INVENTÁRIO SUBSQUENTE A DIVÓRCIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E DE RELAÇÃO DE BENS
Sumário

I - No atual regime do processo de inventário, emergente das alterações introduzidas pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, vigoram as regras da preclusão e concentração no que diz respeito à alegação das questões relevantes e demonstração probatória do alegado, com o inerente aumento da autorresponsabilidade das partes na prática dos atos processuais.
II - Daqui resulta que o cabeça-de-casal requerente do inventário tem o ónus de alegar tudo o que entende dever ser apreciado no inventário e de relacionar todos os bens que integram o património comum do ex-casal a partilhar na relação de bens apresentada com o requerimento inicial (art. 1097.º, n.º 2 e n.º 3, do Cód. Proc. Civil), a fim de permitir o subsequente contraditório (art. 1104.º do Cód. Proc. Civil), em observância de uma tramitação que se quer célere e concentrada, com vista à decisão das questões suscitadas (arts. 1105.º e 1110.º, ambos do Cód. Proc. Civil), o que não se coaduna nem admite sucessivos aditamentos à relação de bens, exceto nos casos de superveniência objetiva ou subjetiva.
III - Sendo, no caso em análise, a data relevante para a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges a data da propositura da ação de divórcio (arts. 1689.º, n.º 1, e 1789.º, n.º 1, ambos do Cód. Civil), os bens a partilhar serão os bens comuns que existentes nessa data.

Texto Integral

Processo 17360/21.2T8PRT-E.P1– Apelação
Tribunal a quo Juízo de Família e Menores do Porto - Juiz 4
Recorrente(s) AA
Recorrido(a/s) BB

Sumário:
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA intentou em 08-06-2022 (ref. 32512418) contra BB processo de inventário para partilha de bens comuns, subsequente a divórcio, requerendo a partilha dos bens comuns do dissolvido casal, com a sua nomeação para exercer o cargo de cabeça-de-casal, por ser o cônjuge mais velho, juntando a relação de bens comuns e apresentando prestação de contas dos encargos por si suportados em exclusivo desde 29-05-2021, requerendo «(…) se proceda a inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal, nomeando-se para o cargo de cabeça de casal o cônjuge mais velho (…)».
Foi indicada, na relação de bens apresentada, como ATIVO, além de outras, a verba n.º 163, com o seguinte teor:
SALDO BANCÁRIO:
Verba n.º 163
Quota-parte transmitida: 1/1
Descrição: Saldo da conta bancária do Banco 1..., com o número ...
Valor: € 36.500,00

Por despacho de 12-12-2022 (ref. 443066530) foi nomeado como cabeça-de-casal o requerente AA, tendo ainda sido determinado que o cabeça-de-casal descrevesse os bens da Verba n.º 159 da relação de bens (Bens móveis que se encontram no interior do estabelecimento comercial sito na Rua ..., Porto) e indicasse o valor de cada verba.
Por requerimento de 13-01-2023 (ref. 34428635) o requerente e cabeça-de-casal, no seguimento e em cumprimento do despacho anterior, completou a relação de bens quanto à descrição da Verba n.º 159 da relação de bens apresentada com o requerimento inicial.
Citada, a requerida e interessada BB apresentou em 27-03-2023 (ref. 35190301) reclamação à relação de bens e ‘impugnação da prestação de contas das dívidas da herança’, defendendo que as despesas apresentadas pelo cabeça de casal são da sua única responsabilidade e, quanto aos bens relacionados, acusando a falta de relacionação de bens comuns, defendendo a exclusão de bens aí relacionados por serem bens pessoais seus e impugnando os valores atribuídos pelo cabeça-de-casal, por se tratarem de antiguidades carecidas de avaliação.
Em 18-04-2023 (ref. 35406049) o requerente e cabeça de casal apresentou resposta à reclamação da interessada.
Em 01-06-2023 (ref. 449000250) foi proferido despacho convidando o requerente e cabeça-de-casal – para efeitos de aproveitamento da denominada ‘prestação de contas’ – a aditar à relação de bens as verbas respeitantes aos créditos provenientes do pagamento de dívidas que reputa comuns e convidando a requerida a invocar os factos concretos que permitam ao Tribunal concluir pela qualidade dos bens relativamente aos quais invocou serem ‘bens pessoais seus’ e pela qualidade de bens comuns quanto aos bens cuja falta de relacionação acusou.
Em 12-06-2023 (ref. 35905209) a requerida apresentou requerimento de resposta ao despacho de 01-06-2023.
Em 15-06-2023 (ref. 35949210) o requerente cabeça-de-casal, em resposta ao despacho de 01-06-2023, apresentou relação de bens atualizada, aditando as verbas 164 e 165.
Em 21-06-2023 (ref. 36010195) o cabeça-de-casal apresenta requerimento de resposta aos esclarecimentos prestados pela interessada em 12-06-2023, tendo junto nova relação de bens atualizada.
Realizada, em 18-10-2023 (ref. 452794103), audiência prévia, frustrou-se a obtenção de acordo acerca da matéria da reclamação e da composição de quinhões a que tal diligência se destinava.
Em 29-10-2023 (ref. 452976653) foi proferido o despacho previsto no art. 1110.º do Cód. Proc. Civil que decidiu «(…) julgar parcialmente procedente a reclamação e, em consequência, determinar a exclusão da relação de bens das verbas nºs 163, 164, 165, 167, 169, 171 e 172 da relação de bens. (…)».

