ELEMENTOS DO TIPO DO CRIME DE FRUSTAÇÃO DE CRÉDITOS
A "OCULTAÇÃO SONEGAÇÃO ..." PREVISTA NO ARTIGO 227.º-A DO CP
EXECUÇÃO DE BENS NO PATRIMÓNIO DO OBRIGADO
Sumário

I - Mesmo considerando que a fundamentação da sentença não prime pela excelência, não será caso de considerar verificada a nulidade se se antevê que, independentemente de qualquer fundamentação, o recurso não obterá provimento.
II - Percorrendo os requisitos necessários à verificação dos elementos do tipo do crime de frustração de créditos, a “ocultação, sonegação…” prevista no artigo 227º-A do CP não se verifica, constituindo uma mera tentativa se, no entremeio, uma acção de impugnação, embora não repristinando o “statuo quo ante” permite ao credor executar os bens no património do obrigado.

Texto Integral

PROC. Nº 1047/17.3T9PRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de V. N. de Gaia juiz 3

ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

Por sentença de 26.01.2024 foi decidido absolver o arguido AA e o arguido BB da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punível pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal. Mais foram os demandados absolvidos do pedido de indemnização civil contra eles formulado.

RECURSO

Não se conformando com esta decisão, veio a assistente CC interpor recurso.

Após a motivação, apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
1 – A assistente não pode concordar com a absolvição dos arguidos, quanto ao crime de que vinham acusados, o de frustração de créditos, crime, esse, que tem de ser compreendido e analisado como conjunto de factos integradores, proveniente de sentenças condenatórias, e com posteriores sonegações de bens, que objectivamente frustram a possibilidade de não ser possível a execução, com consequente recuperação de créditos por parte da Assistente.
2 – Este crime, não sendo de consumação instantânea, mas cometido através de um conjunto de actos sucessivos no tempo, tem de ser compreendido neste contexto, para dali se poder afirmar que houve condutas que, no seu conjunto, foram dolosamente dirigidas a frustrar a execução de créditos dos lesados, como era o caso dos autos, e da situação da ora assistente.
3 – Daí que tivéssemos ousado fornecer, à laia de introito, um apanhado cronológico e histórico dos contextos dos actos dos arguidos, aliás alicerçados na documentação junta aos autos, como prova, fornecida na acusação, e nunca elidida ou posta em causa pelos arguidos, em audiência de julgamento
4 – Daí que tenha de se encontrar assente, sobretudo o teor das duas sentenças proferidas no âmbito cível, transitadas em julgado, mesmo após sucessivos recursos do arguido AA, ex-advogado, e do arguido BB, mas sempre confirmadas pelos tribunais superiores.
5- A matéria de facto,nesses autos cíveis,dada como provada, foi inequívoca em considerar um conjunto de actos encetados pelos arguidos AA e BB, e na dissipação do património, como consubstanciando má-fé, em actos lesivos para os credores, de tal forma que tais actos, envolvendo a sonegação de património imobiliário, foram declarados ineficazes, e os bens a que respeitavam sendo passíveis de execução, até ao montante dos créditos da ali Autora, aqui assistente.
6 – Tal matéria, e a prova onde assentou, provinda de sentenças judiciais exequíveis, deveria ser considerada nos autos de processo-crime, até porque tinham a força de facto demonstrado, embora se admita ilidível, e porque proveniente de decisão assente por Tribunal Cível, e se não fosse atacada, como não foi, na instância penal, pelo que se tem de considerar assente, e com valor probatório, como documento.
7 – Aliás, resulta ainda desses processos cíveis, pelo menos no último que correu termos no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, que os arguidos praticaram actos tendentes à sonegação de bens, para frustrar o pagamento, pela via executiva, dos créditos da ora assistente, e tais provas nem sequer foram tidas em conta, pelo Tribunal Penal, como deveriam, até porque juntas pelo MP, na acusação.
8 – O princípio da valoração da prova junta com a acusação, mesmo no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, assim o exigiria, para concatenar a prova documental com as provas testemunhais, incluindo as prestadas pelas testemunhas de acusação, e por declarações, produzidas em julgamento.
9 - Fundou erroneamente a sua convicção o tribunal a quo, quando considerou e validou a actuação dos arguidos, em detrimento da prova produzida, mormente a prova documental.
10 – Aliás, o Tribunal nem sequer chegou a abordar esta vertente, quanto à específica documentação da área cível, pelo que a mesma carece de melhor análise crítica, pelo que se impõe a baixa dos autos à primeira Instância, para que a mesma seja efectuada, e pela desconsideração dessa prova, cuja força probatória, embora documental, é notória e essencial para a matéria da acusação.
11 – Assim, nos termos do artº 412, nº 3, do C.P.P., o Tribunal a quo julgou erradamente, ao considerar não provados os pontos a) a e) da douta sentença em crise.
12 –Tendo provas que, se bem analisadas, imporiam decisão diversa da recorrida, nos termos do artº 412, nº 3, b) do C.P.P.
13 – Pelo que se impõe a renovação da apreciação crítica da prova documental mormente o que consta de duas sentenças cíveis e respectivo teor do Acórdão da Relação do Porto.
14 – Pelo que, também, entendemos que a douta sentença violou o disposto no artº 374, nº 2 do C.P.P.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO E, POR VIA DISSO, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, COM AS DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, POR ASSIM O IMPOREM.
NB: bold da nossa autoria.
*
RESPOSTA MP

O Digno Magistrado do MP junto da primeira instância respondeu ao recurso, apresentando as seguintes Conclusões
- AA foi absolvido da prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punido pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal.
- BB foi absolvido da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punido pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal.

2. A Assistente recorreu para esse Venerando Tribunal da Relação, e como tal foi recebido, alegando:
- Nulidade da sentença, por falta de fundamentação;
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Impugnação alargada da matéria de facto.

3.
Como decorre, expressamente, da letra da lei (art. 410º/2, do CPP), qualquer um vícios descritos no art. 410º, do CPP, tem de resultar da análise global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, mormente, das declarações ou depoimentos prestados no processo, quer durante o inquérito, quer durante a instrução e, obviamente, quer prestados em audiência de julgamento
4.
Sendo óbvio que a opção do Tribunal possa ser criticável, em sede de impugnação alargada, nada no texto da sentença, por si só, ou conjugada com as regras de experiência comum, autoriza a concluir que os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, que o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso.
5.
Também da sentença ora impugnada decorre com suficiente clareza, como a decisão foi fundamentada, sendo evidente como foi considerada a prova produzida, relacionando-a entre si, e criticamente apreciada, sendo evidente o raciocínio lógico prosseguido pelo tribunal, conducente a que a convicção se tivesse formado num determinado sentido.
6.
Analisada a fixação da matéria de facto, e respectiva fundamentação, mostra-se patente a ausência de qualquer violação das regras de experiência comum, mantendo-se sempre a Mm Juiz a quo, na apreciação que fez, sempre dentro das fronteiras definidas pelo princípio de liberdade na apreciação da prova e, finda a mesma, julgando-se com dúvidas sobre o realmente acontecido, absolvidos os arguidos.
Termos em que se devera manter, na integra, a sentença ora impugnada.
NB: bold da nossa autoria.
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RESPOSTA ARGUIDO

O arguido BB veio responder dizendo: O recurso a que se responde não tem o mínimo fundamento, seja porque são descabidas as críticas que endossa à douta sentença recorrida, seja porque, ainda que o não fossem na parte relativa aos (inexistentes) erros de julgamento da matéria de facto que a Recorrente invoca, sempre deparariam com o obstáculo intransponível da atipicidade da conduta imputada ao Arguido na douta acusação e/ou aquando da respetiva impunibilidade.
Vale por dizer: ainda que fossem verdadeiros e tivessem sido provados todos os factos descritos na acusação, não estariam preenchidos os requisitos típicos do crime imputado ao Recorrido, pelo que seria inexorável a sua absolvição.

