CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Sumário

I - No critério uniforme da jurisprudência e da doutrina a conduta do arguido com conteúdo normativo, julgada de facto e de direito em processo anterior (na mensuração da pena), ainda que não esgotadas todas as suas consequências, opera em relação a esse acontecer histórico o caso julgado.
II - O facto é o mesmo se já foi conhecido, e ainda se, não tendo sido conhecido, podia tê-lo sido.
III - O MP no processo anterior tendo tido conhecimento do núcleo essencial dos factos agora vertidos na acusação dos presentes autos, concretamente, o transporte intencional pelo arguido da menor no veículo automóvel daquele até à sua residência, face ao princípio da preclusão (integrante da exceção do caso julgado), impede a formulação da nova acusação, a qual apenas pretendia retificar a omissão da “qualificação jurídica” desses factos (ressalvada a importância do elemento subjetivo) naquele outro processo. ”

Texto Integral

Processo nº2845/22.1T9AVR.P1

Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo que correu termos no Juízo Central Criminal de Aveiro, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro foi proferida acórdão julgando-se nos seguintes termos:
Por conseguinte, concordamos com os fundamentos da exceção do caso julgado deduzida pelo arguido.
A violação do princípio "non bis in idem", constitui uma exceção dilatória (cfr. artigos 576.º, 1 e 577.º, i), ambos do Código de Processo Civil), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do mesmo Código) - normas aplicáveis por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Assim e porque de acordo com o princípio ne bis in idem consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, determina-se o arquivamento dos presentes autos.
Em face da decisão agora proferida, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, incluindo o pedido de indemnização civil formulado cuja apreciação sempre dependeria da condenação do arguido.
Deposite e notifique.

