GRAVAÇÃO DE IMAGENS NUM ESPAÇO PÚBLICO
CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
ANÚNCIO DE UM MAL PRESENTE E IMINENTE
Sumário

I - A gravação em causa feita num espaço público, à vista de toda a gente que por ali passasse, é lícita porque realizada ao abrigo de causas de justificação que excluem a ilicitude e a culpa.
II - A prova invocada pelo recorrente pretendeu substituir a convicção do Tribunal do julgamento pela sua própria leitura da prova, mas sem apresentar verdadeiros argumentos que imponham solução diversa da proferida em sede de matéria de facto por ocorrência de erro de julgamento.
III - A invocação de que foi violado o princípio da livre apreciação da prova é vazia de sentido e fundamenta-se apenas na circunstância de o recorrente não ter efetuado a mesma leitura da prova que o Tribunal a quo.
IV - O arguido CC ao apontar uma espingarda ao ofendido/arguido AA e à Assistente EE enquanto dizia em voz alta e com foros de seriedade: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!” (…) “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”, integra a prática dos crimes de ameaça agravada, uma vez que aquelas advertências são idóneas a inculcar nos visados um receio que em qualquer momento futuro o Recorrente poderia atentar contra as suas vidas, seriedade acrescida ao ser-lhes apontada uma arma real e suscetível de, em condições normais, provocar-lhes a morte.
V - Tudo indicia que a conduta e expressões dirigidas pelo Recorrente ao ofendido/arguido AA e à Assistente EE não traduziam o anúncio de um mal presente e iminente que se preparava para concretizar, mas antes um eventual mal futuro, pretendendo desta forma atemoriza-los e constrange-los em atuações futuras, convicção essa reforçada pela dinâmica dos factos.
VI - As penas não se evidenciam que o tribunal a quo tenha ajuizado de forma desproporcional ou desadequada cumprindo os critérios legais para a sua fixação.
VII - Os pedidos de indemnização civil apresentados não são legalmente admissíveis por faltarem os dois ou um dos pressupostos previstos no art. 400.º, n.º2, do C.P.Penal.

Texto Integral

Proc. º 1057.20.3PHMTS.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos-J4

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Singular no processo identificado em epígrafe, a correr termos no Juízo supra identificado, foi decidido (transcrição):
« 8.A.1 – Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, relativamente à vitima BB, previsto e punido no art.º 143.º do CP, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), totalizando a quantia de € 910,00 (novecentos e dez euros).

8.A.2 - Condenar o arguido CC pela prática em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

8.A.3 - Condenar o arguido CC pela prática em autoria material, de um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.ºs 1, e 2, alíneas a) e b), 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 131.º todos do Código Penal e ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro na pena de 4 (quatro) meses de prisão (relativamente à vítima DD);

8.A.4 - Substituir a pena de 4 (quatro) meses de prisão por 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

8.A.5 - Condenar o arguido CC pela prática em autoria material, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 ex vi do artigo 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º do Código Penal, ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do referido Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 130 dias de multa (relativamente á vitima AA);

8.A.6 - Condenar o arguido CC pela prática em autoria material, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 ex vi do artigo 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º do Código Penal, ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do referido Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 130 dias de multa (relativamente à vítima EE).

8.A.9 - Em cúmulo jurídico das penas de multa aplicadas, nos termos do art.º 30.º, n.º 1 e 77.º, n.º 1 do CP, condenar o arguido na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 1800,00 (mil e oitocentos euros).

8.A.10 - A cumular com a pena de 120 dias de multa de substituição por que foi condenado (cumulo material), nos termos do art.º 77.º, n.º 3 do CP.


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8.A.11 – Mais se condena cada um dos arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se em 2,5 UC´s a taxa de justiça devida, atento o numero de sessões realizado – arts. 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 5 do RCP.

8.A.12 - Oportunamente, remeta boletins ao registo – artigo 374.º, n.º 3, d), Código de Processo Penal, e artigos 5.º, n.º 1, 2 e 3, 6.º, al. a) e 7.º, n.º 1, al. a) e 2, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio.

8.A.13 - Declaro perdida a favor do Estado a espingarda apreendida nos autos.

8.A.14 - Oportunamente, cumpra o disposto no art.º 78.º da Lei das Armas.

6.A.11 - Oportunamente, remeta boletins ao registo – artigo 374.º, n.º 3, d), Código de Processo Penal, e artigos 5.º, n.º 1, 2 e 3, 6.º, al. a) e 7.º, n.º 1, al. a) e 2, da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio.

8.A.15 – Os arguidos continuam sujeitos a termo de identidade e residência que só se extinguirá com a extinção da pena – art.º 214.º, n.º 1, al. e) do CPP.

8.A.16 - Proceda-se ao depósito da sentença, em conformidade com o previsto no art.º 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.


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8-B - Quanto instancia cível conexa

Nestes termos e face ao exposto, julgo os pedidos de indemnização civil formulados parcialmente procedente por provado, e, em consequência, decido:

8.B.1 - Condenar o arguido/demandado CC pagamento da quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante EE, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano.

8.B.2 - Condenar o arguido/demandado CC pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante AA, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano;

8.B.3 - Condenar o arguido/demandado CC pagamento da quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante DD, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano;

Quanto ao mais, julgo os pedidos de indemnização civil não provados, improcedentes e em consequência, absolvo o demandado CC do demais peticionado;

8.B.4 – Custas na proporção do decaimento.

8.B.5 - Condenar o arguido/demandado AA no pagamento da quantia de 1.300,00€ (mil e trezentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela assistente BB, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano;

Quanto ao mais, julgo o pedido de indemnização civil não provado, improcedente e em consequência absolvo o demandado do demais peticionado;

8.B.6 – Sem custas – art.º 4.º, al. n) do RCP.


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8. C - Quanto ao pedido de indemnização civil da Unidade de Saúde Local ..., EPE

Em face do exposto, julgo parcialmente procedente o pedido cível formulado pela Unidade de Saúde Local ... EPE e, em consequência, decido:

8.C.1 - Absolver o arguido/demandado CC do pedido;

8.C.2 - Condenar o arguido AA no pagamento da quantia de € 98,21 (noventa e oito euros e vinte e um cêntimos) ao demandante Unidade de Saúde Local ..., EPE, a que acrescem os juros legais até efetivo e integral pagamento.
8.C.3 - Sem custas – art.º 4.º, al. n) do RCP.»


*

Inconformados vieram os arguidos interpor recurso da decisão.

Apresentam em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

AA

«Conclusões:

I. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos relativamente ao recorrente, o sr. AA, que o condenou pela prática do crime de ofensas à integridade física simples previsto e punido no art. 143º CP.

II. O tribunal a quo deu, designadamente, como provado que:

a) “3. No decurso da discussão e sem que nada o fizesse prever, o arguido AA abeirou-se de BB, e, enquanto trocavam palavras, desferiu-lhe uma pancada, com a sua cabeça, atingindo-a na zona das maçãs do rosto, do lado direito”.

b) “11. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido AA, BB sofreu dores no local atingido, tendo ficado com escoriações na zona malar direita, com ligeiro edema, e ainda sofrido de cefaleia associada, tudo sem afetação da capacidade de trabalho geral”.

c) “12. O arguido AA conhecia os factos descritos e quis agir como agiu, de forma livre, consciente e voluntária”.

d) “13. Com o propósito concretizado de provar ferimentos e dores a BB, molestando-a no seu corpo e saúde, resultados que representou e quis”.

e) “14. Por sua vez, o arguido AA bem sabia que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.”

III. O tribunal a quo condenou o recorrente “[...]em substituição da pena de 4 (quatro) meses de prisão, [...] converter a mesma, nos termos do art. 43º, nº1 do CP, em 120 (cento e vinte) dias de multa” e, ainda, ao pagamento de duas indemnizações cíveis uma no valor de “1.300,00€ (mil e trezentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela assistente BB, acrescida de juros, a contar da data [...] sentença, até ao efetivo e integral pagamento, taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano” e à Unidade de Saúde Local ..., EPE a “[...] quantia de € 98,21 (noventa e oito euros e vinte e um cêntimos) ao demandante [...], a que acrescem os juros legais até efetivo e integral pagamento” pela assistência que prestaram a BB.

IV. A convicção do tribunal a quo assentou apenas no episódio hospitalar que ficou registado numa ficha clínica da Unidade de Saúde Local ... EPE, uma fotografia junta ao processo pela assistente BB e um relatório médico-legal o que, por sua vez, apenas prova o nexo de causalidade e não a autoria do crime.

V. Não foi produzida ou junta qualquer prova que demonstre que de facto o recorrente agrediu a sra. BB.

VI. Apenas foi produzida prova no sentido de que o Sr. AA teve uma discussão acesa com a vizinha negando este, por diversas vezes, a autoria da agressão nas suas declarações, ver transcrições supra referidas e que se reiteram.

VII. O que temos in caso é a palavra do sr. AA contra a palavra da assistente, a sra. BB, relativamente a autoria da agressão o que não pode servir como base para uma condenação.

VIII. Para haver uma condenação é necessário ir além da mera acusação/denúncia e provar-se que de facto tal facto da vida com relevância jurídico-penal ocorreu e quem foi o seu autor.

IX. A autoria integra-se nos elementos do tipo objetivo do ilícito, não se verificando este elemento, consequentemente, não pode haver uma condenação sob pena de estar a condenar-se alguém inocente e violar-se o Estado de Direito Democrático.

X. O tribunal a quo não tinha elementos suficientes para se convencer para além da dúvida razoável de que o aqui recorrente agrediu a assistente.

XI. Os factos dados como provados e referidos na sentença a fls 7 e 8, concretamente os ns. 3, 11, 12, 13 e 14 dos factos provados, foram incorretamente julgados, devendo ser tidos como Não Provados.

XII. Como tal, estamos num caso flagrante de violação do princípio basilar in dubio pro reo, uma vez que existe uma dúvida objetiva e razoável na questão da autoria da agressão.

XIII. Uma vez que não foi ultrapassada em juízo tal dúvida, deve o recorrente beneficiar do princípio da presunção de inocência e, consequentemente, ser absolvido do crime e dos respetivos pedidos civis a que foi condenado.

XIV. Face a isto, foram violadas as normas 32º, nº2, 1ª parte da CRP, artigos 26º, 40º, nº2, 71º, nº2 e 143º do CP, e ainda, o artigo 127º CPP devendo consequentemente a sentença em crise ser revogada e substituída por outra que determine a absolvição do pedido.

Termos em que nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso com fundamento no artigo 410º, nº2, alínea c) CPP e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o recorrido absolvido do crime de ofensas à integridade física em que foi condenado, bem como dos respetivos pedidos de indemnização civil.»


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CC
«CONCLUSÕES:

I) O arguido, oro recorrente, vem acusado em autoria material e em concurso efetivo, nos termos do artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, a prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.ºs 1, e 2, alíneas a) e b), 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 131.º todos do Código Penal e ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelo artigo 153.º, n.º 1 ex vi artigo 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º do Código Penal, ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do referido Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

II) O presente recurso tem como objeto as nulidades invocadas, omissão de pronuncia, contradição entre a fundamentação e a decisão, errónea subsunção dos factos ao direito aplicável, erro notório na apreciação da prova da matéria dada como provada da sentença proferida nos presentes autos, pedido de indemnização civil, medida da pena, impugnando-se a decisão proferida nos termos previstos no art.º 412º do CPP.

III) Mais o Tribunal a quo condenou o arguido CC pela prática em autoria material:

- um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

- um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.ºs 1, e 2, alíneas a) e b), 154.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 131.º todos do Código Penal e ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro na pena de 4 (quatro) meses de prisão (relativamente à vítima DD);

Substituir a pena de 4 (quatro) meses de prisão por 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

- um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 ex vi do artigo 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º do Código Penal, ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do referido Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 130 dias de multa (relativamente á vítima AA);

- um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 ex vi do artigo 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º do Código Penal, ainda por referência ao artigo 86.º, n.º 3 do referido Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 130 dias de multa (relativamente à vítima EE).

- Em cúmulo jurídico das penas de multa aplicadas, nos termos do art.º 30.º, n.º 1 e 77.º, n.º 1 do CP, condenar o arguido na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 1800,00 (mil e oitocentos euros).

- A cumular com a pena de 120 dias de multa de substituição por que foi condenado (cumulo material), nos termos do art.º 77.º, n.º 3 do CP.

- Condenado no pagamento da quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante EE, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano.

- Condenado no pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante AA, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano;

- Condenado no pagamento da quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante DD, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano”

IV) Assim, o arguido, oro recorrente, em sede de contestação, conforme decorre de fls.., e de acordo com o artigo 4º das alegações de recurso, que por economia processual se dispensa a sua total reprodução; o arguido arrolou prova testemunhal.

V) Na sua contestação o arguido arguiu, conforme supra referido, e aqui descreve, sumariamente que o arguido CC foi constituído arguido nos presentes autos em 19.12.2020, mas não foi validada pelo Ministério Público a constituição como arguido do mesmo o que gera a nulidade;

VI) Mais contestou afirmando que os crimes de ameaça agravada, na linguagem corrente, a ameaça significa expressão de um mal que acontecerá, reportado, pois, ao futuro, o que se coaduna com a exigência legal de que se configure, para a criminalização da conduta, o aludido mal futuro.

VII) A análise da verificação do mal futuro não pode, pois, restringir-se ao sentido atual ou futuro que, aparentemente, comporte, seja por que forma for, sob pena de redutora perceção da realidade e, até, acrescente-se, de excessiva tutela penal, a coberto dessa simples literalidade.

VIII) Defendeu que as expressões de que o arguido vem acusado “vai-te embora seu corno. seu filho da puta sai já daqui senão dou-te um tiro nos cornos, eu mato-te” e “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia mas tu vais para o cemitério que eu estouro-te os miolos”, o caso em apreço, as expressões de que o arguido vem acusado, relativamente ao elemento temporal em análise, não se projetam sobre o futuro, mas sobre o presente.

IX) É por isso convicção do arguido que as palavras descritas na acusação, não traduzem ameaça de um mal futuro e, por isso, não preenchem o tipo objetivo do ilícito previsto no artigo 153º do Código Penal.

X) Deste modo e por não se verificar um dos elementos objetivos do tipo de ilícito (ameaça de um mal futuro), impõe-se a absolvição do arguido.

XI) No que se refere à prova por gravação de imagens e fixação de fotogramas, salvo melhor opinião, o vídeo junto não faz qualquer prova dos factos constantes da acusação pública.

XII) Mais, tal vídeo não pode ser valorado como meio de prova, uma vez que, viola a regra da proibição de prova obtida sem o consentimento do respetivo titular, direito consagrado no art.º 126.º n.º 3 do CPP e mais inexiste nos autos despacho a validar a prova do vídeo junto, o que torna impossibilita a utilização desta prova, sendo uma nulidade também invocada.

XIII) O arguido impugnou os pedidos de indemnização civil formulados por AA e por EE, por não serem devidos e de valores muito exagerados.

XIV) O Tribunal a quo assentou a sua decisão nos factos que deu como provados e não provados, conforme melhor resulta do art.º 6 das alegações de recurso que por economia processual se dá por integralmente reproduzida.

XV) Ora no nosso entender, a Sentença em crise contém diversos vícios que a fulminam de nulidade.

XVI) Desde logo, a ausência de pronúncia por parte do Tribunal a quo das questões levantadas pelo arguido em sede de contestação.

XVII) Desde logo, a ausência de pronúncia por parte do Tribunal a quo da questão levantadas pelo arguido em sede de contestação e alegações, face ao Tribunal não se ter pronunciado quanto à invocação da nulidade referente à falta de despacho de validação da prova por parte do Ministério Público no que respeita à prova junta – CD, o que impossibilita a utilização desta prova, sendo uma nulidade que aqui se invoca e que atempadamente se invocou e o Tribunal a quo não se pronunciou em sede de sentença.

XVIII) Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado pela nulidade de prova suscitada pelo arguido/recorrente e ter considerado inadmissível a utilização, nos presentes autos, desses elementos de prova que lesam irremediavelmente direitos fundamentais do recorrente (artigos 26.º).

XIX) Conforme estabelece o art.º 379.° n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPP, é nula a Sentença quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

XX) A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão tal como tem entendido o STJ, referindo que a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente.

XXI) Consequentemente a omissão de pronúncia determina a consequência - a nulidade da Sentença, prevista no art.º. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

XXII) Pelo que, o Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado pelo alegado pelo arguido/recorrente em sede de contestação no seu artigo 18º e, o que não fez na Douta sentença, logo a mesma é nula por omissão de pronúncia (artºs 372º nº 2 e 379º nº 1 alª a) do CPP).

XXIII) Na Sentença proferida há CONTRADIÇÃO INSANÁVEL NA FUNDAMENTAÇÃO OU ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISAO:

dever de fundamentação das decisões judiciais é um imperativo constitucional, dispondo o art.º 205º, nº 1, da Lei Fundamental que, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

Mas é ainda através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da atividade decisória pelo tribunal de recurso, designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.

No que especificamente respeita à sentença – ato decisório do juiz por excelência – o art. 374º, do C. Processo Penal, enunciando os seus requisitos, dispõe no seu nº 2.

A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objeto os depoimentos produzidos em audiência – bem como a análise crítica de tais provas.

XXIV) Nos presentes autos um dos crimes que está em causa imputado ao recorrente, no que se refere ao crime de detenção ilegal de arma pelo arguido CC, que vem acusado de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c) 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro. (Negrito nosso)

XXV) No que respeita à indicação das provas ao caso concreto, constam manifestos erros da sentença nas pág. 28, ponto 4.2, pág. 29, último parágrafo até à pág. 30, onde refere:

“No caso dos autos, e na medida em que o arguido justificou a posse quanto aos demais objetos, apurou-se que tinha na sua posse uma soqueira. A título de justificação alegou o arguido que tal objeto ilícito vinha acoplado a um cinto que comprou nas festas municipais da cidade de Matosinhos. Ora, “um boxer/soqueira, construído integralmente em metal (latão), o qual se destina a ser empunhado, introduzindo nos dedos de uma das mãos, sendo a sua função a de ampliar o efeito resultante de uma agressão4” não é algo que se possa adquirir, ainda que dissimulado num cinto, sem se ter a noção da sua ilicitude. A apreensão deste tipo de objetos tem sido notícia na comunicação social nos últimos anos, sendo aliás, um objeto imediatamente associado à potencialidade de um comportamento agressivo.

Ou seja, é do conhecimento geral e está enraizada na consciência coletiva tal ilicitude, sendo que a justificação dada não colhe para infirmar a evidencia de que a posse de tal objeto configura crime. Ficou, ainda, provada a ausência de autorização e a circunstância de a detenção das munições se verificar fora das condições legais, sendo que também se apurou que “o arguido agiu livre e conscientemente”.

Assim, provou-se quer o elemento intelectual do dolo (de que o arguido sabia ser a sua conduta contrária à lei e criminalmente punível, quer o seu elemento volitivo– tendo-se apurado que o arguido “ainda assim, quis atuar da forma como o fez”.

Ou seja, atentas as regras da experiência comum e da normalidade, é plena convicção do tribunal que o arguido conhecia a ilicitude da posse de tal objeto, ou seja, de que a sua posse, injustificada, era proibida e punida pela lei penal.

Verifica-se, pois, em face da factualidade dada como assente, que se mostram preenchidos os elementos objetivos do tipo legal de crime de detenção ilegal de munições, p.p., pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, na redação conferida pela Lei n.º 17/2009, na medida em que se provou que o arguido se encontrava na posse de uma soqueira, que se encontrava na sua esfera de disponibilidade, não tendo sido apurada qualquer razão que 4 legitimasse tal detenção.

Assim, atentos os factos provados, não tendo sido apurada qualquer causa de exclusão de culpa ou da ilicitude, conclui-se que o arguido preencheu, com a sua conduta, os elementos objetivos e subjetivos do crime em causa.

Cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.10.2014, disponível no site www.dgsi.pt.”

XXVI) Este excerto da sentença refere-se a uma soqueira, a um cinto comprado em festas municipais de Matosinhos, e ainda refere-se a um boxer/soqueira construído integralmente em metal – latão a ser empunhado, introduzido nos dedos de uma das mãos.

XXVII) Na fundamentação refere para a prova de existência de munições, algo que não consta da acusação, da factualidade alegada por quaisquer das partes, que aliás nem sequer tem enquadramento factual nos presentes autos, resultando provado nos autos que o arguido não tinha munições.

XXVIII) E mais, nesta fundamentação qualifica o crime de detenção ilegal de munições p.p., pelo artigo 86.º n.º 1, al) d) da Lei n.º 5/2006, na redação conferida pela Lei n.º 17/2009, concluído pelos factos provados por este crime, quando o arguido vem acusado pelo artigo 86.º n.º 1, al) c), … da Lei n.º 5/2006.

XXIX) Ora, estamos perante um enquadramento legal distinto da acusação, e necessariamente, afeta a própria decisão proferida quanto a este crime por não se mostra feita a indicação completa das provas, nem, em absoluto, o exame crítico das mesmas provas, que foi deficiente.

XXX) Que outros elementos de prova relevaram, para que concretos factos provados contribuíram, direta ou indiretamente, isoladamente ou em conjunto com outros meios de prova, para a formação da convicção é o que se desconhece porque a fundamentação da sentença não o diz.

XXXI) E também não se mostra feito o exame crítico das provas que fundaram a convicção do tribunal recorrido, na verdade, tal exame crítico não pode traduzir-se em simples afirmação, ainda para mais quando deslocadas factualmente do caso concreto.

XXXII) Não tendo o tribunal indicado completamente as provas que serviram para formar a sua convicção, nem tendo efetuado o exame crítico de tais provas, salvo o devido respeito, entende o arguido recorrente que existe insuficiente fundamentação da sentença, o que determina a sua nulidade, nos termos do art.º 379, nº1, al. a), com referência ao art.º 374, nº 2, ambos do CPP;

XXXIII) O arguido recorrente vem também acusado de dois crimes de ameaça agravada nas pessoas de AA e de EE, pelos quais o Tribunal a quo condenou o arguido, e no entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-09-2021, Processo n.º 237/20.6GDVFR.P1, são elementos constitutivos do tipo legal de crime de ameaça, como de resto na decisão recorrida suficientemente se enunciam:

a) o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime;

b) que esse anúncio seja feito de forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado;

c) e que o agente tenha atuado com dolo genérico, isto é, consciência e vontade de praticar o facto, incluindo a consciência da adequação da ameaça a provocar o medo ou intranquilidade.