EM CONCLUSÃO:

1. A douta sentença impugnada não merece nenhum reparo nem censura, muito menos os que a Recorrente lhe dirige.
2. Os factos descritos na acusação não preenchem os requisitos típicos do crime de frustração de créditos p. e p. pelo artº 227º-A, CP, imputado ao Recorrido, pelo que, ainda que pudessem ter-se como integralmente provados, nunca permitiram a sua condenação pela autoria material desse crime, na forma consumada.
3. Quando muito - mas firmemente sem conceder - preenchê-lo-iam na modalidade da tentativa que, considerando a moldura penal aplicável e na falta de disposição em contrário, não seria punível.
4. Na crítica injustificada que expende contra a decisão da matéria de facto, a Recorrente, além de se apoiar no depoimento de testemunhas que não disseram absolutamente nada de relevante sobre os factos imputados ao Recorrido, confunde ostensivamente o valor extraprocessual das provas produzidas em processos cíveis a que se refere, com o dos factos que foram tidos como provados nesses processos.
5. Só as primeiras (as provas) poderiam ser (e não foram) consideradas no âmbito deste processo; nunca os segundos (os factos).
6. Estes últimos teriam de ser descritos na acusação (e não foram); e teriam de ser (e não foram) objeto de prova em audiência e, nesse âmbito, sujeitos ao contraditório. NB: bold da nossa autoria.
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PARECER

Já nesta Relação, a Ex. Sr.ª Procuradora Geral Adjunta emitiu Parecer dizendo: “Discordamos. Todos os elementos processuais apontam no sentido de, com o material probatório presente, não ser possível outro desfecho.
A sentença recorrida mostra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, tendo observado o disposto no art. 374.º do Código de Processo Penal.
O recurso sobre a matéria de facto pode processar-se pela arguição de vício do texto da decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal.
Assim, e pretendendo a Recorrente sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal recorrido, encontramo-nos no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412.º do Código de Processo Penal.
A Recorrente ao impugnar expressamente parte da matéria de facto dada como provada, como impugnou, teve que especificar, sob pena de rejeição: - Os concretos pontos de facto que a recorrente considera incorretamente julgados;
- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e
- As provas que devem ser renovadas (art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).
Ora, a Recorrente impugnou expressamente parte da matéria de facto dada por provada, no entanto, não indicou qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor decisão diversa em relação aos mencionados factos dados como provados.
Assim, a globalidade da prova produzida não impõe de forma alguma decisão diversa da recorrida pelo que não deve haver lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, deve improceder tal questão.
Por outro lado, o recurso da matéria de facto, assume duas vertentes, a arguição de vícios decisórios (art. 410º, nº2), ou revista alargada, e erros de julgamento (art. 412º, nº3 do CPP), ou impugnação ampla.
Aliás, e sempre com o salvo e devido muito respeito, a Recorrente limita-se a divergir subjectiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.
A pretensão da recorrente colide com o princípio da suficiência do processo penal, no sentido em que é neste que se decidem todas as questões suscitadas e relevantes para uma decisão final, não dependendo de outras demandas ou processos. (art. 7º do CPP)
E aprecia-se, no processo penal, de acordo com o princípio de apreciação da prova. Isto para dizer que a matéria provada no âmbito da sentença cível, transitada em julgado não tem força de caso julgado material no processo penal, podendo, contudo, ser apreciada - a sentença proferida - como prova documental. Em contrapartida, considerando as estritas regras de apreciação da prova no processo penal, sujeitas a todas as garantias de intervenção e de contraditório entre os intervenientes, a prova aí produzida pode ser “aproveitada” para foros similares, como o processo disciplinar, por exemplo.
O argumento da assistente de que, como prova documental, não foi impugnada, logo deve ser dada como assente, é falacioso, uma vez que a referida sentença cível só poderia ser posta em causa em sede de um recurso, no local e tempo próprio, já que não é de pôr em causa a sua veracidade.
Ora, o Tribunal que julga em primeira instância, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, nada obstando a que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade, elementos probatórios devidamente indicados na fundamentação de facto da sentença recorrida.
A questão fundamental é que o tribunal recorrido adquiriu a convicção firme sobre os factos e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
A ser assim, no exame crítico levado a efeito o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art. 127.º do Código de Processo Penal.
Na decisão proferida pelo tribunal a quo verificamos pragmática e sinteticamente que todos os elementos de facto e de direito, são ponderados, e devidamente explicados os critérios de valoração. Não se verificam quaisquer erros ou omissões na apreciação da matéria de facto e/ou de direito, e nenhuma norma legal foi violada.
Não houve falta de qualquer exame crítico ou erro de apreciação da matéria de facto e de direito.
Assim,
Analisados os fundamentos do recurso, e os demais elementos processuais, acompanhamos a posição do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, aderindo-se à argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por transcrita, na resposta à motivação do recurso apresentado pela assistente.
Assim, e pelo exposto, somos de parecer de que o Recurso interposto pela Recorrente deve ser julgado improcedente. NB: bold da nossa autoria.

Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP houve resposta ao Parecer.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº 3 al. c), do diploma citado.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A) DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

- Nulidade da sentença, por falta de fundamentação;
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Impugnação alargada da matéria de facto.

B) DECISÃO RECORRIDA

Com vista à apreciação da questão supra enunciada, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida.

“I – Relatório
A fim de serem julgados em processo comum e por Tribunal singular, o Ministério Público acusou
AA, divorciado, advogado reformado, nascido a ../../1939, filho de DD e de EE e residente na Avenida ..., ..., Porto
e
BB, casado, gestor reformado, nascido a ../../1950, filho de FF e de GG, residente na Rua ..., nº ..., Hab. ,,,, Vila Nova de Gaia,