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Inconformado com o decidido veio o MP interpor recurso da mesma apresentando as seguintes conclusões:
Nos presentes autos, vinha o arguido AA acusado – conforme acusação deduzida em 06/03/2023 (refª 126010311) – da prática de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo artigo 161º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), por referência ao artigo 158º, nº2, al. e), todos do Código Penal, com fundamento na prática dos factos ali melhor descritos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Tendo o arguido requerido a abertura de instrução, veio a ser proferida a decisão instrutória de 02/11/2023 (refª 129802382), mediante a qual foi decidido pronunciar o arguido por tal crime, pelas razões de facto e de direito enunciadas na acusação (ali dadas por reproduzidas, nos termos do artigo 307º, nº 1, do Código de Processo Penal).
A final da audiência de julgamento, veio a ser proferido o acórdão ora recorrido, pelo qual se decidiu, em suma, julgar verificada a excepção dilatória de caso julgado invocada pelo arguido na sua contestação – por violação do princípio "non bis in idem" – nos termos dos artigos 576º, nº 1, e 577º, al. i), ambos do Código de Processo Civil, e que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa (cf. artigo 576º, nº 2, do mesmo Código) – normas aplicáveis por força do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal.
Em decorrência, entendeu o Tribunal a quo ficar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, incluindo o pedido de indemnização civil formulado cuja apreciação sempre dependeria da condenação do arguido.
Não foi, assim e além do mais, apreciada a matéria de facto submetida a julgamento e que fundamentava a imputação ao arguido do aludido crime de rapto agravado, nem feita a apreciação jurídica da matéria de facto provada e/ou não provada.
Não se conforma a o Ministério Público com o assim decidido, porquanto se entende que não está verificada a invocada excepção dilatória de caso julgado, pelo que se impunha a apreciação e decisão acerca da matéria de facto e crime pelos quais o arguido vinha pronunciado.
Assim sendo e em relação com tal parte do objecto processual, discorda-se do acórdão recorrido porquanto se constata que no mesmo ocorre nulidade por omissão de pronúncia, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, nº 1, als. a) e c), e 374º, nºs 2 e 3, als. a) e b), do Código de Processo Penal.
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No seu essencial, concorda-se com as referências normativas, jurisprudenciais e doutrinárias vertidas no acórdão recorrido.
Entende-se, porém, que foi feita errada interpretação e aplicação das normas jurídicas invocadas no caso concreto dos autos – e bem assim dos ensinamentos convocados.
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O que está em causa é saber se existe um impedimento legal, nomeadamente, o invocado caso julgado, a que contra o arguido AA corra procedimento criminal pelo crime de rapto agravado que nos presentes autos lhe vem imputado.
Entendeu o Tribunal a quo que pelos factos integradores do crime de rapto aqui imputado já o mesmo arguido foi julgado e condenado no âmbito do processo nº615/19.3JAAVR, pese embora aí tenha sido condenado pelo crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal.
Concluiu o Tribunal a quo, em suma, que existe uma identidade do objecto do processo.
O Código de Processo Penal vigente, ao contrário do que sucedia no Código de Processo Penal de 1929, não regulou os efeitos do caso julgado penal, bem como não determinou o efeito extra-processual de uma decisão final, seja de conteúdo absolutório, seja de conteúdo condenatório.
Tal ausência de regulamentação dos efeitos do caso julgado penal tem sido explicada como decorrente do entendimento de que tal matéria corresponderia ao desenvolvimento de regras gerais cujo lugar próprio seria a lei penal substantiva.
Ora, podemos desde logo surpreender uma norma de tal tipo na própria Constituição da República, mais concretamente no seu artigo 29º, nº 5, nos termos do qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Este preceito, que confere dignidade constitucional ao clássico princípio “non bis in idem”, comporta duas dimensões:
Como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); Como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 194).
O que tal normativo proíbe é o duplo julgamento, pretendendo-se evitar a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção e a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.
Está, pois, em primeiro lugar em causa o conceito de “julgado”, o qual tem um significado muito preciso, seja a nível semântico, seja a nível processual.
Ser julgado é ser objecto de uma decisão (sentença ou acórdão) após apreciação dos factos e das provas em julgamento. E a fase de julgamento, tal como decorre da nossa estrutura processual penal, é bem distinta das fases investigatórias (de inquérito e de instrução), que a precedem (facultativamente, no caso da instrução) e se destinam a verificar da existência ou inexistência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Não contendo a lei processual penal, como já se referiu, uma noção de caso julgado, há que recorrer ao lugar paralelo do Código de Processo Civil (ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal), que nos seus artigos 580º e 581º contêm os conceitos e os requisitos da litispendência e do caso julgado.
Assim, verificar-se-á a existência de caso julgado quando exista a repetição de uma causa, se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário – existindo repetição da causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Transpondo para o procedimento criminal, existirá caso julgado quando se pretenda fazer valer tal procedimento contra o mesmo arguido, com vista à obtenção do mesmo efeito jurídico (a sua condenação) e quando a pretensão deduzida procede do mesmo facto jurídico (ou seja, do mesmo crime).
Em segundo lugar, cabe dilucidar o que seja “o mesmo crime”.
Neste âmbito, e para a questão que nos ocupa, cabe atentar em duas categorias que, não se confundindo, são no procedimento criminal sobreponíveis: o ‘facto punível’ e o ‘facto processual’.
O facto punível reconduz-se ao facto jurídico-penalmente referenciado, ou seja, ao comportamento humano (por acção ou omissão) que corresponde à realização do tipo.
Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal – Sobre a Doutrina Geral do Crime”, Coimbra Editora, Abril 2001, págs. 216/217.
O facto processual corresponde a um acontecimento de vida susceptível de se constituir como objecto de um processo penal e que, com o necessário referente normativo, é susceptível de uma apreciação jurídico-penal – ou seja, que surja configurável como um crime.
Veja-se, quanto a tal conceito, Frederico Isasca, in “Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português”, Livraria Almedina, Coimbra – 1995, págs. 94/95.
Como afirma este último autor, “Que num tal conceito do facto processual vai implícito um juízo a priori de subsunção, ou uma presunção jurídico-normativa prévia sobre o pedaço de vida que constitui o facto processual submetido à apreciação jurisdicional, é inegável, mas é esse o tributo que se impõe, pelo referente normativo de que se não pode prescindir”.
Temos, portanto, que o que seja um determinado facto punível, ou um determinado crime ou ainda um determinado facto processual, não se esgota no comportamento humano, surgindo a sua relevância jurídico-penal delimitada pelo tipo de ilícito que tal comportamento realiza.
Tal categorização parece-nos relevante, num caso como é o destes autos, em que se verifica, analisando a factualidade imputada em ambos os processos, a imputação de dois crimes distintos, seja na sua conformação factual, seja na sua referenciação jurídico-penal.
Na verdade, está em causa o cometimento de dois crimes em concurso efectivo.
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Vejamos o que resulta dos autos.
No âmbito do processo nº 615/19.3JAAVR foi imputada ao arguido, na acusação ali deduzida em 28/12/2021 (certificada a fls. 379 a 384 destes autos), a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p., pelo artigo 171º, n.º1, do Código Penal, com fundamento nos factos ali melhor descritos e que, em suma, se traduziram em o arguido, no dia 30/07/2019, na sua habitação, ter levado a ofendida BB a desnudar-se, lhe ter acariciado os seios, ter colocado a boca nos seus seios e ter exposto o seu pénis perante a mesma – sendo ali igualmente descrita a factualidade atinente ao estado subjectivo em que actuou, ou seja, o dolo relativo a tal crime de abuso sexual, do seguinte modo:
“10. Agiu o arguido de forma livre, consciente e deliberada, com o intuito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, aproveitando o momento em que se encontrava sozinho com a menor BB, na altura com 13 anos de idade, e portadora de défice cognitivo e físico, para lhe tocar, acariciar, e colocar a boca nos seios, restringindo a sua liberdade e autodeterminação sexual, bem sabendo o arguido que estava a praticar actos com uma finalidade e um sentido sexual”.
Nessa mesma acusação, para contextualizar o modo como o arguido logrou levar a ofendida até à sua habitação, descreve-se o seguinte: “5. No dia 30-07-2019, pelas 09h00, o arguido AA, aproveitando-se do facto de BB, ser menor de 13 anos e portadora de deficiência física e mental, bem como da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates para que o acompanhasse à sua residência sita na Rua ..., na ..., local para onde a transportou no veiculo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta com a matricula ..-..-SC” (sublinhados nossos).
Por tais factos foi o arguido julgado, vindo a ser condenado como autor material de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punível pelo art. 171º, nº1 do Código Penal, por acórdão proferido em 15/07/2022, integralmente confirmado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/03/2023 e transitado em julgado em 30/03/2023 (cf. certidões juntas a fls. 396 a 414 e 526 a 573 destes autos) – com fundamento nos factos ali melhor descritos entre os dados como provados, que foram, como resulta da parte atinente ao enquadramento jurídico-penal, os actos que integram o conceito de acto sexual de relevo e os factos atinentes ao correspondente elemento subjectivo (dolo), conforme resulta de págs. 24 de tal acórdão.
O facto atinente ao transporte da ofendida foi ali referido, não para fazer operar qualquer circunstância qualificativa ou agravativa do tipo de crime ali em causa, mas tão-só para determinação do grau de ilicitude da conduta e do modo de execução do crime, para efeitos de determinação da medida da pena, aliás em obediência ao disposto no artigo 71º, nº 2, al. a), do Código Penal.
Porque da prova produzida em audiência de julgamento no âmbito de tal processo (a que consta do CD junto a fls. 387) resultava que o transporte da menor ofendida para casa do arguido ocorrera, além do mais, sem o consentimento (expresso ou presumido) de quem relativamente àquela exercia o poder paternal, foi pelo Ministério Público promovida a extracção da certidão que veio a dar origem aos presentes autos – para procedimento criminal pelo crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigo 161º, nº1, alínea b), e nº 2, al. a), do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 158º, nº 2, al. e), do mesmo Código – nos termos que melhor constam registados na correspondente gravação na plataforma Citius, referente à sessão do dia 15/07/2022 (e que a acta certificada a fls. 385 a 386 destes autos não transcreve na íntegra).
Acolhendo o assim promovido, foi pela Mª Juiz Presidente determinada a extracção da aludida certidão.
Foi com base em tal certidão instaurado o presente procedimento criminal e, a final do inquérito, foi deduzida nestes autos acusação em 06/03/2023 (refª126010311), na qual se imputa ao mesmo arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo artigo 161º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), por referência ao artigo 158º, nº 2, al. e), ambos do Código Penal, com fundamento nos seguintes factos:
1. O arguido e a sua esposa CC, à data da prática dos factos que seguidamente se descreverão, residiam na Rua ..., ..., na ..., concelho de Ílhavo.
2. Naquela altura, a ofendida BB, nascida a ../../2005, residia com os seus avós DD e EE, na Rua ..., na ....
3. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2017, o arguido, a sua mulher e os avós de ofendida BB, relacionavam-se socialmente, sendo habituais visitas destes últimos à casa do arguido e esposa, onde jogavam às cartas e também frequentavam, juntos, locais de convívio, tais como restaurantes e outros.
4. À data dos factos, a ofendida BB, que contava 13 anos de idade, padecia de deficiência física e mental com quadro clínico de défice intelectual associado a hemiparesia direita e défice visual com estrabismo, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade de 70%.
5. O arguido nasceu em ../../1945, tendo, portanto, à data da prática dos factos, 74 anos de idade.
6. No dia 30 de julho de 2019, pelas 09h00, o arguido, aproveitando-se do facto de BB ter 13 anos de idade e ser portadora de deficiência física e mental, bem como, da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates, para que o acompanhasse à sua residência, sita na referida Rua ..., na ...,
7. local para onde a transportou, no veículo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-SC, propriedade da sua esposa.
8. O arguido praticou os factos acima descritos, com o objetivo de praticar os factos dados como provados no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º615/19.3JAAVR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal de Aveiro – Juiz 6, designadamente:
9. “No interior da residência do arguido, este, aproveitando-se da inexperiência e da debilidade cognitiva e física da vítima, levou-a a desnudar-se, deixando a vítima com os seios e a zona genital expostas” e;
10. “Com a vítima assim desnudada, o arguido sabendo que a mesma tinha 13 anos de idade, e défice cognitivo e físico, colocou a boca nos seios da mesma, e ao mesmo tempo, desnudou-se si próprio da cintura para baixo, baixando as calças até à zona superior das suas coxas”.
11. O arguido sabia que BB era menor de idade, com apenas 13 anos.
12. O arguido atuou com o propósito concretizado de aliciar BB a entrar no mencionado veículo e a transportar para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, o que conseguiu, sem qualquer autorização dos seus representantes legais, com o intuito de a constranger a satisfazer-lhe os seus instintos sexuais.
13. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal” (sublinhados nossos).
Tendo o arguido requerido a abertura de instrução, veio a ser proferida decisão instrutória de pronúncia, em 02/11/2023 (refª 129802382), pelos factos constantes da acusação e com a qualificação jurídica resultante da acusação, ali dados por reproduzidos nos termos do artigo 307º, nº 1, do Código de Processo Penal.
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Face a tais elementos, forçoso será concluir que na acusação deduzida no processo originário, o processo nº 615/19.3JAAVR, não só não vinha imputado ao arguido, em termos de qualificação jurídica das condutas ali descritas, o crime de rapto agravado, nem na mesma era descrita factualidade integradora de tal crime de rapto agravado.
Nessa mesma acusação, a referência ao transporte da ofendida para a residência do arguido surge como circunstanciadora do modo de actuação subsequente do arguido e explicativa da forma como o arguido ali veio a encontrar-se a sós com a ofendida, onde contra esta praticou os actos sexuais que fundamentaram a sua condenação pelo crime de abuso sexual de criança.
Em contraponto, na imputação feita nos presentes autos (2845/22.1T9AVR), é descrita a factualidade integradora, de pleno, do crime de rapto agravado pelo qual foi acusado e pronunciado.
Não só se descreve a acção do arguido – a deslocação espacial da ofendida –como vem descrito o elemento subjectivo específico que caracteriza tal tipo de crime – in casu, a intenção de cometer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima – e o estado subjectivo em que o arguido actuou (dolo).
Ressalvado o devido respeito por entendimento diverso, parece-nos manifesto que em ambos os processos estão em causa factos puníveis distintos e factos processuais distintos.
Desde logo, estão em causa actuações do arguido que são perfeitamente distintas e autonomizáveis entre si – num caso está em causa a sujeição da ofendida a actos sexuais de relevo, no outro caso está em causa a deslocação espacial da ofendida – a integrar tipos de ilícito diversos – o do artigo 171º, nº 1, do Código Penal no primeiro caso, o do artigo 161º, nº 1, do Código Penal no segundo caso.
Tais distintas condutas são violadoras de bens jurídicos diferenciados – no caso do crime de abuso sexual de criança está em causa o bem jurídico da liberdade e autodeterminação sexual, sendo que no caso do crime de rapto está em causa o bem jurídico da liberdade pessoal (na sua vertente de liberdade ambulatória).
Ambos os tipos de crime são tipos dolosos, exigindo que o dolo se manifeste em qualquer das suas formas, dirigido aos elementos dos correspondentes tipos objectivos –sendo que no caso do crime de rapto estamos, ademais, perante um tipo de crime que exige, para sua integração, uma intenção específica (a acção tem de ser determinada pela intenção de praticar contra a vítima alguma das acções tipificadas no nº 1 do citado artigo 161º).
Estando em causa acções distintas, com diferentes valorações jurídico-penais e violadoras de bens jurídicos distintos, existe concurso efectivo entre ambos os crimes quando ambos surjam na sua forma consumada.
Como escreve Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao então artigo 160º do Código Penal (Rapto), “O crime de rapto (consumado) não exige a consumação do ‘crime-fim’ (isto é, não exige a realização da intenção do raptor), nem sequer o início da tentativa deste crime, basta-se com a finalidade ou intenção de o praticar. Deste modo, se o raptor concretiza a sua intenção, responderá, em concurso efectivo, pelo crime de rapto (art. 160º) e pelo ‘crime-fim’ (…)” – in ‘Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 430.
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Na senda do que vem sendo exposto, conclui-se o seguinte:
1º Em ambos os processos está em causa o mesmo arguido;
2º No processo nº 615/19.3JAAVR, estava em causa a imputação ao arguido do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal, pelo qual veio a ser condenado, com fundamento na factualidade acima exposta – factualidade essa, integradora do tipo de crime em questão, que é totalmente distinta e autónoma da factualidade integradora do crime de rapto agravado imputado nos presentes autos;