XXXIV) No que se prende com o tipo de ilícito em apreço, dir-se-á, segundo os ensinamentos de Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, o artigo 155.º estatui um crime de resultado/dano, passou, após a revisão de 1995, a configurar um crime de perigo concreto. Com efeito, não se exige hoje a ocorrência do dano (efetiva perturbação da liberdade do ameaçado), mas também não basta a simples ameaça da prática de um crime, exigindo-se, ainda, que esta ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação, sendo o crime de ameaça um crime de perigo concreto.

XXXV) E ameaça pressupõe um mal que constitua crime, e seja futuro.

XXXVI) Com a exigência de que o mal tem de ser futuro quer-se significar que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, nessa situação, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, ou seja, do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirmar: “vou-te matar já”.

XXXVII) Portanto, das expressões constantes nos autos: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!” e “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”, não poderiam ter sido consideradas como uma ameaça de um mal futuro, até porque o verbo matar foi conjugado num tempo verbal – presente do indicativo - “dou-te” – que designa um facto presente mas não concluído (imperfeito, ou seja, não perfeito ou inacabado). Pelo que, dúvidas não restam que o assinalado tempo verbal jamais indicam a inculcação da ideia de que o mal há de vir.

XXXVIII) Mas ainda assim, perante a apurada expressão que ora se fez consignar “dou-te” não se vislumbra um mal no futuro, não podendo concordar-se com a decisão proferida, sobre a matéria de direito, quanto ao tipo legal de crime, por se verificar uma incorreta subsunção dos factos ao Direito aplicável.

XXXIX) E a ser assim, não se mostra preenchido, desde logo, o elemento objetivo do crime de ameaça, nos termos em que o nosso Código Penal o prevê, e, por conseguinte, entendemos que o recorrente jamais tenha cometido os crimes de ameaça pelos quais foi condenado, assim por se verificar uma incorreta subsunção dos factos ao Direito aplicável, deve o arguido ser absolvido da prática dos crimes de ameaça agravada em que havia sido condenado pelo Tribunal a quo.

XL) É também este o entendimento do Acórdão da Relação de Guimarães, processo n.º 32/18.2GABTC.G1, em que também está em causa o crime de ameaça agravada, dos artigos 153º n.º 1 e 155º n.º 1 a) do Código Penal, no qual por houve decisão por UNANIMIDADE no RECURSO PENAL e deu lugar a Decisão PROCEDENTE.

XLI) No respeitante à reapreciação da prova gravada, entendemos estarem incorretamente julgados os Factos Provados nºs 5, 6, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20, e 21 da Douta Sentença recorrida.

XLII) Quanto à matéria de facto que ora se impugna, tendo-se em atenção a factualidade dada como verificada e os suportes técnicos juntos aos presentes autos, que o recorrente nunca aceitou, nomeadamente o vídeo e fotogramas, importará de todo em todo, dizer-se que não só tal matéria fáctica é manifestamente insuficiente para se ter concluído como fez o Tribunal a quo e considerar verificada a prática pelo arguido dos crimes de que vinha acusado, crime de coação agravada na forma tentada na pessoa de AA e dos crimes de ameaça agravada nas pessoas de EE e na pessoa do AA, com os contornos que se deram como assentes e no quadro legal dos artigos supra referenciados, como é mesmo inquestionável ter-se verificado manifesto e incontornável erro na apreciação e valoração da prova.

XLIII) Ou seja, apesar de o arguido ter confessado que usou a arma para afastar e dar sem efeito as discussões do AA para com a sua esposa BB, estando o arguido AA acompanhado do DD, tendo até admitido que a arma só serviu para os intimidar por ter receio que ambos lhe batessem, até justificou ao Tribunal que tinha a arma consigo há 40 anos e esta nunca teve munições, tal como resultou provado nos autos pela PSP que foi ao local no momento dos factos, tendo o arguido recorrente entregue a arma à entidade policial de forma voluntária, negou que em momento algum apontou a arma ao AA e à EE, bem como nunca lhes dirigiu qualquer palavra,

XLIV) Contudo, o Tribunal a quo, deu como provado tais factos com base nos de meios de prova juntos, prova que nem sequer foi validada pelo Ministério Público, nem consentida pelo arguido, aos autos e com base nos depoimentos do AA e EE, quando estes, na verdade, não sofreram qualquer intimidação por parte do aqui recorrente, nem mesmo o arguido AA teve qualquer receio pois ficou de forma muito pacifica a olhar para o arguido recorrente, encostado ao seu veículo, a tirar fotos, bem como a EE de forma muito serena ficou na janela a fazer a filmagem, o que demonstra de forma, indubitável de que nunca sofreram medo ou intimidação, pelo ato desesperado do aqui recorrente que dirigiu a arma, sem munições, diga-se, apenas ao arguido AA, tal como confessado pelo mesmo, bem sabendo que jamais o mataria, pois bem sabia que a arma estava descarregada, pelo que não estava em condições de poder efetuar disparos, e ainda não tinha depósito ou carregador, pelo que os factos 5, 6 e 8. da sentença não poderiam ser dados como provados.

XLV) Tal facto conjugado com o facto constante em 17. e com as declarações prestadas pela testemunha FF, agente da PSP, que prestou depoimento no dia 08/11/2023 (12:17 e 12:35) a arma apenas e somente serviu para o arguido por cobro ao desentendimento, veja-se o depoimento desta testemunha, alias única do processo quanto aos factos:

XLVI) Ora, conforme resulta do depoimento gravado através do sistema de gravação digital disponível na aplicação informática da sessão de 08/11/2023, a testemunha referiu que o arguido efetivamente confessou ter a arma de fogo na posse dele no sentido de só tentar por cobro ao desentendimento que havia e o mesmo voluntariamente fez a entrega da arma e foi a forma de sanar tal situação, remetendo-se para a transcrição em 62º das alegações.

XLVI) Portanto, não resultou efetivamente provado a prática dos factos pelo arguido, não se podendo aceitar como provados os factos constantes em 18. 19. 20. e 21., dado que o recorrente quis colocar fim ao desentendimento entre o arguido AA e a assistente BB, pois viu a cabeça do AA encostada à da esposa, bem como viu o DD ali no local que também poderiam vir a bater no aqui recorrente.

XLVII) E tal como provado, a arma não tinha munições tal como resultou provado, sendo que o arguido não vem acusado do crime p.p, na alínea d) do artigo 86º n.º 1 do RJAM, logo questiona-se como poderia levar a cabo o arguido disparos se não tinha munições. Mais ainda, como é que o arguido não conseguiu concretizar por circunstâncias alheias à sua vontade se, mais uma vez, o AA permaneceu no local a olhar para o CC, o que demonstra que não teve qualquer receio ou medo, a EE estaria à janela a filmar, nem sequer grita para o companheiro fugir…??? De facto ninguém teve medo, ninguém saiu do local, até tiravam fotos mesmo o próprio AA, logo não temerem nem recearam, bem como se o arguido CC não tinha a arma com munições, que motivo alheio à sua vontade não o conseguiu concretizar, bem como, o arguido sabia que não conseguia concretizar qualquer disparo por não ter munições, concluindo-se pela manifesta existência dos vícios do art. 410.º n.º 2 do CPP, insuficiência da matéria fáctica e erro notório na apreciação da prova.

XLIX) Pois erro notório na apreciação da prova é aquele que é evidente, que é patente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, sendo um vício, como decorre do corpo do nº 2 do artigo 410º do CPP.

L) Conclui-se que o Tribunal a quo não procedeu a uma correta análise crítica da prova produzida, como lhe impunha o art.º 374º nº 2 do CPP, de forma a que se pudesse seguir a lógica do raciocínio que levou à sua convicção de que o arguido praticou o crime. Essa falta de exame crítico da prova produzida que se evidencia mesmo com as transcrições feitas na douta Sentença, torna a decisão NULA (Artºs 372º nº 2 e 379º nº 1 alª a) do CPP).

LI) A Sentença ora recorrida violou os art.ºs 27.º, 40.º, 50.º, 51.º, 71.° e 72.º do Código Penal, e o art.º 18.º e º32.º da CRP e o art.º 127.º do CPP, ao aplicar a pena que foi fixada ao oro recorrente pelos crimes de coação agravada na forma tentada, e pelos crimes de ameaça agravada.

LII) Em face de todo o exposto deve ser revogado por V. Exas. a douta Sentença recorrida, porquanto o arguido não ter antecedentes criminais, ser possuidor dessa arma há muitos anos e não ter qualquer incidente registado e ainda o relatório social do arguido, está inserido na sociedade, teve uma postura correta no Tribunal, não registando o arguido antecedentes criminais.

LIII) As quantias fixadas pelo Tribunal a quo em que condena o aqui arguido recorrente, CC, nas quantias totais de pedidos de indemnização civil no total de € 3.700,00, valor verdadeiramente excessivo face às condições económicas do arguido e face à prova produzida.

LIV) Com esta reformulação do CP, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

LV) Como se sabe, a determinação concreta da pena deve ter presente o critério do art.º 71 do CP, “... em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial.”, atendendo “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a favor do agente ou contra ele”, sem esquecer que o disposto no art.º 70 do mesmo Código: “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade, o tribunal deverá dar preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

LVI) O princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade clássica é considerado por muitos o mais importante princípio do Direito Constitucional gerado pelas perspetivas pós-positivistas do direito e o centro da dogmática dos direitos fundamentais.

A sua universalidade tem-se acentuado, sendo visto como um dos pilares do vocabulário comum de um constitucionalismo global. O princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade relevantes instrumentos de controlo da legitimidade constitucional de medidas restritivas do âmbito de proteção.

LVII) De modo geral, o princípio da proporcionalidade possui uma dupla face, funcionando no plano da proibição do excesso enquanto controle das medidas restritivas dos direitos fundamentais, assim como no plano da proibição de insuficiência, a controlar a insuficiente implementação dos deveres estatais de proteção, cujo princípio da proporcionalidade, também designado da proibição do excesso ou da justa medida, que encontra arrimo no art.º 18.° da Constituição, significa que a restrição dos direitos, liberdades e garantias só pode ter lugar nos casos expressamente previstos na Constituição e deve ser adequada, necessária e proporcional.

LVIII) O princípio da proibição do excesso impõe que essa moldura penal seja proporcional ao valor do bem jurídico protegido pela norma incriminadora e à gravidade da conduta tipificada.

Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de julho de 2020, Processo n.º 74/14.7JAPTM.E1. S1, quando refere que: “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo”.

LIX) Porém, apesar da gravidade dos factos, da culpa e das exigências de prevenção geral, crê-se que a ausência de condenações no seu CRC, a confissão dos factos e o arrependimento demonstrado em audiência de julgamento; a boa inserção familiar, a escolaridade e experiência profissional indiciam razoavelmente (e outros elementos não indiciam o contrário) a possibilidade de uma regeneração (de uma única, embora grave, infração).

LX) Nesta senda, como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/05/2021, Proc. 1032/15.0PCSTB.S1 (Cf. ainda acórdãos do STJ de 21.11.2012 - Proc. 86/08.0GBOVR.P1. S1, e de 16/06/2016 Proc.2137/15.2T8EVR.S1), na “avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado”.

Assim,

LXI) O arguido discorda da pena, não foram observados os necessários critérios de dosimetria concreta da pena, já que as penas aplicadas ao arguido CC são por regra aplicadas a situações de maior gravidade, com práticas reiteradas; não para casos como o do arguido que não passa de uma mera situação pontual e singular e sem antecedentes criminais e conta já com a idade de 61 anos.

LXII) O art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, estabelece que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.

O Tribunal recorrido ao não atuar desta forma, violou o disposto no art.º 49 n.º 3 da CDFUE, art.º 18 da CRP; art.º 71 °, n° 2 do CP..

LXIII) O arguido é primário, tem vida estabilizada a nível profissional e também a nível pessoal, está perfeitamente enquadrado familiar, laboral e socialmente e, a partir do circunstancialismo atenuativo que concerne em seu favor, que o tribunal de condenação não valorou em toda a sua amplitude, perante todos os factos e circunstâncias atenuantes, o arguido deverá ser absolvido pelo crime de coação agravada na forma tentada e pelos dois crimes de ameaça agravada, quanto ao demais, crime de detenção de arma proibida a pena seja fixada a um “quantum” próximo do limite mínimo.

NESTES TERMOS, CONTANDO COM O DOUTO E INDISPENSÁVEL SUPRIMENTO DE V. EXAS., DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, FAZENDO-SE A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!»

A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu aos recursos considerando que os mesmos não merecem provimento e que a decisão recorrida deve ser mantida, rematando a usa argumentação com as seguintes conclusões:

Para AA.

«Conclusões

1 – O Tribunal, apreciou livremente a prova produzida, fazendo uma correcta e objectiva interpretação da globalidade da prova produzida, tendo em conta as regras da experiência e a normalidade e a causalidade das coisas.

2 - O recurso sobre a matéria de facto não funciona como um segundo julgamento, devendo o Tribunal da Relação limitar-se a fazer uso do seu poder de alteração da decisão de facto quando resulte inequivocamente da gravação dos depoimentos que a decisão não tem suporte no que foi dito pelas testemunhas, ou que a apreciação da prova na sua globalidade impõe necessariamente uma decisão distinta.

3 - Não é esse o caso do presente processo, encontrando-se a factualidade provada assente na prova testemunhal, documental e pericial produzida.

Porque a sentença apreciou devidamente os factos em questão e efectuou uma correcta subsunção jurídica dos mesmos, deve a sentença ser mantida nos seus exactos termos, sendo julgado improcedente o Recurso interposto, assim se fazendo a habitual justiça»

Para CC.

«Conclusões

1 – A constituição do Recorrente como arguido não foi validada dentro do prazo previsto no art. 58.º, n.º 3 do C.P.P. Porém, a consequência da inobservância de tal norma processual não é a nulidade, mas antes um mera irregularidade, como resulta do previsto no art. 58.º, n.º 5 e 6 do C.P.P.

2 - A circunstância de o Recorrente ter utilizado o presente do indicativo do verbo, não acarreta necessariamente que a sua conduta se esgote naquele concreto momento, traduzindo uma mera ameaça iminente.

3 - Com efeito, a análise do quadro global da actuação do arguido tem de levar em consideração a postura do mesmo, os gestos e objectos utilizados, o que é verbalizado e com que intenção, o modo como esta conduta global é percepcionada pelo destinatário, etc.

4 - Do que ficou demonstrado nos autos parece-nos inequívoco que o arguido CC ao apontar uma espingarda ao ofendido/arguido AA e à Assistente EE enquanto dizia em voz alta e com foros de seriedade:

“dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!” (…) “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”, integra a prática dos crimes de ameaça agravada, uma vez que aquelas advertências são idóneas a inculcar nos visados um receio que em qualquer momento futuro o Recorrente poderia atentar contra a sua vida, seriedade acrescida ao ser-lhes apontada uma arma real e susceptível de, em condições normais, provocar-lhe a morte.

5 - No recurso apresentado o Recorrente mistura duas realidades distintas: a captura de voz e imagem determinada por autoridade judiciária no âmbito das competências próprias de investigação criminal e a captura de som e imagem captada pelo próprio ofendido no decurso da prática de um ilícito criminal.

6 - A primeira realidade encontra previsão legal nas disposições conjugadas dos artigos arts. 1.º e 6.º da Lei n.º 5/2002, art. 88º e 269º, nº. 1, al. e), do Cód. Proc. Penal e está sujeita aos pressupostos de admissibilidade, formalidades e validade ali previstas, sendo efectivamente cominada com nulidade a inobservância de tais disposições.

7 - Porém, não foi ao abrigo deste enquadramento processual que foram admitidas as gravações dos factos juntas aos autos e visionadas em audiência de discussão e julgamento.

8 - Não foi o M.P., enquanto titular da acção penal, que determinou a realização de captação de voz e imagem relativamente ao arguido e aqui Recorrente. Foi a Assistente EE que, ao assistir à prática de diversos ilícitos criminais por parte do Recorrente e, estando inclusivamente a ser vítima do crime de ameaça agravada, que utilizou o seu telemóvel para documentar os actos ilícitos de que estava a ser alvo.

9 - É inequívoco que a conduta da Assistente EE isoladamente considerada poderia configurar um comportamento proibido e integrar a prática do crime de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelo art. 199.º do C.P.

10 - Porém, no caso vertente, a actuação da Assistente EE não foi determinada por uma vontade consciente de captar a imagem a imagem e voz do Recorrente para qualquer finalidade inócua ou censurável, mas antes por uma necessidade de documentar a prática de um ilícito de que estava a ver vítima.

Neste contexto, a conduta da mesma encontra-se abrangida por uma causa de justificação ou exclusão da culpa, habitualmente caracterizada pela jurisprudência como estado de necessidade probatória, e por isso mesmo afastada a ilicitude que proibiria a produção de prova daí extraída.

11 - A admissão do vídeo captado pelo telemóvel da Assistente EE não estava sujeito a qualquer despacho de admissão formal por parte do M.P. ou do JIC, nem o seu visionamento em audiência de discussão e julgamento consubstancia qualquer proibição legal cominada com nulidade, sendo que foi o próprio Recorrente, por diversas ocasiões, e expressamente a requer a sua visualização na audiência e a confrontar as testemunhas com as imagens captadas.

12 - O Recorrente sustenta que: “a ausência de pronúncia por parte do Tribunal a quo da questão levantadas pelo arguido em sede de contestação e alegações, face ao Tribunal não se ter pronunciado quanto à invocação da nulidade referente à falta de despacho de validação da prova por parte do Ministério Público no que respeita à prova junta – CD, o que impossibilita a utilização desta prova, sendo uma nulidade que aqui se invoca e que atempadamente se invocou e o Tribunal a quo não se pronunciou em sede de sentença.”

13 - Tal não corresponde exactamente à realidade, bastando uma mera leitura da motivação da matéria de facto para se concluir que a Meritíssima Juíza a quo tomou posição expressa sobre tal questão.

14 - Reconhece-se que a sentença contém algumas referências a factualidade que não diz respeito aos presentes autos, que com elevado grau de certeza correspondem a outro processo, e que terão sido inseridas na sentença de forma involuntária, através da utilização de ferramentas informáticas, vulgo copy paste.

15 - Porém, tal realidade não consubstancia qualquer contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, mas mero lapso de escrita sem qualquer intervenção relevante na decisão.

16 - Com efeito, a factualidade encontra-se correctamente delimitada nos factos provados e subsumida de forma adequada na decisão - prática em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

17 - A fundamentação também se mostra perfeitamente evidenciada, tendo a Meritíssima Juíza a quo feito a exigível análise crítica da prova, explicitando cabalmente quais os meios de prova valorados, a articulação entre eles e em que sentido e medida foram os mesmos considerados. Esta fundamentação está ainda alinhada com a matéria de facto dada como provada e com a decisão final proferida.

18 - A mera referência, na parte do enquadramento jurídico dos factos, a factos manifestamente referentes a outro processo, mas sem qualquer interferência na fundamentação ou decisão, não consubstancia a invocada nulidade, mas antes lapso de escrita, devendo antes considerar-se como não escritos a alusão a tais referências.

19 - A Meritíssima Juíza a quo explicitou cabalmente os meios de prova ponderados, a credibilidade intrínseca de cada um deles e a forma como a sua articulação permitiu dar como provados cada um dos factos demonstrados.

20 - Na fundamentação de tal convicção estão suficientemente evidenciadas as razões que levaram a Senhora Juíza a considerar provados os factos aparentemente postos em causa pelo recorrente, e, em última análise, e para o que aqui realmente interessa, a considerar provada a prática dos crimes que lhe vinham imputados na acusação.

21 - O Tribunal, apreciou livremente a prova produzida, fazendo uma correcta e objectiva interpretação da globalidade da prova produzida, tendo em conta as regras da experiência e a normalidade e a causalidade das coisas.

22 - O recurso sobre a matéria de facto não funciona como um segundo julgamento, devendo o Tribunal da Relação limitar-se a fazer uso do seu poder de alteração da decisão de facto quando resulte inequivocamente da gravação dos depoimentos que a decisão não tem suporte no que foi dito pelas testemunhas, ou que a apreciação da prova na sua globalidade impõe necessariamente uma decisão distinta.

23 - Não é esse o caso do presente processo, encontrando-se a factualidade provada assente na prova testemunhal, documental e pericial produzida.

24 - O crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

25 - Na escolha entre a pena de prisão e a pena de multa, partilhamos inteiramente da posição adoptada pelo tribunal “a quo” que optou pela pena de multa, por considerarmos que as mesmas são suficientes para acautelar as necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso vertente.

26 - Tendo em atenção que o crime foi praticado com dolo directo, a ilicitude média decorrente de o arguido ter actuado num contexto de conflituosidade prévia e as específicas características da arma em questão, que foi utilizada para consumar outros ilícitos criminais, entendemos que a pena parcelar aplicada ao recorrente não merece qualquer censura.

27 - Aliás, basta atendermos que a pena foi fixada, relativamente a este crime, no primeiro terço da moldura legal para concluirmos pela adequação da medida concreta da pena aplicada.

Porque a sentença apreciou devidamente os factos em questão e efectuou uma correcta subsunção jurídica dos mesmos, deve a sentença ser mantida no seus exactos termos, sendo julgado improcedente o Recurso interposto, assim se fazendo a habitual, JUSTIÇA!»


Também a assistente BB se pronunciou, concluindo:
«Atentos o montante peticionado e fixado, não se verifica nem o primeiro, nem o segundo dos indicados pressupostos de admissibilidade do recurso da parte cível da decisão penal.

Pelo que se deverá rejeitar, desde logo, quanto à parte cível o recurso interposto, por inadmissibilidade legal de apreciação do mesmo.

(…)

entende-se que o tribunal a quo que fez correcta aplicação do direito aos factos dados como provados, ao decidir pela condenação do arguido nos termos e fundamentos aí expostos, revelando-se uma decisão ajustada, pelo que não merece qualquer censura devendo ser mantida na íntegra.»


*

Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde acompanhou a posição do Ministério Público nas respostas aos recursos, pugnando igualmente pelas respetivas improcedências.

*

Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, a recorrida assistente apresentou resposta, reafirmando as suas motivações anteriores.

*

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

*

II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

Recurso de AA.

Impugnação da decisão proferida sobre os pontos 3, 11, 12, 13 e 14 da matéria de facto.

Violação do Princípio in dubio pro reo.

Recurso de CC.

Nulidade da constituição como arguido.

Nulidade de meio de prova.

Nulidade por omissão de pronúncia.

Nulidade por insuficiência da fundamentação da sentença- falta de análise crítica da prova.

Contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Erro notório.

Erro de julgamento quanto aos pontos 5, 6, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20, e 21 da matéria de facto.

Violação do Princípio in dubio pro reo.

Falta de elemento objetivo do tipo legal do crime de ameaça.

Medida da pena.

Pedido cível, admissibilidade do seu recurso e excesso no montante fixado.


*

Para análise das questões suscitadas nos recursos que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, bem como os fundamentos da escolha e determinação das penas, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida e análise jurídica relativa às sanções aplicadas (transcrição):
« II - Saneamento

2.1 – Da falta de validação da constituição como arguido de CC

Vem o arguido CC suscitar, na sua contestação, uma nulidade relacionada com a circunstância de não ter sido atempadamente validada a sua constituição como arguido, tanto mais que no despacho proferido pelo MP em 13.09.2021, a validação se reporta à BB (assistente).

Ora, muito embora da concatenação do despacho aludido com os elementos do processo resulte evidenciado que a menção à assistente configurou mero lapso de escrita (sendo inequívoco, para além de qualquer dúvida razoável) que se pretendia validar a constituição como arguido de CC – principal suspeito dos autos – cumpre avaliar se se verifica, efetivamente, a nulidade invocada.

Determina o artigo 58.° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "Constituição de arguido", o seguinte:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal,

b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coação ou de garantia patrimonial,·

c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254 a 261; ou d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.

2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61º que por essa razão passam a caber-lhe.

3 - A constituição de arguido feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias.

4 - A constituição de arguido implica a entrega, sempre que possível no próprio ato, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.

5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.

A constituição de arguido é o ato, a partir do qual, determinada pessoa assume a qualidade processual de arguido, adquirindo como tal o conjunto de direitos e deveres inerentes à sua condição.

Como resulta cristalino da análise do preceito, a falta de validação da constituição do arguido como tal não implica qualquer nulidade processual, mas apenas que as declarações eventualmente proferidas pelo arguido não possam ser valoradas como prova.

Do compulso dos autos verifica-se que a constituição como arguido de CC foi efetuada por órgão de polícia criminal, logo no dia dos fatos, e apenas foi objeto de validação pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 58.°, n.º2, do Código de Processo Penal em 13.09.2021, ainda que com lapso evidente quanto à identificação da pessoo arguido. Este lapso manifesto não pode ter outro efeito que não seja o de admitir retificação, nos termos do art.º 249.º do CC, por se tratar de realidade evidente e corroborada por todos os elementos do processo.

Parece certo que quando a constituição de arguido é efetuada por OPC, este ato não é definitivo, estando dependente de uma condição resolutiva, nomeadamente, a validação pelo MP. Ao contrário, a constituição de arguido - quando efetuada por Autoridade Judiciária - torna-se definitiva, não necessitando de qualquer validação. Neste sentido, veja-se ALVES, Glória, Sobre as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto: notas sobre a fase de inquérito. Lusíada, Direito, Lisboa, 2008, p. 27, apud http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/2202/4/md_andreia_tavares_dissertacao.pdfO juízo de suspeita fundada obriga a um juízo de valoração da prova recolhida, pelo que a mera denúncia por si só não admite a constituição de arguido, carecendo agora de uma atividade de confirmação da sua verosimilhança. É este juízo valorativo que cabe ao MP e não às polícias e assim [...] impõe-se que seja o MP a validar as constituições de arguido operadas por outras entidades.”

No caso dos autos, porém, afigurando-se ter ocorrido evidente lapso de escrita, que o arguido não suscitou aquando do seu interrogatório, afigura-se que não foi violada qualquer formalidade essencial à validade do ato de constituição de arguido

E assim, não se verificando a omissão de qualquer formalidade essencial relativamente ao ato de constituição de arguido, sublinhando-se, como já referido, que a omissão da validação acarretaria tão só as consequências previstas nos n.ºs5 do supra transcrito artigo 58º isto é, as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

Quer isto dizer que a violação dessa formalidade não tem cabimento na previsão do artigo 119.° do CPP e, mesmo que se entendesse que se trata de uma nulidade prevista no artigo 120.°, n.º 2., al. d) do mesmo diploma legal, a mesma foi invocada extemporaneamente, conforme assim o determina o n.º3, alínea c), do referido normativo legal.

Face ao exposto, improcede a invocada preterição da formalidade.


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Mantém-se a validade e regularidade da instância, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa, dado que não ocorrem quaisquer outras nulidades, exceções, questões prévias ou incidentes de que cumpra de momento conhecer, sem prejuízo da alteração substancial dos factos oportunamente comunicada.

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Procedeu-se ao julgamento com observância de todo o formalismo legal.

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III - FUNDAMENTAÇÃO:

3.1 - Matéria de facto provada

3.1.1 – Quanto à acusação pública:

1. No dia 19 de dezembro de 2020, pelas 16H00, na via pública, próximo do n.º ... da Travessa ..., ..., Matosinhos, o arguido AA envolveu-se numa contenda verbal com BB, sua vizinha.

2. Por razões relacionadas com o local de estacionamento de uma viatura.

3. No decurso da discussão e sem que nada o fizesse prever, o arguido AA abeirou-se de BB, e, enquanto trocavam palavras, desferiu-lhe uma pancada, com a sua cabeça, atingindo-a na zona das maçãs do rosto, do lado direito.

4. De seguida, DD aproximou-se e interpôs-se entre o arguido AA e BB, apartando-os.

5. Sem que nada o fizesse prever, tendo-se apercebido da discussão que envolvia a sua mulher BB, o arguido CC, apareceu no local, vindo da sua residência, munido de uma espingarda ... - espingarda de caça de tiro a tiro, arma de fogo longa, sem depósito ou carregador, de percussão central, de calibre nominal de 12, com sistema de ignição de uma munição, com um cano de alma lisa de 75,6cm, com a coronha em madeira castanha e em condições de efetuar disparos,

6. E, de imediato, apontou a arma na direção da cabeça de DD, mais lhe tendo dito, em tom sério: “vai-te embora, senão dou-te um tiro nos cornos, eu mato-te!”

7. Em ato contínuo, o arguido CC apontou a referida arma de fogo na direção da cabeça do arguido AA e disse-lhe, em voz alta e com foros de seriedade: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!”.

8. Nesta altura, apercebendo-se da presença de EE, esposa do arguido AA, à janela do seu apartamento, sito no rés-do-chão direito do n.º ... daquela rua, seguidamente apontou a referida arma de fogo na direção da mesma.

9. E simultaneamente proferiu os seguintes dizeres: “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”

10. Suspeitando da chegada iminente das autoridades policiais, o arguido CC e a esposa BB recolheram à sua habitação, sita no rés-do-chão esquerdo do n.º ... da mencionada rua.

11. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido AA, BB sofreu dores no local atingido, tendo ficado com escoriações na zona malar direita, com ligeiro edema, e ainda sofrido de cefaleia associada, tudo sem afetação da capacidade de trabalho geral.

12. O arguido AA conhecia os factos descritos e quis agir como agiu, de forma livre, consciente e voluntária,

13. Com o propósito concretizado de provocar ferimentos e dores a BB, molestando-a no seu corpo e saúde, resultados que representou e quis.

14. Por sua vez, o arguido AA bem sabia que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

15. O arguido CC não era titular de licença de uso e porte da arma identificada supra,

16. Sendo que a referida arma de fogo se encontra registada mediante livrete n.º ..., a favor do seu pai GG, já falecido.

17. O arguido CC conhecia as características da arma de fogo que tinha consigo, e, não obstante, quis levá-la para a via pública, sabendo não ser possuidor de licença de uso e porte de arma, ou de qualquer autorização de autoridade legalmente competente para o efeito, mais sabendo que não a podia guardar, deter ou utilizar sem a correspondente licença.

18. O arguido CC mais agiu com o propósito, não concretizado, de que DD se afastasse daquele local público, querendo significar que o mataria, deixando-o com receio e medo da concretização de tal intento e limitando-o a sua liberdade de determinação pessoal,

19. Até porque o fez apontando-lhe a espingarda, anunciando-lhe que o mataria caso não saísse dali,

20. O que só não conseguiu concretizar por circunstâncias alheias à sua vontade.

21. Quis o arguido CC ao apontar aquela arma e ao proferir tais expressões significar que matava EE e o arguido AA, quando e logo que lhe fosse possível, o que fez com foros de seriedade, deixando-os com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de determinação pessoal.

22. O arguido CC conhecia os factos descritos e quis agir como agiu, de forma livre, consciente e voluntária,

23. Sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

Mais se provou que:

24. O arguido AA não tem antecedentes criminais registados no seu CRC [referencia eletrónica (…)1447].

25. O arguido CC não tem antecedentes criminais registados no seu CRC [referencia eletrónica (…)1448].

Com base nos relatórios sociais da DGRS:

26. CC trabalha na área da construção civil desde os seus 9 anos, como servente, área na qual sempre laborou,

27. Está desde 1983 na empresa onde trabalha atualmente.

28. O arguido declarou auferir mensalmente 760,00€ (setecentos e sessenta euros).

29. Para amortização do empréstimo bancário para aquisição de habitação despende mensalmente cerca de 371,07€ (trezentos e setenta e um euros e sete cêntimos).

30. A esposa, apesar de não exercer atividade profissional formal, no sentido de contribuir para um maior equilíbrio financeiro, realiza serviços domésticos em regime de economia informal, auferindo cerca de 150,00 € (cento e cinquenta euros) mensais de dividendos.

31. A filha, que aufere um salário de referência mínima nacional, muito embora coabite com os pais, tem uma vivência independente, ainda que regularmente ajude os pais com o pagamento de algumas contas.

32. O arguido insere aquele meio comunitário há cerca de 25 anos quando, juntamente com a sua mulher, adquiriu a fração onde reside.

33. Tratando-se de uma área residencial suburbana, as relações de vizinhança são, fundamentalmente, de cordialidade e de manifestação isenta de associações negativas à imagem dos elementos que a integram, à exceção de problemáticas vicinais associadas à vivência em condomínio.

34. O arguido referiu sentimentos de desconforto pela existência de um confronto com a administração da justiça penal, o que lhe suscita incómodo e preocupação.

35. CC não identificou qualquer repercussão negativa da atual situação jurídico-penal a nível de enquadramento familiar, social e profissional, à exceção do pessoal e psicológico.


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36. AA é originário de um núcleo familiar de humilde condição socioeconómica, sendo o único filho de um casal que desenvolvia as profissões de, respetivamente, cantoneiro e empregada de limpeza, ambos funcionários da Câmara Municipal ....

37. O padrão de funcionamento relacional e funcional intrafamiliar, embora coeso e solidário, foi marcado por problemas de saúde mental (esquizofrenia) evidenciados pela mãe do arguido, motivando que o seu acompanhamento educativo fosse protagonizado pelos avós.

38. Frequentou o sistema de ensino em idade própria, onde manifestou algumas dificuldades ao nível da aprendizagem, desinteresse e absentismo, causadoras de anos de insucesso escolar, tendo abandonado o sistema de ensino regular após a conclusão do 1º ciclo de escolaridade.

39. Posteriormente frequentou curso de formação profissional de restauração (mesa e bar) que lhe permitiu, por equivalência, a conclusão do 9º ano de escolaridade.

40. Iniciou exercício profissional aos dezassete anos prosseguido em Portugal e em Inglaterra, onde permaneceu cerca de quatro anos, trajetória laboral quase ininterrupta, mas diversificada, durante a qual desenvolveu, designadamente, funções como distribuidor de comida ao domicilio, operário fabril, comercial em empresas de telecomunicações e motorista na empresa A....

41. O arguido estabeleceu relacionamento em união de facto há cerca de dezoito anos, que perdura de forma estável e gratificante e do qual resultou o nascimento de uma filha.

42. Aquando da factualidade subjacente aos autos em referência, AA mantinha enquadramento sociofamiliar similar ao atual e desenvolvia atividade profissional na empresa B... como distribuidor de refeições ao domicilio.

43. O arguido integra o agregado familiar com a companheira, EE, de trinta e seis anos e a filha, de treze anos, com quem mantém relacionamento classificado como estável e solidário.

44. Residem, há cerca de cinco anos, em apartamento arrendado, com satisfatórias condições de conforto e habitabilidade, contíguo à habitação do coarguido, CC, situada em zona residencial pacata de características suburbanas do concelho de Matosinhos, sem indicadores de fenómenos de disfuncionamento social.

45. O arguido desenvolve atividade laboral como motorista de veiculo C..., em regime de prestação de serviços, para a empresa “D... Unipessoal, Lda”, sedeada na cidade do Porto, auferindo cerca de 1000,00 € (mil euros) líquidos mensais.

46. A companheira encontra-se desempregada, frequentando um curso profissional de gestão e marketing promovido pelo IEFP, auferindo cerca de 350,00 € (trezentos e cinquenta euros) por mês da respetiva bolsa de formação.

47. Os rendimentos familiares resultam desses proventos dos elementos do casal, motivando uma situação económica que definem como bastante restrita, fazendo face com dificuldade aos encargos fixos, dos quais avultam a renda de casa, no montante de 408,00€ (quatrocentos e oito euros) mensais e o ATL da filha, no valor de 130,00 € por mês (cento e trinta euros), para além das despesas correntes.

48. O arguido afirma ainda manter pendente divida à autoridade tributária, no montante aproximado de 25.000€ (vinte e cinco mil euros), encontrando-se a negociar com aquela entidade plano de pagamento.

49. Nos tempos livres, AA manifesta hábitos e rotinas de vida pacatos e caseiros, costumando passar o tempo livre em casa no convívio com familiares e por vezes no convívio com amigos do casal, parecendo manter junto dos elementos da comunidade vicinal relacionamento cordato, mas superficial, exceto com o coarguido e respetivo cônjuge, seus vizinhos mais próximos, com quem mantêm interação animosa prolongada.

3.1.2 - Quanto ao pedido de indemnização civil formulado por EE

50. A atitude do demandado CC, ao ameaçar a demandante e a sua família, criou nesta, sentimentos de medo e receio.

51. A demandante possui uma filha menor, que presenciou toda a situação, a qual ainda hoje evidencia sofrimento emocional e receio de que o vizinho mate o pai e a mãe.

52. O que leva a demandante a sentir-se impotente, com medo e revoltada.

53. Esta situação de insegurança e temor por si e pela sua família levou a que, até à data de hoje, não abandone a casa, ou entre dentro de casa sem estar acompanhada, ou sem sentir medo,

54. Sendo que procura uma nova habitação para si e para a sua família, o que ainda não ocorreu por dificuldades financeiras.

55. Sente, em diversos momentos, ansiedade e stress,

56. O que se refletiu na estabilidade da sua vida pessoal e profissional.

57. Levando a que a mesma já não possua o mesmo sentimento de segurança, liberdade, correção e paciência, para as situações do seu dia a dia.


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3.1.3 - Quanto ao pedido de indemnização civil formulado por AA contra o arguido CC:

58. O lesado é reputado como pessoa respeitadora e respeitado no seu meio, portador de uma sensibilidade e educação médias.

59. Sentiu-se, com a ameaça de que foi alvo e supra explicitada, amedrontado e receoso pela sua vida, pois temeu poder ser morto naquele momento pelo Arguido.

60. Sentiu receio da morte, no momento em que as ameaças foram feitas e estava com uma espingarda caçadeira apontada para si a escassos metros.

61. Esses momentos de medo continuaram quando viu que o arguido apontou a dita arma para a sua mulher e filha que estavam à janela de casa a presenciar tudo.

62. Tais sentimentos de receio perduraram durante dias, semanas e meses após os factos, temendo que o Arguido repetisse e sobretudo concretizasse a sua ameaça.


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3.1.4 - Quanto ao pedido de indemnização civil de BB

63. Da conduta perpetrada pelo arguido AA, resultaram não só as supra referidas lesões corporais melhor descritas no auto médico de fls. 151 relativamente à BB, mas também dores físicas que daí lhe advieram.

64. Ficou também com vergonha de sair de casa, devido ao ferimento no rosto, conforme melhor se poderá verificar pela fotografia de fls. 74.

65. A Assistente ficou deprimida e preocupada, com receio de voltar a ser agredida, tendo ficado com ansiedade.

66. Motivo pelo qual, volvido cerca de um mês da agressão em causa, teve necessidade de frequentar consultas de psiquiatria o que sucede ainda na presente data e “…desde Janeiro de 2021.” – cfr. doc . n.º 1;

67. Apresentando o diagnóstico de Patologia: “Stress pós-trauma crónico” – cfr. “Relatório Psiquiatria”, junto como Doc. nº 1.

68. Patologia que se reflete também em ter começado a padecer de ataques de pânico, tal como ainda sucedeu no dia 06.09.2021, logo após ter comparecido na PSP conforme estava notificada para: “…intervir em ato processual na qualidade de ofendida.” no âmbito dos presentes autos. – cfr. Doc. nº 2

69. A saúde mental da assistente foi abalada e ficou afetada pelo comportamento ilícito imputado ao arguido AA.

70. Comportamentos que foram consequência direta e necessária da conduta adotada pelo arguido, uma vez que atuou com vontade deliberada, livre e consciente, bem como com o propósito, concretizado, de com a sua atuação ofender o corpo e saúde da ofendida, tendo agido com o perfeito conhecimento do carácter ilícito e da punibilidade da conduta adotada.


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3.1.5 - Quanto ao pedido de indemnização formulado pelo assistente DD

71. Em consequência da ação do arguido CC acima descrita, o ofendido/assistente DD teve medo e temeu pela sua vida, receando que aquele fizesse algum disparo na sua cabeça.

72. O arguido com a prática dos factos supra referenciados, provocou no demandando/assistente sentimentos de medo e pânico, para além de perturbação, abalo moral e emocional.

73. Tais sentimentos refletiram-se na sua vida profissional e pessoal, porquanto o assistente passou por fases de ansiedade e nervosismo, sendo notório o seu desgaste físico e psicológico,

74. Após lhe ter sido apontada uma arma pronta a disparar à sua cabeça, o assistente passou a ter receio de sair de casa sozinho, de passear em espaços abertos sem a companhia de alguém ou de estar sozinho em algum local isolado, sentindo-se ansioso e com medo que lhe pudessem novamente apontar uma arma e até matá-lo.

75. Sendo que tais sentimentos foram consequência direta do trauma experienciado.

76. O assistente era prestador de serviços exclusivamente à empresa E..., Lda..

77. O assistente tem episódios esporádicos de recordação dos acontecimentos, sobretudo durante a noite, que o fazem ter pensamentos e sonhos perturbadores e o impedem de dormir com normalidade.

78. O demandante além de temer pela sua vida, sentiu-se injustiçado com a atuação do arguido e pela situação traumática que viveu, que em nada contribuiu para acontecer.

79. A demandante/assistente sempre foi uma pessoa de bem, respeitada no meio em que se insere.


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3.1.6 - Quanto ao pedido de indemnização do Centro de Saúde ..., EPE

80. O Hospital prestou assistência médica à ofendida BB, em virtude das lesões apresentadas e que foram consequência direta da atuação do arguido AA.

81. Os encargos devidos por essa assistência importam em € 98,21.


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3.2 - Matéria de facto não provada:

Não resultaram provados outros factos com relevo para a decisão da causa ou que estejam em contradição com os referidos supra.

Não se provou designadamente, que:

i) Desde a data dos fatos, a EE não tenha mais tido as persianas levantadas, unicamente deixa espaço entre elas para o ar circular, com receio do que o demandado possa concretizar a ameaça que efetuou.

ii) A ofendida BB tenha deixado por uns tempos de sair de casa, devido ao aspeto físico com que ficou, sem prejuízo do que demais se deu como provado.

iii) A ofendida BB seja pessoa calma, se prejuízo do que demais se deu como assente;

iv) O assistente DD tenha vivido os momentos mais terríveis da sua vida, sem prejuízo do que demais se deu como assente.

v) O desgaste sentido pelo assistente DD tenha sido percetível aos olhos dos seus colegas de trabalho, sem prejuízo do que demais se deu como assente;

vi) O assistente AA, após os factos, tenha deixado de ter condições para trabalhar, face ao abalo psicológico, sentindo medo e receio de se deslocar, e querendo ficar sempre em casa fechado, não conseguindo estar no mesmo espaço mais do que uma hora seguida, sem prejuízo do que demais se deu como assente quanto aos sentimentos de receio que se deram como provados.

vii) O arguido tenha ficado sem condições para prestar serviços para a empresa para a qual trabalhava, e que tal incapacidade tenha perdurado até novembro de 2021, sem prejuízo do que demais se deu como assente;

viii) O arguido CC tenha contribuído para as lesões apresentadas pela assistente BB.


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3.3 - Motivação da matéria de facto:

A convicção do Tribunal é sempre formada, para além dos dados objetivos obtidos através dos documentos ou outras provas constituídas/produzidas de carácter técnico/científico, também por declarações e depoimentos em função das razões de ciência, das certezas e ainda das suas lacunas, contradições, im/parcialidades, coincidências, coerências e quaisquer mais in/verosimilhanças que transpareçam – sempre em audiência. Dito de uma outra forma, o Tribunal estriba-se na análise - de forma livre crítica e conjugada - da prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o preceituado no art.º 127º C.P.P. Contudo, livre apreciação da prova não significa uma apreciação arbitrária, porquanto tem como pressupostos valorativos o respeito pelos critérios da experiência comum e da lógica padronizada do homem médio.

Partindo destes princípios e revertendo ao caso dos autos, o Tribunal atendeu:

- à prova documental, designadamente os autos de notícia fls. 3-4, 14-15, o Auto de apreensão fls. 18, o Relatório de visionamento de imagens e fixação de fotogramas fls. 28 a 39, a Fotografias fls. 74, o episódio de urgência hospitalar fls. 151, sendo que tal prova documental foi objeto de amplo contraditório no decurso da audiência de julgamento.

Foi ainda valorado o CD/DVD com imagens e a Informação NAE da PSP de fls. 198. Quanto à valoração das imagens, o arguido CC argumentou, em sede de contestação, que a sua utilização como meio de prova configura prova proibida, sendo que o arguido não prestou o seu consentimento para a utilização das filmagens. Considera, por isso, que tal vídeo não pode ser valorado como meio de prova, uma vez que, viola a regra da proibição de prova obtida sem o consentimento do respetivo titular, direito consagrado no art.º 126.º n.º 3 do CPP; sendo que, de todo o modo, não existiu despacho a validar a prova do vídeo junto, o que torna impossibilita a utilização desta prova, sob pena de nulidade.