Inconformado, o requerente/cabeça-de-casal apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
(…)
II. Da motivação da decisão da matéria de facto plasmada no Despacho Saneador, ora recorrida, infere-se, portanto, que a prova documental produzida foi considerada suficiente.
III. Contudo, o Tribunal a quo não atendeu a toda a prova produzida, mas apenas a parte dela, assim como não atendeu, também, pelo menos com a minúcia devida e desejável, à prova documental já existente no presente Processo. (…)
VI. (…) porque o recorrente pretende apenas e tão-só que o Tribunal ad quem consiga apurar da adequação e da legalidade da decisão proferida pelo Tribunal a quo, importa desde logo considerar que o cabeça de casal, aqui recorrente, em todas as relações de bens que apresentou nestes Autos, na Verba n.º 163, indicou o seguinte:
(…) SALDO BANCÁRIO:
Verba n.º 163
Quota-parte transmitida:
Descrição: Saldo da conta bancária do Banco 1..., com o número ...
Valor: € 36.500,00 (…)
VII. A verdade é que com esta indicação e descrição o ora recorrente deu integral cumprimento ao prescrito no Artigo 1098.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, uma vez que o cabeça de casal procedeu à correta identificação do bem, porquanto, o identificou e descreveu como se tratando de um saldo bancário que se encontra depositado numa conta do Banco 1..., com o número ..., no montante de 36.500,00 (trinta e seis mil e quinhentos euros).
VIII. Mais concretamente, o cabeça de casal nada mais poderia juntar nesta circunstância uma vez que esta conta bancária se encontrava (e ainda encontra) titulada apenas em nome da requerida e o Banco 1..., obviamente, não facultou (nem faculta) ao cabeça de casal, nunca até ao momento presente, nenhum extrato bancário da referida conta.
IX. Porém, é certo que se trata de uma conta bancária aberta na constância do dissolvido matrimónio e, como tal, atento o regime de bens estabelecido da comunhão de adquiridos, os saldos dessas contas bancárias correspondem a bens comuns a partilhar.
X. Ademais, e talvez ainda mais importante, a interessada em nenhum dos requerimentos que juntou aos presentes Autos impugnou a existência da referida Verba n.º 163, alegando, outrossim, que se tratava de um bem próprio e não de um bem comum.
XI. Desse modo, o conteúdo da Verba n.º 163 da relação de bens, no que à existência do referido saldo bancário que se encontra depositado numa conta do Banco 1..., com o número ..., no montante de € 36.500,00 (trinta e seis mil e quinhentos euros) diz respeito, sempre deveria ter sido considerado pelo Tribunal de primeira instância, por via da sua não impugnação, como matéria assente (…).
XII. Mal andou, portanto, o Tribunal a quo ao considerar que o cabeça de casal, contrariamente ao que impõe o Artigo 1098.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, não juntou qualquer comprovativo da existência de tal saldo bancário, nem invocou qualquer impossibilidade de documentar o mesmo, uma vez que a interessada jamais colocou em causa a sua existência sequer.
XIII. A existência do saldo bancário que se encontra depositado numa conta do Banco 1..., com o número ..., no montante de 36.500,00 (trinta e seis mil e quinhentos euros) trata-se, portanto, de uma matéria que nem sequer é controvertida e, como tal, o Tribunal a quo não pode oficiosamente remover da relação de bens esta Verba n.º 163 por falta de fundamento legal para o determinar.
XIV. Existe, pois, neste ponto concreto da decisão ora sindicada um erro na aplicação da Lei por violação do prescrito no Artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
XV. Por outro lado, importa considerar que a própria requerida, na reclamação contra a relação de bens que apresentou em 27.03.2023, referência CITIUS: 35190301, alegou o seguinte:
(…)
13.º
Deverão ser excluídos da relação de bens as verbas n.°s 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43, 45, 47, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 135, 136, 137, 138, 150, 151, 152, 163 que correspondem a bens pessoais da Interessada e não comuns do casal.
14.º
A verba n.º 163 corresponde ao valor da indemnização por despedimento da Interessada ocorrida no ano de 2006, conforme se comprova pela cópia do extrato bancário que ora se junta sob o documento n.º 3 para todos os devidos e legais efeitos. (…)
XVI. Com a supra citada reclamação contra a relação de bens a requerida juntou aos presentes Autos como Documento n.º 3 um extrato bancário do Banco 1... que comprova documentalmente a existência da verba n.º 163 relacionada pelo cabeça de casal. (…)
XIX. Não pode, portanto, sob pena de vício de violação da Lei, o Tribunal a quo, no Despacho Saneador vir excluir da relação de bens a Verba n.º 163 invocando como fundamento para tal que o cabeça de casal não fez prova documental da sua existência, quando a própria interessada havia efetuado prova documental da sua existência no Documento n.º 3 que juntou com a reclamação contra a relação de bens apresentada em 27.03.2023, referência CITIUS: 35190301. (…)
XXII. Agora, outra questão é a de determinar se a dita Verba n.º 163 corresponde a um bem próprio ou a um bem comum a partilhar, mas quanto a essa matéria (à qual o cabeça de casal, ora apelante, já respondeu através de requerimento apresentado em 18.04.2023, com a referência CITIUS: 35406049, nos seus artigos 12.º a 18.º e no requerimento apresentado em 21.06.2023, com a referência CITIUS: 36010195, nos seus artigos 13.º a 19.º, todos que aqui se não repetem por uma questão de economia e de celeridade processual mas que aqui se consideram integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais) o Tribunal a quo deveria tão-só declarar a sua manutenção na relação de bens a partilhar ou, caso entendesse tratar-se de uma questão que exorbitava do âmbito da competência deste Processo de Inventário, deveria ter declarado remeter esta questão para os meios comuns.
XXIII. Nunca poderia o Tribunal a quo excluir simplesmente a Verba n.º 163 e pelos fundamentos aduzidos. (…)
XXV. Por outro lado, também decidiu o Tribunal a quo no Despacho Saneador ora sindicado que o cabeça de casal ao responder ao seu convite expresso para aditar à relação de bens os créditos que detinha sobre o seu ex-cônjuge violou o princípio jurídico da concentração e da autorresponsabilidade das partes.
XXVI. Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, que é muito, de novo não assiste nesta matéria qualquer razão ao Tribunal de primeira instância uma vez que, nos termos prescrito no Artigo 318.º, alínea c) do Código Civil, o prazo de prescrição da obrigação de prestação de contas pelo cabeça de casal não começa, nem corre, até serem aprovadas as contas finais, facto que, obviamente, ainda não sucedeu no presente Processo. (…)
