EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PREJUDICIALIDADE
PROCESSO EXECUTIVO
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
Sumário

Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – Em execução cujo título executivo é constituído por mútuo garantido por hipoteca, a pendência de ação de impugnação pauliana tendo por objeto o ato de transmissão do bem que constitui a garantia hipotecária, ocorrida em momento subsequente à da constituição da hipoteca e, consequentemente, oponível ao terceiro adquirente, não constitui questão prejudicial.
II – Se a existência de causa prejudicial não foi suscitada por qualquer das partes, nem constituía matéria de conhecimento oficioso do tribunal, não enferma do vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC, a decisão que não procedeu ao seu conhecimento.
III – Nada obsta à admissão de incidente de intervenção principal provocada em processo executivo, quando se verifiquem os necessários pressupostos legais e, perante as coordenadas do caso concreto, se conclua que tal intervenção visa satisfazer um interesse legítimo, consonante com os fins da ação executiva.
IV – O exequente que não atentou que o bem sobre o qual invoca garantia hipotecária havia sido transmitido previamente à instauração de ação executiva pode obter a intervenção principal, no lado passivo, do adquirente, mediante incidente de intervenção principal provocada, por forma a lograr obter a satisfação do crédito exequendo pelo produto de tal bem.

Texto Integral

Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1– A exequente “Caixa Geral de Depósitos, SA”, identificada nos autos, instaurou, em 21-09-2022, execução para pagamento de quantia certa, sob a forma sumária, contra os executados A e B, também identificados nos autos, alegando ter celebrado com ambos um contrato de mútuo, pelo qual lhes disponibilizou a quantia de € 149.000,00. Para garantia do pagamento de tal quantia, foi constituída hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra “P”, correspondente ao sétimo andar B – Bloco A, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua António (…), nºs … e Rua …, nºs … Urbanização …. freguesia de Benfica e concelho de Lisboa, inscrito na respetiva matriz urbana sob o art. …0, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º …2, hipoteca essa que se encontra registada na referida conservatória sob a AP. …62 de 2019/…/….
Sucede que os executados não pagaram as prestações a que se obrigaram, sendo que na data da interposição da ação, a dívida exequenda ascendia a € 143.345,09 (incluindo juros, comissões e imposto de selo).
1.2 – Em 09-12-2022, a exequente deduziu incidente de habilitação de adquirente contra os primitivos executados A, B e ainda contra “C Unipessoal, Ldª”, alegando, no essencial:
 - Os presentes autos executivos destinam-se à cobrança de dívida com garantia real, dado que os executados constituíram hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra “P”, correspondente ao sétimo andar B – Bloco A, destinada a habitação, com três divisões assoalhadas, estacionamento para dois automóveis, com os n.ºs …, situados ao nível da segunda cave e arrecadação com o n.º 3, situada no piso 1 do Bloco …, do prédio urbano sito na Urbanização …- Rua António …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º …02 da freguesia de Benfica e inscrito na matriz com o art.º …80 da freguesia de São Domingos de Benfica, em benefício da exequente, para garantia do capital mutuado;
- Sucede que referida fração, ainda que onerada pela sobredita hipoteca, foi alienada pelos mutuários e aqui executados à requerida Cs, Unipessoal Lda., sendo esta sociedade a proprietária inscrita no registo predial atualmente (cfr. registo de aquisição com a AP. 5717 de 2021/…/…, convertido em definitivo pela AP….85 de 2022/…/…);
- Tal transmissão teve por base documento particular autenticado de compra e venda, celebrado em 04-02-2022, no qual tiveram intervenção, na qualidade de vendedores, os executados A e B e na qualidade de compradora a requerida Cs, Unipessoal Lda;
- Dado que a sociedade requerida é a atual proprietária do bem sobre o qual incide a garantia real da dívida exequenda, solicitou a exequente a sua habilitação, por forma a que a execução também contra ela prossiga, embora, nessa parte, limitada ao valor do bem em causa.
1.3 – Em 12-07-2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:
A exequente Caixa Geral de Depósitos instaurou a execução a que estes autos estão apensos contra os mutuários no contrato de crédito que invoca na execução, A e B, invocando em garantia do crédito hipoteca constituída pelos ditos mutuários sobre a fração autónoma P, melhor identificada na execução.
À data da instauração da execução a fração hipotecada já havia sido vendida pelos mutuários à sociedade C Unipessoal Lda., como resulta [da] certidão do registo predial junta na execução, com registo da aquisição por esta em ….9.2021. A exequente não atendeu a este facto, tanto mais que juntou com o requerimento executivo cópia do registo predial desatualizada.
Nos termos do art.54.º n.º2 do CPC, a execução por divida com garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor. Desta feita a exequente, pretendendo fazer valer a hipoteca tinha que ter instaurado a execução contra a empresa adquirente, ainda que em litisconsórcio inicial com os mutuários. O que já não podia era instaurar a execução apenas contra estes, que, são parte ilegítima na execução.