Este registo foi usado pelos assistentes, tendo sido junto aos autos ainda no decurso no inquérito e a sua reprodução foi repetida várias vezes no decurso da audiência. Importa sublinhar que tal registo foi deliberadamente efetuado pela assistente EE, com o intuito de recolher prova do crime de que estava a ser vítima a própria, o companheiro AA e o DD.

Ora, o primeiro aspeto a reter é que não existe regulamentação que decorra de norma processual penal, neste tipo de situações, remetendo o legislador para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal, no caso de violação do direito fundamental à privacidade, como decorre do disposto no artigo 167.º, n.º 1, do Código Processo Penal1.

1 Neste sentido, Santos Cabral, in Código Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, comentário ao artigo 167.º, p. 701; cfr. também Acórdão da Relação do Porto de 03-12-2010, proc. 371/06.5GBVNF.P1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. 2 - perfilha-se o entendimento vertido no Acórdão do STJ de 28-09-2011 e Código Processo Penal Comentado, página 705, «(…) o comportamento ilícito do titular do direito à palavra e imagem no uso da mesma determina a perda da dignidade penal da ofensa do referido direito e isto, desde logo, porque no caso concreto o mesmo não merece proteção. (…) Não se vislumbra qual a razão pela qual a protecção da vitima e a eficiência da justiça penal tenham de ser postergadas pela protecção da palavra e de imagem que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata. A protecção acaba quando aquilo que se protege consubstancia a prática de um crime». ].

O que significa que a prova resultante da recolha efetuada fica, nestes casos, dependente da sua não ilicitude perante a legislação penal. No caso dos autos, não se vislumbra a existência de qualquer conduta criminosa da assistente EE na obtenção da prova – registo de imagem e som do comportamento do arguido CC. O arguido CC sabia que ao proferir as expressões que dirigiu ao assistente DD e ao empunhar uma arma em direção aos três assistentes, ameaçando que o mataria, praticava comportamentos criminosos. A assistente limitou-se ao proceder ao seu registo, o que o arguido percebeu e não foi suficiente para fazer cessar a sua conduta criminosa.

É certo que existe uma norma incriminadora correspondente ao artigo 199.º do Código Penal, onde se tutela o direito à palavra, contra a sua gravação e reprodução sem o consentimento do visado. No entanto, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras de imagens e som efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio. Ora, no caso dos autos, a gravação que a assistente reproduziu em audiência, enquanto complemento das declarações que prestou, documenta as expressões do arguido, que tiveram como destinatários os assistentes, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido CC, subsumível aos crimes de detenção ilegal de arma, coação agravada, na forma tentada, e ameaça agravada. 2

Significa isto que, perante as circunstâncias apuradas, afigura-se justificada o registo do som e imagem levada a cabo pela assistente, sem o consentimento do autor daqueles ilícitos criminais, pois que, como considerou o STJ «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime», sendo ainda de considerar, quando por meio da gravação é cometido o crime, como sucede no caso dos autos, a verificação de legítima defesa como excludente da ilicitude da gravação.

Sufragando-se este entendimento, e não sendo possível concluir pelo cometimento por parte da assistente de um crime mediante o registo de som e imagem do arguido, não subsiste razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação3.

3 cfr. por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2016, disponível no site www.dgsi.pt

Já quanto à prova menos objetiva – declarações dos arguidos e depoimentos testemunhais, a mesma foi transversalmente marcada pela hostilidade latente resultante dos conflitos de vizinhança pré-existentes.

Os arguidos prestaram declarações, tendo sido determinada a sua audição em separado.

Assim, o arguido AA prestou declarações, tendo negado ter agredido a assistente BB, admitindo apenas que houve uma troca de palavras, sem que, contudo, a tenha atingido fisicamente.

Confrontado com a fotografia constante dos autos do rosto da assistente (fls. 74), manteve que não houve qualquer agressão, o que justificou com uma dupla motivação: i) a circunstância de a filha estar a assistir à janela e ii) o fato de a sua profissão (motorista C...) implicar um CRC sem registo de antecedentes. Entretanto, explicou que o CC apareceu com a arma, mas apenas por causa da discussão e não porque a esposa tivesse sido agredida. O arguido também referiu que residem ambos no R/C, um do lado direito e outro do lado esquerdo, há cerca de 5 anos, o que tem potenciado os conflitos existentes. Acrescentou que viu o arguido CC com uma arma – uma espingarda, dizendo que o ia matar, pelo que ficou receoso pela sua vida. Concretizou, ainda, as palavras do arguido quando o ameaçou de morte, dizendo que iria para a cadeia, mas que o arguido ia para o cemitério. Mais referiu que a sua esposa EE filmou parcialmente a situação, mas o Sr. CC apercebeu-se e também a ameaçou de morte, dizendo-lhe que aproveitava e lhe estourava os miolos. Por último, referiu o arguido que o CC também ameaçou o DD, apontando-lhe a arma à cabeça, a cerca de 3 metros de distância, dizendo-lhe que se não abandonasse o local “lhe dava um tiro nos cornos” (sic). filha menor presenciou tudo isto e ficou muito assustada.

Quanto à motivação para o desentendimento, o arguido admitiu ter-se tratado de uma questão relacionada com o estacionamento de viaturas.

O arguido foi ainda confrontado com os fotogramas de um vídeo. Quanto ao impacto da situação, referiu que teve medo sincero que o arguido CC o matasse e que, por outro lado, a sua esposa ficou muito assustada, passando a ter receio de sair desacompanhada, mesmo para passear o cão, ou ir colocar o lixo. É certo que o arguido descreveu a dinâmica factual de forma escorreita e clara, mas pareceu defensivo na parte que lhe dizia respeito, sustentando que apenas houve uma troca de palavras entre si e a assistente BB. Ora, uma mera troca de palavras não despoletaria uma reação tão exacerbada como a do arguido CC.

É certo que a sua versão foi corroborada pelas declarações do assistente DD, o qual, no entanto, está colocado do seu lado na dicotomia de versões apresentada no decurso da audiência. Por outro lado, a defesa procurou enfatizar que não seria possível ao arguido - que tem 1, 86 cm - dar uma cabeçada na bochecha da assistente BB, que tem pouco mais de 1,50 cm. No entanto, não se afigura que tal fosse tão difícil, até ponderando a diferença etária existente, sendo maior a elasticidade e dinamismo de movimentos do arguido.

Por outro lado, o Tribunal não pode olvidar que a versão da assistente está corroborada pela fotografia junta e, sobretudo, pela ficha clínica (fls. 151) e pelo relatório médico legal, que encerra um juízo pericial que cujos fundamentos são coesos e concordantes com essa mesma versão.

Por sua vez, o ARGUIDO CC começou por salientar a hostilidade pré-existente, remontando os problemas ao início da convivência vicinal.

Quanto aos fatos, referiu que no dia anterior - em concreto no dia 18.12.2020 - o DD estacionou em frente ao portão da garagem e a esposa chamou as autoridades e foi ameaçada pelo AA. Já no dia 19.12.2020, estava a descansar porque tinha tido um acidente de trabalho em 2019 e tinha a persiana entreaberta e ouviu uma grande discussão que envolveu a EE, o AA e a sua esposa, que estava ao telefone com um familiar.

Espreitou pela janela e viu o AA com a cabeça encostada à da esposa, estando também presente o DD, pelo que resolveu sair de casa com a arma, que não estava carregada. O arguido confessou, assim, a posse da arma, que reconheceu como errada, admitindo que pode ter dito expressões ameaçadoras ao AA. No entanto, negou ter apontado a arma à EE, ou ao DD. Quanto à origem da arma, explicou que a mesma pertencia ao pai, estando na sua posse há cerca de 40 anos. O arguido também reconheceu saber que não tinha licença de uso e porte de arma. Mais sustentou que a esposa ficou com um hematoma no lábio direito, sendo que afirmou ter visto a cabeça do AA encostada à da esposa, mas não viu a cabeçada. No entanto, asseverou que a mesma ficou ferida, e que, por causa do COVID, a esposa decidiu não ir ao Hospital no dia, mas foi no dia seguinte. A esposa ficou afetada com a situação, sendo seguida em psiquiatria, tendo passado a sofrer de ataques de pânico, necessitando de estar medicada.

Assim, o arguido acabou por admitir que o que o fez ir buscar uma arma foi o fato de ter visto que o AA, acompanhado do DD, estava a discutir com a BB, alegando que teve receio de ser agredido. Admitiu, assim, que o seu objetivo ao levar a arma consigo foi intimidar, tanto mais que tem a arma consigo há cerca de 40 anos e esta nunca teve munições. Segundo o arguido, o Sr. AA não ficou muito intimidado, mantendo-se no local. Também negou ter apontado a arma, designadamente à EE, que estava na janela da respetiva habitação. Confrontado com a fotografia de fls. 74, confirmou ter sido esse o estado em que ficou a esposa. Foi ainda confrontado com os fotogramas de fls. 30 e ss. e 37 e ss.

Foi notório que prestou declarações de forma igualmente defensiva, admitindo a posse da arma (o que também estaria sempre comprovado por força da apreensão ocorrida nos autos), e o recurso a palavras ameaçadoras que dirigiu ao arguido AA.

No entanto, negou ter dirigido qualquer palavra, ou ter apontado a arma aos assistentes DD e EE, tendo aparentemente pretendido trazer aos autos uma versão menos agressiva de si próprio, admitindo apenas o comportamento que teve para com o arguido AA.

Por sua vez, a assistente EE, relatou que no dia 19.12.2020 quando se encontrava nas escadas na presença do DD, a D. BB começou a discutir e a dirigir-lhe palavras injuriosas, pelo que decidiu entrar em casa com a filha que, à data.

A certa altura, porém, a filha chamou da janela, dizendo que o vizinho estava com uma arma apontada ao pai, o que verificou ser verdade. Por essa razão, decidiu filmar o sucedido. Viu o Sr. CC com a arma apontada ao AA, tinha um carro a separar os dois. O AA ficou estático junto à viatura, pareceu-lhe que estava cheio de medo. O DD, por sua vez, estava perto da carrinha. A certa altura, o arguido CC também lhe apontou a arma para si e disse “estás a olhar, aproveito e também vais tu para o caralho!”. Perguntada, garantiu não ter qualquer dúvida q o Sr. CC lhe apontou a arma. Já as palavras que dirigiu ao DD admitiu que não as ouviu.

A assistente relatou que o arguido ficou emocionado e se agarrou à filha a chorar, tendo andado cabisbaixo, calado, com receio das repercussões na menor. Também referiu, Mm ficando sem arma pode arranjar outra. Vive com medo. Também a assistente foi confrontada com as imagens disponíveis nos autos, tendo situado nas mesmas a dinâmica fatual que narrou.

Prestou declarações de forma emotiva, evidenciando clara perturbação perante o sucedido, o que permitiu credibilizar as mesmas.

Por sua vez, a assistente HH, esposa do arguido CC, explicou que no dia 19.12. 2020 saiu de casa para ir à garagem, encontrando-se a falar ao telemóvel, quando foi abordada pela assistente EE, que estava acompanhada pelo DD, encontrando-se ambos junto às escadas. Percebeu que a EE começou a discutir por pensar que estava novamente a chamar a polícia, por causa do estacionamento de uma viatura (como sucedera no dia anterior), e então apercebeu-se da presença do arguido AA, que atravessou a rua, aproximou-se na sua direção e enquanto trocavam palavras, deu-lhe uma cabeçada, que a atingiu na face direita. Logo de seguida, apareceu o DD, que agarrou o AA e disse “eu estou aqui, ninguém bate em ninguém”(sic). Segundo a assistente, houve vizinhos q presenciaram. A assistente teve um discurso fluído até este momento temporal, coincidente com o aparecimento do marido, altura em que, curiosamente, declarou ter ficado atordoada, tendo o discurso perdido loquacidade. Assim, referiu que o marido “apareceu de repente”(sic), com uma arma, ressalvando que a mesma não tinha munições, e que o objetivo foi assustar o Sr. AA. Interpelada a respeito das palavras que terão sido proferidas pelo marido, afirmou não se recordar. A assistente admitiu ainda que a arma não estava legalizada, sublinhando que não era habitual pegar nela. Quanto à motivação para os fatos, a assistente referiu-se à existência de conflitos prévios, tendo também feito alusão ao incidente do dia anterior, admitindo que chamaram a polícia por causa do estacionamento de uma viatura em local proibido. No mais, relatou que ficou traumatizada, que já não é a mesma pessoa, não tem vontade de sair de casa e tem medo de sair. Tem medo de chamar a atenção e ser agredida. Passou a ter acompanhamento psiquiátrico, atualmente com regularidade mensal e tem pensamentos suicidas. Explicou também que o nível conflituosidade se tornou tao desgastante que apenas não muda de casa por razões financeiras, vivendo naquele prédio há 24 anos. Confrontada com fls. 74 (fotografias do rosto) referiu que ficou com a cara pisada, tendo vergonha de sair de casa. Foi lançada suspeita sobre a circunstância de tendo referido que as fotografias foram tiradas no mesmo dia da agressão seria expetável não apresentar ainda hematoma. No entanto, o relatório médico legal não suscitou dúvidas quanto ao nexo de causalidade entre o evento relatado a as lesões potencialmente apresentadas, sendo certo que haverá múltiplos fatores a intervir nesse processo de sedimentação da mazela, não se afigurando que o alegado pela defesa possa ser demonstrado de forma inequívoca.

A versão da assistente, embora parcialmente convincente, pareceu ao Tribunal algo exagerada, tanto mais que o domínio da situação foi claramente de CC, marido da mesma. É certo que o mesmo teria a arma descarregada, mas tal circunstância era desconhecida dos assistentes, sendo perfeitamente legítimo que o grau de receio e de perturbação dos assistentes DD, EE e AA seja superior ao sentido pela assistente BB.

Esta interpretação do Tribunal também se repercutiu ao nível do pedido de indemnização civil, como se verá melhor infra.

Por sua vez, o assistente DD, filho do companheiro da mãe da assistente EE começou por dizer que esta é como se fosse sua irmã, deslocando-se a casa desta com frequência. No dia 19.12.2020 deslocou-se a casa da EE e encontraram-se cá fora, no exterior do prédio, e viram a assistente BB junto ao portão e, a certa altura, esta começou a insultar a EE. Inicialmente dirigiu-se com a EE para dentro de casa. Mas voltou a sair para dizer ao AA que estava ao pé do carro, sendo que a D. BB continuava junto ao portão, estando o carro do AA a cerca de 2, 3 metros e continuando este fora da viatura. O AA aproximou-se do portão e continuaram a discutir e a trocar insultos. Estava de costas para o prédio, mas ouviu gritos atrás de si e viu o marido da BB a injuriá-lo e a apontar uma arma, pensa que uma caçadeira, a cerca de metro e meio. A primeira pessoa a quem apontou a arma foi a si, o que o deixou bloqueado durante algum tempo. Logo após, foi à carrinha pegar no telemóvel a ligar para a PSP. Entretanto, o CC apontou a arma ao AA, disse qualquer coisa como que “ia para a cadeia, mas ele ia para o cemitério” (sic). Logo após, a D. BB a reparou que a EE estava a filmar e então o CC pegou na arma e também apontou à janela (à EE). O assistente também confirmou que no dia anterior tinha deixado a carrinha junto ao portão, tendo o CC e BB chamado a policia, na sequência do que acabou por ser multado.

Interpelado, o assistente asseverou ter a certeza de que não houve qualquer interação física entre o AA e a BB, estando o AA muito calmo. Quanto às palavras que o arguido CC lhe terá dirigido a si, concretizou-as, com segurança: “vai-te embora, corno, senão eu mato-te, tu não és daqui.”

Por fim, o assistente acrescentou que o AA ficou apavorado no próprio dia e nos dias seguintes. Por sua vez e no que lhe diz respeito, esteve muito tempo sem voltar a casa deles por receio.

Argumentou o assistente que deixou de trabalhar uns tempos e embora não tenha recorrido a apoio psicológico, tinha dificuldades em adormecer e andava sempre cansado.

Muito embora, conforme já exposto, se reconheça que a exibição de uma espingarda aos aqui assistentes pelo arguido CC tenha a potencialidade de gerar o pânico, afigura-se que o mesmo foi muito mais intenso relativamente aos assistentes AA e EE, vizinhos do arguido e que tiveram de continuar a viver com a proximidade vicinal do arguido CC. Tal já não se aplica, porém, ao assistente DD, cujo maior distanciamento da situação justificará um menor impacto emocional da mesma e daí que quer o valor do pedido de indemnização civil, quer alguns dos argumentos invocados pelo mesmo tenham parecido demasiado hiperbolizados ao Tribunal, legitimando que os mesmos fossem dados como não provados.

Foi inquirido como testemunha FF, agente da PSP, que explicou ter tido intervenção no registo da ocorrência. Deslocou-se por causa de uma ameaça com uma arma de fogo, no contexto de um desentendimento entre vizinhos, tendo identificado os envolvidos. Falaram com o arguido CC que confessou ter a arma na sua posse e que só usou para pôr termo ao desentendimento. A D. BB relatou ter sido agredida por um dos intervenientes, pelo que fez referencia a isso no auto de notícia. A arma não tinha munições, e era muito antiga, tendo, no entanto, ressalvado que o arguido CC teve uma postura colaborante.

II relatou que o seu filho DD ficou transtornado com os acontecimentos a que foi sujeito, tendo alterado o seu comportamento, porquanto, não queria sair de casa e chegou a ter que o ir buscar a casa para ir trabalhar, mais do que uma vez. A testemunha admitiu que o assistente também foi afetado pelo termo da sociedade que constituíra, mas asseverou que as duas situações não foram concomitantes. Para reforçar o seu depoimento, acrescentou que à data dos fatos trabalhava na mesma empresa e teve a perceção dessa mudança de comportamento.

JJ foi inquirido como testemunha (abonatória) do arguido CC, tendo referido ser sócio de uma da empresa em que o CC é funcionário, conhecendo-o, a nível profissional e pessoal há cerca de 30 anos.

Declarou ter contato direto e quase diário com ele, tendo relatado que o mesmo tem tido um comportamento exemplar, sendo pessoa respeitada e respeitadora. É um bom trabalhador, sério, pelo que qualquer fato ilícito que possa ter cometido deve ter constituído uma atitude irrefletida da sua parte.

Revelou um conhecimento sedimentado a respeito das qualidades pessoais e de trabalho do arguido, nada sabendo, porém, quanto aos fatos em apreço nos autos, pelo que o seu depoimento foi valorado apenas a propósito das qualidades pessoais do arguido.

Foi ainda inquirida KK, que referiu conhecer o arguido CC por trabalhar na mesma empresa (F..., Lda), reputando-o como pessoa integra e respeitadora, que sempre manteve boa relação com os outros trabalhadores.

Por último, LL, também esclareceu conhecer o arguido CC por ser colega de trabalho, sendo também seu cunhado, tendo descrito o mesmo como trabalhador e educado.

A situação social e económica dos arguidos provou-se com base nas declarações dos próprios, que se afiguraram medianamente verosímeis nessa parte.

A ausência de antecedentes criminais provou-se com base na análise dos CRC´s juntos aos autos.
Já no que concerne aos pedidos de indemnização civil, a prova fez-se com base nas declarações prestadas pelos próprios assistentes, embora nessa parte tenha sido manifesto algum exagero, cuja ilação nesse sentido, justificou a matéria que acabou por ser dada como não provada.»


*

Vejamos.

As considerações a propósito do erro de julgamento, existência de vícios e in dúbio pro reo são extensivas a ambos os recursos.

Recurso de AA.

O Recorrente considera que os factos descritos sob os números 3, 11, 12, 13 e 14 da matéria de facto provada deveriam ter sido julgados como não provados, alegando o Recorrente que: “A convicção do tribunal a quo assentou apenas no episódio hospitalar que ficou registado numa ficha clínica da Unidade de Saúde Local ... EPE, uma fotografia junta ao processo pela assistente BB e um relatório médico-legal o que, por sua vez, apenas prova o nexo de causalidade e não a autoria do crime. (…)

Apenas foi produzida prova no sentido de que o Sr. AA teve uma discussão acesa com a vizinha negando este, por diversas vezes, a autoria da agressão nas suas declarações, ver transcrições supra referidas e que se reiteram.

VII. O que temos in caso é a palavra do sr. AA contra a palavra da assistente, a sra. BB, relativamente a autoria da agressão o que não pode servir como base para uma condenação”.

E a este respeito importa frisar que o recorrente teria que ter indicado, cumprindo o disposto no art, 412º, n º 3 do CPP, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, não bastando a menção generalizada daquilo que disseram testemunhas e arguido.

O julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique, já que, na esteira do afirmado por Bacon, os depoimentos não se contam, pesam-se.

A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…) valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].

Pelo que, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação.

Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, insuficiente ou de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar: - o Tribunal.

A decisão da matéria de facto – com a qual o recorrente expressa forte dissídio – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:

- Por verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);

- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).

No primeiro caso, o substrato para a verificação do(s) vício(s) deverá colher-se no texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos (designadamente probatórios) concretizando-se na (i) insuficiência dos factos provados para suportar a correlativa decisão de direito (o que não pode confundir-se com uma putativa insuficiência das provas para alicerçar a decisão de facto), na (ii) contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão (entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma) e (iii) o erro notório na apreciação da prova (ante o padrão do homem médio e evidente a partir do escrutínio do texto da decisão) (cfr. art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), vício que, neste contexto, não se verifica quando a fonte da discordância resultar, tão só, da não conformação com a versão acolhida pelo Tribunal que, aos olhos do recorrente, deveria ter sido distinta.

No segundo caso e evidenciado no caso sub judice – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção dos julgadores sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.

Porém, ainda assim e nesta última hipótese, não se tratará, aqui, de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e imediação. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.

O juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P. Ou seja, sempre que qualquer recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.

Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de um novo julgamento, já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua. Por isso, antes se impõe ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal]. A propósito veja-se ac. desta Relação do Porto proc.º 277/19.8GBETR. P1.

Importa referir desde logo que não vislumbramos que tenha ocorrido algum vício no texto da sentença e nomeadamente, o disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) “erro notório na apreciação da prova”. Contudo, como começamos por referir, tal vício, ainda que seja de conhecimento oficioso, pressupõe que o mesmo se torne evidente a partir do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos externos (o que, no caso, não sucede, já que o pretenso erro não é evidente, de per se, mas resultaria da forma como o Tribunal, na ótica do recorrente, deveria ter interpretado a prova disponível, chamando à colação segmentos dos depoimentos prestados).

Ora, vista a fundamentação, do seu teor não se alcança, na evidência pressuposta, qualquer insuficiência, contradição ou erro.

