a imediação que a produção da prova coenvolve, poder aquilatar e ajuizar o evento, “qua tale”. V - A decisão da questão de facto, leva à solução jurídica sentenciada, que fez correta subsunção dos factos ao direito aplicado; VI - Não se verificam violados, como reclamado, os princípios da livre apreciação da prova e “in dúbio pro reo”, sendo justa a medida da pena e a indemnização fixada; VII - Deverá manter-se “in totum” o Julgado, com as legais consequências. Termos em que, deverá o Recurso não ser provido à falta de fundamento e, sempre, julgado improcedente.
PARECER DO SR. PROCURADOR GERAL ADJUNTO
Já nesta Relação, o Ex. Sr.º Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer dizendo” (…) O recorrente Aponta como vícios: - Erro de julgamento da matéria de facto, e errada interpretação da prova (o mesmo é dizer erro notório na apreciação da prova); - Violação do princípio da livre apreciação da prova; - Violação do princípio in dubio pro reo; - Errónea subsunção ao crime de homicídio, na forma tentada; - Indevida determinação da medida concreta da pena; - Desproporcionalidade dos montantes indemnizatórios;
Requerendo, a final, a redução da medida concreta da pena aplicada, para próximo do mínimo legal, quanto aos crimes de dano e de homicídio, a aplicação de pena de multa relativamente ao crime de detenção de arma proibida, e quanto aos montantes indemnizatórios atribuídos, deverá ser reduzido para montante não superior a cinco mil euros por cada assistente. O Exmo. Colega junto da primeira instância de forma acertada, exaustiva e superior, claramente demonstra que a pretensão do arguido não poderá proceder, considerandos esses com os quais se concorda, e aqui se dão por reproduzidos. (…) Voltando ao caso concreto, e analisando o douto Acórdão ora em crise, o Tribunal a quo, reportando-se às concretas provas consideradas, efectuou uma exposição fundamentada e perceptível, na formação da sua convicção, indicando a prova analisada, a valoração que fez da mesma, grau de credibilidade que lhe reconheceu e a demonstração dos factos que logrou alcançar de forma bastante, as provas e as razões que estiveram na base da formação da convicção quanto à sustentação probatória daquela factualidade. Na motivação da decisão de facto, o Tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos da mesma que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade da acusação. (…) E, tudo ponderado, não se vislumbra qualquer erro na apreciação da matéria de facto, designadamente que a convicção do Tribunal a quo tenha assentado em raciocínios contrários à lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, convicção essa que o Tribunal a quo não deixou de fundamentar, e bem, nos termos do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal.
A apreciação da prova tem de específico a superação da incerteza de um facto controverso, através do julgamento, ou seja, da formação de uma convicção de certeza, segundo regras previamente estabelecidas, de respeito pelo contraditório, imediação, oralidade e pública discussão da causa. (…) O que verdadeiramente o recorrente contesta é a formulação da convicção do tribunal.(…) Dito de outro modo, o que o arguido pretende é, no fundo, que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento acerca de tais factos, analisando toda a prova produzida na primeira instância a fim de fixar depois a matéria de facto de acordo com a convicção do próprio recorrente, considerando os factos em causa como não provados, nos termos supra mencionados.(…) Com efeito, a análise de toda a prova não nos dá qualquer indício de que aquele tribunal decidiu mal. Antes pelo contrário, confirma o raciocínio coerente, lógico e racional prosseguido pelo Tribunal a quo para dar como provados os factos em discussão, ora questionados pelo Recorrente. (…) Em conclusão, e aderindo à argumentação contida na resposta do magistrado do Ministério Público na primeira instância, que aqui damos por reproduzida, somos de parecer que: -a prova foi devidamente apreciada e valorada; -o Acórdão está devida e acertadamente fundamentado, e não padece que qualquer erro ou vício; -não houve violação de lei; -o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se o Acórdão nos seus precisos termos. NB: bold da nossa autoria
Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP não houve resposta ao Parecer.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, onde deve ser julgado, de harmonia com o preceituado no artº. 419º, n.º3 al. c), do diploma citado.