XXVIII. O direito de exigir a prestação de contas a quem esteja, por Lei ou negócio jurídico obrigado a prestá-las não é um direito indisponível nem está isento de prescrição, já que nenhuma norma legal o estabelece.
XXIX. Assim, é evidente que pode extinguir-se pelo decurso do prazo legal de prescrição, que no caso é o prazo ordinário de 20 anos (cf. Artigo 309.º do Código Civil).
XXX. Desta forma, atendendo a que o direito do cabeça de casal à prestação de contas ainda não se encontrava prescrito e a que o Processo de Inventário é, pela sua natureza, um processo dinâmico, quer seja pela sucessão de acontecimentos diversos que vão ocorrendo durante a sua pendência, quer seja pelo sucessivo vencimento de créditos decorrentes de prestações periódicas, não pode ser vedada ao cabeça de casal a possibilidade de aditar créditos à relação de bens que ainda não havia indicado aquando da propositura da petição inicial de inventário. (…)
XXXII. Mais uma vez, repete-se, caso o Tribunal de primeira instância entendesse tratar-se de uma questão que exorbitava do âmbito da competência deste Processo de Inventário, deveria ter declarado remeter esta questão para os meios comuns.
XXXIII. Nunca excluir simplesmente a Verba n.º 164 e a Verba n.º 165 da relação de bens e pelos fundamentos aduzidos. (…)
XXXV. Na mesma esteira, não deveria também o Tribunal a quo não considerar a “nova” relação de bens apresentada pelo cabeça de casal no requerimento que apresentou em 21.06.2023, com a referência CITIUS: 36010195, uma vez que a referida relação foi objeto de diversas alterações (…)
XXXVI. Por outras palavras, foram suprimidas dos bens comuns a partilhar 13 (treze) Verbas e foram ainda aditadas 53 (cinquenta e três) Verbas à relação de bens. XXXVII. Por esta razão, por uma questão de simplificação, de agilização e de melhor manuseamento da relação de bens que encerra em si mesma várias centenas de Verbas a partilhar, o cabeça de casal juntou nova relação de bens revista e atualizada (Documento n.º 5 – B) ciente de que não cometia nenhuma falta de cariz processual, muito pelo contrário, imbuído por um espírito de colaboração e de boa fé processual que jamais poderá ser censurada.
XXXVIII. Porém, o Tribunal de primeira instância no Despacho Saneador que proferiu não o fez, determinou que a “nova” relação de bens apresentada pelo cabeça de casal em 21.06.2023 não fosse considerada por ser um ato processual inútil, e por isso errou, sendo certo que este erro de julgamento irá ser suprido e corrigido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, a quem se recorre.
XXXIX. Existe ainda novo lapso grave do Tribunal a quo quando refere no Despacho Saneador proferido que a requerida apresentou reclamação à relação de bens quanto às verbas números 34 a 36, 38, 39, 41, 43, 45, 47, 76, 77 a 81, 135 a 138, 150, 151 e 163, alegando que parte dessas verbas foram por si herdadas, outras oferecidas e outras são pertença da filha do dissolvido casal, mas este Tribunal não se pronunciou quanto à matéria da Verba n.º 34, da Verba n.º 35, da Verba n.º 36, da Verba n.º 38, da Verba n.º 39, da Verba n.º 41, da Verba n.º 43 e da Verba n.º 45 que ainda são matéria controvertida nos presentes Autos.
XL. A omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer motivo ou argumento aduzido pelas partes. (…)
XLIV. Assim sendo, a não pronúncia relativamente à matéria controvertida atinente com a Verba n.º 34, a Verba n.º 35, a Verba n.º 36, a Verba n.º 38, a Verba n.º 39, a Verba n.º 41, a Verba n.º 43 e com a Verba n.º 45 enquadra-se nas questões com relevância para a decisão de mérito da causa e sempre convirá referir conforme resulta já provado nos presentes Autos que o cabeça de casal sempre alegou, impugnou, especificou e respondeu aos diversos factos carreados pela requerida nos seus requerimentos e reclamações contra a relação de bens.
XLVI. O Tribunal a quo deveria, em consonância com toda a prova documental junta aos Autos e de acordo com a prova já produzida neste Processo, conforme se concluiu acima, ter decidido de forma diversa da que decidiu.
XLVII. O recorrente ao especificar nos termos do prescrito no Artigo 640.º, do Código de Processo Civil (CPC) este concreto segmento da douta decisão proferida, ora sindicada, está a impugnar, expressamente, todo o conteúdo dos Factos Provados no Despacho Saneador proferido.
XLVIII. Sendo certo que a decisão alternativa sustentada na prova documental junta aos Autos, deveria ter sido a seguinte:
Factos Provados:
-A Verba n.º 163 corresponde ao saldo bancário que se encontra depositado numa conta do Banco 1..., com o número ..., no montante de € 36.500,00 (trinta e seis mil e quinhentos euros); (cf. Documento n.º 3 junto pela requerida na reclamação contra a relação de bens apresentada em 27.03.2023, referência CITIUS: 35190301)
-É certo que se trata de uma conta bancária aberta na constância do dissolvido matrimónio e, como tal, atento o regime de bens estabelecido da comunhão de adquiridos, os saldos dessas contas bancárias correspondem a bens comuns a partilhar; (cf. Documento n.º 3 junto pela requerida na reclamação contra a relação de bens apresentada em 27.03.2023, referência CITIUS: 35190301)
- A existência da Verba n.º 163 nunca foi sequer posta em causa ou impugnada pela requerida; (cf. Documento n.º 3 junto pela requerida na reclamação contra a relação de bens apresentada em 27.03.2023, referência CITIUS: 35190301)
-Não recai sobre o cabeça de casal o ónus processual de provar a existência da Verba n.º 163 relacionada na relação de bens, porquanto a sua existência nunca foi sequer posta em causa ou impugnada pela requerida; (cf. Documento n.º 3 junto pela requerida na reclamação contra a relação de bens apresentada em 27.03.2023, referência CITIUS: 35190301 e Artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil)
-Não se encontra ainda prescrito do direito do cabeça de casal proceder ao aditamento de verbas consideradas créditos sobre a requerida;
-O cabeça de casal imbuído por um espírito de colaboração e de boa fé processual que jamais poderá ser censurada juntou uma nova relação de bens revista e atualizada atentas as muitas alterações entretanto efetuadas. (cf. Documento n.º 5 – B)
XLIX. Decisão:
Deste modo, deverá ser julgada totalmente improcedente por não provada a matéria articulada pela requerida na sua reclamação contra a relação de bens e procedentes, por provados, os factos deduzidos pelo requerente em suas respostas e na petição inicial e, por via disso, não se determina a exclusão de nenhuma das verbas da relação de bens comuns a partilhar, com todas as consequências legais.
(…)
LIV. Finalmente, o Tribunal a quo, na fundamentação de direito, violou o disposto no Artigo 298.º, n.º 1, no Artigo 309.º e no Artigo 318.º, alínea c), todos do Código Civil e o disposto no Artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, por todas as asserções acima expendidas.