Como já afirmámos, no caso da impugnação ampla da matéria de facto resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.

As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que o Tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Ou seja, para alcançar sucesso na sua pretensão, não basta estar demonstrada pelo recorrente a possibilidade de existir uma solução, em termos de matéria de facto, alternativa à fixada pelo Tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.

E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[2]:

«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».

II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.

Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[3]:

«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.

II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, passemos à análise em concreto da impugnação ampla da matéria de facto apresentada pelo recorrente.

Ora, o que o Recorrente põe em causa é a forma como foi formada a convicção do Tribunal, a qual passa sempre por uma ponderação da prova na sua globalidade.

Esta convicção não se confunde com a impressão, ideia ou juízo pessoal, profundamente arbitrário uma vez que tem por base as convicções de cada um, os pré-conceitos, as experiências e estruturas cognitivas individuais. Esta convicção é aquela que resulta da análise objetiva dos meios de prova, tendo por base um juízo de normalidade das coisas. Funda-se nas regras da experiência que são comuns à generalidade das pessoas, e na forma como habitualmente os acontecimentos são causais uns dos outros. Este raciocínio lógico e objetivo de apreciação dos factos é depois vertido na motivação da decisão, permitindo assim a reconstituição do processo decisório e a sindicância das decisões.

Contudo, o recurso sobre a matéria de facto não funciona como um segundo julgamento. Não cabe nas incumbências do Tribunal da Relação fazer novo julgamento sobre a matéria de facto, tendo somente por base as gravações dos depoimentos das testemunhas inquiridas. As gravações áudio das audiências, não têm a virtualidade de substituir o imediatismo que apenas é garantido ao Juiz a quo, nem o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127.º do C.P.P., pode ser posto em causa quando o Juiz na presença de duas versões antagónicas dos mesmos factos credibiliza uma delas em detrimento da outra.

Este só pode fazer uso do poder de alteração da decisão de facto, quando resulte inequivocamente da gravação dos depoimentos e demais prova que a decisão não tem suporte no que foi dito pelas testemunhas ou consta de documentos, ou que da apreciação da prova na sua globalidade impõe necessariamente uma decisão distinta.

Não é esse o caso do presente processo, estando a factualidade provada perfeitamente estribada na prova testemunhal produzida, mas não só.

Com efeito, relativamente ao crime de ofensa à integridade física de que foi vítima HH, na audiência de discussão e julgamento do presente processo foram apresentadas duas versões contraditórias dos factos, uma narrada pela Assistente HH e outra pelo arguido AA.

Pela forma como os depoimentos foram prestados, a Meritíssima Juíza a quo considerou sincero, nesta parte, o depoimento da ofendida Assistente HH, porque se harmonizou com outros elementos probatórios que o credibilizaram.

Tais declarações foram convergentes e coerentes, estando alinhadas com a decisão sobre a matéria de facto plasmada na sentença.

Relativamente ao depoimento do arguido AA o Tribunal não lhe foi conferida especial credibilidade neste particular que permitisse colocar em causa a versão dos factos narrada pela assistente.

Com efeito, o arguido AA admitiu ter discutido com a Assistente HH por questões de vizinhança, mas negou ter atingido fisicamente a mesma. Contudo, admitindo que as discussões com os vizinhos eram recorrentes, não deu qualquer explicação para a circunstância de, apenas neste caso concreto, o arguido CC ter saído da sua residência empunhando uma espingarda, em defesa da sua esposa e aqui Assistente HH.

Em acréscimo, no dia dos factos, a Assistente HH relatou ao agente da PSP que se deslocou ao local dos factos que havia sido atingida fisicamente pelo arguido AA (vejam-se as declarações da testemunha policial FF), circunstância que foi descrita no auto de notícia que deu origem a estes autos.

Por outro lado, encontra-se junta aos autos uma fotografia da Assistente HH exibindo lesões na face, precisamente no local onde afirmou ser atingida pelo arguido AA, e nos registos clínicos do Hospital ..., elaborados na sequência do atendimento da mesma pode ler-se: “Refere ser vítima de agressão por vizinho com a cabeça na face há cerca de 18 horas. Vem por dor e edema na face à direita e cefaleia associada. Nega queda. Nega TCE ou PDC.”

(…) “Apresenta escoriações malar à direita com ligeiro edema. Sem crepitações a palpação,”

Sufragamos por isso, na íntegra, a apreciação dos referidos depoimentos feita pela Meritíssima Juíza a quo, relativamente à credibilidade e pertinência dos mesmos, tanto mais que a versão dos factos descrita pela Assistente HH mostrou-se nesta parte coerente, concisa, circunstanciada, limitando-se a descrever factos sem os empolar ou exagerar nas suas consequências.

Do depoimento da Assistente HH conjugado com o do arguido CC, que admitiu ter visto a cabeça do Recorrente encostada ao rosto da sua esposa (apesar de não ter visto o concreto momento em que foi atingida) e demais elementos documentais juntos aos autos, não resultou qualquer dúvida que impusesse a absolvição do Recorrente ao abrigo do in dubio pro reo.

Deste modo, o Tribunal a quo decidiu de forma correta a factualidade em causa, sendo perfeitamente defensável, lógica e coerente a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, conforme resulta dos depoimentos prestados (considerados na sua globalidade) e da motivação da factualidade provada.

Da violação do princípio in dubio pro reo

O princípio in dubio pro reo é um princípio estruturante do processo penal, decorrência da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente e que, na aplicação prática, constitui limite exógeno à liberdade de apreciação da prova.

Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objeto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação, através de uma atividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve ser sempre precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.

Sendo esse princípio uma norma diretamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.ºs 32.º, n.º 2 e 18º, n.º 1 da C.R.P.), reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.

Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao ato de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação, porquanto o arguido se presume inocente. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida razoável, deve absolver o arguido por falta de provas.

Como bem sustentou Cavaleiro Ferreira, “Em processo penal, a justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição de um culpado e nunca o de condenação de um inocente” [Cfr. Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa, 1986, pág. 216.].

Concluindo e utilizando uma fórmula consagrada, da autoria do Professor Figueiredo Dias, pode dizer-se que “(...) um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido” [Cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, 1974] – pois a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção de inocência.
Note-se, em todo o caso, que a dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo que houve, a montante, todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do princípio.

Revertendo ao caso em apreço.

Efetivamente e lida a fundamentação exarada pelo Tribunal a quo, não foi a entidade decisora assaltada, no percurso, por qualquer dúvida e, muito menos, que esta fosse razoável ou insanável. O Tribunal obteve a certeza dos factos que afirmou, em raciocínio motivado, pelo que não subsistindo quaisquer dúvidas, inexistia, outrossim, qualquer razão, porque desprovida de objeto, para resolvê-las a favor do arguido. O que na prática se verifica é que o recorrente, em face da valoração que subjetivamente fez da prova, entende que, ante o seu próprio convencimento, o Tribunal deveria ter tido dúvidas.Mas não teve, nem se notaram supra razões para que se questionasse a valoração que efetuou.

O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe nem se aponta que, em face da argumentação utilizada, devesse ter existido.


*

Recurso de CC.

Nulidade da constituição como arguido.

Afirma o Recorrente que se verifica uma nulidade relacionada com a circunstância de não ter sido atempadamente validada a sua constituição como arguido, tanto mais que no despacho proferido pelo MP em 13.09.2021, a validação se reporta à BB (assistente).

Sobre esta matéria o tribunal a quo pronunciou-se, afirmando “Vem o arguido CC suscitar, na sua contestação, uma nulidade relacionada com a circunstância de não ter sido atempadamente validada a sua constituição como arguido, tanto mais que no despacho proferido pelo MP em 13.09.2021, a validação se reporta à BB (assistente).

Ora, muito embora da concatenação do despacho aludido com os elementos do processo resulte evidenciado que a menção à assistente configurou mero lapso de escrita (sendo inequívoco, para além de qualquer dúvida razoável) que se pretendia validar a constituição como arguido de CC – principal suspeito dos autos – cumpre avaliar se se verifica, efetivamente, a nulidade invocada.

Determina o artigo 58.° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "Constituição de arguido", o seguinte:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal,

b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coação ou de garantia patrimonial,·

c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254 a 261; ou d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.

2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61º que por essa razão passam a caber-lhe.

3 - A constituição de arguido feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias.

4 - A constituição de arguido implica a entrega, sempre que possível no próprio ato, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.

5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.

A constituição de arguido é o ato, a partir do qual, determinada pessoa assume a qualidade processual de arguido, adquirindo como tal o conjunto de direitos e deveres inerentes à sua condição.

Como resulta cristalino da análise do preceito, a falta de validação da constituição do arguido como tal não implica qualquer nulidade processual, mas apenas que as declarações eventualmente proferidas pelo arguido não possam ser valoradas como prova.

Do compulso dos autos verifica-se que a constituição como arguido de CC foi efetuada por órgão de polícia criminal, logo no dia dos fatos, e apenas foi objeto de validação pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 58.°, n.º2, do Código de Processo Penal em 13.09.2021, ainda que com lapso evidente quanto à identificação da pessoo arguido. Este lapso manifesto não pode ter outro efeito que não seja o de admitir retificação, nos termos do art.º 249.º do CC, por se tratar de realidade evidente e corroborada por todos os elementos do processo.

Parece certo que quando a constituição de arguido é efetuada por OPC, este ato não é definitivo, estando dependente de uma condição resolutiva, nomeadamente, a validação pelo MP. Ao contrário, a constituição de arguido - quando efetuada por Autoridade Judiciária - torna-se definitiva, não necessitando de qualquer validação. Neste sentido, veja-se ALVES, Glória, Sobre as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto: notas sobre a fase de inquérito. Lusíada, Direito, Lisboa, 2008, p. 27, apud http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/2202/4/md_andreia_tavares_dissertacao.pdf “O juízo de suspeita fundada obriga a um juízo de valoração da prova recolhida, pelo que a mera denúncia por si só não admite a constituição de arguido, carecendo agora de uma atividade de confirmação da sua verosimilhança. É este juízo valorativo que cabe ao MP e não às polícias e assim [...] impõe-se que seja o MP a validar as constituições de arguido operadas por outras entidades.”

No caso dos autos, porém, afigurando-se ter ocorrido evidente lapso de escrita, que o arguido não suscitou aquando do seu interrogatório, afigura-se que não foi violada qualquer formalidade essencial à validade do ato de constituição de arguido

E assim, não se verificando a omissão de qualquer formalidade essencial relativamente ao ato de constituição de arguido, sublinhando-se, como já referido, que a omissão da validação acarretaria tão só as consequências previstas nos n.ºs5 do supra transcrito artigo 58º isto é, as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

Quer isto dizer que a violação dessa formalidade não tem cabimento na previsão do artigo 119.° do CPP e, mesmo que se entendesse que se trata de uma nulidade prevista no artigo 120.°, n.º 2., al. d) do mesmo diploma legal, a mesma foi invocada extemporaneamente, conforme assim o determina o n.º3, alínea c), do referido normativo legal.

Face ao exposto, improcede a invocada preterição da formalidade.”

Ora, o Recorrente foi constituído como arguido pela PSP em 19/12/2020, tendo tal OPC remetido o expediente para validação da constituição de arguido aos serviços do M.P. no dia 21/12/2020.

É um facto que a constituição do Recorrente como arguido não foi validada dentro do prazo previsto no art. 58.º, n.º 3 do C.P.P.

Porém, a consequência da inobservância de tal norma processual não é a nulidade, mas antes uma mera irregularidade, como resulta do previsto no art. 58.º, n.º 5 e 6 do C.P.P.:

“5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.”

Sendo certo que o nº 5 se refere à prova produzida em inquérito.

E nos termos do art 123º do CPP deveria ter sido invocada no próprio ato ou nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado e tal não ocorreu, não obstante ter sofrido anteriores notificações, v. g. notificação de fls. 139 para se pronunciar quanto ao pedido de constituição de assistente, datada de 10.12.21, notificação do teor da acusação datada de 30.08.22 e ocorridas em data muito anterior à apresentação da contestação onde suscitou a questão em 06.02.23.

Pelo exposto, mostra-se sanada a irregularidade em causa, inexistindo qualquer nulidade.

Nulidade de meio de prova- Nulidade da prova recolhida por violação do direito à imagem.

Afirma também o Recorrente que o vídeo indicado como prova e visionado na audiência de discussão e julgamento “não pode ser valorado como meio de prova, uma vez que, viola a regra da proibição de prova obtida sem o consentimento do respetivo titular, direito consagrado no art.º 126.º n.º 3 do CPP e mais inexiste nos autos despacho a validar a prova do vídeo junto, o que torna impossibilita a utilização desta prova, sendo uma nulidade também invocada.”

Sobre esta matéria, também o tribunal a quo se pronunciou dizendo na sua motivação:

“Partindo destes princípios e revertendo ao caso dos autos, o Tribunal atendeu:

- à prova documental, designadamente os autos de notícia fls. 3-4, 14-15, o Auto de apreensão fls. 18, o Relatório de visionamento de imagens e fixação de fotogramas fls. 28 a 39, a Fotografias fls. 74, o episódio de urgência hospitalar fls. 151, sendo que tal prova documental foi objeto de amplo contraditório no decurso da audiência de julgamento.

Foi ainda valorado o CD/DVD com imagens e a Informação NAE da PSP de fls. 198. Quanto à valoração das imagens, o arguido CC argumentou, em sede de contestação, que a sua utilização como meio de prova configura prova proibida, sendo que o arguido não prestou o seu consentimento para a utilização das filmagens. Considera, por isso, que tal vídeo não pode ser valorado como meio de prova, uma vez que, viola a regra da proibição de prova obtida sem o consentimento do respetivo titular, direito consagrado no art.º 126.º n.º 3 do CPP; sendo que, de todo o modo, não existiu despacho a validar a prova do vídeo junto, o que torna impossibilita a utilização desta prova, sob pena de nulidade.

Este registo foi usado pelos assistentes, tendo sido junto aos autos ainda no decurso no inquérito e a sua reprodução foi repetida várias vezes no decurso da audiência. Importa sublinhar que tal registo foi deliberadamente efetuado pela assistente EE, com o intuito de recolher prova do crime de que estava a ser vítima a própria, o companheiro AA e o DD.

Ora, o primeiro aspeto a reter é que não existe regulamentação que decorra de norma processual penal, neste tipo de situações, remetendo o legislador para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal, no caso de violação do direito fundamental à privacidade, como decorre do disposto no artigo 167.º, n.º 1, do Código Processo Penal1.

1 Neste sentido, Santos Cabral, in Código Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, comentário ao artigo 167.º, p. 701; cfr. também Acórdão da Relação do Porto de 03-12-2010, proc. 371/06.5GBVNF.P1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2016, ambos disponíveis em www.dgsi.p]. 2 - perfilha-se o entendimento vertido no Acórdão do STJ de 28-09-2011 e Código Processo Penal Comentado, página 705, «(…) o comportamento ilícito do titular do direito à palavra e imagem no uso da mesma determina a perda da dignidade penal da ofensa do referido direito e isto, desde logo, porque no caso concreto o mesmo não merece proteção. (…) Não se vislumbra qual a razão pela qual a protecção da vitima e a eficiência da justiça penal tenham de ser postergadas pela protecção da palavra e de imagem que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata. A protecção acaba quando aquilo que se protege consubstancia a prática de um crime».].

O que significa que a prova resultante da recolha efetuada fica, nestes casos, dependente da sua não ilicitude perante a legislação penal. No caso dos autos, não se vislumbra a existência de qualquer conduta criminosa da assistente EE na obtenção da prova – registo de imagem e som do comportamento do arguido CC. O arguido CC sabia que ao proferir as expressões que dirigiu ao assistente DD e ao empunhar uma arma em direção aos três assistentes, ameaçando que o mataria, praticava comportamentos criminosos. A assistente limitou-se ao proceder ao seu registo, o que o arguido percebeu e não foi suficiente para fazer cessar a sua conduta criminosa.

É certo que existe uma norma incriminadora correspondente ao artigo 199.º do Código Penal, onde se tutela o direito à palavra, contra a sua gravação e reprodução sem o consentimento do visado. No entanto, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras de imagens e som efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio. Ora, no caso dos autos, a gravação que a assistente reproduziu em audiência, enquanto complemento das declarações que prestou, documenta as expressões do arguido, que tiveram como destinatários os assistentes, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido CC, subsumível aos crimes de detenção ilegal de arma, coação agravada, na forma tentada, e ameaça agravada. 2

Significa isto que, perante as circunstâncias apuradas, afigura-se justificada o registo do som e imagem levada a cabo pela assistente, sem o consentimento do autor daqueles ilícitos criminais, pois que, como considerou o STJ «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime», sendo ainda de considerar, quando por meio da gravação é cometido o crime, como sucede no caso dos autos, a verificação de legítima defesa como excludente da ilicitude da gravação.

Sufragando-se este entendimento, e não sendo possível concluir pelo cometimento por parte da assistente de um crime mediante o registo de som e imagem do arguido, não subsiste razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação3.

2 Neste sentido, Santos Cabral, in Código Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, comentário ao artigo 167.º, p. 701; cfr. também Acórdão da Relação do Porto de 03-12-2010, proc. 71/06.5GBVNF.P1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2016, ambos disponíveis em www.dgsi.p].

3 cfr. por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2016, disponível no site www.dgsi.pt “

E não pode estar mais certo.

De facto, como bem afirma o M.P. e que se subscreve:

“Em processo penal rege o princípio da liberdade de prova previsto no art. 125.º do C.P.P.: “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.”

No recurso apresentado o Recorrente mistura duas realidades distintas: a captura de voz e imagem determinada por autoridade judiciária no âmbito das competências próprias de investigação criminal e a captura de som e imagem captada pelo próprio ofendido no decurso da prática de um ilícito criminal.

A primeira realidade encontra previsão legal nas disposições conjugadas dos artigos arts. 1.º e 6.º da Lei n.º 5/2002, art. 88º e 269º, nº. 1, al. e), do Cód. Proc. Penal e está sujeita aos pressupostos de admissibilidade, formalidades e validade ali previstas, sendo efectivamente cominada com nulidade a inobservância de tais disposições.

Porém, não foi ao abrigo deste enquadramento processual que foram admitidas as gravações dos factos juntas aos autos e visionadas em audiência de discussão e julgamento.

Com efeito, não foi o M.P., enquanto titular da acção penal, que determinou a realização de captação de voz e imagem relativamente ao arguido e aqui Recorrente. Foi a Assistente EE que, ao assistir à prática de diversos ilícitos criminais por parte do Recorrente e, estando inclusivamente a ser vítima do crime de ameaça agravada, que utilizou o seu telemóvel para documentar os actos ilícitos de que estava a ser alvo.

É inequívoco que a conduta da Assistente EE isoladamente considerada poderia configurar um comportamento proibido e integrar a prática do crime de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelo art. 199.º do C.P.

Porém, no caso vertente, a actuação da Assistente EE não foi determinada por uma vontade consciente de captar a imagem a imagem e voz do Recorrente para qualquer finalidade inócua ou censurável, mas antes por uma necessidade de documentar a prática de um ilícito de que estava a ver vítima. Neste contexto, a conduta da mesma encontra-se abrangida por uma causa de justificação ou exclusão da culpa, habitualmente caracterizada pela jurisprudência como estado de necessidade probatória, e por isso mesmo afastada a ilicitude que proibiria a produção de prova daí extraída.

São inúmeros os Acórdãos dos Tribunais Superiores a sufragarem idêntico entendimento, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Ac. do TRP de 24/9/2020, Processo 308/16.3GAVFR.P2: “I – Se a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas por outrem configurar um ilícito penal não poderá ser atribuído valor probatório à gravação, caso contrário será prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador.

II – O preenchimento, em abstracto, dos elementos constitutivos de ilícito criminal pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da culpa e, em consequência, pode ser considerada a gravação das palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como válida a prova recolhida por esse meio.

III – Entre nós tem sido entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.

IV – É o que sucederá nos casos em que a necessidade de protecção da vida privada dos intervenientes se mostra mitigada, já que contende com circunstâncias em que a coberto do foro íntimo do casal são praticados ilícitos criminais, tal como sucede, com frequência, nos crimes de violência doméstica.”

- Ac. do TRP de 6/11/2019, Processo 457/17.0PAVFR.P1: “I - As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações sem o consentimento do titular constituem, em princípio, métodos proibidos de prova – art.º 126º n.º 3 do CPP.

II - O consentimento do visado é determinante e, numa breve interpretação, parece não poder ser utilizada a gravação de uma chamada telefónica feita pelo receptor, sem o consentimento do emissor.

III - Porém, quando a gravação, efectuada pelo particular/vítima contém, em si, um meio para perpetrar um crime, a prova recolhida é válida, mesmo que sem consentimento do agente.

- Ac. do TRL de 23-05-2023, Processo 924/20.9PBCSC.L1-5: “I – As gravações e fotografias obtidas por particulares, sem qualquer tipo de incumbência legal ao nível da investigação, podem assumir-se como provas especialmente relevantes em processo penal, podendo, no entanto, conflituar com os direitos fundamentais à privacidade, à palavra ou à imagem dos visados.

II - De forma a defender a licitude de gravações e fotografias efectuadas por particulares e admitir a sua valoração no processo penal, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores têm vindo a invocar construções baseadas, essencialmente, em causas de justificação legalmente previstas para afastar a falta de consentimento do visado, argumentando-se, também, em determinadas situações, com base em critérios de redução teleológica do tipo, de sentido vítimodogmático, conducentes à atipicidade da conduta.

III - No contexto de um crime de violência doméstica marcado, além do mais, por agressões, ameaças, injúrias, humilhações, gritos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, tudo realizado fora do alcance da observação de terceiros, a gravação da “palavra falada” do arguido, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para se proteger e demonstrar, em termos probatórios, a violência a que era sujeita.

IV –Seja por via do argumento de sentido vítimodogmático, excludente da tipicidade, seja porque a situação pode ser enquadrada nas causas de justificação previstas no artigo 31.º do Código Penal, pois trata-se de um caso em que, num juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação, o interesse público de realização da justiça se deve sobrepor ao direito à palavra do arguido, no âmbito do direito de necessidade, o resultado será o mesmo: a não responsabilidade penal de quem, nas referidas situações, procedeu à gravação.(…)

Pelo exposto, a admissão do vídeo captado pelo telemóvel da Assistente EE não estava sujeito a qualquer despacho de admissão formal por parte do M.P. ou do JIC, nem o seu visionamento em audiência de discussão e julgamento consubstancia qualquer proibição legal cominada com nulidade, sendo que foi o próprio Recorrente, por diversas ocasiões, e expressamente a requer a sua visualização na audiência e a confrontar as testemunhas com as imagens captadas.”