sendo-lhes imputada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punido pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal, pelos factos constantes do despacho de fls. 1168 a 1175, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
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A fls. 1265 e seguintes veio a demandante CC deduzir pedido de indemnização civil contra o demandado BB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 500.000,00, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, em virtude dos danos patrimoniais sofridos.
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O arguido AA apresentou contestação, negando a prática dos factos constantes da acusação e oferecendo o merecimento dos autos. Arrolou testemunhas (cfr. fls. 1361 e 1362).
O arguido BB não apresentou contestação mas arrolou testemunhas (cfr. fls. 1352).
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Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, como consta da respectiva acta.
*
O Tribunal é competente.
Não há nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.
*
II – Fundamentação
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido AA assumiu a posição de Réu no Proc. n.º 42/12.3TVPRT, da 2.ª Vara Cível da Comarca do Porto, onde eram Autores HH, II e JJ.
2. No dia 19/11/2013 foi proferida sentença, transitada em julgado a 09/06/2016, reconhecendo aos ali Autores o direito de receberem do ali Réu a quantia de € 432.925,91, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, calculados sobre a quantia de €49.879,79, bem como a pagar a quantia de €40.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento.
3. Mais foi declarado ineficaz o negócio de transmissão da posição contratual relativa ao contrato-promessa do prédio sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ....
4. Finalmente, foi reconhecido aos ali Autores o direito de procurarem na execução do imóvel acima referido a satisfação do seu crédito na medida dos montantes fixados.
5. O aqui arguido AA recorreu, sendo o recurso de apelação com subida imediata e efeito meramente devolutivo, o que significa, como bem sabia o arguido, que era já possível executar a decisão recorrida na pendência do recurso.
6. Posteriormente, a assistente CC adquiriu por cessão os créditos dos autores seus pais, HH e II e mais veio a titular os de sua avó, JJ, reconhecidos pela já aludida sentença.
7. No dia 25/11/2013, KK (ex-mulher do arguido AA à data, falecida a 28/10/2015) dirigiu-se à 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia e registou a aquisição provisória por natureza do prédio referido em 3 a favor do arguido BB.
8. Por escritura pública de 21/01/2014, pelo preço de €100.000,00 - valor esse inferior ao valor de mercado do imóvel, que em Novembro de 2013 valia € 207.000,00 -, a referida KK vendeu o mesmo imóvel ao arguido BB, tendo o registo provisório sido convertido em registo definitivo.
9. Por sentença proferida no processo nº 1632/16.0T8PVZ, do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (Juiz 1), transitada em julgado, foi declarado ineficaz em relação à ora assistente CC o negócio referido em 8 e condenados os ora arguidos a restituir ao património de KK o mesmo imóvel, na medida do interesse da assistente, declarando-se o direito desta de o executar por forma a obter a satisfação integral do seu crédito sobre o arguido AA.
10. A assistente CC instaurou, em 21.02.2015, acção executiva pelo valor global de €1.139.774,67, para cobrança coerciva do seu crédito, tramitada na Instância Central do Porto, 1.ª Secção de Execução, com o n.º 4538/15.7T8PRT.
11. No âmbito desse processo foram penhorados, entre outros bens e direitos, os seguintes:
a. o prédio urbano descrito em 3, após ser julgada procedente a acção mencionada em 9;
b. o prédio sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vieira do Minho sob o n.º ..., e inscrito sob o art. ... da freguesia ..., concelho de Vieira do Minho.
c. pensão de reforma do arguido AA, no valor de €207,92 mensais, património e valores penhorados esses insuficientes para cobrir integralmente a quantia exequenda.
12. O imóvel referido em 11, a) foi vendido na execução mencionada em 10 por € 242.400,00 em Julho de 2020, tendo a assistente recebido em resultado dessa venda € 227.718,23.
13. O arguido AA reside há várias décadas na Av. ..., ..., ..., Porto mas nunca veio a celebrar escritura pública de compra e venda do imóvel.
14. No dia 25/09/2015 foi celebrada escritura de compra e venda desse imóvel entre os herdeiros de LL e o arguido BB, tendo este adquirido o mesmo imóvel por €140.000,00.
15. Nessa mesma data o arguido BB celebrou com o arguido AA um contrato de comodato vitalício, incluindo todo o recheio existente do dito imóvel.
16. Bem sabia o arguido AA que a sentença proferida no Proc. n.º 42/12.3TVPRT no dia 19/11/2013 era já exequível, não obstante o recurso que veio a ser interposto, com efeito meramente devolutivo.
17. O arguido BB aufere reforma no valor de € 1.700 mensais, recebendo a esposa reforma no valor de € 1.000,00 mensais. Tem rendimentos prediais em França no valor de cerca de € 2.000,00 mensais e em Portugal no valor de € 1.000,00 mensais. Tem também os imóveis aqui em causa e um outro em França.
18. O arguido AA foi condenado:
- em 24.04.2008, nas varas Criminais do Porto, pela prática de um crime de burla qualificada e um crime de abuso de confiança, na pena de 4 anos de prisão;
- em 15.05.2017, no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, pela prática de um crime de usurpação de funções, na pena de 80 dias de multa.
19. O arguido BB nunca antes foi condenado pela prática de qualquer infracção criminal.
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Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa, designadamente que:
a) o arguido BB conhecia a sentença referida em 2;
b) os arguidos se determinaram, de comum acordo, e em comunhão de esforços, intentos, e vontades, a impedir que o imóvel mencionado em 3 permanecesse na esfera patrimonial do arguido AA;
c) o referido em 14 foi feito no sentido da mesma determinação conjunta já exposta em b);
d) bem sabia o arguido BB que a sentença proferida no Proc. n.º 42/12.3TVPRT no dia 19/11/2013 era já exequível, não obstante o recurso que veio a ser interposto, com efeito meramente devolutivo;
e) ao agir como agiram, de comum acordo, e em comunhão de esforços, intentos e vontades, pretenderam os arguidos impedir o arresto e a penhora dos imóveis supra indicados por parte dos Autores no caso de cumprimento coercivo, o que fizeram como reacção à redita sentença, ficcionando, como sabiam ser esse o caso, a aquisição desses imóveis por parte do arguido BB;
f) agiram de um modo livre, deliberado, e consciente, cientes de incorrerem em responsabilidade penal.
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III – Motivação
Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Assim, o Tribunal fundamentou a sua convicção, quanto à matéria constante da acusação e considerada como provada e não provada, nos vários documentos juntos aos autos, nomeadamente os de fls. 3 e seguintes, 13 e seguintes, 112 e seguintes, 115, 116, 117 e seguintes, 135 e seguintes, 147 e seguintes, 255 e seguintes, 340 e seguintes, 347 e seguintes, 353 e seguintes, 407 e seguintes, 436, 457 e seguintes, 501 e seguintes, 645 e seguintes, 702 e seguintes, 724 e seguintes, 751 e seguintes, 760 e seguintes, 1190, 1416 e 1417, 1452, 1457 e seguintes, 1470 e seguintes e nos relatórios de fls. 791 e seguintes e 1647 e seguintes, conjugadamente com as declarações do arguido BB (o arguido AA não prestou declarações), com os depoimentos de HH, MM, NN, OO, PP e com as regras da normalidade e da experiência comum.
Concretamente, o arguido BB referiu que não tem qualquer relação com o arguido AA nem o conhecia, que vive há 63 anos em França, que vivia na zona da ..., costumava passar pela ..., a D. KK (ex-mulher do arguido AA) tinha uma loja de coisas usadas onde às vezes compravam algumas coisas e em 2011/2012 perguntou se estava interessado em comprar uma casa que tinha em Vila do Conde, por € 300.000,00, que lhe disse que não, ela foi sempre perguntando, mais tarde deu com a loja fechada e um antigo colaborador da D. KK ligou a perguntar de novo se queria a casa, dizendo que ela estaria disposta a baixar o preço, que foi então ver a casa, percebeu que era uma “ruína total”, pediu a caderneta predial, viu que o valor indicado era de € 170.000,00 e ofereceu € 100.000,00, que ela inicialmente não queria aceitar mas acabou por o fazer, vendendo, que comprou esta casa para ficar com património quando regressasse a Portugal e investir o dinheiro que tinha, que entretanto a D. KK ligou a dizer que estava com muitas dificuldades económicas, não pagava a renda há algum tempo e os proprietários estavam a pressioná-la e a perguntar, como era investidor, se estaria interessado em comprar a casa (porque os proprietários quereriam vender), que foi ver a casa com o advogado de 2 dos herdeiros e chegaram a acordo mas eles impuseram que mantivesse lá a pessoa que lá estava, que foi informar-se sobre o que devia fazer com uma notária e foi ela que o aconselhou, que a Dra. KK (e foi com ela, sozinha, que sempre negociou) é que pediu para o comodato ser feito com o arguido AA (porque ele precisaria de um domicílio fixo por ter tido problemas com a justiça), sendo que só o conheceu quando da assinatura do contrato de comodato, que comprou esta casa por € 140.000,00, que os respectivos móveis, embora seus, fazem parte do contrato de comodato, que nunca lhe pagaram nada mas era suposto fazerem a manutenção da casa (que também não fizeram, sendo o arguido BB quem está a custear as despesas respectivas) e que foi à casa em questão (que tem duas entradas independentes) uma vez antes de a comprar e viu tudo. Questionado sobre o valor pelo qual comprou este imóvel disse que na caderneta predial a casa estava avaliada em cento e qualquer coisa mil euros e que negociou com o representante dos herdeiros, Dr. QQ e o Sr. OO, tendo pago € 140.000,00, sendo noventa mil euros em dinheiro (já que tinha vendido um imóvel em França em 2005 e recebido por ele 1 milhão e 900 mil euros, parte também paga em dinheiro). Disse ainda que fez obras nos dois imóveis aqui em causa, tendo gasto cerca de € 50.000,00 na de ... e € 12.000 ou € 13.000 na do Porto (de reparação do telhado).
HH referiu que divórcio do arguido AA e da D. KK era fictício, tendo o casal sempre vivido na casa da ..., que passava lá todas as semanas e os via lá sempre, que o arguido passou tudo para o nome da ex-mulher mas “continuava à frente de tudo”, que quando foram à referida casa, quando do arresto, o arguido AA disse que tinha um contrato de comodato, sendo que sabe que as coisas eram todas dele, que foi às Finanças e por isso sabe que o arguido e a KK não tinham na casa em questão qualquer contrato de arrendamento e que nessa casa viu, depois da morte da proprietária, obras a serem feitas (portões novos, ar condicionado, uma casa-de-banho, a casa foi caiada).