II. FUNDAMENTAÇÃO
A) DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes: - Erro de julgamento da matéria de facto e errada interpretação da prova (o mesmo é dizer erro notório na apreciação da prova); - Violação do princípio da livre apreciação da prova; - Violação do princípio in dubio pro reo; - Errónea subsunção ao crime de homicídio, na forma tentada; - Indevida determinação da medida concreta da pena; - Desproporcionalidade dos montantes indemnizatórios;
B) DECISÃO RECORRIDA
Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida. (…) 2.1 - Matéria de facto provada:
1.O arguido AA e a assistente BB, mantiveram entre si uma relação de intimidade da qual resultou o nascimento do menor AA, no dia 29 de julho de 2016. Esta relação que se iniciou no ano de 2015 – com partilha de cama, mesa e habitação - terminou no ano de 2017/2018. 2. Durante a vida em comum o arguido e a assistente mantiveram algumas discussões, injuriando-se mutuamente. 2. No dia 07 de agosto de 2022 o menor foi entregue pela assistente ao arguido para passar alguns dias de férias consigo. 3. No dia 08 de agosto de 2022, pelas 21.00 horas, receando pelo bem estar do filho, a assistente, deslocou-se ao café situado na Rua ..., em ..., e, contra a vontade do arguido, levou consigo o menor. 4. Logo após, o arguido efectuou uma chamada telefónica para o telemóvel da assistente dizendo-lhe, em tom sério e intimidatório, que iria matá-la a si e ao seu companheiro (reportando-se ao assistente CC). 5. Assim, tal como havia anunciado, pouco tempo depois, nesse mesmo dia 08 de agosto de 2022, pelas entre as 21h 00m e 22h e 00m, o arguido muniu-se de uma faca com cerca de 26 cm de lâmina, cabo em plástico de cor vermelha, e, movido pelo instinto de tirar a vida aos assistentes, dirigiu-se à residência da assistente, BB, situada na Rua ..., ..., fracção 2 andar, em ..., ..., onde se encontravam os assistentes, os filhos de ambos e o filho do arguido e da assistente. 6. Aí chegado – local para onde se fez transportar de táxi -, após ter chamado a assistente aos berros e esta não ter respondido – apesar de ter ouvido e ter ficado em pânico - o arguido, enfurecido, partiu o vidro da porta de acesso ao prédio onde se situa o apartamento da ex companheira. 7. Chegado ao apartamento, o arguido desferiu violentos pontapés na porta de entrada da residência, destruindo-lhe três das almofadas de madeira. 8. Após, o arguido introduziu uma das mãos pelo orifício que provocou numa das almofadas e empunhando a dita faca, efectuou movimentos para, assim, atingir a assistente e o companheiro desta, que também se encontrava na residência estando ambos colocados junto à porta, para impedir a entrada do arguido. 9. Numa das investidas, o arguido logrou atingir o assistente nas pernas, desferindo-lhe um golpe com a referida faca. 10. De seguida, deferiu mais pancadas na porta até a fazer soltar dos aros e persistindo na intenção de tirar a vida a ambos, dizia “vou-vos matar…sua puta…sua vaca” (referindo-se à ex companheira e ao assistente CC). 11. O assistente CC encostou-se à porta, tentado segura-la e evitar que o arguido entrasse na residência. 12. Porém, dada a força exercida pelo arguido, a porta acabou por se soltar e cair ao chão, para o interior da residência, tendo depois sido colocada para o lado de fora da residência, pelos assistentes; o arguido caiu em simultâneo com a porta e embateu com a cabeça, tendo perdido a consciência, ocasião que o CC tentou tirar-lhe a faca; porém, de imediato o arguido recuperou os sentidos e fazendo uso da faca desferiu golpes no braço, mão e perna esquerdos do assistente, tencionado, de seguida, desferir golpes na assistente. 13. Nesse momento, o assistente CC segurou a faca pela lâmina conseguindo que o arguido a largasse, tendo ordenado à companheira que a afastasse deles. 14. De seguida, o assistente foi empurrando o arguido pelas escadas, para o colocar fora do prédio, sendo que o mesmo abandonou o local antes da chegada da PSP. 15. O arguido apenas não retirou a vida ao CC e à BB em virtude de a faca ter caído ao chão e a ofendida BB ter conseguido retirá-la do alcance do arguido e esconde-la no interior da residência. 