A gravação em causa feita num espaço público, à vista de toda a gente que por ali passasse, é lícita porque realizada ao abrigo de causas de justificação que excluem a ilicitude e a culpa. Num juízo de ponderação de bens jurídicos em presença, de um lado a reserva da vida privada, de outro o interesse investigatório na descoberta da verdade material e da defesa do ordenamento jurídico-penal, o que constitui uma verdadeira causa de justificação, o facto de a gravação ter ocorrido na rua, e portanto já fora do círculo de proteção do núcleo duro de vida privada da pessoa visionada, torna licita a sua utilização.

A proteção da imagem tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal. A proteção acaba quando aquilo que se protege constitui um crime.

Improcede, pois o recurso nesta parte.

Ainda a propósito da invocada nulidade por omissão de pronúncia.

Sustenta também o Recorrente que: “a ausência de pronúncia por parte do Tribunal a quo da questão levantadas pelo arguido em sede de contestação e alegações, face ao Tribunal não se ter pronunciado quanto à invocação da nulidade referente à falta de despacho de validação da prova por parte do Ministério Público no que respeita à prova junta – CD, o que impossibilita a utilização desta prova, sendo uma nulidade que aqui se invoca e que atempadamente se invocou e o Tribunal a quo não se pronunciou em sede de sentença.”

Ora, na motivação da matéria de facto a Meritíssima Juíza a quo tomou posição expressa sobre tal questão como acima se transcreveu.

Pelo exposto, sendo inequívoco que a SRª Juíza a quo tomou posição expressa sobre a proibição de prova invocada pelo Recorrente, não se verifica a nulidade invocada.

Nulidade por insuficiência da fundamentação da sentença- falta de análise crítica da prova.

O Recorrente defende ainda que “não se mostra feito o exame crítico das provas que fundaram a convicção do tribunal recorrido, na verdade, tal exame crítico não pode traduzir-se em simples afirmação, ainda para mais quando deslocadas factualmente do caso concreto” (…) “Não tendo o tribunal indicado completamente as provas que serviram para formar a sua convicção, nem tendo efetuado o exame crítico de tais provas, salvo o devido respeito, entende o arguido recorrente que existe insuficiente fundamentação da sentença, o que determina a sua nulidade, nos termos do art.º 379, nº1, al. a), com referência ao art.º 374, nº 2, ambos do CPP”.

O exame critico da prova deve fazer-se através de uma exposição tanto quanto possível completa mas concisa dos motivos de facto e de direito, que levaram à convicção do tribunal, isto é, uma exposição das razões, que em função das regras de experiência comum e ou critérios lógicos, constituem o substrato racional que levou a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou que valorasse de determinada forma os meios de prova discutidos em audiência.

E o exame crítico da prova tem como objeto, apenas os factos essenciais para a qualificação jurídica-criminal do ilícito, para a definição do circunstancialismo relevante e para a determinação da responsabilidade do agente, ac. STJ de 26.10.00, in proc. n º 2528/2000-5ª secção.

Ora, analisando da fundamentação realizada pelo tribunal a quo terá necessariamente de se concluir que a Meritíssima Juíza a quo explicitou cabalmente os meios de prova ponderados, a credibilidade intrínseca de cada um deles e a forma como a sua articulação permitiu dar como provados cada um dos factos demonstrados.

Na verdade, na fundamentação de tal convicção estão suficientemente evidenciadas as razões que levaram a Senhora Juíza a considerar provados os factos aparentemente postos em causa pelo recorrente, e, em última análise, e para o que aqui realmente interessa, a considerar provada a prática dos crimes que lhe vinham imputados na acusação.

Com efeito, assumindo a plena vigência do princípio da livre apreciação da prova, afirmou a necessidade da sua objetivação racional, em razão dos elementos produzidos ou analisados em julgamento, propondo-se analisá-los em conjugação com as regras gerais da experiência e com a normalidade do acontecer, de acordo com a lógica que sempre tem de presidir à apreciação da prova. E foi o que fez, como resulta patentemente da sentença.

O tribunal a quo enunciou as razões de ciência reveladas e extraídas das provas produzidas, a razão de determinada opção por um ou outro meio de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames e fê-lo de forma a que os destinatários e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas, ficassem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção, fazendo uma valoração global da prova de acordo com as regras da experiência, embora pudesse ter sido mais exaustivo. A motivação apresentada pelo tribunal a quo permite conhecer as razões do decisor, ainda que delas se possa discordar.

Não se mostra, pois, violado o disposto nos arts. 374º, n º 2 e 379º, n º 1, al.a) do CPP

Pelo exposto, improcede a nulidade suscitada.

Contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Ao invocado vício que, aliás, é de conhecimento oficioso (tal como o vício do erro notório e o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mencionados nas alíneas a) e b) do artigo 410º nº 2 do CPP) alude a alínea c) do nº 2 do artigo 410º Código de Processo Penal, conforme decorre do corpo do nº 2 de tal artigo, tem de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e segs.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, a que se reporta a alínea b) do artigo 410.º, do CPP, aquela (contradição insanável da fundamentação) ocorrerá nas situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e não provado, e esta (contradição insanável entre a fundamentação e a decisão) ocorrerá nas circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão, vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

A contradição tem de resultar do texto da sentença e tem que se revelar insolúvel, inultrapassável, implicando ou uma alteração da decisão ou o reenvio do processo para julgamento.

No caso dos autos, Afirma o Recorrente que na sentença se verifica uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e que em concreto se traduz na circunstância de na sentença, na parte respeitante ao direito, se aludir a um segmento factual que não tem correspondência com a acusação nem com qualquer facto que tenha sido apurado na audiência de discussão e julgamento.

Efetivamente a sentença contém algumas referências a factualidade que não diz respeito aos presentes autos, que com elevado grau de certeza correspondem a outro processo, e que terão sido inseridas na sentença de forma involuntária, através da utilização de ferramentas informáticas, vulgo copy paste.

Porém, tal realidade não consubstancia qualquer contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, mas mero lapso de escrita sem qualquer intervenção relevante na decisão.

Com efeito, a factualidade encontra-se corretamente delimitada nos factos provados e subsumida de forma adequada na decisão - prática em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

A fundamentação também se mostra perfeitamente evidenciada, tendo a Meritíssima Juíza a quo feito a exigível análise crítica da prova, explicitando cabalmente quais os meios de prova valorados, a articulação entre eles e em que sentido e medida foram os mesmos considerados. Esta fundamentação está ainda alinhada com a matéria de facto dada como provada e com a decisão final proferida.

Assim, a mera referência, na parte do enquadramento jurídico dos factos, a factos manifestamente referentes a outro processo, mas sem qualquer interferência na fundamentação ou decisão, não consubstancia a invocada nulidade, mas antes lapso de escrita, devendo antes considerar-se como não escritos a alusão a tais referências.

Efetivamente analisando partes da sentença resulta evidente o lapso, na medida em que toda a estrutura da decisão e dispositivo se coadunam com os factos dados como provados e respetiva motivação.
Assim é quando para o preenchimento do tipo legal de ameaças expressa: “Ora, no caso dos autos, apurou-se que o arguido apontou a arma na direção do arguido AA e apercebendo-se da presença desta junto à janela da sua habitação, também na direção da assistente EE. O que basta para a concretização do crime de ameaça. Isto, porquanto, a exibição de uma arma, mesmo não carregada, é, de per si, se empunhada em direção ao ofendido, bastante para provocar medo ou inquietação “, “No caso dos autos provou-se que o arguido CC apontou uma arma de fogo na direção da cabeça do arguido AA e disse-lhe, em voz alta e com foros de seriedade: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!”. Logo de seguida e apercebendo-se da presença de EE, esposa do arguido AA, à janela do seu apartamento, seguidamente apontou a referida arma de fogo na direção da mesma, dizendo “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”, ou quando na fixação da pena concreta menciona “Ponderando, por outro lado, as necessidades de prevenção geral, diremos que as mesmas se enquadram num grau alto, visto que a detenção de arma por legalizar”. E quando se declara, “declaro perdida a favor do Estado a espingarda apreendida nos autos.
Bem como no caso de preenchimento do crime de coação quando escreve “Contudo, mais resultou provado que ao actuar da forma descrita, o arguido quis provocar medo e inquietação no assistente DD, e, desse modo, pretendeu forçá-lo, conjugando as palavras proferidas e a exibição da espingarda, a ausentar-se daquele local, conduta era adequada a produzir tal efeito, o que, de resto, não logrou conseguir.”
E ainda o enquadramento legal realizado ao mencionar “o arguido CC vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

Especificando, nos termos do art.º 2.º, n.º 1, al. ar) «Espingarda» a arma de fogo longa com cano de alma lisa”. Por outro lado, nos termos do art.º 3.º n.º1 q, al. o) são armas, munições e acessórios da classe A: “As espingardas e carabinas facilmente desmontáveis em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação”.
Nos termos do art.º 86.º, al. c) c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 .”
Tudo sublinhados nossos.
Perante isto o referido “No caso dos autos, e na medida em que o arguido justificou a posse quanto aos demais objetos, apurou-se que tinha na sua posse uma soqueira. A título de justificação alegou o arguido que tal objeto ilícito vinha acoplado a um cinto que comprou nas festas municipais da cidade de Matosinhos. Ora, “um boxer/soqueira, construído integralmente em metal (latão), o qual se destina a ser empunhado, introduzindo nos dedos de uma das mãos, sendo a sua função a de ampliar o efeito resultante de uma agressão4” não é algo que se possa adquirir, ainda que dissimulado num cinto, sem se ter a noção da sua ilicitude. A apreensão deste tipo de objetos tem sido notícia na comunicação social nos últimos anos, sendo aliás, um objeto imediatamente associado à potencialidade de um comportamento agressivo.

Ou seja, é do conhecimento geral e está enraizada na consciência coletiva tal ilicitude, sendo que a justificação dada não colhe para infirmar a evidencia de que a posse de tal objeto configura crime.”, só pode ser devido a lapso manifesto de escrita, devendo antes considerar-se como não escritos a alusão a tais referências.

Os factos dados como provados e não provados são conciliáveis entre si e a decisão tomada no seu conjunto e conciliada com o dispositivo, mostra-se harmoniosa e conciliável, podendo qualquer um concluir que aquele excerto se deve a lapso e pertencente a outro texto decisório.

Este vício não se verifica.

Erro notório.

Invoca o recorrente erro notório, mas sustentando-se na contradição de depoimentos, que como veremos mais à frente na análise do erro de julgamento não existe, e na insuficiência de prova produzida relativamente aos factos 3, 5 e 8.

Ora, no caso em apreço o recorrente invoca o erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº2 al) c) do CPP, vicio de conhecimento oficioso, e que traduz defeito estrutural da decisão e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo, visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

O “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do nº2, do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Ou seja, este vício verifica-se ou ocorre quando de um facto provado se tira um facto logicamente inaceitável, ou quando se dá como provado algo que é ou está errado, ou ainda quando usando um processo racional e lógico se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das “legis artis” (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido. Logo, o erro notório na apreciação da prova é o “que se verifica quando da leitura, por qualquer pessoa medianamente instruída, do texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, for detectável qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida” – Ac. STJ 2/2/2011 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt.

Desta limitação resulta que fica “desde logo vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos”. É que o recurso tem por objeto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 339, no mesmo sentido, isto é, entendendo-se que o erro tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a outros quaisquer elementos, ainda que constantes do processo, vai a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores - cfr., por todos, os Acs. STJ de 2/2/2011 e de 23/9/2010 (rel. Maia Costa e Souto Moura respectivamente, www.dgsi.pt).De forma particularmente clara exarou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt, que: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo”.

Existirá um “erro notório” “quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” – cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 29/02/96, Revista de Ciência Criminal, ano 6 pp. 55 e seguintes.

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.

Em suma no que respeita ao erro notório na apreciação da prova, cumpre verificar se em concreto na decisão do Tribunal “a quo” resultam demonstrados os seus pressupostos, como seja:

- se há erro na crítica dos factos sem se confundir esta com o erro na sua apreciação em ordem a aplicar o direito;

- se decide contra o que resulta de elementos que constam dos autos e cuja força probatória não foi infirmada, ou de dados de conhecimento público generalizado;

- se emite juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida;

- se afirma algo que se não pode ter verificado;

- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável;

- se valoriza prova contra regras da experiência comum ou critérios legalmente fixados;

- se há um erro de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da sentença.

- se as provas revelam claramente um sentido e a decisão extrai ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela, algum facto essencial;

- se dá como provado o que notoriamente está errado.

Nada disto se verifica.

Lida e analisada a decisão recorrida, nela não surpreendemos qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida, não sendo possível nesta sede invocar-se os depoimentos produzidos na audiência de julgamento.

Considerando que o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, este se verifica “quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).” – Ac. TRC de 10.07.2018, Proc. Nº 26/16.2GESRT.

Por outro lado invocar insuficiência de prova para sustentar tal vício remete-nos para o erro de julgamento e não para os vícios do texto.

Donde decorre que este vício se não verifica.

Erro de julgamento quanto aos pontos 5, 6, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20, e 21 da matéria de facto.

Violação do Princípio in dubio pro reo.

O Recorrente considera que os factos descritos sob os números 5, 6, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20, e 21 da matéria de facto provada deveriam ter sido julgados como não provados, alegando o Recorrente que: “o Tribunal a quo, deu como provado tais factos com base nos de meios de prova juntos, prova que nem sequer foi validada pelo Ministério Público, nem consentida pelo arguido, aos autos e com base nos depoimentos do AA e EE, quando estes, na verdade, não sofreram qualquer intimidação por parte do aqui recorrente, nem mesmo o arguido AA teve qualquer receio pois ficou de forma muito pacifica a olhar para o arguido recorrente, encostado ao seu veículo, a tirar fotos, bem como a EE de forma muito serena ficou na janela a fazer a filmagem, o que demonstra de forma, indubitável de que nunca sofreram medo ou intimidação, pelo ato desesperado do aqui recorrente que dirigiu a arma, sem munições, diga-se, apenas ao arguido AA, tal como confessado pelo mesmo, bem sabendo que jamais o mataria, pois bem sabia que a arma estava descarregada, pelo que não estava em condições de poder efetuar disparos, e ainda não tinha depósito ou carregador, pelo que os factos 5, 6 e 8 da sentença não poderiam ser dados como provados”

O que o Recorrente põe em causa é, por um lado, a validade de determinados elementos probatórios (matéria apreciada supra), e por outro a forma como foi formada a convicção do Tribunal, a qual passa sempre por uma ponderação da prova na sua globalidade.

Esta convicção como bem refere o M.P a quo não se confunde com a impressão, ideia ou juízo pessoal, profundamente arbitrário uma vez que tem por base as convicções de cada um, os pré-conceitos, as experiências e estruturas cognitivas individuais. Esta convicção é aquela que resulta da análise objetiva dos meios de prova, tendo por base um juízo de normalidade das coisas. Funda-se nas regras da experiência que são comuns à generalidade das pessoas, e na forma como habitualmente os acontecimentos são causais uns dos outros. Este raciocínio lógico e objetivo de apreciação dos factos é depois vertido na motivação da decisão, permitindo assim a reconstituição do processo decisório e a sindicância das decisões.

Contudo, o recurso sobre a matéria de facto não funciona como um segundo julgamento. Não cabe nas incumbências do Tribunal da Relação fazer novo julgamento sobre a matéria de facto, tendo somente por base as gravações dos depoimentos das testemunhas inquiridas. As gravações áudio das audiências, não têm a virtualidade de substituir o imediatismo que apenas é garantido ao Juiz a quo, nem o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127.º do C.P.P., pode ser posto em causa quando o Juiz na presença de duas versões antagónicas dos mesmos factos credibiliza uma delas em detrimento da outra.

Apenas se poderá fazer uma alteração da decisão de facto, quando resulte inequivocamente da gravação dos depoimentos que a decisão não tem suporte no que foi dito pelas testemunhas, ou que da apreciação da prova na sua globalidade impõe necessariamente uma decisão distinta.

Não é esse o caso do presente processo, estando a factualidade provada perfeitamente estribada na prova testemunhal produzida.

Com efeito, relativamente aos crimes de ameaça agravada e de coação agravada de que foram vítimas DD, EE e AA, na audiência de discussão e julgamento do presente processo foram apresentadas duas versões contraditórias dos factos, uma narrada pelo Recorrente e pela sua esposa HH e outra pelos arguidos AA, DD e pela Assistente EE.

Pela forma como os depoimentos foram prestados, o tribunal a quo considerou sincero, nesta parte, o depoimento dos arguidos AA e dos Assistentes EE e DD, porque se harmonizaram com outros elementos probatórios que os credibilizaram.

Tais declarações foram convergentes e coerentes, estando alinhadas com a decisão sobre a matéria de facto plasmada na sentença.

Relativamente ao depoimento do Recorrente o Tribunal não lhe conferiu especial credibilidade neste particular que permitisse colocar em causa a versão dos factos narrada pelos identificados arguidos e assistente.

Com efeito, o Recorrente admitiu ter apontado a espingarda na direção do arguido/ofendido AA, não se recordando concretamente das expressões que lhe dirigiu, embora admitindo que pudessem ser de conteúdo ameaçador, negando, porém, ter apontado a mesma arma ou dirigido expressões com esse conteúdo aos Assistentes EE e DD.

Ora, neste particular a versão do Recorrente mostrou-se particularmente insegura e defensiva, admitindo apenas o que não poderia negar, porque se encontrava registado em vídeo e passível de perceção direta do Tribunal.

A este respeito foi muito mais esclarecedora, espontânea e consentânea com as regras da experiência comum a versão dos factos relatada pelo arguido AA e dos Assistentes EE e DD, estando ainda alicerçada nos restantes elementos documentais juntos aos autos.

Sufragamos por isso, na íntegra, a apreciação dos referidos depoimentos feita pela Meritíssima Juíza a quo, relativamente à credibilidade e pertinência dos mesmos, tanto mais que a versão dos factos descrita pelo arguido AA, EE e DD Assistente HH mostrou-se e a descrever factos sem os empolar ou exagerar nas suas consequências.

Em acréscimo, as considerações tecidas pelo Recorrente quanto ao elemento profundamente desajustadas.

Com efeito, para os crimes em que foi condenado o Recorrente (ameaça e coação agravadas) é absolutamente indiferente que a espingarda estivesse ou não municiada. O que é relevante é o modo como tal conduta, associada às expressões feitas pelo Recorrente, foram percepionadas pelos visados e se as mesmas eram idóneas a condicionar o seu comportamento (forçando o Assistente DD a ausentar-se do local, ou provocando temor na Assistente EE que o Recorrente pudesse vir a atentar contra a sua vida).

Qualquer cidadão normal colocado naquele circunstancialismo concreto levaria a sério as ameaças e intimidações assumidas pelo Recorrente, integradoras dos referidos ilícitos que o mesmo representou e quis realizar, conhecendo o carácter censurável e proibido das mesmas.

Deste modo, o Tribunal a quo decidiu de forma correta a factualidade em causa, sendo perfeitamente defensável, lógica e coerente a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, conforme resulta dos depoimentos prestados (considerados na sua globalidade) e da motivação da factualidade provada, não cabendo ao Tribunal da Relação sindicar a credibilidade atribuída a cada uma das testemunhas pela Juíza da l .ª Instância e reformular a convicção desta sobre a prova produzida.

As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorretamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível.

Ora, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstrato, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada, e não à consignada pelo Tribunal, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[4]:

«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».

II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.

Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[5]:

«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.

II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Ora, o exercício de crítica genérica, a par da apresentação resumida de determinada versão dos factos ou de certo depoimento, recurso utilizado pelo recorrente relativamente a variadas situações, é espúrio, como se percebe pelas exigências de recurso em sede de matéria de facto a que aludimos supra, pois não tem em consideração os elementos de prova produzidos nos autos nos termos em que o art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal exige que sejam apresentados.

Como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».

A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, proc. nº 024324, relatado por. Afonso Correia, também acessível in www.dgsi.pt).

E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, págs. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível in www.dgsi.pt).

Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância.

Podemos dizer que esta possibilidade e esta dúvida, levantadas pelo arguido e recorrente, não são razoáveis. Podemos, assim, dizer que a decisão da sentença recorrida, quanto a todas as questões suscitadas pela recorrente, se baseia num juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não de mera suspeita, ou de maior ou menor probabilidade.

Não estamos, pois, perante qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

A prova processual, ao invés do que acontece com a demonstração no campo da matemática ou com a experimentação, no campo das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta, mas apenas a convicção essencial às relações práticas da vida social – Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 407- sendo a liberdade do juiz na respectiva apreciação “uma liberdade para a objectividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros” – Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967 – 68, p. 50.”.

E, como não existe prova tarifada, “sendo o julgador livre de apreciar e relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado; pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só. Como se escreveu no Ac. do STJ de 11.07.2007, a prova produzida mede-se pelo seu peso e não pelo seu número”- Ac. da RL de 14.12.2010, proc. nº 518/08.7PLLSB. L1-5 .

Como se diz em Ac. da RE de 24-06-2008 (Processo437/08-1) “Em termos de valoração da prova, a lei processual não regula em especial o valor das declarações do ofendido qua tale ou na qualidade de assistente, apenas vinculados ao dever de falar com verdade, contrariamente ao exigido aos arguidos, pelo que a valoração das declarações quer o ofendido, quer do assistente estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova – art. 127/CPP. Assim, não obstante o interesse do assistente e/ou da vítima, na resolução do conflito, é de rejeitar a ideia, apriorística e abstracta, de que o ofendido ou o assistente carece de credibilidade nas declarações por si prestadas. De resto, o legislador, sendo que a Assembleia da República detém a reserva de lei em matéria penal, não consagrou o sistema próximo do que vem fazendo o Supremo Tribunal espanhol, no que atina à atendibilidade das declarações únicas da vítima: verosimilhança, isto é, constatação de corroborações periféricas de carácter objectivo que avalizem a declaração; persistência na incriminação, prolongada no tempo, plural e sem ambiguidades e ausência de “incredibilidad subjetiva” derivada das relações acusador/acusado, que prive a declaração de aptidão necessária para gerar certeza. Acresce que há muitas situações de depoimento único da vítima respeitantes a crimes sexuais, de violência doméstica, maus tratos e até roubos, concretizada com violência ou intimidação contra as pessoas fora da presença de terceiros, nas quais a valoração da credibilidade do depoimento da vítima está apenas dependente da livre a apreciação e convicção do julgador, sem necessidade de corroborações periféricas, nomeadamente, de prova testemunhal”.