A interessada requerida apresentou resposta, concluindo pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso

Sendo as conclusões das alegações de recurso que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil, cumpre apreciar:
1. Nulidade da decisão por omissão de pronúncia quanto às verbas 34 a 36, 38, 39, 41, 43, 45 da relação de bens, relativamente às quais a requerida/interessada apresentou reclamação.
2. Revogação da decisão de não admissão do aditamento à relação de bens das verbas 164 e 165.
3. Revogação da decisão de não consideração/admissão da “nova” relação de bens apresentada pelo cabeça de casal no requerimento que apresentou em 21.06.2023.
4. Alteração da decisão recorrida, na parte em que excluiu da relação de bens a verba n.º 163, devendo manter-se tal verba na relação de bens.

III. Fundamentação

De facto
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a referida no relatório que antecede, e ainda a seguinte:
1 – Em 02-04-1989 o requerente AA e a requerida BB celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial (conforme assento de Casamento n.º ... do ano de 2014, junto com o requerimento inicial de inventário).
2 – Em 27-10-2021 a aqui requerida BB intentou ação especial de divórcio contra o aqui requerente AA.
3 – Por sentença proferida em 09-05-2022, no processo de divórcio n.º 17360/21.2T8PRT do Juízo de Família e Menores do Porto, J 3, foi decretado o divórcio entre AA e BB, com a consequente dissolução do casamento celebrado em 02-04-1989.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Nulidade por omissão de pronúncia da decisão recorrida
2. Revogação da não admissão do aditamento à relação de bens das verbas 164 e 165
3. Revogação da não admissão da ‘nova’ relação de bens de 21.06.2023
4. Revogação/alteração da decisão de exclusão da verba n.º 163 da relação de bens
5. Responsabilidade pelas custas

1. Nulidade por omissão de pronúncia da decisão recorrida

Alega o apelante que o tribunal a quo omitiu pronúncia – decisão – quanto à reclamação apresentada pela requerida relativamente às verbas 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43 e 45 da relação de bens.
Resulta da tramitação processual que o apelante e cabeça de casal, em 08-06-2022, juntamente com o requerimento inicial, apresentou a relação de bens, tendo em 13-01-2023, em cumprimento de despacho judicial (proferido em 12-12-2022), completado tal relação de bens, descrevendo os bens móveis da verba 159 e indicando os respetivos valores.
Citada a requerida e interessada, a mesma apresentou em 27-03-2023 reclamação contra tal relação de bens, requerendo, além do mais, (nos termos do art. 13.º da sua reclamação) a exclusão das “verbas n.os 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43, 45, 47, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 135, 136, 137, 138, 150, 151, 152, 163 que correspondem a bens pessoais da Interessada e não comuns do casal.”
Em 12-06-2023, a interessada/reclamante apresentou resposta ao despacho de 01-06-2023 que a convidou a “concretizar a alegação (…) invocando factos concretos que permitam ao Tribunal concluir pela qualidade” dos bens das verbas n.os 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43, 45, 47, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 135, 136, 137, 138, 150, 151, 152, 163 como bens próprios da interessada reclamante.
Alegou a mesma, quanto às referidas verbas relativamente às quais o apelante invoca não ter sido apreciada a reclamação apresentada:
Verba n.° 34 – caixas de Lego recebidas por herança da tia da Requerente CC;
Verba n.° 35 - recebido por herança da tia da Requerente CC;
Verba n.° 36 – um centro de Prata (Dragão) oferecido pela mãe da Requerente;
Verba n.° 38 – um anel de senhora em ouro com opalas pertencente à filha de ambos, como prenda de fim de curso;
Verba n.° 39 - um par de brincos em ouro com opalas pertencente à filha de ambos, como prenda de fim de curso;
Verba n.° 41 – aliança oferecida pela tia da Requerente, que foi madrinha de casamento;
Verba n.° 43 – dois bonecos do TOM oferecidos à Requerente pelo Requerido;
Verba n.° 45 – Diversas bolas de marfim recebidas por herança da avó da Requerente DD;

Sobre o requerimento da interessada e reclamante BB para a exclusão das referidas verbas recaiu a seguinte decisão do tribunal a quo:
«(…) Dos bens cuja falta foi acusada e dos bens cuja exclusão da relação de bens foi peticionada:
A requerida apresentou reclamação à relação de bens, pugnando pela exclusão da relação de bens das verbas nºs 34 a 36, 38, 39, 41, 43, 45, 47, 76, 77 a 81, 135 a 138, 150, 151 e 163, alegando que parte dessas verbas foram por si herdadas, outras oferecidas e outras são pertença da filha do casal.
No tocante à verba nº 163 (saldo bancário), sustentou que o mesmo corresponde a indemnização recebida pela requerida na sequência de um despedimento e que já foi gasta em despesas da casa ao longo de 20 anos. (…)
*
O cabeça-de-casal respondeu, impugnando os factos alegados pela requerente.
*
Cumpre decidir.
*
No que respeita às verbas cuja (…) exclusão da relação de bens foi requerida, com exceção da verba nº 163, que se apreciará infra, verifica-se que a requerida não apresentou qualquer prova dos factos por si alegados, sendo sobre si que recaía o respetivo ónus (cfr artigo 342º/1 do Código Civil), tendo tal prova de ser apresentada com a reclamação (cfr artigo 1105º/2 do C.P.C.).
Terá assim a sua pretensão, nesta parte, de improceder. (…)».

Como resulta da leitura do transcrito excerto da decisão recorrida, o tribunal a quo apreciou a pretensão da reclamante de exclusão da relação de bens das verbas n.os 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43, 45 (e das restantes verbas cuja exclusão da relação de bens a interessada requereu) julgando improcedente o pedido de exclusão dos referidos bens da relação de bens.
Não há qualquer omissão de pronúncia, improcedendo a arguida nulidade da decisão recorrida.

2. Revogação da não admissão do aditamento à relação de bens das verbas 164 e 165

O cabeça-de casal aqui apelante, no requerimento inicial de instauração/propositura do processo de inventário de 08-06-2022 (ref. 32512418), além de indicar dever ser nomeado como cabeça-de-casal, alegou, sob o título “DA PRESTAÇÃO DE CONTAS”, que desde 29/05/2021 que suporta em exclusivo os encargos da casa de morada de família, face ao que apresenta “(…) desde já (…) a conta do cabecelato, relativa ao primeiro ano decorrido, referente a despesas que o requerido suportou a expensas inteiramente suas, desde o dia 29 de maio de 2021 até à presente data, sem prejuízo de todos os restantes pagamentos que se seguirem até ao termo da presente ação (…)”, indicando em seguida, sob os artigos 20.º a 27.º de tal requerimento:
21.º
Dispôs o requerente, ainda, da quantia de € 400,16 (quatrocentos euros e dezasseis cêntimos) referente ao serviço de “A...”. (…)
22.º
Adicionalmente, o requerente efetuou o pagamento de € 67,59 (sessenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos) à Autoridade Tributária e Aduaneira, correspondente ao Imposto Único de Circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-GM (…)
23.º
bem como o pagamento do prémio do seguro do referido automóvel, que corresponde à quantia de € 119,59 (cento e dezanove euros e cinquenta e nove cêntimos), vencida a 12 de julho de 2021 e (…)
24.º
à quantia de € 119,73 (cento e dezanove euros e setenta e três cêntimos), vencida a 12 de janeiro de 2022, (…)
25.º
Sobre o requerente recaiu ainda o encargo que consubstanciou a quantia de € 53,85 (cinquenta e três euros e oitenta e cinco cêntimos), correspondente ao Imposto Único de Circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-LV, (…)
26.º
bem como o pagamento do prémio do seguro do referido automóvel, que corresponde à quantia de € 131,33 (cento e trinta e um euros e trinta e três cêntimos), vencida a 22 de julho de 2021 e (…)´
27.º
à quantia de € 131,44 (cento e trinta e um euros e quarenta e quatro cêntimos), vencida a 22 de janeiro de 2022. (…)».