16. O CC foi então conduzido ao SU do HSJ apresentando lacerações na coxa direita e esquerda, braço e mão esquerda e escoriações dispersas nos membros, concretamente: MSE com laceração a nível do antebraço esquerdo com 5 cm de comprimento de profundidade, mão esquerda com laceração profunda entre o 2º e 3º dedos a percorrer desde a articulação metacarfalância até à articulação interfalângica proximal inclusive, MSD com diminuição de força e ligeira diminuição de movimentos, MIE com laceração de 10cm, MID com laceração de 2cm. 17.No dia 04-10-2022 o CC foi submetido a correção cirúrgica no HSJ, por lesão do nervo PIN do cotovelo e antebraço esquerdos. 18. O assistente iniciou os tratamentos de medicina física e reabilitação em 11 de Janeiro de 2023, estando por definir o quadro sequelar e suas consequências corporais, funcionais e situacionais, sendo apenas previsível que este venha consolidar após o término dos tratamentos de medicina física e reabilitação, caso não haja intercorrências. 19. CC mantem acompanhamento no Centro de saúde de ..., desde 10.08.2022, data a partir da qual passou a estar de baixa médica, tendo depois sido aí observado em 22/08/2022, 02/09/2022, 07/09/2022, 07/10/2022, 07/11/2022 e 07/12/2022; na última observação, em 05/01/2023 foi prorrogada a baixa médica, dado que a situação ainda não se encontra estabilizada. 20.A porta da residência da assistente ficou danificada, sendo o custo de reparação no valor de € 1432, 95. 21. O arguido agiu com intenção de: - retirar a vida à BB, sua ex companheira e mãe do seu filho, sendo que para efeito se muniu e fez uso de uma faca, com 26 cm de lâmina, - retirar a vida ao CC, sendo que para efeito se muniu e fez uso de uma faca, com 26 cm de lâmina, 22. O arguido apenas não logrou concretizar os seus intentos por razões alheias à sua vontade, nomeadamente por a faca lhe ter caído ao chão e a assistente a ter retirado do seu alcance. 23. Agiu com intuito de danificar a porta da residência, sabendo que causava prejuízos à assistente, o que concretizou. 24.Bem sabia das características da faca que transportava consigo, que se tratava de uma faca de cozinha fora do local onde a mesma estava destinada a ser usada, sabendo, pois, ser proibida a sua detenção nessas circunstâncias, uma vez que, não tendo justificado a sua posse, a aludida faca apenas poderia ser utilizada como arma de agressão, como efectivamente veio a suceder. 25.O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
C) APRECIAÇÃO DA QUESTÃO EM RECURSO.
Do preceituado nos artigos 368.º e 369.º do CPP pela remissão que é feita pelo art. 424º nº 2 CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
Citando o AC RE de 09.01.2018 in www.dgsi.pt.” A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação). O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre. No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar. Na verdade, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.”
Facilmente concluímos que o recorrente não cumpriu o formalismo previsto no artigo 412º nº 3 do CPP. Embora especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não refere quais as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada nue deviam ser renovadas.
Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, mesmo que seja pela via da deficiência, como é o caso, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Estamos perante uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.Não pode este tribunal de recurso seguir o caminho da impugnação ampla da matéria de facto – artigo 412º nº 3 e nº 4 do CPP.
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Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que, como já se adiantou, hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Como já se assinalou, não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento.
Nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994).
De forma muito clara e lapidar, podemos afirmar que os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes. A questão que se coloca, cremos, situa-se a montante. Como chegou o Tribunal à conclusão da intenção de matar constante dos factos provados?