3º No processo nº 615/19.3JAAVR, a referência, quer na acusação, quer na matéria de facto provada, ao transporte da vítima de um local para outro, surge como meramente circunstanciadora da conduta do arguido que aí fundamentou a sua condenção pelo crime de abuso sexual de criança – não havendo, seja na acusação, seja no acórdão condenatório, a referência a qualquer outro facto que perfectibilize a integração do tipo de crime de rapto (seja a intenção específica exigida por tal tipo de crime, seja o correspondente dolo genérico, seja a ausência de consentimento expresso ou presumido, seja a referência à privação da liberdade ambulatória da vítima);
4º Nos presentes autos, processo nº 2845/22.1T9AVR, está em causa a imputação ao mesmo arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo artigo 161º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), por referência ao artigo 158º, nº 2, al. e), ambos do Código Penal, com fundamento na factualidade igualmente acima exposta – factualidade essa, integradora do tipo de crime em questão, que é totalmente distinta e autónoma da factualidade integradora do crime de abuso sexual de criança imputado no processo nº 615/19.3JAAVR;
5º Estão em causa em ambos os processos dois eventos completamente distintos na sua realidade ôntica e com incidências jurídico-penal igualmente distintas – ou seja, estão em causa factos puníveis diversos, crimes distintos, que se encontram entre si numa relação de concurso efectivo – e que têm a uní-los a circunstância de terem sido praticados pelo mesmo arguidos, de terem ocorrido na mesma data e na mesma localidade, um em sucessão ao outro e um deles visando levar ao cometimento do outro;
6º Não existe, pois, entre ambos os processos uma identidade do facto punível, nem uma identidade do facto processual – estando em causa eventos autónomos entre si e não “o mesmo crime”.
Sendo ambos os crimes em apreço autonomizáveis entre si – e sendo a factualidade integradora do crime de rapto percepcionada na sua integralidade apenas na decorrência da prova produzida no julgamento do primeiro processo – a extracção de certidão que deu origem aos presentes autos, com vista à comunicação ao Ministério Público desses novos factos para valer como denúncia pelo crime de rapto, inscreve-se ainda dentro do pressuposto pelo artigo 359º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal (relativo à alteração substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia).
Em suma, não está verificada a excepção dilatória de caso julgado convocada no acórdão recorrido, nem se mostra violado, com a dedução da acusação dos presentes autos e com a prolação da decisão instrutória de pronúncia, o princípio ne bis in idem consagrado no nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
Impunha-se, pois, que o Tribunal a quo proferisse decisão de mérito, no sentido de apreciar a prova produzida em audiência de julgamento, decidindo quais os factos provados e não provados e fazendo aplicação, sendo caso disso, das normas jurídicas aplicáveis aos factos provados – concluindo, a final, pela condenação ou pela absolvição do arguido, como prescrito pelo artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
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Entende-se, em resumo, que o Tribunal a quo fez errada apreciação da factualidade submetida a julgamento no âmbito dos presentes autos, ao considerar que a mesma não é autonomizável da factualidade submetida a julgamento no âmbito do processo nº 615/19.3JAAVR.
Em decorrência, mais se entende ter sido feita errada interpretação e aplicação das normas decorrentes, por um lado, do artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, e por outro lado, dos artigos 576º, nºs 1 e 2, e 577º, i), ambos do Código de Processo Civil (convocados no acórdão recorrido ao abrigo do artigo 4º do Código de Processo Penal).
Como consequência, impunha-se que o Tribunal a quo apreciasse e decidisse a matéria de facto submetida a julgamento face ao disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Não o tendo feito, o acórdão recorrido é nulo – artigo 379º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal.
Deve, portanto, tal nulidade ser declarada e, em consequência, determinar-se a prolação de nova decisão pelo Tribunal recorrido – nos termos do artigo 379º, nº 3, do Código de Processo Penal.
CONCLUSÕES
1º O presente recurso vem interposto do acórdão proferido nos autos à margem referenciados, em 05/02/2024 (refª 131410311), mediante o qual, a final da audiência de julgamento a que foi submetido o arguido AA, se decidiu, em suma, julgar verificada a excepção dilatória de caso julgado invocada pelo arguido na sua contestação – por violação do princípio "non bis in idem" consagrado no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, e por força dos artigos 576º, nº 1, e 577º, al. i), ambos do Código de Processo Civil – o que ali se entendeu obstar a que o tribunal conheça do mérito da causa (cf. artigo 576º, nº 2, do mesmo Código) – normas ali convocadas por força do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal;
2º Não se conforma a o Ministério Público com o assim decidido, porquanto se entende que não está verificada a invocada excepção dilatória de caso julgado, pelo que se impunha a apreciação e decisão acerca da matéria de facto e crime pelos quais o arguido vinha pronunciado – concluindo-se que, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo, o acórdão recorrido se mostra ferido de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, nº 1, als. a) e c), e 374º, nºs 2 e 3, als. a) e b), do Código de Processo Penal;
3º Nos presentes autos, vinha o arguido AA acusado – conforme acusação deduzida em 06/03/2023 (refª 126010311) – da prática de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo artigo 161º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), por referência ao artigo 158º, nº 2, al. e), todos do Código Penal, com fundamento na prática dos factos ali melhor descritos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
Tendo o arguido requerido a abertura de instrução, veio a ser proferida a decisão instrutória de 02/11/2023 (refª 129802382), mediante a qual foi decidido pronunciar o arguido por tal crime, pelas razões de facto e de direito enunciadas na acusação (ali dadas por reproduzidas, nos termos do artigo 307º, nº 1, do Código de Processo Penal);
4º Em decorrência do decidido no acórdão recorrido, entendeu o Tribunal a quo ficar prejudicado o conhecimento das demais questões, pelo que não foi, além do mais, apreciada a matéria de facto submetida a julgamento e que fundamentava a imputação ao arguido do aludido crime de rapto agravado, nem feita a apreciação jurídica da matéria de facto provada e/ou não provada;
5º O acórdão recorrido parte do pressuposto, em nosso entendimento errado, de que pelos factos integradores do crime de rapto aqui imputado já o mesmo arguido foi julgado e condenado no âmbito do processo nº 615/19.3JAAVR – pese embora aí tenha sido condenado pelo crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal -- concluindo o Tribunal a quo, em suma, que existe em ambos os processos uma identidade do objecto processual;
6º Está, pois, em causa a questão de saber se existe um impedimento legal, nomeadamente, o invocado caso julgado, a que contra o arguido AA corra procedimento criminal pelo crime de rapto agravado que nos presentes autos lhe vem imputado;
7º Nos termos do artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime – preceito que confere dignidade constitucional ao clássico princípio “non bis in idem”, comportando desde logo uma dimensão de direito subjectivo fundamental, que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto;
8º Está em causa em primeiro lugar em tal normativo o conceito de “julgado” – que tem o significado de ser objecto de uma decisão (sentença ou acórdão) após apreciação dos factos e das provas em julgamento – conceito esse que, na ausência de normas específicas na lei processual penal, cabe ser densificado por recurso à noção de caso julgado decorrente do Código de Processo Civil, por apelo aos seus artigos 580º e 581º (ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal);
9º Verificar-se-á a existência de caso julgado quando exista a repetição de uma causa, se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário – existindo repetição da causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir;
10º Transpondo para o procedimento criminal, existirá caso julgado quando se pretenda fazer valer tal procedimento contra o mesmo arguido, com vista à obtenção do mesmo efeito jurídico (a sua condenação) e quando a pretensão deduzida procede do mesmo facto jurídico (ou seja, do mesmo crime);
11º Em segundo lugar, cabe dilucidar o que seja “o mesmo crime” – aqui cabendo atentar em duas categorias que, não se confundindo, são no procedimento criminal sobreponíveis: o ‘facto punível’ e o ‘facto processual’;
12º O facto punível reconduz-se ao facto jurídico-penalmente referenciado, ou seja, ao comportamento humano (por acção ou omissão) que corresponde à realização de um determinado tipo legal de crime, sendo que o facto processual corresponde a um acontecimento de vida susceptível de se constituir como objecto de um processo penal e que,
com o necessário referente normativo, é susceptível de uma apreciação jurídico-penal – ou
seja, que surja configurável como um crime;
13º Temos, portanto, que o que seja um determinado facto punível, ou um determinado crime ou ainda um determinado facto processual, não se esgota no comportamento humano, surgindo a sua relevância jurídico-penal delimitada pelo tipo de ilícito que tal comportamento realiza;
14º No caso dos autos, o que se verifica, analisando a factualidade imputada em ambos os processos, é a imputação de dois crimes distintos, de dois factos puníveis diversos, seja na sua conformação factual, seja na sua referenciação jurídico-penal – estando em causa o cometimento de dois crimes em concurso efectivo.
15º No âmbito do processo nº 615/19.3JAAVR foi imputada ao arguido, na acusação ali deduzida em 28/12/2021 (certificada a fls. 379 a 384 destes autos), a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p., pelo artigo 171º, n.º1, do Código Penal, com fundamento nos factos ali melhor descritos e que, em suma, se traduziram em o arguido, no dia 30/07/2019, na sua habitação, ter levado a ofendida BB a desnudar-se, lhe ter acariciado os seios, ter colocado a boca nos seus seios e ter exposto o seu pénis perante a mesma – sendo ali igualmente descrita a factualidade atinente ao estado subjectivo em que actuou, ou seja, o dolo relativo a tal crime de abuso sexual, do seguinte modo: “10. Agiu o arguido de forma livre, consciente e deliberada, com o intuito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, aproveitando o momento em que se encontrava sozinho com a menor BB, na altura com 13 anos de idade, e portadora de défice cognitivo e físico, para lhe tocar, acariciar, e colocar a boca nos seios, restringindo a sua liberdade e autodeterminação sexual, bem sabendo o arguido que estava a praticar actos com uma finalidade e um sentido sexual”;
16º Nessa mesma acusação, para contextualizar o modo como o arguido logrou levar a ofendida até à sua habitação, descreve-se o seguinte:
“5. No dia 30-07-2019, pelas 09h00, o arguido AA, aproveitando-se do facto de BB, ser menor de 13 anos e portadora de deficiência física e mental, bem como da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates para que o acompanhasse à sua residência sita na Rua ..., na ..., local para onde a transportou no veiculo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta com a matricula ..-..-SC” (sublinhados nossos);
17º Por tais factos foi o arguido julgado, vindo a ser condenado como autor material de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punível pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal, por acórdão proferido em 15/07/2022, integralmente confirmado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/03/2023 e transitado em julgado em 30/03/2023 (cf. certidões juntas a fls. 396 a 414 e 526 a 573 destes autos) – com fundamento nos factos ali melhor descritos entre os dados como provados, que foram, como resulta da parte atinente ao enquadramento jurídico-penal, os actos que integram o conceito de acto sexual de relevo e os factos atinentes ao correspondente elemento subjectivo (dolo), conforme resulta de págs.24 de tal acórdão;
18º O facto atinente ao transporte da ofendida foi ali referido, não para fazer operar qualquer circunstância qualificativa ou agravativa do tipo de crime ali em causa, mas tão-só para determinação do grau de ilicitude da conduta, para efeitos de determinação da medida da pena, aliás em obediência ao disposto no artigo 71º, nº 2, al. a), do Código Penal;
19º Porque da prova produzida em audiência de julgamento no âmbito de tal processo 615/19.3JAAVR (a que consta do CD junto a fls. 387) resultava que o transporte da menor ofendida para casa do arguido ocorrera, além do mais, sem o consentimento (expresso ou presumido) de quem relativamente àquela exercia o poder paternal e com a finalidade de contra ela praticar aqueles actos sexuais, foi pelo Ministério Público promovida a extracção da certidão que veio a dar origem aos presentes autos – para procedimento criminal pelo crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigo 161º, nº 1, alínea b), e nº 2, al. a), do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 158º, nº 2, al. e), do mesmo Código – nos termos que melhor constam registados na correspondente gravação na plataforma Citius, referente à sessão do dia 15/07/2022 (e que a acta certificada a fls. 385 a 386 destes autos não transcreve na íntegra) – e acolhendo o assim promovido, foi pela Mª Juiz Presidente determinada a extracção da aludida certidão;
20º Foi com base em tal certidão instaurado o presente procedimento criminal e, a final do inquérito, foi deduzida nestes autos acusação em 06/03/2023 (refª 126010311), na qual se imputa ao mesmo arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo artigo 161º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), por referência ao artigo 158º, nº 2, al. e), ambos do Código Penal, com fundamento, além do mais, nos seguintes factos: “(…)
6. No dia 30 de julho de 2019, pelas 09h00, o arguido, aproveitando-se do facto de BB ter 13 anos de idade e ser portadora de deficiência física e mental, bem como, da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates, para que o acompanhasse à sua residência, sita na referida Rua de São
7. local para onde a transportou, no veículo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-SC, propriedade da sua esposa.
8. O arguido praticou os factos acima descritos, com o objetivo de praticar os factos dados como provados no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º615/19.3JAAVR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal de Aveiro – Juiz 6, designadamente:
(…)
12. O arguido atuou com o propósito concretizado de aliciar BB a entrar no mencionado veículo e a transportar para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, o que conseguiu, sem qualquer autorização dos seus representantes legais, com o intuito de a constranger a satisfazer-lhe os seus instintos sexuais.
13. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal” (sublinhados nossos).
21º Tendo o arguido requerido a abertura de instrução, veio a ser proferida decisão instrutória de pronúncia, em 02/11/2023 (refª 129802382), pelos factos constantes da acusação e com a qualificação jurídica resultante da acusação, ali dados por reproduzidos nos termos do artigo 307º, nº 1, do Código de Processo Penal;
22º Vistas as acusações deduzidas em ambos os processos, a decisão instrutória proferida nos presentes autos e o acórdão condenatório proferido no processo nº615/19.3JAAVR, forçoso será concluir que na acusação deduzida no processo originário (o processo nº 615/19.3JAAVR), não só não vinha imputado ao arguido, em termos de qualificação jurídica das condutas ali descritas, o crime de rapto agravado, nem na mesma era descrita factualidade integradora de tal crime de rapto agravado – surgindo naquele outro processo a referência ao transporte da ofendida para a residência do arguido como circunstanciadora do modo de actuação subsequente do arguido e explicativa da forma como o arguido logrou encontrar-se a sós com a ofendida, na habitação onde contra esta praticou os actos sexuais que fundamentaram a sua condenação pelo crime de abuso sexual de criança;
23º Em contraponto, na imputação feita nos presentes autos (2845/22.1T9AVR), é descrita a factualidade integradora, de pleno, do crime de rapto agravado pelo qual foi acusado e pronunciado – não apenas se descrevendo a conduta objectiva do arguido – a deslocação espacial da ofendida – como sendo descrito o elemento subjectivo específico que caracteriza tal tipo de crime – in casu, a intenção de cometer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima – e o estado subjectivo em que o arguido actuou (dolo);
24º Ressalvado o devido respeito por entendimento diverso, parece-nos manifesto que em ambos os processos estão em causa factos puníveis distintos e factos processuais distintos, porquanto desde logo estão em causa actuações do arguido que são perfeitamente distintas e autonomizáveis entre si – num caso está em causa a sujeição da ofendida a actos sexuais de relevo, no outro caso está em causa a deslocação espacial da ofendida – a integrar tipos de ilícito diversos – o do artigo 171º, nº 1, do Código Penal no primeiro caso, o do artigo 161º, nº 1, do Código Penal no segundo caso;
25º Mais: Tais distintas condutas são violadoras de bens jurídicos diferenciados – no caso do crime de abuso sexual de criança está em causa o bem jurídico da liberdade e autodeterminação sexual, sendo que no caso do crime de rapto está em causa o bem jurídico da liberdade pessoal (na sua vertente de liberdade ambulatória);
26º Sendo ambos os tipos de crime dolosos, exigindo que o dolo se manifeste em qualquer das suas formas, dirigido aos elementos dos correspondentes tipos objectivos – no caso do crime de rapto estamos, ademais, perante um tipo de crime que exige, para sua integração, uma intenção específica (a acção tem de ser determinada pela intenção de praticar contra a vítima alguma das acções tipificadas no nº 1 do citado artigo 161º);
27º Estando em causa acções distintas, com diferentes valorações jurídico-penais e violadoras de bens jurídicos distintos, existe concurso efectivo entre ambos os crimes quando ambos surjam na sua forma consumada;
28º Na senda do que vem sendo exposto, conclui-se o seguinte:
- Em ambos os processos está em causa o mesmo arguido;
- No processo nº 615/19.3JAAVR, estava em causa a imputação ao arguido do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal, pelo qual veio a ser condenado, com fundamento na factualidade acima exposta – factualidade essa, integradora do tipo de crime em questão, que é totalmente distinta e autónoma da factualidade integradora do crime de rapto agravado imputado nos presentes autos;