MM (sobrinha de LL) disse que o OO e a NN é que trataram da venda da casa ao Sr. BB, tendo-lhes sido passada uma procuração. Disse ainda que venderam esta casa porque já tinha alguns anos e ia começar a dar despesas.
NN contou que tratou da venda desta casa juntamente com o primo OO, que na parte de baixo da casa vivia a D. KK (desconhecendo se lá vivia também o arguido AA), que sabe que houve um contrato-promessa mas não sabe com quem, apenas sabendo que não chegou a fazer-se a respectiva escritura, que só conheceu o Sr. BB na escritura e que o preço pago teve a ver com o facto de a casa não estar devoluta.
OO (sobrinho de LL) disse que depois de a tia morrer a casa da ... ficou vazia em cima, vivendo em baixo, segundo pensa, o arguido AA, que sabe que houve um contrato-promessa mas não se recorda em que termos (uma vez que na altura estava no Brasil, tendo lá estado entre 2012 e 2016) e que na venda ao Sr. BB não recorda como foi pago o preço, presumindo que o terá sido em cheque.
PP (sobrinha de LL) referiu que a tia morava no andar de cima e tinha uma inquilina em baixo, a D. KK, que a casa estava a dar muitas despesas (2 ou 3 anos depois de a tia falecer o inquilino pediu obras), que fizeram um contrato-promessa porque tinham interesse em desfazer-se do imóvel, que sabe que a escritura se fez muitos anos depois, que o comprador foi o Sr. BB e que segundo lhe disseram ele apareceu interessado em comprar a casa.
Ora, conjugados todos os elementos (documentais, periciais e testemunhais) supra referidos, e não obstante as decisões já proferidas noutra sede envolvendo os arguidos, a verdade é que se entende que não foi feita prova bastante dos factos de que os mesmos vinham acusados, designadamente de que os negócios de compra e venda dos imóveis aqui em causa fizeram parte de um esquema engendrado entre ambos (ou pelo arguido AA com a colaboração do arguido BB) para obstar à satisfação do crédito da assistente. Com efeito, para além de as declarações do arguido BB não serem completamente inverosímeis por si (embora suscite estranheza, como é evidente, e entre o mais, o contrato de comodato celebrado, bem assim que alguns pagamentos tenham sido feitos em dinheiro), de não existir qualquer elemento de ligação entre este e o arguido AA (e prova, por isso, de que se conhecessem) e de KK já ter falecido, não tendo sido possível ouvi-la (sendo a mesma, passe a expressão, “peça fundamental” em toda a engrenagem, entre o mais porque formalmente vendeu o imóvel de ... e é a pessoa em nome de quem são feitos os contratos-promessa e adendas de fls. 458 e seguintes) – o que cria inevitáveis lacunas na narrativa -, encontra-se documentalmente suportado nos autos que o arguido BB pagou (de contas suas) pelo menos parte dos valores aqui em questão relativos à compra dos imóveis (cfr. fls. 767, 768, 773 e seguintes, 1457 e seguintes e 1470 e seguintes), tudo servindo para abalar quaisquer certezas que o Tribunal pudesse ter sobre um eventual plano conjunto dos arguidos no sentido descrito na acusação. A isto acresce que, relativamente ao imóvel de ..., o Tribunal não podia deixar de dar como provado que o mesmo entretanto já foi vendido na execução, o que poderá ter, como infra se referirá, consequências ao nível do preenchimento do tipo de crime. E que, no que diz respeito ao imóvel sito na Avenida ..., a acusação não continha factos que permitissem a imputação aos arguidos do crime de frustração de créditos, sendo completamente ininteligível, quanto a este imóvel, o alegado acordo feito entre os arguidos, imóvel que aliás nem se diz (nem se provou minimamente) que fosse do arguido AA. De tal forma que não podia o Tribunal agora, sob pena de violação do princípio do acusatório, ainda que tais factos se tivessem provado (e não provaram), “compor” a acusação, nomeadamente por recurso aos artigos 17 e seguintes do articulado da assistente.
No que respeita à situação económica e social do arguido BB aceitaram-se as suas declarações.
Relativamente aos antecedentes criminais dos arguidos, atendeu-se aos certificados juntos aos autos a fls. 1403 e seguintes.
A matéria constante do P.I.C. que não consta dos factos provados não se provou ou é irrelevante para a decisão a proferir (mormente em função da não procedência da acusação).
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IV – Subsunção dos factos ao Direito
Apurados os factos, importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
Para que o agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado, tem que praticar um facto típico, ilícito e culposo, sendo que o facto será típico quando a conduta do agente preencher todos os elementos objectivos e subjectivos de um tipo legal de crime.
Vejamos, então.
Vêm os arguidos acusados da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punido pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal.
Dispõe o citado artigo que “o devedor que, após prolação de sentença condenatória exequível, destruir, danificar, fizer desaparecer, ocultar ou sonegar parte do seu património, para dessa forma intencionalmente frustrar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de outrem, é punido, se, instaurada a acção executiva, nela não se conseguir satisfazer inteiramente os direitos do credor, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
De acordo com Paulo Pinto de Albuquerque, no crime de frustração de créditos, o tipo objetivo consiste na destruição, danificação, ocultação ou sonegação de parte do património, após a prolação de sentença condenatória que possa ser dada à execução – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2021, p. 951.
O bem jurídico protegido pela incriminação é o património de outra pessoa.
Quanto ao tipo subjectivo, admite-se qualquer modalidade de dolo, incluindo ainda o tipo outro elemento a intenção de frustrar, total ou parcialmente, a satisfação do crédito de outrem.
Em suma, pois, o crime de frustração de créditos pressupõe: a) a existência de sentença exequível; b) a posterior instauração de acção executiva; c) a verificação de acto(s) doloso(s) de diminuição do património; d) com o fim de frustrar a satisfação do crédito.
Ora, não se provou que os negócios que foram celebrados visassem a diminuição do património do arguido AA, com o fim de frustrar o crédito da assistente. Isto desde logo. Mas mais. Quanto ao prédio sito na Avenida ... não se provou sequer nem era em rigor alegado na acusação que tal prédio pertencesse ao arguido AA (como era fundamental para que estivesse preenchido o tipo de crime de frustração de créditos). Sendo, quanto ao prédio sito em ..., que se provou que, na sequência da decisão proferida no processo nº 1632/16.0T8PVZ, do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (Juiz 1), foi penhorado e vendido, na execução com o n.º 4538/15.7T8PRT, tal prédio, por € 242.400,00 e que a assistente recebeu em resultado dessa venda € 227.718,23, pelo que ainda que se tivesse provado toda a matéria constante da acusação, o crime, meramente tentado, não seria, parece-nos, punível (cfr. o artigo 23º, nº 1 do Código Penal).
Impõe-se, pois, sem outras considerações, absolver os arguidos da prática do crime por que vinham acusados.
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V – Pedido de indemnização civil
A demandante CC deduziu pedido de indemnização civil contra o demandado BB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 500.000,00, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, em virtude dos danos patrimoniais sofridos.
De acordo com o artigo 129º do Código Penal, “a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”, pelo que há que atender ao estatuído nos artigos 483º e seguintes do Código Civil.
Nos termos do artigo 483º, nº 1, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. São, deste modo, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, e da consequente obrigação de indemnizar: o facto voluntário do agente; a ilicitude desse facto (podendo tal ilicitude traduzir-se na violação do direito de outrem, isto é, na infracção de um direito subjectivo, ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao agente (ou seja, a culpa, significando agir com culpa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito); o dano (com efeito, o facto ilícito culposo deve ter causado um prejuízo a alguém); e, finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano (sendo que, como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 17/05/93 - proferido no processo nº 9310102, disponível na Internet via www.dgsi.pt. -, “um facto não é causa adequada de um dano desde que seja irrelevante para a sua produção, segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias concretas, conhecidas do agente ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática do facto”).
Quanto à obrigação de indemnização de danos patrimoniais preceitua o artigo 563º do Código Civil que ela só existe em relação aos danos que provavelmente não teriam sido sofridos se não fosse a lesão - consagrou-se, deste modo, e como já acima se deixou antever, a doutrina da causalidade adequada, assim formulada por Galvão Telles (citado por Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil anotado”, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 578): “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” - e o artigo 562º que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Estabelece-se, assim, nesta última norma, “(…) como princípio geral quanto à indemnização, o dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano (princípio da reposição natural).” Sempre, todavia, que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização é fixada em dinheiro, medindo-se o seu montante pela diferença entre a situação (real) em que o credor se encontra e a situação hipotética em que ele se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano (cfr. o artigo 566º) - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, págs. 578 e 579.
No que toca aos danos não patrimoniais, o nº 1 do artigo 496º do Código Civil determina que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
No caso, e antes de mais, não se fez prova de que os demandados tenham praticado qualquer facto ilícito. Sendo assim, faltando, desde logo, um dos pressupostos supra indicados da responsabilidade civil extracontratual, impõe-se, sem mais, absolver os demandados do pedido de indemnização civil contra eles formulado.
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VI - Decisão
Em face do exposto, e sem outras considerações, o Tribunal decide:
1. Absolver o arguido AA da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punido pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal.
2. Absolver o arguido BB da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, previsto e punido pelo artigo 227º-A, nº 1 do Código Penal.
3. Absolver os demandados do pedido de indemnização civil contra eles formulado.