Juntou ainda com tal requerimento inicial, como Documento n.º 5, a Relação de Bens(…) nos termos do artigo 1097.º, n.º 3, alínea c), “ex vi” do artigo 1133.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, na sequência de ação judicial que decretou o divórcio de AA e BB.
Nessa relação de bens fez constar, como ATIVO, as Verbas n.º 1 a 163.
Destas verbas, são elencadas como Bens Móveis as Verbas n.º 1 a 161 (sendo que a Verba n.º 159 foi descrita como “Todos os bens móveis que se encontram no interior do estabelecimento comercial do cabeça de casal, sito na Rua ..., Porto Valor: € 2.100,00”), e é elencada como Bens Imóveis a verba 162 (“Fração Autónoma do Prédio Urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal, designada pela letra “L”, localizada na Rua ..., ..., ... Porto”).
Fez ainda constar no ATIVO, como Saldo bancário, a Verba n.º 163, assim descrita: Saldo da conta bancária do Banco 1..., com o número .... Valor: € 36.500,00.
E fez consta como PASSIVO a seguinte Verba n.º 1: Dívida hipotecária por contrato de mútuo com hipoteca celebrado com a entidade bancária Banco 2..., S.A. (…) Data: 25/02/2004 Valor em débito: € 30.250,47. Juntou como comprovativo documento 14 – Extracto Integrado 03/2022, referente ao período de 01/03/2022 a 01/04/2022, com adata de emissão de 01/04/2022, do qual consta como passivo Crédito Habitação/Hipotecário € 30.250,47.

Em 01-06-2023 (ref. 449000250) o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
O requerente, no requerimento inicial, e sob a epígrafe “prestação de contas”, declarou apresentar conta de cabeçalato, aí fazendo constar ter pago dívidas que reputa serem comuns do casal.
Ora, sem prejuízo de o processo de prestação de contas ser um processo autónomo, não cumulável com o processo de inventário, face à total divergência de tramitação, entendemos que tal processo é, no caso concreto, desnecessário.
De facto, quando um dos cônjuges paga com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, e esse crédito é exigível no momento da partilha.
Assim sendo, mesmo que tal pagamento seja posterior à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, dá origem a um crédito do cônjuge pagador sobre o outro cônjuge, o qual deve ser relacionado no processo de inventário (neste sentido, cfr AcRG, 27/01/2022, in www.dgsi.pt).
Face ao exposto, convida-se o requerente a, no prazo de 10 dias, aditar à relação de bens as verbas respeitantes aos créditos provenientes do pagamento de dívidas que reputa comuns, alertando-se a requerida que, correspondendo o requerente ao convite formulado, dispõe de 10 dias para se pronunciar.

Em 15-06-2023 (ref. 35949210) o requerente cabeça-de-casal, em resposta a tal despacho, apresenta “relação de bens atualizada”, da qual fez constar como integrando bens do ATIVO, no que ao caso releva:
DIREITOS DE CRÉDITO:
CRÉDITO DE UM DOS CÔNJUGES SOBRE O OUTRO:
Verba n.º 164
(…) Descrição: O cabeça de casal pagou exclusivamente a expensas suas desde o mês de maio de 2021 até ao mês de maio de 2023 todas as prestações mensais da dívida hipotecária por contrato de mútuo com hipoteca celebrado com a entidade bancária Banco 2..., S.A. (…)
Valor unitário de cada prestação mensal: € 296,98
Valor total das vinte e quatro prestações pagas: € 7.125,12 (cfr. Doc. n.º 14 que se anexa e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais)
Verba n.º 165
(…) Descrição: O cabeça de casal pagou exclusivamente a expensas suas desde o mês de maio de 2021 até ao mês de maio de 2023 todas as rendas mensais à senhoria do estabelecimento comercial, EE, sito na Rua ..., Porto, onde se encontram os bens comuns do casal identificados nas Verbas n.º 159-A à Verba n.º 159-CCC (…)
Valor unitário de cada prestação mensal: € 310,00
Valor total das vinte e quatro prestações pagas: € 7.440,00 (…).
Verba n.º 166
(…) Descrição: O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento do Imposto Municipal Sobre Imóveis.
Valor: € 167,55 (…)
Verba n.º 167
Descrição: O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento referente ao serviço de “A...”.
Valor: € 400,16 (…)
Verba n.º 168
(…) O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento à Autoridade Tributária e Aduaneira, correspondente ao Imposto Único de Circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-GM,
Valor: € 67,59 (…)
Verba n.º 169
(…) O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento do prémio do seguro do veículo automóvel, com a matrícula ..-..-GM, vencido a 12 de julho de 2021
Valor: € 119,59 (…)
Verba n.º 170
(…) O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento do prémio do seguro do veículo automóvel, com a matrícula ..-..-GM, vencido a 12 de janeiro de 2022
Valor: € 119,73 (…)
Verba n.º 171
(…) O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento à Autoridade Tributária e Aduaneira, correspondente ao Imposto Único de Circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-LV,
Valor: € 53,85 (…)
Verba n.º 172
(…) O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento do prémio do seguro do veículo automóvel, com a matrícula ..-..-LV, vencido a 22 de julho de 2021
Valor: € 131,33 (…)
Verba n.º 173
(…) O cabeça de casal efetuou exclusivamente a expensas suas o pagamento do prémio do seguro do veículo automóvel, com a matrícula ..-..-LV, vencido a 22 de janeiro de 2022
Valor: € 131,44 (…).