- No processo nº 615/19.3JAAVR, a referência, quer na acusação, quer na matéria de facto provada, ao transporte da vítima de um local para outro, surge como meramente circunstanciadora da conduta do arguido que aí fundamentou a sua condenação pelo crime de abuso sexual de criança – não havendo, seja na acusação, seja no acórdão condenatório, a referência a qualquer outro facto que perfectibilize a integração do tipo de crime de rapto (seja a intenção específica exigida por tal tipo de crime, seja o correspondente dolo genérico, seja a ausência de consentimento expresso ou presumido, seja a referência à privação da liberdade ambulatória da vítima);
- Nos presentes autos, processo nº 2845/22.1T9AVR, está em causa a imputação ao mesmo arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo artigo 161º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), por referência ao artigo 158º, nº 2, al. e), ambos do Código Penal, com fundamento na factualidade igualmente acima exposta – factualidade essa, integradora do tipo de crime em questão, que é totalmente distinta e autónoma da factualidade integradora do crime de abuso sexual de criança imputado no processo nº 615/19.3JAAVR;
- Estão em causa em ambos os processos dois eventos completamente distintos na sua realidade ôntica e com incidências jurídico-penais igualmente distintas – ou seja, estão em causa factos puníveis diversos, crimes distintos, que se encontram entre si numa relação de concurso efectivo – e que têm a uní-los apenas a circunstância de terem sido praticados pelo mesmo arguido, de terem ocorrido na mesma data e na mesma localidade, um em sucessão ao outro e um deles visando levar ao cometimento do outro;
- Não existe, pois, entre ambos os processos uma identidade do facto punível, nem uma identidade do facto processual – estando em causa eventos autónomos entre si e não “o mesmo crime”;
29º Sendo ambos os crimes em apreço autonomizáveis entre si – e sendo a factualidade integradora do crime de rapto percepcionada na sua integralidade apenas na decorrência da prova produzida no julgamento do primeiro processo – a extracção de certidão que deu origem aos presentes autos, com vista à comunicação ao Ministério Público desses novos factos para valer como denúncia pelo crime de rapto, inscreve-se ainda dentro do pressuposto e do permitido pelo artigo 359º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal (relativo à alteração substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia);
30º Em suma, não está verificada a excepção dilatória de caso julgado convocada no acórdão recorrido, nem se mostra violado, com a dedução da acusação dos presentes autos e com a prolação da decisão instrutória de pronúncia, o princípio ne bis in idem consagrado no nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
31º Entende-se, em resumo, que o Tribunal a quo fez errada apreciação da factualidade submetida a julgamento no âmbito dos presentes autos, ao considerar que a mesma não é autonomizável da factualidade submetida a julgamento no âmbito do processo nº 615/19.3JAAVR;
32º Em decorrência, mais se entende ter sido feita errada interpretação e aplicação das normas decorrentes, por um lado, do artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, e por outro lado, dos artigos 576º, nºs 1 e 2, e 577º, i), ambos do Código de Processo Civil (convocados no acórdão recorrido ao abrigo do artigo 4º do Código de Processo Penal);
33º Como consequência, impunha-se que o Tribunal a quo apreciasse e decidisse a matéria de facto submetida a julgamento face ao disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, e não o tendo feito, o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia – artigo 379º, nº 1, als. a) e c), do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 374º, nºs 2 e 3, als. a) e b), do Código de Processo Penal;
34º Deve, portanto, tal nulidade ser declarada e, em consequência, determinarse a prolação de nova decisão pelo Tribunal recorrido – nos termos do artigo 379º, nº 3, do Código de Processo Penal – o que se peticiona.
Deve, portanto, ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
Deve o acórdão recorrido ser declarado nulo por omissão de pronúncia, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, nº 1, als. a) e c), e 374º, nºs 2 e 3, als. a) e b), do Código de Processo Penal.
Em consequência, deverá determinar-se a prolação de nova decisão pelo Tribunal recorrido – nos termos do artigo 379º, nº 3, do Código de Processo Penal – em que se aprecie e decida a matéria de facto e de direito submetida a julgamento, proferindo-se uma decisão de mérito, o que se peticiona. V. Exas., porém, decidirão como for de JUSTIÇA
*
O arguido AA veio responder ao recurso concluindo da seguinte forma:
I - O douto Acordão recorrido encontra-se bem fundamentado, de facto e de direito, e interpretou acertada e corectamente ao caso dos autos as disposições dos Artºs. 576º, nºs. 1 e 2, 577º, al. i), 580º do C.P.C., que obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa, por repetição do julgado, aplicáveis por força do Artº 4º do C. P. Penal,
II – Aliás, sempre tais normas normas Artºs. 576º, nºs. 1 e 2, 577º, al.i), 580º do C.P.C., aplicáveis ao caso por efeito do Artº 4º do C.P.Penal, quando interpretadas em sentido diferente, seriam materialmente inconstitucionais por violação do disposto no Artº 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
III Deliberada que foi a procedência da alegada excepção do caso julgado, com os fundamentos doutamente expostos no Acórdão recorrido, que, salvo o devido respeito, não são abalados ou postos em causa pelas doutas alegações de recurso (a fundamentação do douto Acórdão já por si rebate tais doutas alegações) não tinha o Tribunal de apreciar e se pronunciar sobre a matéria de facto submetida a julgamento, pelo que não subsiste a alegada nulidade por omissão de pronúncia, nos termos dos artºs. 379º, nº 1, e 374º, nºs. 2 e 3, do C.Proc. Penal.
Deve o recurso ser julgado improcedente e mantido o douto Acórdão recorrido.
Assim se fazendo Justiça.
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O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso.
Sustentando que nos presentes autos foi determinado o arquivamento dos autos, em fase de julgamento, com fundamento na verificação da exceção do caso julgado, bem como que a violação do princípio "non bis in idem", constitui uma exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa.
Inconformada, a Digna Magistrada do MP interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão de arquivamento e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento da fase de julgamento, sendo, a final, proferida uma que conheça de mérito, sendo que o arguido apresentou resposta pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tudo nos termos, e com os fundamentos, que aduzem nas respectivas peças processuais.
Do nosso entendimento.
Sufragamos integralmente a posição da Exma. Colega, aderindo ainda à sua argumentação.
Ainda assim, sempre diremos que não reputamos que tenha qualquer aplicação à situação destes autos, a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2025 do STJ, publicado no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27, no qual se determinou que:
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do CPP».
Como bem resulta da leitura do acórdão uniformizador atrás referido, a jurisprudência fixada prende-se com aqueles casos em que o MP deduz acusação omitindo factos que respeitam ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal do crime que naquela imputa ao arguido.
Na verdade, o que se constata em tais casos, é que a acusação do MP omite factualidade essencial para que se mostrem preenchidos os elementos do tipo legal de crime que imputa ao arguido, o que vale por dizer que descrição feita na acusação é insuficiente para que fundamentar a decisão de condenar, o que determina a sua nulidade.
Ora, parece-nos líquido que tal situação nada tem a ver com o ocorrido no processo n.º 615/19.3JAAVR, no âmbito do qual foi determinada a extracção de certidão com vista à instauração de processo autónomo, a ter como objecto o crime de rapto agravado, ou seja, a certidão que deu início aos presentes autos.
Com efeito, o crime de rapto nunca constituiu objecto do processo n.º 615/19.3JAAVR, o que logo resulta visível das várias peças processuais nele constantes, e das quais resulta que o arguido foi ali sujeito a primeiro interrogatório de arguido detido, julgado, e condenado, pela prática de crime de abuso sexual, sendo este o único crime que lhe foi imputado na acusação ali deduzida.
Por outro lado, os bens protegidos pelas incriminações dos crimes de abuso sexual e de rapto são diversos, como bem diversos são ainda os elementos objectivo e subjectivo que se mostram necessários ao preenchimento dos respectivos tipos legais de crime, pelo que não resulta curial afirmar que os factos objecto destes autos foram já apreciados no âmbito do processo que correu quanto ao abuso sexual.
Na verdade, o que se achou em causa no processo n.º 615/19.3JAAVR foi a actuação do arguido que preencheu o tipo legal do crime que ali lhe foi imputado, e cujo núcleo se prendeu com a factualidade ali dada como provada e que passamos transcrever:
(…) arguido, este, aproveitando-se da inexperiência e da debilidade cognitiva e física da vitima, levou-a a desnudar-se, deixando a vitima com os seios e zona genital expostas, dizendo-lhe que "tinha uns peitos bonitos e queria mamar nos peitos dela".
7. Com a vitima assim desnudada, o arguido sabendo que a mesma tinha 13 anos de idade, e défice cognitivo e físico, acariciou-lhe os seios com uma das mãos e colocou a boca nos seios da mesma, e ao mesmo tempo, desnudou-se si próprio da cintura para baixo, ficando com o pénis exposto perante a vítima.
8. Todavia o arguido não consumou outras agressões sexuais de maior gravidade, porquanto foi impedido pela avó da vítima, que, entretanto, os surpreendeu no local.
(…)
10. Agiu o arguido de forma livre, consciente e deliberada, com o intuito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, aproveitando o momento em que se encontrava sozinho com a menor BB, na altura com 13 anos de idade, e portadora de défice cognitivo e físico, para lhe tocar, acariciar, e colocar a boca nos seios, restringindo a sua liberdade e autodeterminação sexual, bem sabendo o arguido que estava e praticar actos com uma finalidade e um sentido sexual.
11. O arguido sabia que a sue conduta era prevista e punida pela lei penal como crime.
Com efeito, e ao contrário do que se refere no acórdão recorrido, não estamos ante uma “única relevante alteração factual introduzida nos presentes autos assenta na descrição do correspondente elemento subjetivo, ou seja, “O arguido atuou com o propósito concretizado de aliciar BB a entrar no mencionado veículo e a transportar para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, o que conseguiu, sem qualquer autorização dos seus representantes legais, com o intuito de a constranger a satisfazer-lhe os seus instintos sexuais.”.
Na verdade, a parte final da frase não contém unicamente factos relativos ao elemento subjectivo, mas também factos atinentes ao elemento objectivo do tipo legal de crime de rapto, a saber: os factos que se traduzem em o arguido ter aliciado BB a entrar no veículo e em transportá-la para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, sem autorização dos seus representantes legais.
Com efeito, tais actuações são justamente as que constituem o núcleo do tipo objectivo do crime de rapto. Ora, não é o facto de no processo n.º 615/19.3JAAVR constarem descritos factos que respeitam meramente às circunstâncias envolventes da actuação do arguido, as quais são depois “repetidas” na descrição dos factos constantes da acusação e pronúncia dos presentes autos, que podem levar-nos a afirmar que estamos ante crimes que não gozam de autonomia entre si.
Na verdade, em parte alguma vemos menção naqueloutro processo, seja à coarctação da liberdade de movimentação da menor, seja ao facto de a actuação do arguido, e que se reconduziu a levar consigo a menor e a transportá-la de automóvel para a sua habitação, ali a retendo, ter sido executada sem que os legais representantes da vítima o houvessem autorizado a tal.
Ou seja, os crimes que constituem objecto de cada um dos processos gozam de autonomia entre si, nada impedindo que dêem, como deram, origem a processos autónomos.
Termos em que ENTENDEMOS ser de prover o recurso
*
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
*
II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto pela questão do caso julgado pugnando-se pela não violação do principio do ne bis in idem.
*
O acórdão recorrido:
Relatório
Para julgamento, em processo comum, o Ministério Público deduziu acusação contra:
AA, filho de FF e de GG, natural de ..., Viseu, nascido a ../../1945, casado, reformado, portador do cartão de cidadão n.º ..., residente na Rua ..., ... ....
Imputa-lhe a prática, em autoria material e na forma de consumada, de um crime de rapto agravado, previsto e punido pelo artigo 161.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 158.º, n.º 2, alínea e), todos do Código Penal.
*
O arguido apresentou contestação e requereu a inquirição de testemunhas.
Invocou, para além do mais, a exceção do caso julgado.
*
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todo o formalismo legal.
II - Questão prévia
Na contestação apresentada veio o arguido, invocar a exceção do caso julgado.
Alega, em síntese, que pelos factos constantes da pronúncia, que reproduz a acusação pública, o arguido já foi julgado e condenado, no âmbito do processo n.º 615/19.3JAVR, pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pena principal de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Segundo refere, apenas é novo o facto n.º 12 da acusação para a qual remete a Pronúncia – ou seja, “O arguido atuou com o propósito concretizado de aliciar BB a entrar no mencionado veículo e a transportar para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, o que conseguiu” – sendo que a demais factualidade alegada já foi julgada, tendo inclusivamente sido considerada na decisão condenatória, da qual se fez constar que “A ilicitude dos factos é de ponderar, porquanto o arguido não se coibiu de transportar uma jovem de treze anos e com um défice cognitivo para a sua casa e de a abordar da forma como o fez e de o fazer apesar da BB, até então lhe manifestar afeto e o chamar de avô ”
Invoca, assim, que já foi definitivamente julgado por idênticos factos e que a decisão transitou em julgado, operando a exceção de caso julgado por estar em causa a ofensa do princípio non bis in idem e as garantias previstas pelo artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre decidir:
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, adotada em Roma, em 4 de novembro de 1950, reconhece o princípio non bis in idem, no artigo 4.º do protocolo (de Estrasburgo) n.° 7 àquela Convenção, datado de 22 de novembro de 1984, que conheceu a sua redação definitiva com o Protocolo n.° 11, a partir da sua entrada em vigor, em 1 de novembro de 1998:
Artigo 4.º
(Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez)
1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infração pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.
2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento.
O princípio ne bis in idem está consagrado no artigo 29.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, estabelecendo que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime".
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 18 de dezembro de 2000 (2000/C 364/01), contemplou no seu artigo 50.º o mesmo princípio, nos seguintes termos:
“Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.”
Essa norma tem como destinatários os estados-membros da União Europeia apenas quando apliquem direito da União Europeia e, nos termos do disposto no artigo 52.º, n.º 3 na medida em que a Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção, a não ser que a Carta garanta uma proteção mais extensa ou mais ampla.
A propósito da densificação do conceito de '"mesmo crime", constante do n.º 5, do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, como refere Prof. Germano Marques da Silva, crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso. O mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversos tipos normativos e manter o mesmo juízo de ilicitude divergindo apenas na gravidade"
"O crime será o mesmo, ou melhor, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos essenciais não divergirem. Se os factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades da ação, pode o evento material não ser inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e o elemento subjetivo que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma.
O crime não será também materialmente diverso quando apenas variarem as formas de execução do crime, as modalidades de autoria ou comparticipação, desde que os atos acordados e apurados possam ainda reconduzir-se ao mesmo facto histórico, ou seja, na expressão de Castanheira Neves, desde que esteja em congruência com o sentido jurídico-criminal problematicamente constitutivo no caso concreto".
A jurisprudência tem vindo a entender que a expressão “mesmo crime”, consagrada pelo legislador “não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 28/05/2008, Rel. Alberto Mira, disponível em www.dgsi.pt).
Como refere Frederico Isasca, ob, cit., pág. 242 e 229 «… o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efetivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados».
Por sua vez, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15/03/2006, disponível www.dgsi.pt, que “O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu diretamente, tem de considerar-se indiretamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.” Ou seja, como tem sido entendido na doutrina e jurisprudência, para que a exceção de caso julgado material funcione e produza o seu efeito impeditivo, não importa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.
A expressão “mesmo crime” não dever ser interpretada no estrito sentido técnico-jurídico, mas antes no sentido de conduta, comportamento, ou como um dado de facto ou acontecimento histórico que, por ser subsumível a determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um ilícito penal.
Ou seja, a expressão “mesmo crime”, refere-se ao pedaço de vida apreciado e julgado e que constitui ou integra um determinado crime.
Em face do supra exposto importa, pois, analisar todo o factualismo fornecido pelos autos com vista à verificação ou não de caso julgado relativamente ao “pedaço de vida” que no caso releva.
No caso sub judice, compulsada a acusação formulada contra o arguido e bem assim a factualidade que resultou provada no âmbito dos autos de processo n.º 615/19.3JAVR, verifica-se, com relevo para a questão a decidir:
No âmbito do Proc. N.º 615/19.3JAAVR foi julgada provada, para além do mais, a seguinte matéria de facto constante da acusação:

- “No dia 30-07-2019, pelas 09h00, o arguido AA, aproveitando-se do facto de BB, ter 13 anos de idade e ser portadora de deficiência física e mental, bem como da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates, para que o acompanhasse à sua residência sita na referida Rua ..., na ..., local para onde a transportou no veiculo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta.”
- “No interior da residência do arguido, este, aproveitando-se da inexperiência e da debilidade cognitiva e física da vitima, levou-a a desnudar-se, deixando a vítima com os seios e a zona genital expostas.”
- “Com a vítima assim desnudada, o arguido sabendo que a mesma tinha 13 anos de idade, e défice cognitivo e físico, colocou a boca nos seios da mesma, e ao mesmo tempo, desnudou-se si próprio da cintura para baixo, baixando as calças até à zona superior das suas coxas.”
- “Ao praticar os factos acima descritos, o arguido aproveitou-se da relação de proximidade que mantinha com a vítima, em resultado da amizade que mantinha com a avó da vítima.
- “Agiu o arguido de forma livre, consciente e deliberada, com o intuito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, aproveitando o momento em que se encontrava sozinho com a menor BB, na altura com 13 anos de idade, e portadora de défice cognitivo e físico, para colocar a boca nos seios desta, restringindo a sua liberdade e autodeterminação sexual, bem sabendo o arguido que estava a praticar atos com uma finalidade e um sentido sexual.” - “O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida pela lei penal como crime.”