Como se pode ler no AC Relação de Guimarães de 25.02.2019 ““Sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não impede o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos .III. De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, dependendo os respectivos funcionamento e creditação da convicção do julgador, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável: a sua valoração suscita, num primeiro nível, a credibilidade que merecem ao julgador os meios de prova, que depende substancialmente da imediação e nela intervêm elementos não racionais explicáveis, e, num segundo nível, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo que, agora, estas inferências já não dependem substancialmente da imediação, uma vez que se baseiam na correcção do raciocínio, que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.” Este tribunal de recurso não está a colocar em questão a convicção a que chegou o Tribunal “a quo”.
Como escreve Sérgio Poças, “da Sentença Penal – Fundamentação de facto”, Revista Julgar nº 3, 2007, pag. 22 e 35ss “da motivação do tribunal a quo não se conclui decisivamente se a prova foi bem ou mal apreciada. Uma motivação (da sentença) efectuada nos termos legais justifica a convicção formada, mas não garante que o tribunal não errou na convicção que formou. Quando o tribunal dá razões para ter dado credibilidade a determinada testemunha, é isso que dá, mas isto não é a garantia firme que o tribunal não se possa ter equivocado ao acreditar naquela testemunha. A análise da motivação é suficiente quando está em causa a nulidade da sentença por falta ou insuficiência intolerável de motivação, mas é obviamente insuficiente quando está em causa a reapreciação da matéria de facto. Uma sentença motivada nos termos legais pode ter subjacente um grave erro de julgamento, como uma sentença insuficientemente motivada pode estar bem julgada” Ora, neste Acórdão em crise e não obstante o cuidado que foi tido na sua prolação, existe, a nosso ver, um déficit na fundamentação da decisão da matéria de facto, não permitindo compreender o percurso lógico seguido pelo julgador. A decisão recorrida faz um exame crítico das provas que não está de acordo com o grau de exigência com que deve ser cumprido o disposto no artº 374º, nº 2, do CPP.
Esta exigência não pode sofrer contemplações, uma vez que só desse modo se consegue reconstituir o percurso que conduziu à formação da convicção do julgador.
O Tribunal deu como provados os seguintes factos: 5. Assim, tal como havia anunciado, pouco tempo depois, nesse mesmo dia 08 de agosto de 2022, pelas entre as 21h 00m e 22h e 00m, o arguido muniu-se de uma faca com cerca de 26 cm de lâmina, cabo em plástico de cor vermelha, e, movido pelo instinto de tirar a vida aos assistentes, (…) 8. Após, o arguido introduziu uma das mãos pelo orifício que provocou numa das almofadas e empunhando a dita faca, efectuou movimentos para, assim, atingir a assistente e o companheiro desta, que também se encontrava na residência estando ambos colocados junto à porta, para impedir a entrada do arguido. 9. Numa das investidas, o arguido logrou atingir o assistente nas pernas, desferindo-lhe um golpe com a referida faca. 10. De seguida, deferiu mais pancadas na porta até a fazer soltar dos aros e persistindo na intenção de tirar a vida a ambos, dizia “vou-vos matar…sua puta…sua vaca” (referindo-se à ex companheira e ao assistente CC).(…) o arguido recuperou os sentidos e fazendo uso da faca desferiu golpes no braço, mão e perna esquerdos do assistente, tencionado, de seguida, desferir golpes na assistente. 13. Nesse momento, o assistente CC segurou a faca pela lâmina conseguindo que o arguido a largasse, tendo ordenado à companheira que a afastasse deles. 15. O arguido apenas não retirou a vida ao CC e à BB em virtude de a faca ter caído ao chão e a ofendida BB ter conseguido retirá-la do alcance do arguido e esconde-la no interior da residência. 16. O CC foi então conduzido ao SU do HSJ apresentando lacerações na coxa direita e esquerda, braço e mão esquerda e escoriações dispersas nos membros, concretamente: MSE com laceração a nível do antebraço esquerdo com 5 cm de comprimento de profundidade, mão esquerda com laceração profunda entre o 2º e 3º dedos a percorrer desde a articulação metacarfalância até à articulação interfalângica proximal inclusive, MSD com diminuição de força e ligeira diminuição de movimentos, MIE com laceração de 10cm, MID com laceração de 2cm.(…) 21. O arguido agiu com intenção de: - retirar a vida à BB, sua ex companheira e mãe do seu filho, sendo que para efeito se muniu e fez uso de uma faca, com 26 cm de lâmina, - retirar a vida ao CC, sendo que para efeito se muniu e fez uso de uma faca, com 26 cm de lâmina.