O tribunal a quo proferiu então a seguinte decisão, que o apelante pretende ver revogada:
Das verbas nºs 164 e 165 aditadas em 15/06/2023:
O requerente e cabeça-de-casal cumulou o pedido de inventário com o oferecimento de contas do cabecelato.
Por despacho de 01/06/2023, o Tribunal considerou que tais pedidos não eram cumuláveis, tendo, no entanto, considerado desnecessário o oferecimento de contas, por entender que os créditos de um dos ex-cônjuges sobre o outro são exigíveis no momento da partilha, devendo ser relacionados no processo de inventário.
Nessa sequência, convidou o cabeça-de-casal a aditar tais créditos à relação de bens.
O cabeça-de-casal, respondendo ao convite, relacionou não só os créditos invocados no requerimento inicial (verbas nºs 166 a 173 da relação de bens apresentada em 15/06/2023), mas outros 2 créditos (verbas nºs 164 e 165) não previamente invocados.
Ora, no regime do processo de inventário aprovado pela Lei 117/2019, de 13/09, aqui aplicável, o legislador reforçou os poderes inquisitório e de direção e gestão processual do juiz, o que resulta desde logo dos princípios gerais constantes do Código de Processo Civil, os quais passaram a ser diretamente aplicáveis ao processo de inventário, a partir do momento em que este passou a integrar aquele Código.
Mas também introduziu regras de preclusão e de concentração no que diz respeito à alegação das questões relevantes e demonstração probatória do alegado, incrementando, assim, a autorresponsabilidade das partes na prática dos atos processuais (cfr artigos 1097º e 1099º do Código de Processo Civil).
Em relação ao princípio da concentração, o legislador procurou concentrar os meios de defesa dos interessados (oposição, impugnação e reclamação), fixando o prazo de 30 dias, estabelecendo o artigo 1104º que, nesse prazo, deve ser deduzida oposição ao inventário, impugnar-se a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, impugnar a competência do cabeça-de-casal ou as indicações constantes das suas declarações e apresentar reclamação à relação de bens ou impugnar os créditos e as dívidas da herança.
O princípio da concentração e da autorresponsabilidade das partes também funciona em relação à apresentação da relação de bens que, na perspetiva das novas regras, deve funcionar como uma verdadeira petição inicial, pelo que os aditamentos só serão justificados, tal como ocorre com a oposição, se tiverem natureza objetiva ou subjetivamente supervenientes (neste sentido, cfr AcRE, 09/02/2023, in www.dgsi.pt), sob pena da fase de apresentação da relação de bens de bens e reclamação quanto à mesma se eternizar.
No caso concreto, o Tribunal nem sequer determinou a junção de nova relação de bens – por tal ato ser inútil – mas apenas o aditamento à mesma dos créditos que o requerente, no requerimento inicial, considerou deverem ser objeto de prestação de contas.
Assim sendo, o requerente estava limitado pelo teor do despacho proferido e pelo que se expôs supra, a aditar à relação de bens inicial os créditos previamente descritos, estando-lhe vedada a possibilidade de, sem mais, invocar novos créditos nesta fase processual ou proceder a qualquer outra alteração.
Por todo o exposto, as verbas nºs 164º e 165º da relação de bens não serão consideradas, determinando-se a sua exclusão, alertando-se ainda as partes que a relação de bens a considerar é a inicialmente apresentada, com os aditamentos realizados na sequências dos convites do Tribunal relativamente à verba nº 159 (requerimento de 13/01/2023) e quanto às dívidas entre os ex-cônjuges (requerimento de 15/06/2023, com exceção das verbas nºs 164º e 165º, cuja exclusão foi determinada).

Fundamenta o apelante a pretendida revogação da decisão de exclusão das verbas n.os 164 e 165 da relação de bens invocando estar em causa o exercício do seu direito à prestação de contas, que pode exercer no decurso do processo de inventário, à medida que se vão vencendo os créditos decorrentes de prestações periódicas, podendo por isso aditar créditos à relação de bens que não havia indicado aquando da propositura da petição inicial de inventário.