Nos presentes autos foi o arguido acusado e pronunciado, com relevo, pela seguinte factualidade:

- No dia 30 de julho de 2019, pelas 09h00, o arguido, aproveitando-se do facto de BB ter 13 anos de idade e ser portadora de deficiência física e mental, bem como, da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates, para que o acompanhasse à sua residência, sita na referida Rua ..., na ..., local para onde a transportou, no veículo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-SC, propriedade da sua esposa.
- O arguido praticou os factos acima descritos, com o objetivo de praticar os factos dados como provados no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 615/19.3JAAVR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal de Aveiro – Juiz 6, designadamente:
“No interior da residência do arguido, este, aproveitando-se da inexperiência e da debilidade cognitiva e física da vítima, levou-a a desnudar-se, deixando a vítima com os seios e a zona genital expostas” e;
“Com a vítima assim desnudada, o arguido sabendo que a mesma tinha 13 anos de idade, e défice cognitivo e físico, colocou a boca nos seios da mesma, e ao mesmo tempo, desnudou-se si próprio da cintura para baixo, baixando as calças até à zona superior das suas coxas”.
- O arguido sabia que BB era menor de idade, com apenas 13 anos.
- O arguido atuou com o propósito concretizado de aliciar BB a entrar no mencionado veículo e a transportar para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, o que conseguiu, sem qualquer autorização dos seus representantes legais, com o intuito de a constranger a satisfazer-lhe os seus instintos sexuais.
- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.