C) APRECIAÇÃO DA QUESTÃO EM RECURSO.

Do preceituado nos artigos 368.º e 369.º do CPP pela remissão que é feita pelo art. 424º nº 2 CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o Tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal) - O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.

Nulidade da sentença, por falta de fundamentação

Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, a) do CPP é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
O art 374º nº 2 preceitua que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Como se pode ler no Acórdão da Relação de Évora de 24.01.2023, retirado no processo 176/19.3T9ALR.E1”
Relativamente à sentença penal, ou seja, ao ato decisório que a final conhece do objeto do processo – alínea a), do n.º 1, do artigo 97.º do Código de Processo Penal –, o mencionado dever [de fundamentação] «concretiza-se através de uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, n.º1, da Constituição da República.
Assim, de acordo com o artigo 374º, a sentença, para além de requisitos formais ali expressamente previstos, deve incluir a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os deve enumerar, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, impondo, ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável, sendo que em caso de condenação está o tribunal obrigado, como não podia deixar de ser, à determinação motivada da pena ou sanção a cominar, posto o que deve proceder à indicação expressa da decisão final, com indicação das normas que lhe subjazem.(…) Dispõe-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º
Ou seja, de acordo com as disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, a falta de fundamentação acarreta a nulidade da sentença.
A sentença também padece de nulidade, de acordo com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Procurando a síntese do que acaba se dizer, e tendo apenas em mente a forma de processo comum, a violação dos requisitos prescritos para as sentenças penais acarreta a nulidade quando ocorre [i] a ausência de menções obrigatórias, [ii] a condenação para além do objeto do processo, e [iii] a omissão ou excesso de pronúncia.
A ausência de menções obrigatórias pode ocorrer (i) ao nível da fundamentação – por falta de indicação dos factos provados e não provados e por falta de exposição dos motivos de facto e de direito que sustentam a decisão e (ii) de decisão propriamente dita (condenatória ou absolutória).
A condenação para além do objeto do processo regista-se quando ocorre condenação por factos não descritos na acusação ou, havendo instrução, por factos não constantes do despacho de pronúncia, sem que tenham sido observadas as regras constantes dos artigos 358.º (relativas à alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia) e 359.º (relativas à alteração substancial desses mesmos factos) do Código de Processo Penal A omissão ou excesso de pronúncia ocorre, respetivamente, quando o Tribunal deixa de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conhece de questões que não podia tomar conhecimento.”
Ver também o Acórdão da Relação de Lisboa de 8.01.2021, retirado no processo 1670/07.4TAFUN-A.L1-5 “(…)Iº De acordo com o art.374, nº2, CPP, a fundamentação da sentença penal, é composta por dois grandes segmentos, um consiste na enumeração dos factos provados e não provados, outro na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal; IIIº O exame crítico deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizado na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada; IVº Limitando-se o tribunal a fazer uma súmula de declarações e depoimentos prestados em audiência, sem qualquer referência à credibilidade que cada um deles tenha merecido e às razões do respectivo merecimento, falta o exame crítica das provas; Vº Não existe completa indicação das provas quando, constando dos autos várias dezenas de documentos, o tribunal se limita a remeter para todos eles, sem especificar que concretos documentos relevaram e para que pontos de facto concretos, quando existem nos autos documentos que se contrariam mutuamente em aspectos relevantes; VIº Não tendo o tribunal indicado completamente as provas que serviram para formar a sua convicção, nem tendo efectuado o exame crítico de tais provas, existe insuficiente fundamentação da sentença, o que determina a sua nulidade, nos termos do art.379, nº1, al.a, com referência ao art.374, nº2, ambos do CPP;”

APRECIANDO
Se nos centrarmos na fundamentação da matéria de facto constante da decisão em crise não podemos dizer que aquela prime pela excelência.
Na verdade, a Sr.ª. Juiz fez uma transcrição dos depoimentos, remeteu para os documentos juntos aos autos, no seu conjunto, sendo certo que a apreciação crítica surge apenas na parte final quando diz “Ora, conjugados todos os elementos (documentais, periciais e testemunhais) supra referidos, e não obstante as decisões já proferidas noutra sede envolvendo os arguidos, a verdade é que se entende que não foi feita prova bastante dos factos de que os mesmos vinham acusados, designadamente de que os negócios de compra e venda dos imóveis aqui em causa fizeram parte de um esquema engendrado entre ambos (ou pelo arguido AA com a colaboração do arguido BB) para obstar à satisfação do crédito da assistente. Com efeito, para além de as declarações do arguido BB não serem completamente inverosímeis por si (embora suscite estranheza, como é evidente, e entre o mais, o contrato de comodato celebrado, bem assim que alguns pagamentos tenham sido feitos em dinheiro), de não existir qualquer elemento de ligação entre este e o arguido AA (e prova, por isso, de que se conhecessem) e de KK já ter falecido, não tendo sido possível ouvi-la (sendo a mesma, passe a expressão, “peça fundamental” em toda a engrenagem, entre o mais porque formalmente vendeu o imóvel de ... e é a pessoa em nome de quem são feitos os contratos-promessa e adendas de fls. 458 e seguintes) – o que cria inevitáveis lacunas na narrativa -, encontra-se documentalmente suportado nos autos que o arguido BB pagou (de contas suas) pelo menos parte dos valores aqui em questão relativos à compra dos imóveis (cfr. fls. 767, 768, 773 e seguintes, 1457 e seguintes e 1470 e seguintes), tudo servindo para abalar quaisquer certezas que o Tribunal pudesse ter sobre um eventual plano conjunto dos arguidos no sentido descrito na acusação. A isto acresce que, relativamente ao imóvel de ..., o Tribunal não podia deixar de dar como provado que o mesmo entretanto já foi vendido na execução, o que poderá ter, como infra se referirá, consequências ao nível do preenchimento do tipo de crime. E que, no que diz respeito ao imóvel sito na Avenida ..., a acusação não continha factos que permitissem a imputação aos arguidos do crime de frustração de créditos, sendo completamente ininteligível, quanto a este imóvel, o alegado acordo feito entre os arguidos, imóvel que aliás nem se diz (nem se provou minimamente) que fosse do arguido AA. De tal forma que não podia o Tribunal agora, sob pena de violação do princípio do acusatório, ainda que tais factos se tivessem provado (e não provaram), “compor” a acusação, nomeadamente por recurso aos artigos 17 e seguintes do articulado da assistente.
Pese embora as citadas falhas na fundamentação, o certo é que acaba por se perceber o modo o julgador valorou as provas existentes no processo, entendendo este tribunal que não se verifica a nulidade invocada.

Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Como se pode ler no Acórdão da Relação de Évora de 09.01.2018 in www.dgsi.pt.” A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação).
O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.
No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.
Na verdade, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.”
Saliente-se, contudo, que o recurso da matéria fáctica dada como assente consubstanciando um duplo grau de jurisdição nesse âmbito não significa no nosso sistema recursivo que se proceda a um segundo julgamento com a nova valoração dos depoimentos prestados. O recurso visa a decisão em concreto e não o julgamento.
Deste modo, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos distintos. O primeiro tem por objectivo aferir da existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto. Um segundo plano existe no qual é possível “atacar” os factos dados como provados, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação dos elementos probatórios, fundamento que tem por base o tal erro na apreciação da prova, determinativo de erro judiciário. Em tal vertente, porém, a lei exige na alínea b) do nº 3 do artigo 412º que sejam apresentadas “prova que imponha decisão diversa da recorrida”.
Ou seja, neste segundo plano, a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que mais não constitui do que um ónus de especificação que impende sobre cada um dos recorrentes, sob pena de, não o fazendo, o respectivo recurso fica inviabilizado.
No caso vertente, não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios, que aliás podem ser conhecidos oficiosamente, nem se mostra minimamente cumprido o procedimento exigido na norma do artigo 412.º do citado compêndio legal.
Acrescente-se que, e como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt),
“(…) Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
– Quanto ao vício previsto pela al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
– Quanto ao vício previsto pela al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
– Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.
(…)”
Os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo certo que, da leitura efectuada do acórdão impugnado, não descortinamos a existência de qualquer vício, mormente nos moldes alvitrados pelos arguidos na sua motivação de recurso.
Assim, em nossa opinião, com a arguição dos vícios decisórios nos moldes assinalados, os Recorrentes pretendem, repetindo-nos, é pôr em causa a convicção do Tribunal através da sua própria interpretação da prova produzida, ensaiando impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”.
Ora, o regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente terá de cumprir o formalismo correspondente, designadamente o do n.º 3 do artigo 412º do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (n°4). “

APRECIANDO.
Como supra referimos, os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Ora, analisado o acórdão não conseguimos encontrar nenhum dos vícios das alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, ou seja, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; erro notório na apreciação da prova.
Como escreve Sérgio Poças, “da Sentença Penal – Fundamentação de facto”, Revista Julgar nº 3, 2007, pag. 22 e 35ss “da motivação do tribunal a quo não se conclui decisivamente se a prova foi bem ou mal apreciada.
Uma motivação (da sentença) efectuada nos termos legais justifica a convicção formada, mas não garante que o tribunal não errou na convicção que formou.
Quando o tribunal dá razões para ter dado credibilidade a determinada testemunha, é isso que dá, mas isto não é a garantia firme que o tribunal não se possa ter equivocado ao acreditar naquela testemunha.
A análise da motivação é suficiente quando está em causa a nulidade da sentença por falta ou insuficiência intolerável de motivação, mas é obviamente insuficiente quando está em causa a reapreciação da matéria de facto.
Uma sentença motivada nos termos legais pode ter subjacente um grave erro de julgamento, como uma sentença insuficientemente motivada pode estar bem julgada

Acrescentamos: uma sentença motivada nos termos legais pode ter subjacente um grave erro de julgamento, não determinado pela simples leitura da mesma – vícios do art. 410º nº 2 CPP – mas impondo uma reapreciação da prova nos termos do disposto no art. 412º CPP. Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Janeiro de 2023, retirado no processo nº 84/19.8PHOER.L1, consultável in www.dgsi.pt.

Sigamos o caminho da impugnação ampla da matéria de facto – artigo 412º nº 3 e nº 4 do CPP.

Impugnação alargada da matéria de facto.

Aqui, ao contrário do que diz a Sr.ª Procuradora Geral Adjunta, entendemos que a recorrente, deu cumprimento, ainda que mínimo, às exigências do artigo 412º nº 3 e nº 4 do CPP.

Relativamente a este tema e porque entendemos que o mesmo está tratado de forma clara e compreensível, o tribunal recorrerá ao Relação de Coimbra – Acórdão de 01.06.2008 in www.dgsi.pt.
Neste pode ler-se” O artigo 127.º do CPP. consagra o princípio da livre apreciação da prova, não se encontrando o julgador sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão”, confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º). (…)
Com a alteração do Código de Processo Penal operada pela Lei 48/07 de 29.8, mantém-se actual a jurisprudência supra aludida com a ressalva de que o Tribunal da Relação deve agora proceder ao exame das provas produzidas em audiência pela audição através da audição das passagens indicadas (art. 412º nº 6 do Código de Processo Penal), constantes, no caso dos autos, da gravação magnetofónica efectuada (art. 364º nº 1 do Código de Processo Penal).
Conforme escreve o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão...
Importa recorrer a regras de experiência para se aferir ou não da intenção criminosa e para retirar os elementos confirmativos da sua verificação da matéria fáctica dada como provada.
Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme deste Tribunal da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. Transcreve-se aqui parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.08, proc. 07P4198, em www.dgsi.pt], citando Cristina Líbano Monteiro, que explica cabalmente porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio: “De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Como dissemos supra, a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º). (…)
Ouvida a prova, este tribunal de recurso entende que há prova, suficiente, de que os actos praticados pelos dois arguidos não tiveram outra finalidade que não fosse a de retirar os bens do património do arguido AA e assim impedir a satisfação dos credores, no caso, a recorrente.
Porém, não nos vamos alongar no desenvolvimento desta questão porquanto, a nosso ver, a solução deste processo está a montante da prova produzida, ou seja, mesmo dando como provados todos os factos que o não foram, a acusação soçobraria de igual forma.
DA QUESTÃO JURÍDICA EM CAUSA.
VEJAMOS
Comecemos pela questão da co-autoria.
Preceitua o artigo 227.º-A com a epígrafe “Frustração de créditos”
1 - O devedor que, após prolação de sentença condenatória exequível, destruir, danificar, fizer desaparecer, ocultar ou sonegar parte do seu património, para dessa forma intencionalmente frustar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de outrem, é punido, se, instaurada a acção executiva, nela não se conseguir satisfazer inteiramente os direitos do credor, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo anterior.(2 - O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.os 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1.)