Em primeiro lugar, e como resulta do despacho recorrido, o tribunal a quo considerou inadmissível a cumulação da pretendida prestação de contas com o processo de inventário. Tal decisão, nessa parte, não foi impugnada. Daqui resulta a falta de fundamento da invocação, pelo apelante, do direito à prestação de contas para a pretendida revogação da decisão recorrida de não admissão do aditamento à relação de bens de direitos de crédito que cuja existência não alegou no requerimento inicial de inventário (sob o título “Prestação de Contas”).
Em segundo lugar, não colhe a argumentação do apelante do sucessivo vencimento de créditos decorrentes de prestações periódicas como fundamento justificativo do relacionamento de créditos que já se encontravam vencidos na data da instauração do processo de inventário, como é o caso das prestações mensais da dívida hipotecária por contrato de mútuo com hipoteca celebrado com a entidade bancária Banco 2..., S.A., vencidas desde maio de 2021 até à data da propositura do inventário (verba n.º 164) e das rendas mensais do estabelecimento comercial sito na Rua ... dos meses de maio de 2021 até à data da propositura do inventário (verba n.º 165).
Em terceiro lugar, assiste razão ao tribunal a quo na análise efetuada das consequências, na atual tramitação do processo de inventário, das “regras da preclusão e concentração no que diz respeito à alegação das questões relevantes e demonstração probatória do alegado, incrementando, assim, a autorresponsabilidade das partes na prática dos atos processuais (cfr artigos 1097º e 1099º do Código de Processo Civil).”, nomeadamente quanto ao facto do princípio da concentração e da autorresponsabilidade das partes também se aplicar à apresentação da relação de bens que, no vigente regime “deve funcionar como uma verdadeira petição inicial, pelo que os aditamentos só serão justificados, tal como ocorre com a oposição, se tiverem natureza objetiva ou subjetivamente supervenientes”.
Como é referido, de forma lapidar, no Acórdão do TRG de 16-05-2024, proc. 172/22.3T8CBT-A.G1, que aqui seguimos de perto, da atual tramitação do processo de inventário – arts, 1097.º, 1100.º, 1104.º, 1105.º, 1109.º, 1110.º e 111.º, todos do Cód. Proc. Civil – resulta que estamos atualmente perante uma verdadeira ação, com uma primeira fase – fase dos articulados –, incumbindo ao cabeça-de-casal, quando o mesmo é o requerente do inventário, além de cumprir o disposto no n.º 2 do art. 1097.º, juntar logo a relação de todos os bens sujeitos a inventário, nos termos do disposto no art. 1097.º, n.º 3, al. c), do Cód. Proc. Civil, assim permitindo o subsequente exercício do contraditório/defesa (no caso aqui em apreciação, de inventário para separação de meações), por parte da requerida/interessada, a quem incumbe, em conformidade com o disposto no art. 1104.º do Cód. Proc. Civil, deduzir nesse requerimento toda a oposição e/ou impugnação que pretenda fazer valer – incluindo a indicação dos meios probatórios –, designadamente, no que aqui releva, quanto à relação de bens apresentada, seguindo-se a resposta do requerente/cabeça-de-casal, nos termos previstos no art. 1105.º, n.º 1 e n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
Em igual sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2020, págs. 521 e 522, esclarecem que «É nesta primeira fase (fase dos articulados, que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), em face do requerimento inicial e dos factos e documentos apresentados pelo requerente (arts. 1097.º e 1099.º) ou pelo cabeça de casal judicialmente designado ou confirmado (art. 1100.º, n.º1, al. b)), que deve ser concentrada a discussão de todos os aspetos essenciais relevantes. Sem embargo das exceções salvaguardadas por regras gerais de processo (vg. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventario que permitem o diferimento (v.g. avaliação dos bens, incidente de inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104.º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial.(…)».
Daqui resulta que o cabeça-de-casal requerente do inventário tem o ónus de alegar tudo o que entende dever ser apreciado no inventário e de relacionar todos os bens que integram o património comum do ex-casal a partilhar na relação de bens na relação de bens apresentada com o requerimento inicial: nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 553, «(…) o requerimento inicial assemelha-se, agora, a uma verdadeira petição inicial: para além dos elementos de natureza formal previstos no art. 552.º que se mostrem ajustados ao processo de inventário (…), o requerente, em função da qualidade que assuma, isto é, como interessado direto (art. 1099.º) ou invocando, simultaneamente ou não, a qualidade de cabeça de casal (art 1097.º), tem o ónus de expor e demonstrar os elementos referidos em cada uma dessas disposições (…), a fim de que possam ser sujeitas ao contraditório. (…)».
Ora, o cabeça-de-casal, no requerimento inicial, apresentou ‘Prestação de Contas do cabecelato relativa ao primeiro ano decorrido desde 29 de maio de 2021, data em que a requerida deixou a casa de morada de família, até à data da apresentação do requerimento de inventário (08-06-2022)’, alegando que desde o referido dia 29 de maio de 2021 suportou ‘a expensas suas’ os seguintes encargos associados à casa de morada de família, ‘sem prejuízo de todos os restantes pagamentos que se seguirem até ao termo da presente ação’:
20.º - € 167,55 pagamento do Imposto Municipal Sobre Imóveis;
21.º - € 400,16 referente ao serviço de “A...
22.º - € 67,59 (sessenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos) à Autoridade Tributária e Aduaneira, correspondente ao Imposto Único de Circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-GM;
23.º - € 119,59 de pagamento do prémio do seguro do referido automóvel, vencida a 12 de julho de 2021
24.º - e € 119,73 (cento e dezanove euros e setenta e três cêntimos), vencida a 12 de janeiro de 2022
25.º - € 53,85 correspondente ao Imposto Único de Circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-LV,
26.º -€ 131,33 pagamento do prémio do seguro do referido automóvel matrícula ..-..-LV vencida a 22 de julho de 2021
27.º - e € 131,44, vencida a 22 de janeiro de 2022.

Não alegou, e podia tê-lo feito, ter suportado sozinho as prestações mensais da dívida hipotecária por contrato de mútuo com hipoteca celebrado com a entidade bancária Banco 2..., S.A., desde a alegada data de maio de 2021 e até à data da instauração/propositura do processo de inventário; de igual modo nada alegou quanto ao pagamento das rendas do estabelecimento comercial desde maio de 2021 e até à data da propositura do processo de inventário.
Se considerava que as prestações do contrato de mútuo e as rendas constituem dívidas comuns do casal e ter o mesmo suportado, com dinheiro/bens exclusivamente seus, o pagamento dessas prestações e dessas rendas, tinha que ter oportunamente alegado tais factos no requerimento inicial, tal como o fez relativamente aos encargos invocados nos arts. 20.º a 27.º do requerimento inicial.
O que já não pode é, a coberto da resposta ao convite efetuado pelo tribunal a quo, por despacho de 01-06-2023, para “aditar à relação de bens as verbas respeitantes aos créditos provenientes do pagamento de dívidas que reputa comuns” – convite esse feito por expressa referência, como resulta da leitura do aludido despacho, às “dívidas que reputa serem comuns do casal” elencadas nos referidos arts. 10.º a 27.º do requerimento inicial de instauração do inventário – vir aditar novos e distintos créditos sobre a requerida, referentes a pagamentos de dívidas que não havia oportunamente alegado, e que não são supervenientes, nem objetiva nem subjetivamente.
Por fim, sempre se dirá que jamais se poderia aceitar o relacionamento da verba 164 nos moldes pretendidos pelo apelante, por incompatibilidade parcial com o relacionamento efetuado na Verba n.º 1 do PASSIVO, uma vez que o relacionamento das prestações de vencimento ulterior à data de 01-04-2022 efetuado na verba n.º 164 afeta o valor do Crédito Habitação/Hipotecário de € 30.250,47 à data de 01-04-2022, na medida em que o pagamento das prestações ulteriores a 01-04-2022, relacionado na verba n.º 164, implicará um abatimento ao valor da dívida relacionado na Verba n.º 1 do PASSIVO (reportado à data de 01-04-2022).
Concluímos, deste modo, tal como o tribunal a quo, e na esteira do entendimento do Ac. do TRG de 16-05-2024, proc. 172/22.3T8CBT-A.G1, supra referido, e do Ac. do TRP de 09.02.2023, proc. 2670/20.4T8MAI-D.P1, que «(…) o actual modelo processual do inventário não comporta sucessivos aditamentos à relação de bens e nomeadamente ao passivo, salvo nos casos de superveniência.», que aqui não existe.