Do supra exposto resulta que, desconsiderando agora a factualidade instrumental relatada na acusação, o facto objetivo que sustenta a imputação ao arguido da prática de um crime de rapto agravado é o seguinte:

- No dia 30 de julho de 2019, pelas 09h00, o arguido, aproveitando-se do facto de BB ter 13 anos de idade e ser portadora de deficiência física e mental, bem como, da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates, para que o acompanhasse à sua residência, sita na referida Rua ..., na ..., local para onde a transportou, no veículo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-SC, propriedade da sua esposa.

O referido facto, como é bom de ver, já constava da acusação formulada contra o arguido no âmbito do Processo n.º615/19.3JAAVR, inclusivamente, foi ali julgado provado, e, em sede de motivação da medida da pena, foi, no âmbito do referido Acórdão, efetuada expressa referência a tal facto que, naturalmente, não pode deixar de ser considerado.
A única relevante alteração factual introduzida nos presentes autos assenta na descrição do correspondente elemento subjetivo, ou seja, “O arguido atuou com o propósito concretizado de aliciar BB a entrar no mencionado veículo e a transportar para a sua residência, privando-a da sua liberdade ambulatória, o que conseguiu, sem qualquer autorização dos seus representantes legais, com o intuito de a constranger a satisfazer-lhe os seus instintos sexuais.”
Do supra exposto resulta que, tal como refere se refere na contestação, a factualidade que agora é imputada ao arguido – e que sustenta a acusação pela prática de um crime de rapto agravado – já foi descrita em acusação anterior, tendo o arguido sido julgado por tal factualidade que, inclusivamente, foi considerada provada e tendo o referido facto sido considerado e referido a propósito da medida da pena aplicada ao arguido na apreciação da ilicitude da conduta.
Concretamente, referiu-se no douto Acórdão proferido “A ilicitude dos factos é de ponderar, porquanto o arguido não se coibiu de transportar uma jovem de treze anos e com um défice cognitivo para a sua casa e de a abordar da forma como o fez e de o fazer apesar da BB, até então lhe manifestar afeto e o chamar de avô.”
É certo que no âmbito do supra referido processo o Ministério Público não descreveu a factualidade inerente ao elemento subjetivo do ilícito. Contudo, tal não significa que o arguido não esteja, no âmbito dos presentes autos, acusado da prática do “mesmo crime”, nesse sentido supra explanado, de “mesmo pedaço de vida” ou mesmo facto.
O artigo 359.° do Código de Processo Penal, opta por uma solução processual em que, ainda que apenas se apurem em audiência de julgamento – o que não sucedeu no caso dos autos, já que a factualidade em causa foi descrita na acusação deduzida no âmbito dos referidos autos – apenas os factos novos autonomizáveis dão lugar à abertura de um novo processo, sendo que, relativamente àqueles que não são autonomizáveis, se prevê a continuação do processo sem alteração do respetivo objeto.
No caso vertente, a conduta do arguido, considerada quer em termos objetivos, quer em termos subjetivos, já foi apreciada e julgada por decisão transitada em julgado.
A situação presente, em nosso entender, integra-se, na categoria dos factos não autonomizáveis já que a conduta do arguido em apreciação nos presentes autos é exatamente a mesma pela qual já foi anteriormente julgado e condenado, pretendendo-se agora apenas acrescentar o elemento subjetivo e imputar-lhe uma diversa qualificação jurídica dos factos. Nos autos de inquérito originais, o Ministério Público optou por não deduzir acusação contra o arguido pelo crime de rapto, quando, caso entendesse estarem verificados os respetivos pressupostos, o poderia ter feito, já que a conduta do arguido em discussão nos presentes autos, já era conhecida na sua totalidade.
O elemento intencional do tipo normativo – único facto relevante agora acrescentado na acusação deduzida – não pode, em nosso entender, ser apreciado e julgado autonomamente, já que a intenção não reveste qualquer autonomia em face da ação.
Como referem Henrique Salinas in Os Limites Objetivos do ne bis in idem, Dissertação de Doutoramento - fevereiro de 2012, página 694 “a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do ato que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objeto unitário do processo. Desde logo, como neste ato não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objeto, diversamente qualificados. De igual modo, neste ato podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objeto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objeto.”
Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Outubro de 2015, proferido sob o processo n.º 950/11.9PIVNG.P25, disponível em www.dgsi.pt,
“I – O princípio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.
II – E engloba não só o que foi conhecido no 1º processo mas também o que aí poderia ter sido conhecido.
III – O crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), nele se exaurindo ou esgotando.
IV- Se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vítima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o princípio ne bis in idem.”