A lei prevê a situação de um terceiro – não devedor – que pratica os actos previstos no nº 1 do artigo 227º-A, com conhecimento do devedor ou em nome deste.
Este terceiro, não é co-autor do crime p. e p. pelo art. 227º -A nº 1, mas autor do crime p. e p. pelo artigo 227ºnº 2 -A nº 2 (por referência ao nº 2 do artigo 227º do CP).
Este crime, tal como todos os crimes falenciais do artigo 227º, 228º e 229º do Código Penal, constitui um crime especial puro, que só pode ser praticado por um devedor com crédito reconhecido. A circunstância do nº 2, com a remissão para o nº 2 e nº 3 do artigo anterior, pune a conduta do terceiro que pratique as condutas descritas no nº 1, com conhecimento ou benefício do devedor.
Pedro Caeiro, no Comentário Conimbricense do Código Penal, vol II, pag. 430, não obstante ter qualificado o crime como especial puro, diz que a comparticipação é punível nos termos do artigo 28º. Porém, daqui resultam diversos problemas interpretativos da autonomização da actuação de terceiro na norma do nº 3, ao menos na parte em que a sua relevância típica depende do conhecimento do devedor.
Não obstante a imputação da actuação do arguido BB ter sido enquadrada na figura da co-autoria, a entender-se que esta não era possível, haveria sempre a possibilidade de fazer uma alteração da qualificação jurídica. Não foi a qualificação da sua conduta que levou à absolvição deste arguido.
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Façamos um resumo do pedaço de vida que a acusação pretende relatar.
O arguido AA foi contratado como Advogado, para patrocinar diversas ações em que era então devedora, HH, mãe da aqui Recorrente e ré em múltiplos processos cíveis de dívidas.
Entregaram dinheiro ao arguido AA - aproximadamente 432.925,91 € - para que este procedesse ao pagamento das dívidas aos credores. O arguido não procedeu ao pagamento das dívidas e apropriou-se do dinheiro
No processo crime instaurado contra o arguido AA este foi condenado pelos crimes de burla e abuso de confiança, em prisão efetiva, que cumpriu.

A credora tentou reaver o dinheiro.
O arguido AA, vendo o seu património em perigo, pela eminente execução tomou várias atitudes:
- Transferindo a titularidade das quotas que detinha nas sociedades “A...” para a sua “ex mulher” e filhas.
- cedendo, gratuitamente, a sua posição contratual no contrato promessa de um imóvel sito em .../Vila do Conde (em que eram proprietários RR e mulher, SS) à sua então ex mulher, KK, de quem já se havia divorciado mas que sempre com ele viveu em comunhão de mesa e habitação, bem como cedeu, gratuitamente, todo o recheio daquela casa.
Esta situação obrigou à instauração de uma acção cível de impugnação paulina para reverter tal negócio, e que correu termos nas Varas cíveis do Porto, acção que foi integralmente procedente, por sentença de 19/11/2013.
- a ex-mulher do arguido AA, KK, depois da prolação da sentença cível, vendeu o imóvel ao arguido BB.
Foi instaurada acção de simulação e impugnação pauliana e de indemnização contra o comprador BB e os sucessores de KK (que entretanto tinha falecido)
Tal acção correu no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, a qual foi também integralmente procedente
Transitada, logrou-se executar o bem, até ao valor do crédito e juros (que em 2015 já ascendia o valor global de € 1.139.774,67), mas onde só se conseguiu obter uma quantia que nem chegou a um quinto do prejuízo da lesada HH, e família, as quais, entretanto, já haviam cedido a sua posição contratual à filha daquela, CC, ora Assistente.

A Assistente veio a ter conhecimento que a casa onde sempre residiu o arguido AA e a sua ex mulher, KK, enquanto viva, sita na Avenida ..., embora na qualidade de arrendatários, foi vendida ao arguido BB.
A “ex mulher” do arguido AA, KK (que sempre habitou aquela casa juntamente com o arguido AA) havia já outorgado contrato promessa de compra com os então proprietários desse imóvel (herdeiros sobrinhos da única proprietária, LL), no ano de 2007.
O arguido BB, na qualidade de adquirente do imóvel de ..., celebrou um contrato de comodato em que cede gratuita e vitaliciamente esse imóvel com entrada pelos nº ... e ... –, incluindo todo o recheio lá existente, ao arguido AA e à sua “ex mulher KK”,

No processo referem-se dois prédios de cuja venda a terceiros teria resultado a frustração parcial do crédito da Assistente e que, por comodidade, passaremos a designar como:
- o prédio de ... – Vila do Conde (nº 3 da acusação);
- o prédio da Av. ... (nº 10 da acusação).

Relativamente a este prédio da ... não há nenhum facto que refira que este pertencia ao arguido AA – este seria promitente comprador do mesmo, sendo certo que o contrato-promessa não tem efeitos translativos da propriedade, que só acontecem com a celebração do contrato definitivo.
Ver, entre tantos, Acórdão da Relação do Porto de 05-02-2015, retirado no processo 9868/13.0TBVNG.P1 onde se pode ler “Ora do contrato-promessa nasce uma obrigação de prestação de facto positivo, consistente na emissão da declaração de vontade negocial correspondente a um outro negócio cuja futura realização pretendem assegurar, chamado negócio prometido ou negócio definitivo. Por outras palavras, no contrato-promessa de compra e venda, os promitentes obrigam-se apenas a emitirem posteriormente as declarações negociais de compra e de venda do bem mencionado no contrato-promessa. O efeito translativo da propriedade ocorre apenas no caso e no momento em que se efectivar o contrato prometido e não por mero efeito da promessa.”
Somos sensíveis às várias questões levantadas pela recorrente:
- alguém compra o imóvel (sito na Av. ...), nas circunstâncias em que o foi, paga o remanescente do sinal e, só isso, ficando o arguido AA com o prejuízo do grosso dos sinais já entregues (repare-se que em 2007 já tinha entregue € 85.000,00, a título de sinal, do preço de € 133.428,43), e depois o mesmo coarguido BB cede os espaços e móveis, gratuita e vitaliciamente, ao arguido AA e à sua “ex mulher”? – vide contratos juntos a estes autos – fls. 465, 466, 461 a 464, 458 a 460 e fls 347 a 350.
- Como é que alguém que se diz investidor e que não tem qualquer relação de proximidade ou intimidade com o casal AA/KK – como é o caso do coarguido BB – adquire uma casa onerada com um arrendamento (sendo os arrendatários o arguido AA e a sua “ex mulher” KK) e celebra com estes um contrato de comodato gratuito e vitalício, quando podia auferir o valor da renda, por mais baixa que fosse. Não tem lógica….

Obviamente que esta situação não é razoável, nem está de acordo com as regras da experiência comum.
O que aconteceu ao sinal que o arguido AA tinha entregue?
Porquê a generosidade do arguido BB na celebração do comodato?
Parece-nos óbvio, da descrição dos factos provados, que esta intervenção do arguido BB não é inocente e tem como claro objectivo auxiliar o arguido AA.
A questão é que, da forma como a acusação está estruturada, a actuação dos arguidos não integra os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal pelo qual vêm acusados.
A interposição deste recurso tem a ver com a não aceitação, por parte da recorrente, do tratamento diferenciado das questões no âmbito civil e criminal.
A recorrente entende que, por força das sentenças que julgaram procedentes as acções de simulação e impugnação pauliana, outra solução não poderia existir que a de considerar os aqui arguidos responsáveis pelos crimes dos quais vêm acusados.
Porém, além de não haver qualquer efeito de caso julgado, no âmbito do processo crime, por força de uma sentença cível, as exigências de prova e as actuações dos autores e arguidos não têm a mesma “leitura” nos dois tipos de processo (cível e crime).

No que toca ao prédio sito na Avenida ..., não obstante as várias questões, legítimas, levantadas pela recorrente, jamais haveria, no que toca à actuação dos arguidos, preenchimento dos elementos do tipo legal. Desde logo, não existe sentença, nem execução.
Jamais haveria condenação de qualquer dos arguidos.