3. Revogação da não admissão da ‘nova’ relação de bens de 21.06.2023

Não está prevista na tramitação do processo de inventário a apresentação de nova relação de bens, sequer em consequência da decisão que aprecia e decide a reclamação à relação de bens. É o próprio apelante que, nas conclusões da apelação, qualifica a apresentação de ‘nova’ relação de bens como um ato de simplificação/agilização processual. Se o tribunal a quo tivesse determinado a apresentação de ‘nova’ relação de bens em conformidade com a decisão que apreciou a reclamação deduzida à relação de bens – o que não fez –, estar-se-ia aqui perante uma decisão enquadrável no n.º 1 do art. 630.º do Cód. Proc. Civil (não sendo, por conseguinte, admissível recurso da mesma). Não sendo esse o caso, mas antes uma situação de prática, pelo apelante, de um ato não previsto, a decisão recorrida – de não consideração da “nova” relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal no seu requerimento de 21/06/2023, em que responde ao requerimento da requerida de 12/06/2023, porquanto inexiste fundamento legal para tal apresentação – não viola qualquer disposição legal, antes constituindo um despacho igualmente insuscetível de recurso, por enquadrado no referido n.º 1 do art. 630.º do Cód. Proc. Civil, não se admitindo, em consequência, o recurso interposto quanto a tal despacho.

4. Revogação/alteração da decisão de exclusão da verba n.º 163 da relação de bens
O cabeça-de-casal incluiu no ATIVO da relação de bens a verba 163, com a seguinte descrição:
SALDO BANCÁRIO:// Descrição: Saldo da conta bancária do Banco 1..., com o número ... // Valor: € 36.500,00
A requerida, na reclamação à relação de bens requereu a exclusão da verba n.º 163 (por ser bem pessoal da Interessada e não comuns do casal), alegando que tal verba «(…) corresponde ao valor da indemnização por despedimento da Interessada ocorrida no ano de 2006, conforme se comprova pela cópia do extrato bancário que ora se junta sob o documento n.º 3 para todos os devidos e legais efeitos. (…)», constituindo tal documento 3 um extrato de movimentos históricos da conta bancária do Banco 1... n.º ... tendo como 1.º titular a requerida, contendo a descrição de movimentos bancários entre 13-10-2006 e 29-11-2006, constando do referido extrato o seguinte movimento:

Na sequência do convite efetuado pelo tribunal por despacho de 01-06-2023, a requerida/reclamante alegou (requerimento de 12-06-2023) o seguinte, quanto à Verba n.° 163: “saldo correspondente ao valor da indemnização por despedimento da Requerente ocorrida no ano de 2006, que já foi gasta em despesas da casa ao longo dos quase 20 anos decorridos. Além disso, realça-se que o Requerido age de má-fé ao incluir o valor da indemnização (recebida em 2006) da Requerente como bem comum, ‘esquecendo-se’ de incluir a indemnização que ele próprio recebeu por rescisão do contrato de trabalho.
Na resposta/contraditório a tal alegação (apresentada em 21-06-2023), o cabeça-de-casal aqui apelante respondeu “(…) no que concerne à alegada indemnização por despedimento da interessada, ocorrida no ano de 2006, na quantia de € 36.500,00. [que] Recebendo um dos cônjuges uma indemnização por cessação do contrato de trabalho, esta será considerada bem comum desde que tenha sido adquirida na constância do casamento, conforme foi o caso da indemnização recebida pela aqui interessada.”, citando em seguida jurisprudência de suporte a tal entendimento, e concluindo que “(…) A Verba n.º 163 da Relação de Bens apresentada pelo cabeça de casal encontra-se, portanto, relacionada corretamente.”.

O tribunal a quo proferiu a seguinte decisão quanto a tal verba:
No que respeita à verba nº 163, verifica-se que o cabeça-de-casal relacionou a mesma como saldo da conta bancária do Banco 1... com o nº ..., no valor de € 36.500,00.
Não juntou qualquer documento comprovativo da existência de tal saldo, contrariamente ao que impõe o artigo 1098º/4 do C.P.C., não invocou qualquer impossibilidade de documentar o mesmo nem requereu ao Tribunal qualquer diligência para o efeito.
A requerida, em sede de reclamação, esclareceu que tal valor corresponde a uma indemnização pelo seu despedimento que ocorreu em 2006, juntando documento referente ao respetivo depósito, alegando que a mesma foi gasta ao longo de 20 anos, facto que o cabeça-de-casal, em sede de resposta, não impugnou.
Ora, face ao disposto no artigo 1724º/a) do Código Civil, que dispõe que o produto do trabalho dos cônjuges constitui bem comum, não temos dúvidas que a verba em questão, a existir no momento em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges, integraria o património comum, por ter a sua origem na relação laboral.
No entanto, o cabeça-de-casal não juntou documento comprovativo da sua existência, desconhecendo, assim, o Tribunal se tal verba existia ou não nesse momento.
Concluímos, assim, pela falta de prova da existência da verba em questão, impondo-se a sua eliminação da relação de bens.

Defende o apelante que o tribunal a quo tinha que ter considerado a existência do saldo bancário depositado na indicada conta do Banco 1... dada a falta de impugnação da existência desse saldo pela requerida, constituindo tal matéria factualidade assente, e não controvertida, pelo que não havia necessidade de junção de qualquer comprovativo da existência do referido saldo bancário, violando a decisão recorrida o disposto no art. 574.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
Não lhe assiste qualquer razão, desde logo porque – como, de resto, resulta claramente da posição da requerida no requerimento apresentado em 12-06-2023 e é expressamente referido na decisão recorrida – a requerida, ao alegar que o valor da indemnização por despedimento ocorrida no ano de 2006 já foi gasta em despesas da casa ao longo dos quase 20 anos decorridos, impugnou a existência da referida verba na data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (no caso concreto, e conforme foi referido, sem impugnação, na decisão recorrida, em 27/10/2021, data da propositura da ação, à qual retroagiram os efeitos do divórcio quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges).
Não merece, assim, qualquer censura a decisão recorrida: não foi junta nem requerida pelo cabeça-de-casal e aqui apelante a produção de qualquer prova de que, na data da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, que é a data que releva, a referida conta bancária (cujo concreto tipo e titularidade o apelante nem sequer alegou) apresentava o saldo de € 36.500,00 que foi feito constar na verba n.º 163 da relação de bens. É desprovida de qualquer fundamento a invocação, efetuada pelo apelante nas alegações de recurso, do extrato bancário junto pela requerida como meio de prova da existência da verba n.º 163: o que tal documento comprova é, tão só e apenas, que em 24-11-2006 foi depositada na indicada conta do Banco 1... o montante de € 38.595,30 referente a rescisão de contrato individual de trabalho (RCIT); dele não resulta qualquer prova da existência, na data da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, do saldo bancário de € 36.500,00 na conta bancária do Banco 1..., com o número ....
Improcede este último fundamento do recurso.

5. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).
A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe ao apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV. Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão apelada.
Custas a cargo do apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
*
Notifique.
***
Porto, 12/9/2024
Ana Luísa Loureiro
Paulo Dias da Silva
Paulo Duarte Teixeira