Em conclusão, verifica-se que a acusação nos presentes autos imputa ao arguido os mesmos factos objetivos pelos quais já foi julgado e condenado em processo anterior por decisão transitada em julgado.
O facto integrador do elemento subjetivo, única relevante novidade na presente acusação, não reveste autonomia face à descrição da conduta objetiva.
Conforme se considerou no Douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2025, DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27:
“PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, no referido Comentário, apresenta uma síntese final, que condensa a posição que parece mais seguida ou mais sustentada a partir das alterações introduzidas no art. 359.º do CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nomeadamente os referidos n.ºs 1 e 2. Eis o que expõe nessa síntese: «Assim, se resultar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, o juiz toma uma de duas posições: a) O juiz decide que os factos novos são autonomizáveis em relação ao objeto do processo e comunica a alteração ao MP para os efeitos tidos por convenientes, devendo este abrir inquérito quanto ao mesmo; b) O juiz decide que os factos novos não são autonomizáveis em relação ao objeto do processo e determina que os factos não podem ser tomados em conta pelo tribunal para efeito de prolação da sentença (sobre a constitucionalidade desta solução, acórdão do TC n.º226/2008, com base na responsabilidade funcional” do MP)». Ou seja, e nos termos deste aresto, dada a opção do legislador ordinário em conferir mais intensa realização ao princípio do acusatório, em detrimento dos princípios da verdade material e da paz jurídica do arguido, a consequência será «o inexorável sacrifício parcial do conhecimento da verdade material que daí decorre». Verdade parcial, entenda-se, porque o que normalmente estará em causa nessas hipóteses «são circunstâncias modificativas especiais que nunca teriam relevância suficiente para sustentar um processo à parte» (do mesmo aresto, parte da fundamentação, n.º 10.) (…)
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis.”
De todo o supra exposto resulta, sempre com o devido respeito por melhor opinião, que, no caso dos autos, não sendo o elemento subjetivo – aditado nestes autos – autonomizável da ação respetiva, não teria sido conforme à jurisprudência uniformizada a eventual comunicação da alteração substancial dos factos, para julgamento autónomo da factualidade objetiva alegadamente integrante do crime de rapto. Ora, assim sendo, permitir o julgamento autónomo do referido facto – não autonomizável daquele outro que já foi objeto de julgamento anterior – seria, na boa expressão popular, fazer entrar pela janela o que a supra referida jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça pretende que não se deixe entrar pela porta.
Por conseguinte, concordamos com os fundamentos da exceção do caso julgado deduzida pelo arguido.
A violação do princípio "non bis in idem", constitui uma exceção dilatória (cfr. artigos 576.º, 1 e 577.º, i), ambos do Código de Processo Civil), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do mesmo Código) - normas aplicáveis por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Assim e porque de acordo com o princípio ne bis in idem consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, determina-se o arquivamento dos presentes autos.
Em face da decisão agora proferida, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, incluindo o pedido de indemnização civil formulado cuja apreciação sempre dependeria da condenação do arguido.
Deposite e notifique (…) »
*
Cumpre apreciar.
O acórdão recorrido considerou procedente a exceção de caso julgado com violação do princípio "non bis in idem", enquanto exceção dilatória (cfr. artigos 576.º, 1 e 577.º, i), ambos do Código de Processo Civil), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do mesmo Código) - normas aplicáveis por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, enunciando uma série de critérios orientadores de doutrina e jurisprudenciais todos eles certeiros, e bastamente fundamentados para consolidar a sua decisão. Considerando os contornos do caso sub judicie, o MP com a acusação que deduziu, pretende a sujeição novamente do arguido de um seu comportamento já objetivamente descrito num outro processo nº615/19.3JAAV, aí contextual, mas não meramente circunstancial, onde foi julgado pelo delito de abuso sexual de menor, concretizando-se no facto “No dia 30 de julho de 2019, pelas 09h00, o arguido, aproveitando-se do facto de BB ter 13 anos de idade e ser portadora de deficiência física e mental, bem como, da relação de proximidade que mantinha com esta, aliciou-a, a troco da oferta de chocolates, para que o acompanhasse à sua residência, sita na referida Rua ..., na ..., local para onde a transportou, no veículo automóvel da marca Opel, modelo ..., de cor cinzenta, com a matrícula ..-..-SC, propriedade da sua esposa. ” . A novidade que nestes autos o MP somou consiste no elemento subjetivo do delito de rapto pelo qual o arguido veio aqui a ser acusado.
E como muito bem apontou o Tribunal “A Quo” o deslinde desta questão é tirado do confronto com o critério previsto no art.359º nº2 do CPP, que se colocava em cheio no processo nº615/19.3JAAV, onde a nova imputação jurídica do crime de rapto, claramente determinava uma alteração substancial de factos pela circunstância de na acusação aí proferida não constar o elemento subjetivo do delito de rapto agravado. Assim, nesse processo não se operou a referida alteração, dado que o elemento subjetivo, enquanto facto novo, não era autonomizável da conduta objetiva, a não ser que se retirasse desse processo o facto objetivo respeitante ao transporte no automóvel, o que parece não se enquadrar na ortodoxia do art.359º nº2 do CPP. Porém, independentemente de se discutir o carácter autonomizável, ou não, dos factos (sendo que somente o elemento subjetivo, por si só, não era obviamente autonomizável), o certo é que o comportamento reportado ao transporte da menor no automóvel foi julgado de facto no processo nº615/19.3JAAV, com ponderação da densidade da ilicitude no delito de abuso sexual de criança, tal como foi considerado pelo MP recorrente quando referiu “O facto atinente ao transporte da ofendida foi ali referido, não para fazer operar qualquer circunstância qualificativa ou agravativa do tipo de crime ali em causa, mas tão-só para determinação do grau de ilicitude da conduta e do modo de execução do crime, para efeitos de determinação da medida da pena, aliás em obediência ao disposto no artigo 71º, nº 2, al. a), do Código Penal.”. Ora, esta circunstância impede um novo julgamento pelo mesmo facto, embora com incidências diferentes de valoração. Com efeito, embora o anterior julgamento do facto não se haja reportado à sua subsunção num delito autónomo, contudo, verifica-se o caso julgado e a proibição do princípio “ne bis in idem” apenas pela incidência valorativa que o mesmo mereceu na ponderação da pena no delito de abuso sexual. É o próprio recorrente quem admite que a parcela de factos em causa, foram valorados na sua ilicitude, influindo na ponderação da medida da pena cominada no processo nº615/19, sendo que esta circunstância preenche em cheio a questão do caso julgado. O julgamento deste facto objetivo não autoriza o MP para novamente usar esse facto nuclear do rapto e pretende-lo integrar uma nova acusação, a dos presentes autos.
Aqui torna-se relevante retomar a ponderação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15/03/2006, disponível www.dgsi.pt, já citado na sentença do Tribunal “A Quo” que “O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal. Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu diretamente, tem de considerar-se indiretamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.”.
Por sua vez, o Ac.STJ datado de 12/09/2013 (Sr Conselheiro Dr Souto Moura) proferido no processo nº29/07.8 GEIDN.C1.S1 decidiu-se “I - O que se discute no recurso é saber se a decisão de 1.ª instância proferida nestes autos, confirmada pela Relação, violou o caso julgado, por ter condenado por um facto já julgado noutro aresto, entendendo-se o “facto”, obviamente, em sentido normativo, como uma única infração, e não em sentido meramente naturalístico, como um evento histórico isolado. II - Nenhum arguido poderá ser julgado mais de uma vez pelo mesmo facto (art. 29.º, n.º 5, da CRP). Ora, o facto “é o mesmo” se já foi conhecido, e ainda se, não tendo sido conhecido, podia tê-lo sido. Podia tê-lo sido se cabia nos poderes de cognição do juiz, se era compatível com o grau de maleabilidade tolerado do objecto do processo. Por isso, é que na fixação do objecto do processo costuma fazer-se intervir também um terceiro princípio, chamado da consunção. O ponto de encontro entre a identidade e a indivisibilidade traça a fronteira da factualidade “consumida” pelo processo, e que portanto não pode renascer noutro processo. III - Estamos dentro do âmbito do caso julgado, sem risco de violação do princípio ne bis in idem, se nos mantivermos dentro do grau de maleabilidade tolerada do objecto do processo. Esta, só será ultrapassada se houver alteração substancial de factos, a qual, por seu turno, gira à volta do conceito operacional de “crime diverso” introduzido pela al. f) do art. 1.º do CPP. IV - Porque o legislador se quis referir a “facto diverso” utilizando a expressão “crime diverso”, então terá que se determinar se o facto é outro, necessariamente, com apelo a uma referência normativa (com apelo ao “mesmo bem jurídico”), e não simplesmente históriconaturalista.”.
Acaso o facto em questão embora incluído no elenco histórico apurado num outro processo já julgado, não tivesse impacto na valoração normativa do ilícito nesse processo, cremos que, nesse caso, sobre o mesmo não operaria o manto do caso julgado, mas não foi isso que sucedeu.
No critério uniforme da jurisprudência e da doutrina tratando-se de uma conduta descrita do arguido com conteúdo normativo, a qual fora julgada de facto e de direito, ainda que não esgotados todas as suas consequências, opera em relação a esse acontecer histórico o caso julgado, devendo por isso improceder as conclusões do recurso.
Por fim, deve precisar-se que o MP no processo nº615/19.3JAAV sempre teve conhecimento do núcleo essencial dos factos agora vertidos na acusação dos presentes autos, concretamente, da condução e transporte intencional pelo arguido da menor no veículo automóvel daquele até à sua residência, circunstância que face ao princípio da preclusão (o qual integra a exceção do caso julgado), impede a formulação da nova acusação, a qual no fundo apenas pretendia retificar a omissão da “qualificação jurídica” desses factos (ressalvada a importância do elemento subjetivo) naquele outro processo.
Termos em que as conclusões do recurso improcedem na totalidade.

DISPOSITIVO.
Pelo exposto, decidem os Juízes Desembargadores desta Secção Criminal, negar provimento o recurso interposto pelo MP, mantendo-se a Douta decisão recorrida nos seus termos.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.

Notifique.

Porto, 10 de Julho de 2024.
Nuno Pires Salpico
Lígia Figueiredo
Luís Coimbra