A única limitação à discricionariedade do julgador é imposta pelas regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, pelo que a exposição sobre os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão (art. 374º nº 2/CPP) não pode colidir com as regras da experiência: ou seja, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções meritórias, plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, por ter sido proferida em obediência à lei, que impõe que o juiz julgue em conformidade com a sua livre convicção.

Como se tem assinalado jurisprudencialmente – Ac. da RG de 14-01-2019 “É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).”

Para o Ac. Rel. Coimbra, de 2016-12-15 (Rec. nº 55/15.3GCMBR.C1, rel. Vasques Osório, in www.dgsi.pt) “VII - A prova de um facto pode resultar da valoração de um único meio de prova, v.g., das declarações da assistente ou do depoimento de uma testemunha. O que é necessário é que o meio de prova fundamentador da convicção seja credível e que o tribunal explique as razões que lhe determinaram a atribuição de credibilidade”.

Acresce ainda, como se afirma no Ac. do TRE de 15.03.2011 (processo 212/04.8 TACTX.E1) “se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”. - (idem, os Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, e de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www.dgsi.pt).

Enuncia o artigo 127.º do CPP, sob a epígrafe “livre apreciação da prova”, que esta é “apreciada segundo as regras e a livre convicção da entidade competente”.

O recurso com objeto em matéria de facto não se destina a um novo julgamento ou à postergação do princípio da livre convicção, consistindo apenas no que doutrinal e jurisprudencialmente se apelidou de um “remédio” para os vícios de julgamento da primeira instância, onde existe a desejável oralidade e imediação na produção da prova.

Para que dúvidas não restassem acerca do afirmado e da importância da receção direta da produção da prova, no que concerne aos fundamentais princípios da oralidade e imediação, refere-se-lhes Figueiredo Dias nos seguintes termos: “só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”. Também Alberto dos Reis cedo constatou que “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”.

Por este motivo, tem vindo a jurisprudência a entender que “a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2004 (proc. 0410430).

Fora destas situações, como habitualmente também concluem as nossas instâncias superiores, tendo o julgador recorrido beneficiado das fundamentais oralidade e imediação, subjacentes à audiência de discussão e julgamento, e sendo a convicção por aquele alcançada plausível e ainda consonante às regras da experiência comum, deverá ser dada prevalência à mesma.

Voltando ao caso em apreciação, nenhum reparo nos merece o processo de formação da convicção do tribunal a quo, que sustentadamente não só alcançou uma solução lógica e razoável à luz das regras da experiência comum, como aliás é a única que se nos afigura coerente com as mesmas.

Posto isto e sem prejuízo do acima exposto, no mais e essencial, o recorrente fundamenta o erro de julgamento na circunstância de o Tribunal a quo ter atribuído credibilidade às declarações dos ofendidos, mas não às suas.

Esta avaliação ataca apenas a livre convicção do Tribunal de julgamento, correspondendo a uma diferente leitura da prova, sem que se traduza em qualquer erro de julgamento.

O recorrente parte do princípio, quase certo, de que a circunstância de ter trazido uma versão alternativa dos factos determina a respectiva veracidade. Ou, pelo menos, no limite, impõe a criação de um estado de dúvida que sempre determinaria a sua absolvição.

Ora, conforme deixámos supra-enunciado, o facto de existir mais do que uma versão dos factos não é impositivo de uma qualquer solução, designadamente a favor da versão do arguido ou da criação de estado de dúvida que determine a aplicação do princípio in dubio pro reo.

Em segundo lugar, no caso concreto, o Tribunal a quo entendeu que a versão do arguido não era credível e explicou o porquê, como já deixámos transcrito, avaliação que, como já se deu nota, mostra-se correta.

No mais e relembrando os pressupostos antes enunciados quanto aos recursos com impugnação da matéria de facto, não podemos deixar de concluir que o recorrente mais não faz do que discordar da convicção formada pelo Tribunal a quo e que, em rigor, não apresentou qualquer argumento que derrube o essencial e que imponha que a decisão sobre os pontos de facto impugnados seja em sentido contrário ao constante da decisão recorrida.

Em suma, avaliada a prova invocada pelo recorrente, percebe-se que este apenas pretendeu substituir a convicção do Tribunal do julgamento pela sua própria leitura da prova, mas sem apresentar verdadeiros argumentos que imponham solução diversa da proferida em sede de matéria de facto por ocorrência de erro de julgamento.

Por isso, a invocação de que foi violado o princípio da livre apreciação da prova é vazia de sentido e fundamenta-se apenas na circunstância de o recorrente não ter efetuado a mesma leitura da prova que o Tribunal a quo, sendo que a avaliação vertida no acórdão recorrido não se baseou em prova proibida, não violou prova vinculada, pelo contrário, acolheu-a, e é conforme às regras da experiência comum.

Tão-pouco o argumento de que o Tribunal a quo devia ter feito operar o princípio in dubio pro reo tem algum fundamento.

Nem a decisão recorrida revela que o Tribunal a quo em algum momento ficou em dúvida quanto ao reflexo da prova produzida no sentido a atribuir à factualidade provada impugnada, concretamente que ficou na dúvida se devia ter dado como provado ou como não provados os pontos de facto impugnados, nem se reconhece que a prova produzida só podia ter conduzido a tal estado de dúvida.

Pelo contrário, analisada a prova e lida a ponderação que o Tribunal a quo sobre a mesma efetuou, há que concluir que a decisão proferida se mostra correta e coerente com as regras da experiência comum, na parte que ficou intocada.

Falta de elemento objetivo do tipo legal do crime de ameaça.


A este propósito a decisão a quo discorreu: “4.3 – Da prática de um crime de coação, na forma tentada

O arguido CC vem, ainda, acusado pela prática de um crime de coação grave, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, n.º 2, al. a) e b), 23º, n.º 2, 154.º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

Numa primeira vertente, relembremos os elementos – objetivo e subjetivo – cuja verificação se impõe para a subsunção de uma conduta ao apontado artigo 154º, n.º 1.

Daqui emerge que comete este crime “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade”.

O tipo objetivo de ilícito consiste em constranger outra pessoa a adotar um determinado comportamento: praticar uma ação, omitir determinada ação, ou suportar uma ação. Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa.

Os meios de coação poderão ser apenas a violência ou a ameaça com mal importante.

Quanto à violência, a mesma poderá sê-lo física ou psíquica, e ter por objeto imediato a própria pessoa do coagido, ou de terceiros, ou sobre coisas, quer do coagido, quer de terceiros, desde que o mal causado nas coisas seja idóneo a afetar sensivelmente a liberdade de ação do coagido, de forma a constranger este a adotar o comportamento visado pelo agente.

Por seu turno, quanto à «ameaça com mal importante», a mesma tanto se poderá reportar à prática de um ato ilícito, como de um ato lícito, e deve ser adequada a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. A este respeito, deverá a ameaça ser vista sob um critério ao mesmo tempo objetivo, por apelar ao juízo do homem comum, e individual, na medida em que se deve ter em consideração as circunstâncias concretas em que é proferido o anúncio, nomeadamente as sub-capacidades do ameaçado.

Estamos perante um crime de resultado, ou seja, a consumação deste crime exige que a pessoa objeto da ação tenha efetivamente sido constrangida a praticar a ação, a omitir a ação ou a tolerar a ação, de acordo com a vontade do coator e contra a sua própria vontade, bastando-se com o simples início da execução da conduta coagida. Se o objeto da coação for a omissão ou a tolerância de uma determinada ação, a coação consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou de reagir.

Mais: é necessário que entre o comportamento do coagido e a ação de coação exista uma relação de efetiva causalidade.

A imputação deste crime tem necessariamente que ser dolosa, ainda que sob a forma de dolo eventual – basta que o agente, independentemente das suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz sejam suscetíveis de constranger outrem e com tal se conforme. Bem jurídico tutelado é a livre determinação do indivíduo, protegida, aliás, constitucionalmente através da inviolabilidade da integridade moral e física de cada um pelo artigo 25º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

A respeito da coação grave, estabelece o artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, que quando a coação for realizada “por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos”, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

No presente caso, está dado como provado que o arguido, dirigindo-se ao assistente DD, apontou a arma na direção da sua cabeça, mais lhe tendo dito, em tom sério: “vai-te embora, senão dou-te um tiro nos cornos, eu mato-te!”.

O que fez com o propósito de constranger o assistente a ausentar-se do local. Trata-se da adoção pelo arguido de um comportamento objectivamente ameaçador com um mal importante, como meio de constranger o assistente a afastar-se.

Contudo, mais resultou provado que ao actuar da forma descrita, o arguido quis provocar medo e inquietação no assistente DD, e, desse modo, pretendeu forçá-lo, conjugando as palavras proferidas e a exibição da espingarda, a ausentar-se daquele local, conduta era adequada a produzir tal efeito, o que, de resto, não logrou conseguir.

Deste modo, em face desta factualidade tida por provada, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou de desculpação, entende o Tribunal que o arguido CC, com a sua conduta, preencheu todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de coação, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e 2,, 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, pelo que não pode este Tribunal deixar de o punir por tal crime.


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4.3.2 – Da prática do crime na modalidade de tentativa

Ora, existe tentativa criminalmente relevante, nos termos do art.º 22.º, n.º 1, do Código Penal, quando sejam praticados atos de execução de um crime que se decidiu cometer (a tentativa é necessariamente dolosa), sem que este chegue a consumar-se. O nº 2 do citado preceito legal explicita que são atos de execução:

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; e

c) Os que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

Nem todos os atos e procedimentos incluídos no iter criminis são objeto de punição criminal. Em primeiro lugar, a simples ideação de um crime, a mera cogitatio, não é punível. Os atos preparatórios (os que não se enquadram em qualquer das alíneas do nº 2 do art.º 22.º) não são puníveis a não ser que a lei estipule o contrário, nos termos do artº 21º do Código Penal, o que equivale a dizer que em regra os atos preparatórios não são objeto de punição.

Os atos integrantes da tentativa criminosa são puníveis se a lei o estipular ou se ao crime consumado corresponder pena superior a 3 anos de prisão, nos termos do artº 23.º, nº 1, do Código Penal, como sucede, no que ora interessa, com o crime de coação agravada, punido com pena de 1 mês a 5 anos de prisão.

No caso concreto, a coação agravada não chegou a consumar-se, por motivos alheios à vontade do arguido, justificando-se, pois, a atenuação resultante da tentativa.


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4.4 - Da prática de dois crimes de ameaça agravada pelo arguido CC

Na acusação pública, o arguido CC foi, ainda, acusado da prática de 2 (dois) crimes de ameaça agravada, na pessoa das vítimas AA e EE.

Estabelece o n.º 1 do artigo 153.º do CP que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Por seu turno prevê a al. a), do n.º 1 do artigo 155.º que quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de ação. Ameaça é um mal futuro cuja ocorrência depende da vontade do agente (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, p. 343).

Concretizando conceitos, salientamos que:

- o mal tanto pode ser de natureza pessoal, como patrimonial;

- o mal ameaçado não pode ser iminente, pois que, nesse caso, estar-se-ia perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento (artigo 22º, n.º 2, c) do Código Penal), mas é irrelevante que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, ou que, referindo-o, tal prazo seja curto ou longo;

- é necessário que a ocorrência do mal futuro dependa da vontade do agente, sendo indiferente a forma que revista a ação de ameaçar, que pode ser oral, escrita ou gestual, ou servir-se de interposta pessoa;

- só há crime de ameaça se o crime objeto da ameaça for um crime contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a liberdade e autodeterminação sexual ou contra bens patrimoniais de considerável valor;

- vítima deste crime é outra pessoa, o destinatário da ameaça;

- o crime só se consuma com o conhecimento da ameaça pelo seu destinatário;

- a ameaça tem de ser adequada a provocar medo ou inquietação no ameaçado, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, não sendo necessária a demonstração de que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, ou afetado a liberdade de determinação do destinatário da ameaça – cfr. Ac. da RC, de 12.12.2001, proc. 2880/2001, in www.dgsi.pt, e Ac. STJ de 2 de Maio de 2002, proc. n.º 611/02-3ª SASTJ, n.º 6J, 67 .

Ora, no caso dos autos, apurou-se que o arguido apontou a arma na direção do arguido AA e apercebendo-se da presença desta junto à janela da sua habitação, também na direção da assistente EE. O que basta para a concretização do crime de ameaça. Isto, porquanto, a exibição de uma arma, mesmo não carregada, é, de per si, se empunhada em direção ao ofendido, bastante para provocar medo ou inquietação e fazer funcionar a configuração típica do artigo 153º do Código Penal. Neste sentido, veja-se o decidido pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.05.2011, disponível no site www.dgsi.pt “a exibição de uma arma, no contexto da prática de um crime de ameaça, tem um evidente efeito de aumentar a credibilidade do mal que se anuncia. No caso, a gravidade global do comportamento criminoso teria sido bem menor se o arguido tivesse apenas proferido as palavras que o tribunal considerou provadas, sem simultaneamente, exibir a arma.”

Ora, ameaçar é prometer ou prenunciar um mal futuro que constitua crime, é anunciar a intenção de causar um facto maléfico ou danos necessariamente futuros, o que está subentendido na atuação de empunhar uma arma em direção ao corpo de outrem. Assim, o crime de ameaça concretiza-se com o facto de o sujeito, por palavras, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, anunciar á vítima a prática de mal injusto e grave, consistente num dano físico, económico ou moral - cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anot., 2.º vol. pág. 185.

Seguindo de perto os ensinamentos de Américo Taipa de Carvalho, deve considerar-se adequada “a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)” – Comentário Conimbricense do Código Penal, I, p. 348.

De salientar que a ratio da agravação da pena abstrata quando “a ameaça for com a prática de um crime punível com pena de prisão punível com pena de prisão superior a 3 anos”, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 155.º do Código Penal, consiste na razoável consideração legislativa de que há, no geral dos casos, uma proporção direta entre a gravidade do crime objeto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será esta perturbação.

Sobre a interpretação de mal “futuro”, sustentou o arguido CC – na sua contestação e em sede de alegações – que as expressões de que o arguido vem acusado, relativamente ao elemento temporal em análise, não se projetam sobre o futuro, mas sobre o presente, e, por isso, não preenchem o tipo objetivo do ilícito previsto no artigo 153º do Código Penal;

No entanto, a este propósito, sufrago o entendimento vertido “I – Tudo o que não seja execução eminente ou em curso – caso de uso de violência – é futuro, em termos de anúncio de causação de um mal, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora”, “hoje”, amanhã ou para o ano.

II – Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de atos correspondentes à sua simultânea ou absolutamente imediata concretização.

III – Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal – ou de outra natureza – de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa ação com os atos de execução correspondentes – permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.” (ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/01/2008).

É o que sucede no caso dos autos, em que as palavras ameaçadoras são acompanhadas e reforçadas pela posse da arma, mas em que, ainda assim – e apesar da posse desta – não há prática de atos efetivos de violência que permitam concluir que a promessa anunciada já se concretizou.

Pelo que, o argumento do arguido CC não pode colher.

Ao nível tipo subjetivo de ilícito, a ameaça é um crime doloso, podendo ser cometido sob qualquer das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal; tendo o dolo que abranger a adequação da ameaça a provocar no ameaçado medo ou inquietação, pressupondo que o agente tenha vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do ameaçado – cfr. o acórdão citado.

Aponte-se, ainda, que “nos crimes que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais está excluído o crime continuado por falta de identidade de bens jurídicos, se as diferentes ações se dirigem contra diversos titulares de bens jurídicos” – Ac. do STJ de 19-04-2006, in Col. Jurisp. tomo II, pág. 168..

Pois que, em caso de bens jurídicos eminentemente pessoais, a ofensa (o injusto de ação, de resultado e a culpa) dirige-se a cada ato concreto que afete o bem jurídico individualizado na pessoa de cada titular.

No caso dos autos provou-se que o arguido CC apontou uma arma de fogo na direção da cabeça do arguido AA e disse-lhe, em voz alta e com foros de seriedade: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!”. Logo de seguida e apercebendo-se da presença de EE, esposa do arguido AA, à janela do seu apartamento, seguidamente apontou a referida arma de fogo na direção da mesma, dizendo “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”

Pelo que estão preenchidos os elementos típicos de dois crimes de ameaça, devendo o arguido ser condenado pela sua prática.”

Alega o Recorrente que a conduta que lhe é imputada não integra a prática dos crimes de ameaça agravada de que foi condenado por “não se verificar um dos elementos objetivos do tipo de ilícito (ameaça de um mal futuro)”, impondo-se assim a sua absolvição.

Como bem refere o M.P a quo, no crime de ameaça, como crime doloso que é, exige-se que um sujeito transmita a um destinatário uma mensagem que traduza uma intenção de praticar no futuro um mal ao destinatário (ou a um terceiro que esteja numa relação de extrema proximidade ou dependência deste), sendo esse mal a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. Essa mensagem pode ser corporizada de diversas formas mas tem de ser adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação (cfr. art. 153.º n.º 1 do C.P.).

Esta adequação ou idoneidade da mensagem para provocar o medo, ou limitação da liberdade de determinação, tem de se aferir tomando em consideração as características individuais do sujeito alvo daquele comportamento. “Se o agente ameaçar o ofendido com uma pistola de plástico como se fosse verdadeira ou com uma pistola descarregada como se tivesse carregada e a encenação parecer objetivamente credível, verifica-se um crime de ameaça consumado, pois o efeito intimidatório da ameaça já se consumou. Se for manifesta a inaptidão do meio utilizado, há uma tentativa inidónea (impune)” (nesse sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal, 2.ª Ed., UCP, Lisboa, 2010, p. 474, também Ac. STJ de 25(02/2002, in SASTJ, 61, 67).

Ora, no pontos 7, 8 e 9 dos factos provados ficou demonstrado que: “7. Em ato contínuo, o arguido CC apontou a referida arma de fogo na direção da cabeça do arguido AA e disse-lhe, em voz alta e com foros de seriedade: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!

8. Nesta altura, apercebendo-se da presença de EE, esposa do arguido AA, à janela do seu apartamento, sito no rés-do-chão direito do n.º ... daquela rua, seguidamente apontou a referida arma de fogo na direção da mesma.

9. E simultaneamente proferiu os seguintes dizeres: “estás a olhar, também vais tu com o caralho!””.

Ao contrário do afirmado pelo Recorrente a mera circunstância de o Recorrente ter utilizado o presente do indicativo do verbo, não acarreta necessariamente que a sua conduta se esgote naquele concreto momento, traduzindo uma mera ameaça iminente.

Com efeito, a análise do quadro global da atuação do arguido tem de levar em consideração a postura do mesmo, os gestos e objetos utilizados, o que é verbalizado e com que intenção, o modo como esta conduta global é percecionada pelo destinatário, etc.

Do que ficou demonstrado nos autos parece-nos inequívoco que o arguido CC ao apontar uma espingarda ao ofendido/arguido AA e à Assistente EE enquanto dizia em voz alta e com foros de seriedade: “dou-te um tiro nos cornos, posso ir para a cadeia, mas tu vais para o cemitério, que eu estouro-te os miolos!” (…) “estás a olhar, também vais tu com o caralho!”, integra a prática dos crimes de ameaça agravada, uma vez que aquelas advertências são idóneas a inculcar nos visados um receio que em qualquer momento futuro o Recorrente poderia atentar contra as suas vidas, seriedade acrescida ao ser-lhes apontada uma arma real e suscetível de, em condições normais, provocar-lhes a morte.

No mesmo sentido vejam-se, designadamente os seguintes Acórdãos, ambos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Ac. do TRL de 29/5/1996, Processo 0337383: “A exibição de uma arma, mesmo não carregada, é, de per si, se empunhada em direcção ao ofendido, bastante para provocar medo ou inquietação e fazer funcionar a configuração típica do artigo 153 do Código Penal revisto em 1995.”

- Ac. do TRC de 13/12/2023, Processo 255/20.4PBCLD.C1: “I – Para o preenchimento do conceito de ameaça, previsto no artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, torna-se necessário que se anuncie um mal futuro, cuja execução não seja iminente.

II – A expressão “levas um tiro” não permite, por si só, retirar, sem qualquer margem para dúvidas, a conclusão que o arguido estava a anunciar que num qualquer momento futuro iria desferir um tiro ao ofendido, como sucederia se dissesse “um dia destes levas um tiro” ou “da próxima vez que te encontrar levas um tiro”.

III – Sendo o tempo verbal usado o presente do indicativo, não se pode recusar a possibilidade de o arguido pretender significar que iria, de imediato, desferir um tiro ao ofendido, ainda que esta hipótese também não surja como completamente nítida, como seria num caso que que se proferisse uma frase como “levas já um tiro”.

IV – Havendo dúvidas relativamente à intenção do arguido ao proferir as mesmas palavras, há que recorrer ao contexto factual que acompanhou a mesma expressão para se apurar aquela intenção.”

Deste modo, dos factos descritos, tudo indicia que a conduta e expressões dirigidas pelo Recorrente ao ofendido/arguido AA e à Assistente EE não traduziam o anúncio de um mal presente e iminente que se preparava para concretizar, mas antes um eventual mal futuro, pretendendo desta forma atemoriza-los e constrange-los em atuações futuras, convicção essa reforçada pela dinâmica dos factos.

Aliás, se assim não fosse, não estenderia as expressões ameaçadoras à Assistente EE, esposa do ofendido/arguido AA, que se encontrava dentro da própria casa e sem qualquer intervenção na contenda, como aconteceu.

No mesmo sentido pronunciou-se o TRE, em douto Acórdão relatado por MM, proferido no processo n.º 18/12.0GDMMN.E15, onde se lê o seguinte no respetivo sumário, aqui citado in wwwdgsi.pt:

I - Para efeitos do preenchimento do tipo legal previsto no artigo 155º do Código Penal, a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º não é típica se ocorrer em simultâneo com a sua execução, ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente.

II - A desconsideração do desvalor da ameaça pressuposta pelo legislador só se verifica nos casos em que a ameaça é seguida ou acompanhada da execução do crime prometido ou por ele consumido.

III - O critério determinante, para aferição da incriminação autónoma da “ameaça”, é que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgote no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.