Quanto ao prédio sito em Vila do Conde:
- existe uma sentença exequível (mas em que é executado, apenas, o arguido AA)
- existe uma actuação por parte dos arguidos no sentido de retirar esse bem da esfera patrimonial do devedor AA e que redundou na cessão da posição contratual no contrato -promessa de compra a venda relativo ao imóvel sito em Vila do Conde a favor da ex-mulher e subsequente escritura desta a favor do arguido BB.
Note-se, porém, que na primeira actuação (cessão da posição contratual) estão apenas envolvidos o arguido AA e a ex-mulher e na segunda actuação (venda do imóvel), a ex-mulher do arguido AA e o arguido BB.
Por força das acções de impugnação pauliana, houve uma “reversão” da situação.
A acção de impugnação pauliana consiste na faculdade concedida por lei ao credor de atacar os actos do seu devedor que, realizados dolosamente, façam perigar a satisfação do seu crédito. Ao contrário do regime legal que vigorava no Código de Seabra em que tal acção era considerada uma “acção rescisória” ou “anulatória”, já que o art. 1404º estipulava que: “Rescindido o acto ou contrato, revertem os bens ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”, a lei actual, diversamente, estabelece no art. 616º, nº1, do Código Civil: “Que julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”. Os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição.
Vaz Serra, in “Responsabilidade Patrimonial”, estudo publicado no BMJ-75 escreveu: “A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má-fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado. Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional. O autor na acção exerce o crédito de eliminação daquele prejuízo...O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito” – obra citada pág.287.
Tanto assim é que, nos termos do art. 616º, nº4, do Código Civil, os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. Não se está, assim, perante uma declaração de nulidade com a inerente repristinação do “statuo quo ante” que permitiria a todos os credores do devedor executar o património deste – cfr. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.3.96, in CJ/STJ, 1996, I, 159 – “A impugnação pauliana reveste um carácter pessoal, já que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.
Também os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª edição, pág. 634, nota 5, acentuam o carácter pessoal da acção de impugnação pauliana a partir do preceituado no art. 616º, nº4, daquele Código. São requisitos da impugnação pauliana, enquanto meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações: a existência de um crédito; a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal, que cause ao seu credor, um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade); a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se o crédito for posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé - arts. 610.º a 612.º do Código Civil.
O credor, neste caso, a recorrente, passou, de novo, a poder satisfazer-se com a execução aquele prédio.

Para que se verifique a prática de um crime de frustração de créditos, deverão estar preenchidos quatro requisitos:
1) Sentença condenatória exigível: É necessário que tenha sido proferida contra o devedor (pessoa singular ou pessoa coletiva, nomeadamente, sociedades por quotas, sociedades unipessoais por quotas e sociedades anónimas) uma sentença condenatória exigível.

2) Ocultação ou dissipação de património: Exige-se também que o devedor, após a prolação da sentença condenatória exigível, tenha destruído, feito desaparecer, ocultado, dissipado, ou sonegado alguns bens ou a totalidade do seu património.

3) Dolo específico: É necessário que o devedor tenha praticado alguma das condutas acima descritas com a específica intenção de frustrar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de um qualquer seu credor ou de todos os seus credores. Exige-se assim, um dolo específico que é uma especial direção de vontade por parte do agente; o dolo específico integra os elementos essenciais do tipo de crime (ao contrário do dolo genérico, que pode ser direto, necessário ou eventual).

4) Condição de punibilidade: Contudo, mesmo que estejam reunidos todos os requisitos anteriormente indicados, o devedor só é punido se for instaurada uma ação executiva e nela não se conseguir satisfazer inteiramente os direitos do credor.

No caso em apreço fixemo-nos nos actos de ocultação ou dissipação de parte ou da totalidade do património do devedor.
Parece-nos que decorre do normativo legal que temos que ter, além da sentença condenatória exequível, uma efectiva ocultação ou dissipação de parte ou totalidade do património do devedor.
O que aconteceu no caso presente?
O devedor (ignoremos, agora, que o arguido AA apenas intervém no primeiro acto) com a intenção de impedir a satisfação do crédito da assistente praticou actos no sentido da ocultação do prédio de Vila do Conde.
Mas pergunta-se: conseguiu?
A resposta é negativa. Por força das acções de impugnação pauliana, os actos do devedor no sentido de retirar os bens à disponibilidade do credor não passaram de meras tentativas (não puníveis).
Veja-se o teor do artigo 227-A “O devedor que, após prolação de sentença condenatória exequível, destruir, danificar, fizer desaparecer, ocultar ou sonegar parte do seu património,…..
Entendendo que não se verifica este elemento do tipo – o devedor não conseguiu ocultar, nem sonegar o seu património – não podemos ter o crime como consumado, pelo que é despicienda a questão da verificação da condição objectiva da punibilidade - se, instaurada a acção executiva, nela não se conseguir satisfazer inteiramente os direitos do credor.

Como escreve Pedro Caeiro na obra supra citada, a propósito do crime do artigo 227º, mas aplicável a este que as condutas descritas nas alíneas constantes do artigo são crimes de execução vinculada. A sua consumação exige a produção, através das formas tipicamente descritas, de um resultado- diminuição do património do devedor.
O crime consuma-se com os actos de diminuição do património

Ver, Acórdão da Relação de Évora de 04-06-2013, tirado no processo 7986/11.8TDLSB.E1, onde se pode ler “O crime consuma-se com os actos de diminuição do património, sendo irrelevante a efectiva frustração do crédito alheio para a consumação do crime. III - A instauração de uma acção executiva, com o resultado final de não serem inteiramente satisfeitos os direitos do credor, é uma condição objectiva de punibilidade.”
O crime de frustração de créditos encontra-se previsto no artigo 227.º- A do Código Penal e estipula que, 1-O devedor que, após prolação de sentença condenatória exequível, destruir, danificar, fizer desaparecer, ocultar ou sonegar parte do seu património, para dessa forma intencionalmente frustrar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de outrem, é punido, se, instaurada ação executiva, nela não se conseguir satisfazer inteiramente os direitos do credor, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2-É correspondentemente aplicável o disposto nos nós 2 e 3 do artigo anterior. Incorre-se no crime de frustração de créditos, previsto no artigo 227.º-A do Código Penal quando, após prolação de sentença condenatória exequível, o devedor (seja ele pessoa coletiva) destruir, danificar, fizer desaparecer, ocultar ou sonegar parte do seu património para intencionalmente frustrar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de outrem. E incorrendo no crime de frustração de créditos, o devedor é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Repare-se que, este crime também é suscetível de ser aplicado aos agentes previstos no artigo 227.º nºs 2 e 3 do Código Penal, pelo que o terceiro que praticar estes factos com conhecimento do devedor, ou em benefício deste, também poderá ser punido com pena de multa ou pena de prisão, tal como já referimos supra.
Estamos perante um crime doloso, pelo que a punição depende da intenção do devedor de frustrar (total ou parcialmente) a satisfação de um crédito de outrem.
O crime de frustração de créditos não depende de queixa para que seja iniciado o processo criminal, uma vez que é um crime público, sendo suficiente a denuncia por
qualquer sujeito para que se inicie o respetivo processo criminal.

Afastada a prática do crime no que toca ao imóvel sito na Avenida ..., nos termos já expostos, temos que concluir, também, pela não punibilidade da actuação dos arguidos relativamente ao prédio de Vila do Conde porquanto, não obstante a actuação do devedor (auxiliado pelo terceiro), ou seja, não obstante a tentativa, não conseguiu ocultar parte do seu património.

Deste modo, ainda que por razões diferentes, julga-se totalmente improcedente o recurso interposto e confirma-se a decisão recorrida.

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso da assistente mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela assistente- art. 515º nº 1, al. b) CPP

Porto, 10 de Julho de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Lima
Paulo Costa
Pedro M. Menezes (Vencido. Porque em minha humilde forma de ver as coisas a decisão recorrida é nula, e assim deveria ter sido declarada, e porque não posso acompanhar várias das considerações que, a propósito do tipo-de-ilícito da incriminação em causa nos autos, são desenvolvidas na, aliás douta, decisão antecedente, que, com tais fundamentos, e ao invés do que entendo, confirma aquela mesma decisão, ouso, muito respeitosamente, dissentir do resultado a que chegou esta Relação no presente processo)