Como se pode ler no Acórdão da Relação de Évora de 05.11.2013 “III - A intenção de matar pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa, só a ele normalmente se chegando através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indirecta (indiciária). IV - Como tal, a sua prova assentou em inferências extraídas dos factos materiais, analisados à luz da globalidade da que foi produzida e das regras de experiência comum, já que, estando-se no domínio de factos atinentes a uma realidade que escapa a uma directa observação, ela pode ser detectada através de ilação ou injunção, indirectamente do conjunto dos factos restantes e, neste sentido, é uma prova indirecta, que é reconhecida e aceite ao nível do processo penal, não contendendo com o previsto nos arts. 124.º a 126.º do CPP, nem com os limites definidos pela livre apreciação consagrada no art. 127.º do CPP. V- Entre os factos exteriorizadores dessa intenção, avultarão, no essencial, as zonas corporais atingidas, sobretudo quando nelas se alojam órgãos imprescindíveis à vida humana, o número de lesões, o instrumento de agressão e a sua forma de utilização. Pode dizer-se que, a quem atinge zonas nobres do corpo humano, seja pelo número de vezes que o faz, seja pela idoneidade letal do instrumento usado a causar lesões graves, não verá facilitada a exclusão da intenção homicida. VI - Ora, desde logo, as zonas atingidas pelo recorrente, retratadas nos factos provados em 18, 19 e 20, são manifestamente de natureza vital, na perspectiva do cidadão médio, não necessitando este de uma qualquer formação técnica para percepcioná-lo, além de que foram provocadas por um objecto cortante, o que, inevitavelmente, embora sem que se tivesse apurado as respectivas características, conflui para a idoneidade para desencadear as lesões, realidades que o recorrente não desconhecia.
VII - Além disso, o grau de energia que colocou nesses seus actos foi, claramente, bem considerável, ao ter provocado que as vítimas viessem a cair ao solo, mediante embate violento com a viatura que conduzia e, de seguida, golpeando-as enquanto permaneciam no solo, denotando, assim, que a sua atitude foi reveladora de uma vontade reforçada pelos meios de que se serviu.”
A fundamentação da sentença recorrida é, em nosso entender, manifestamente insuficiente no que toca à prova da intenção de matar.
Deste modo, conclui-se que o Acórdão está inquinado por insuficiência da fundamentação de facto e exame crítico da prova, já que olvida o comando expresso no artigo 374°, n.º 2, incorrendo na nulidade insanável prevista no artigo 379º,,n.º 1, al. a), ambos do CPP.
Nestes termos, e perante o evidenciado, nada mais resta que declarar a apontada nulidade, devendo o acórdão ser reformulado em conformidade com o exposto.
A nulidade em causa prejudica a apreciação do demais suscitado nos recursos.
III. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em
- anular, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts.379º, nº 1, al. a) e 374º, n.º 2, do CPP o Acórdão recorrido, que deve ser reformulado, expurgado do vício enunciado, suprindo as omissões apontadas – falta de fundamentação da intenção de matar- mostrando-se, em consequência, prejudicado o conhecimento do demais suscitado pelos recorrentes.
Sem tributação.
Porto, 10 de Julho de 2024
Raquel Lima (Relatora)
Paula Natércia Rocha(1º Adjunto)
José Quaresma (2º Adjunto)