IV - Ainda que se possa considerar como iminente o mal anunciado (“eu mato-te”) – reforçado pelo facto de a arguida ter pegado numa machada (conduta inequivocamente apta a provocar receio pela vida e integridade física do ofendido, bem como inquietação, objetivo, aliás, alcançado) -, certo é que a arguida não prosseguiu com os intentos (reais ou não) anunciados, ou seja, a ameaça não foi, no caso, seguida ou acompanhada da execução do crime prometido, não estando, por isso, excluída a sua punição.”

Assim, entendemos que a conduta assumida pelo Recorrente preencheu todos os elementos típicos dos 2 crimes de ameaça agravada de que foi condenado, improcedendo a sua alegação a este respeito.

Medida da pena.

Escolha e determinação da medida concreta da pena principal e acessória.

Taxa diária da multa.
O tribunal a quo decidiu a este respeito “Relativamente ao arguido CC, verifica-se, igualmente, que as necessidades de prevenção especial são reduzidas, porquanto não tem antecedentes criminais e está inserido do ponto de vista familiar, social e profissional. A tal propósito, e no relatório social, enfatizou-se que “CC inscreve uma vivência de integração familiar, social e profissional equilibrada. O arguido organiza uma vivência atenta ao cumprimento das obrigações profissionais e da sustentabilidade familiar, despendendo o seu tempo de lazer com essa estrutura de apoio em sede domiciliar e de integração comunitária, onde é aceite, dispondo de uma imagem isenta de conotação negativa.”

Ponderando, por outro lado, as necessidades de prevenção geral, diremos que as mesmas se enquadram num grau alto, visto que a detenção de arma por legalizar, tanto mais se acompanhada de palavras de teor ameaçador, está associada ao exacerbar de sentimentos de violência, causando alarme social e com potencialidade para atingir diversos bens jurídicos, importando repor a confiança nas normas violadas.

Mas, ainda relativamente ao arguido CC, o Tribunal atendeu:

- a intensidade do dolo, que foi direto;

- o arguido não tem antecedentes criminais;

- o juízo crítico revelado, que é mediano, porquanto embora apresentando outra versão dos fatos, declarou estar arrependido;

Tendo presente tudo quanto se acaba de referir e atentas as molduras previstas para os crimes aqui em causa, tenho por adequadas as seguintes penas:

- a pena de 140 (duzentos e quarenta) dias de multa pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, pelo arguido AA.

- a pena de 200 (duzentos) dias de multa pela prática de um crime de detenção ilegal de arma pelo arguido CC;

- a pena de 130 (cento e trinta dias) de multa pela prática de cada um dos dois crimes de ameaça agravada pelo arguido CC;

- a pena de 4 (quatro) meses de prisão pela prática de um crime de coação agrava, pelo arguido CC;


*

Em relação a estas penas de multa cumpre ainda determinar o seu montante diário, o que se deverá fazer de acordo com a situação económica e financeira de cada um dos arguidos e dos seus encargos pessoais, devendo tal montante situar-se entre cinco euros (5 €) e quinhentos euros (500,00 €) – art.º 47.º, n.º 2 do CP.

No caso dos autos apurou-se que:

- o arguido AA trabalha para a B..., tendo uma filha menor;

- já o arguido CC trabalha na área da construção civil,

Pelo que, tudo ponderado, tenho por adequado fixar o montante diário:

- para o arguido AA pelo valor de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos).

- para o arguido CC pelo valor de € 6,00 (seis euros).


*

4.5.c. Da Pena de Substituição da pena de prisão

Face à dosimetria penal concretamente fixada quanto à pena de prisão - 4 (quatro) meses de prisão - é legal e abstratamente admissível a sua substituição.

Considerando a panóplia de penas de substituição que o legislador consagra e cuja aplicação incentiva, importa verificar se, neste caso, alguma se mostra adequada e suficiente. Como critério, e nos termos apontados por Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pág. 331, “o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação”.

Tal foi também o caminho já traçado pelos nossos tribunais pois, como salienta o consagrado autor, in op. cit. “Deve, por isso, saudar-se com esperança o Ac. STJ de 09MAR21, que decidiu, sem lugar para equívocos ou restrições, que a aplicação de uma pena de substituição (no caso, a pena de multa de substituição) depende, em exclusivo, de considerações de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de ressocialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade”.

Relativamente ao critério a aplicar para preferir de entre as várias penas de substituição também Figueiredo Dias salienta (in op. cit., pág. 330) que “o CP vigente parece recusar-se, à partida, a fornecer um critério ou cláusula geral de escolha ou de substituição da pena. Quer a propósito da escolha entre penas alternativas, quer a propósito de praticamente cada uma das penas de substituição ele indica um critério diferente ou individualizado”. Contudo, salienta como critério que “o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição”, idem.

Entre as penas de substituição em sentido próprio, que se caracterizam, por um lado, pelo seu carácter não institucional ou não detentivo e, por outro, por pressuporem a prévia determinação da pena de prisão, para serem então aplicadas em vez desta, estão agrupadas as penas de suspensão de execução da prisão, de multa de substituição, de prestação a favor da comunidade e de admoestação.

A multa de substituição surge prevista atualmente no art.43.º do Código Penal, nos seguintes termos: «1. A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o consentimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no art.47.º

2. Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.º.».

A pena de multa de substituição regulada no art.43.º do Código Penal é dotada de autonomia e de especificidade perante a pena pecuniária especial, pese embora de um ponto de vista político-criminal ambas se situem no terreno da reação geral contra as penas privativas da liberdade tout court, pois a pena de multa de substituição é pensada como meio de obstar, até ao limite, à aplicação de penas curtas de prisão, até um ano, constituindo um especifico instrumento de domínio da pequena criminalidade. - Prof. Figueiredo Dias, obra citada, páginas 329 e 361.

Sendo assim, e em substituição da pena de 4 (quatro) meses de prisão, decido converter a mesma, nos termos do art.º 43.º, n.º 1 do CP, em 120 (cento e vinte) dias de multa.

4.6 - Do cúmulo jurídico relativamente às penas de multa

Determinadas as penas concretas de multa que cabem a cada crime praticado pelo arguido CC, proceder-se-á à determinação da pena única do concurso de acordo com o art.º 77.º do CP.

Tal pena deverá ser determinada dentro de uma moldura calculada nos termos do art.º 77.º, n.º 2: o máximo correspondendo à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o mínimo fixando-se na mais alta das penas concretamente aplicadas. No caso sub judice, essa moldura será então de um mínimo de 200 (duzentos) dias a um máximo de 460 (quatrocentos e sessenta) dias de multa.

Dentro das molduras assim determinadas, a pena única fixar-se-á tendo em conta, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – art.º 77.º, n.º 1, in fine.

Esta avaliação deve centrar-se na ideia de “gravidade do ilícito global” que os factos analisados no seu conjunto nos ofereçam, bem como na resposta que os mesmos deem “à questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade” – FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português..., cit., pág. 291, §421.

Não se trata aqui de valorar novamente os elementos já tidos em conta na determinação de cada pena concreta, mas antes extrair consequências de uma “visão de conjunto” de toda a factualidade.

De acordo com estes critérios, e por se afigurar que os factos no seu conjunto não indiciam qualquer “tendência criminosa”, afigura-se-nos adequado fixar a pena única do concurso em 300 (trezentos) dias de multa.

Daqui resulta que não obstante o cúmulo agora efetuado, o mesmo abrange apenas penas de multa, mas já não a pena de multa que substituiu a pena de prisão. Isto porque estão em causa penas de diferente natureza.

Assim, as consequências a nível de incumprimento da pena de multa de substituição e da pena de multa principal são diversas: enquanto o não pagamento da multa de substituição leva a que o condenado cumpra a pena de prisão aplicada na sentença, o não pagamento da multa, enquanto pena principal, leva ao cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços. Em suma, como diz o Prof. Figueiredo dias, a multa de substituição é “…uma pena diferente da pena de multa enquanto pena principal, que possui um regime próprio e merece, por isso consideração doutrinal e sistemática autónoma” (Prof. F. Dias, obra citada, pág. 368), não sendo assim exato dizer-se que a pena de prisão substituída por multa passa a ser pena de multa.

Na verdade, nem o art.47.º do Código Penal, que regula a pena de multa pecuniária, nem o art.43.º, do mesmo Código, que regula a substituição da pena curta de prisão em multa, fazem qualquer referência ao cúmulo de penas de multa principal e de multas de substituição.

Assim, sufraga-se o entendimento vertido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.03.2017, disponível no site www.dgsi.pt “Não havendo nenhuma norma no CP que regule os termos em que pode ser feita a punição do concurso entre pena de multa de substituição e pena de multa principal, que são penas de espécie diferente, a solução só pode buscar-se no princípio enunciado no art.77.º, n.º 3, do CP, e concluir que aquelas penas devem cumular-se materialmente”. (neste sentido, também Paulo Dá Mesquita, in O concurso de penas, p. 28).

Pelo que, terá de haver cúmulo material das penas de multa e da pena de prisão substituída por multa.”

O arguido fundamenta, ainda, o seu recurso, além do mais, na violação pelo tribunal a quo do preceituado no art. 71.º do Código Penal.

Considera o Recorrente que: “O arguido é primário, tem vida estabilizada a nível profissional e também a nível pessoal, está perfeitamente enquadrado familiar, laboral e socialmente e, a partir do circunstancialismo atenuativo que concerne em seu favor, que o tribunal de condenação não valorou em toda a sua amplitude, perante todos os factos e circunstâncias atenuantes, o arguido deverá ser absolvido pelo crime de coação agravada na forma tentada e pelos dois crimes de ameaça agravada, quanto ao demais, crime de detenção de arma proibida a pena seja fixada a um “quantum” próximo do limite mínimo.”

Ora, já vimos que o arguido cometeu o crime de coação agravada na forma tentada e dois crimes de ameaça agravada. Subsidiariamente não suscitou qualquer intervenção desta instância ao nível das penas que lhe foram aplicadas quanto àqueles crimes nem sugeriu qualquer alternativa mais suave, limitando-se a dizer que eram exageradas pelo que sendo o objeto fixado pelas conclusões do recorrente diremos o seguinte:

Os critérios que presidem à determinação da medida da pena, estão identificados nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal.

As finalidades das penas estão expressas no artigo 40º do Código Penal.

Este artigo consagra o pensamento do Prof. Figueiredo Dias que defende decorrer do princípio da congruência entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal, a ideia de que só finalidades de prevenção, geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa de intimidação, mas como prevenção positiva de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida. A prevenção especial visa satisfazer as exigências de ressocialização do agente, com vista à sua recuperação e integração na comunidade.

O crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), 2.º, n.º 1, alínea ar), 3.º, n.º 2, alínea o) do Regime Jurídico das Armas e Munições Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Sendo o crime punido com pena de prisão ou de multa, torna-se necessário fazer a escolha entre a pena de prisão e a pena de multa, seguindo o critério previsto no artigo 70º do Código Penal, de que o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Nesta escolha entre a pena de prisão e a pena de multa, partilhamos inteiramente da posição adotada pelo tribunal “a quo” que optou pela pena de multa, por considerarmos que as mesmas são suficientes para acautelar as necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso vertente.

Feita a opção pela pena de multa, importa achar a medida concreta da pena.

Seguindo de perto a lição do Prof. Figueiredo Dias (Das Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, editorial Notícias, 1993, págs. 234 e segs.), a medida concreta da pena é encontrada dentro da moldura da prevenção. Esta moldura da prevenção comporta um ponto ótimo da tutela dos bens jurídicos, ponto esse que nunca poderá ultrapassar a medida da culpa, e um ponto mínimo, comunitariamente suportável de tutela dos bens jurídicos. Entre os pontos máximo e mínimo, devem atuar os factores de prevenção especial visando a ressocialização e recuperação do delinquente para a sociedade, devendo ter-se em conta que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa e que esta é também o suporte da pena, "nulla poena sine culpa”.

Ora, para fundamentar a sua posição de que a medida da pena é excessiva, o Recorrente limita-se a elencar as circunstâncias que no caso vertente depõem a seu favor, esquecendo todas as que depõem contra si (em oposição ao referido no art. 71.º, n.º 2 do C.P.).

Deste modo, tendo em atenção que o crime foi praticado com dolo directo, a ilicitude média decorrente de o arguido ter atuado num contexto de conflituosidade prévia e as específicas características da arma em questão, que foi utilizada para consumar outros ilícitos criminais, entendemos que a pena parcelar aplicada ao recorrente não merece qualquer censura.

Aliás, basta atendermos que a pena foi fixada, relativamente a este crime, no primeiro terço da moldura legal para concluirmos pela adequação da medida concreta da pena aplicada.

Cumpre ainda referir, a fim de delimitar os poderes e modo de intervenção deste Tribunal, que a sindicância do decidido não se efetivará como se inexistisse decisão recorrida ou como se este Tribunal da Relação se predispusesse a aplicar a pena contestada pela primeira vez. Ademais, note-se que “(…) o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” [cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, proc. 109/14.3GATBU.C1, Rel. Inácio Monteiro, consultado em www.dgsi.pt, sublinhado nosso].
Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.03.2018 [proc. n.º 827/17.4GAEPS.G1, Rel. Armando Azevedo, consultado em www.blook.pt], em alinhamento com a doutrina e jurisprudência aí citada, “(…) quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.
Efetivamente e tendo existido, a montante, um julgamento – com contraditório pleno, oralidade e imediação – e uma atividade jurisdicional de fixação concreta da pena no culminar daquela audiência, na dependência do Tribunal ad quem não estará a realização de nova e originária determinação da pena mas, tão só, no que o caso convoca, a sindicância do quantum da pena, seguindo e tendo por referencial os critérios de determinação utilizados pelo Tribunal a quo e respetiva motivação, escrutinando a eventual existência de falhas ou omissões, exercendo a sua função corretiva se o resultado da operação se revelar ilegal ou manifestamente desproporcionado.
Do exposto resulta que a intervenção em segunda instância deverá ser sempre pautada pelo princípio da mínima intervenção, intercedendo se e quando o processo determinativo se revele insuficiente ou desajustado à luz dos critérios legais de determinação da pena, tendo por matriz os factos assentes.
Na verdade, a individualização judiciária da pena não é imune a um grau controlado de discricionariedade, inexistindo uma pena concreta inquestionável ou uma sentença certa e ideal, mas, antes, uma gama de decisões que, numa faixa de razoabilidade e proporcionalidade, poderão ser adequadas, conquanto os tribunais, aplicando os mesmos critérios de determinação das penas concluam, em casos semelhantes, por penas aproximadas.
Regressando ao caso em apreço, como é consabido e resulta expressamente do estatuído no art.º 40.º, n.º 1, do C.P., a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em síntese e pela sua clareza, retenha-se o constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010 [proc. n.º 1687/04.0GDLLE.E1.S1, Rel. Pires da Graça, www.dgsi.pt]: - “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto ótimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, Temas Básicos…, p. 117, 121): Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo, contudo, o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Neste conspecto e atentas aquelas finalidades, o art.º 71.º do C.P. estabelece os critérios da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação desta, dentro dos limites definidos na moldura legal, efetua-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, valorando o Tribunal todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, tendo sempre por limite a culpa que, axiologicamente estranha a finalidades retributivas, estabelece o limite superior da pena que ainda seja concordante com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana.
No caso que nos ocupa, o Tribunal a quo individualizou a pena aplicada ao recorrente em pena de 200 (duzentos) dias de multa pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, à taxa diária de € 6,00 (seis euros). Pena fixada em um terço da moldura geral. É portanto proporcional e adequada.
Efetuado o cúmulo jurídico das penas de multa entendeu fixar a pena única do concurso em 300 (trezentos) dias de multa. Perante a amplitude da moldura geral abstrata resultante desse cúmulo (200 a 460 dias), verifica-se que os dias fixados situam-se próximo do terço daquela amplitude, ultrapassando em apenas 13 dias aquele terço, pelo que não se mostra desproporcional ou desadequada bem como a taxa diária que se fixou.
Relativamente às demais penas concretas o raciocínio é idêntico, não se evidenciando que o tribunal a quo tenha ajuizado de forma desproporcional ou desadequada cumprindo os critérios legais para a sua fixação, sendo que relativamente às ameaças agravadas as penas situam-se sensivelmente a meio da moldura penal e a de coação tentada próxima do mínimo legal.
Em face do exposto improcede nesta parte o recurso.

Do pedido cível.

Alega o recorrente AA “Nos termos supra alegados e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido dos dois pedidos de indemnização civil (da Sra. BB e da Unidade de Saúde Local ..., EPE).”

Alega o recorrente CC que “As quantias fixadas pelo Tribunal a quo em que condena o aqui arguido recorrente, CC, nas quantias totais de pedidos de indemnização civil no total de € 3.700,00, valor verdadeiramente excessivo face às condições económicas do arguido e face à prova produzida deverão os mesmos ser julgados improcedentes por não provados ou, caso assim não se entenda, reduzidos a 1/3, na proporção dos crimes de que vier a ser condenado.”

Relativamente ao primeiro importa referir que uma vez que não contesta em concreto os valores fixados, tendo improcedido o seu recurso, mantendo-se a condenação criminal de que foi alvo, a ilicitude do seu comportamento justifica nos termos fixados e com os critérios determinados na primeira instância a condenação cível de que foi alvo.

A acrescer cumpre desde logo referir que em matéria cível o recurso está dependente da alçada e da sucumbência, art. 400º, n º 2 do CPP.

Daí resulta que não é admissível recurso na parte cível, quando o valor do pedido, não é superior à alçada do tribunal de que se recorre ou sendo o pedido superior, o decaimento não é desfavorável em valor superior a metade da alçada. Assim, atualmente, atento o valor da alçada do tribunal de 1ª instância, para haver recurso para a Relação na parte cível, o pedido terá de ser superior a 5,000,00€ e o decaimento tem de lhe ser desfavorável em valor superior a €2.500,00.

O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, relativamente à vítima e ora respondente BB, previsto e punido no art.º 143.º do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), totalizando a quantia de € 910,00 (novecentos e dez euros).

Foi também o mesmo arguido condenado:

- A pagar as custas do processo fixadas em 2,5 Unidades de Conta a taxa de justiça devida e as custas relativas ao pedido de indemnização civil na proporção do decaimento ressalvados os pedidos em que é aplicável a isenção estatuída no alínea n) do artº 4º do Regulamento das Custas Processuais e

- No pagamento da quantia de 1.300,00€ (mil e trezentos euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela assistente e demandante, acrescida dos juros vencidos e vincendos contados desde a data da sentença e até integral e efetivo pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano.

Ora, o arguido recorre, para além do mais, do valor em que foi condenado a título de indemnização civil pelos danos não patrimoniais sofridos decorrente da prática do crime em que foi condenado e perpetrados na pessoa da demandante.

Atendendo ao valor em causa e ao vertido nos artºs 399º e artº 400º nº 2 do Código de Processo Penal, conjugado com o artº 31º da Lei 52/2008 de 28/08 e artº 44º nº 1 da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ), a alçada dos tribunais de primeira instancia em matéria civil é de 5.000,00 € (cinco mil Euros).

Ora, o valor da condenação em causa é de Euro 1.300,00, o valor da sucumbência é de Euro 700,00 (Valor peticionado pela Assistente de Euro 2.000 - 1.300 = 700), sendo, que a decisão é-lhe desfavorável em valor inferior a metade do valor da alçada do tribunal recorrido, conclui-se pois que deverá ser rejeitado o recurso apresentado nesta parte.

Em conclusão, o recurso interposto da sentença recorrida no que respeita ao pedido cível sempre terá de ser rejeitado por irrecorribilidade da mesma.

De facto, o princípio geral de recorribilidade das decisões judiciais não é ilimitado, havendo restrições como a que ora se analisa.

Dispõe o art.400.º, n.º2, do C.P.Penal “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa ao pedido de indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

O recurso da parte cível depende, assim, de dois pressupostos cumulativos:

-o valor do pedido de indemnização civil tem de ser superior à alçada do tribunal recorrido.

-o valor da sucumbência tem de ser superior a metade daquela alçada.

No caso dos autos, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante tem o valor de € 2.000,00 e o arguido / demandado foi condenado no pagamento de uma indemnização no valor de €1.300,00 e juros de mora.

Atento o montante peticionado e o fixado, não se verifica nem o primeiro, nem o segundo dos indicados pressupostos de admissibilidade do recurso da parte cível da decisão penal.

Pelo que se rejeita, desde logo, quanto à parte cível o recurso interposto por AA por inadmissibilidade legal de apreciação do mesmo.

Por sua vez, o arguido CC foi condenado no pagamento da quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante EE, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano; no pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante AA, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano; no pagamento da quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante DD, acrescida de juros, a contar da data desta sentença, até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva dos juros civis, fixada em 4% ao ano.

EE deduziu pedido de indemnização civil, por danos não patrimoniais, pelo valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) com fundamento no sofrimento de natureza íntima.

A sucumbência foi de € 2.300,00, não sendo desfavorável ao recorrente CC na medida em que foi apenas condenado em €1.200,00, valor inferior a metade da alçada.

Também o arguido AA deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado CC, por danos não patrimoniais, no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros).

A sucumbência foi de € 4.000,00, mas não foi desfavorável ao recorrente CC, na medida em que foi condenado em €1.000,00, valor inferior a metade da alçada.

Pelas razões supra-apresentadas também é de rejeitar qualquer apreciação relativamente às condenações que sofreu quanto ao pedido formulado por EE e por AA por falecerem ambos os requisitos.

Resta o pedido de indemnização civil apresentado pelo assistente DD contra o arguido CC, pedindo uma indemnização no valor de € 15.000,00 (quinze mil euros, pelos danos não patrimoniais por si sofridos).

O valor da sucumbência foi superior a metade da alçada da ordem de € 13.500,00.

Simplesmente como foi condenado a pagar ao DD a quantia de € 1.500,00, a decisão não lhe é desfavorável em valor superior a metade da alçada, ou seja, € 2.500,00, falecendo o 2º requisito.

Como não se verifica o segundo pressuposto, o recurso nesta parte também não é legalmente admissível.

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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento a ambos os recursos interpostos respetivamente por AA e CC, mantendo a decisão proferida na primeira instância e tudo o mais o ali decidido, devendo considerar-se não escritas as expressões alusivas à detenção de munições e soqueira.
Declarar improcedentes os recursos por inadmissibilidade legal quanto aos pedidos cíveis.
Custas criminais com taxa de justiça que fixo em 3 Ucs, para o recorrente AA e 4Ucs para o recorrente CC.
Custas cíveis por cada um dos arguidos com taxa de justiça pelo mínimo.

Sumário:

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Porto, 10 de julho de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Pedro Afonso Lucas
Donas Botto
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[3] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[4] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[5] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).