Sucede que a exequente vem, então, instaurar o presente incidente de habilitação de adquirente pretendendo, como resulta do pedido final, não substituir os executados pela atual proprietária do imóvel hipotecado, mas fazer seguir a execução também contra esta. Por isso a exequente pretende que a execução siga contra os executados iniciais e contra a adquirente. Mas para isso não é o incidente de habilitação o meio correto para obter tal fim, já que o incidente de habilitação de adquirente tem como objetivo substituir uma parte por outra, tal como se extrai do art.356.º em conjugação com o art.262.º e 263.º do CPC.
O que a exequente pretende é fazer intervir na causa outra parte, pelo que, o incidente correto é o incidente de intervenção de terceiros, mais concretamente o incidente de intervenção principal provocada (art.316.º do CPC). E era este incidente que devia ter deduzido na execução.
A questão que ora se coloca é a de saber se o erro no meio processual usado deve ser corrigido, determinando que se sigam os termos processuais corretos (art.193.º do CPC). Afigura-se-nos que sim, porquanto, embora em processo executivo os incidentes de intervenção de terceiros seja, em regra, de excluir, temos entendido que tais incidentes são admissíveis justamente nos casos previstos no art.54.º do CPC, (v.g. para fazer intervir um herdeiro preterido inicialmente, ou para fazer intervir o adquirente da coisa dada em garantia).
Nestes termos, ao abrigo do art.193.º e 547.º do CPC, determina-se que o presente apenso seja incorporado na execução, seguindo como incidente de intervenção principal provocada da adquirente do imóvel hipotecado.
Contudo, uma vez que a taxa de justiça paga é inferior à devida, deve a exequente, em dez dias a contar da notificação do presente despacho vir demonstrar o pagamento do montante em falta, sob pena de se aplicar o disposto no art.642.º do CPC aplicável ex vi do art.145.º n.º3 do mesmo código.
Notifique”.
1.4 – Após a exequente ter comprovado o pagamento do complemento da taxa de justiça, em 28-11-2023 foi proferido despacho (referência 430659402), no qual foi admitida a intervir nos autos, como executada, a requerida “C, Unipessoal, Ldª”, transcrevendo-se o respetivo conteúdo:
“Incidente de intervenção principal provocada da atual titular do direito de propriedade do bem hipotecado:
Tendo em conta o despacho proferido em 12.7.2023 que convolou o incidente de habilitação em incidente de intervenção provocada, há que considerar que a exequente pretende que seja admitida nos autos, como executada a atual proprietária do bem dado em hipoteca em garantia da divida exequenda, ou seja, a sociedade Porta Dinâmica Unipessoal Lda..
Resulta do registo predial relativamente ao imóvel hipotecado descrito na CRP de Lisboa, freguesia de Benfica sob o número …10 – P, que os executados iniciais venderam essa fração à referida sociedade, transmissão que se fez após a constituição da hipoteca a favor da exequente.
O imóvel por via da hipoteca responde pela divida exequenda e a isso não obsta a transmissão posterior, já que o imóvel foi transmitido onerado com a hipoteca, mantendo a exequente, naturalmente, a garantia.
Contudo, a execução não pode correr à margem do titular do bem sobre que incide a garantia, como há que extrair do art.54.º do CPC.
Os incidentes de intervenção de terceiros em processo executivo têm o seu campo de aplicação muito limitado, e vimos entendendo que serão de admitir em situações que possam convocar a aplicação do art.54.º do CPC, ou para assegurar a legitimidade ativa ou passiva em casos de litisconsórcio necessário.
No presente caso, pertencendo o bem hipotecado atualmente a terceiro, que não inicialmente demandado, a garantia deve ser efetivada assegurando-se a legitimidade passiva que pertence ao terceiro titular do bem sobre que incide a garantia.
Não tendo demandado inicialmente esse terceiro, afigura-se-nos que ainda o poderá fazer intervir na execução para fazer valer a garantia.
Assim, nos termos conjugados dos arts.54.º n.º2 e 316.º do CPC, admito a intervir nos autos, como executada, a sociedade “C Unipessoal Lda.”, a favor de quem se mostra registado o imóvel hipotecado.
Uma vez que a execução segue a forma sumária, proceda a senhor a AE à penhora do bem hipotecado e após cite a interveniente para a execução, com cópia do requerimento e título executivo, do auto de penhora do imóvel, do requerimento da exequente em que deduz o incidente, do despacho de 12.7.2023 e deste despacho.
Custas do incidente pela exequente.
Notifique e registe.”
1.5 – Em 22-12-2023 foi elaborado auto de penhora relativo à fração autónoma designada pela letra … correspondente ao …º andar…B, Bloco …, destinada a habitação, com três divisões assoalhadas, estacionamento para dois automóveis, com os nºs …, situados ao nível da segunda cave e arrecadação com o nº 3, situada no piso um do Bloco …, sito em Rua António …, Benfica, Lisboa descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com o nº …02 da Freguesia de Benfica e inscrito na matriz sob o artigo …80 da freguesia de S. Domingos de Benfica.
1.6 – Com vista à citação prevista no artigo 856º, CPC, foi remetida carta à recorrente em 22-12-2023, à qual foi anexa, além do mais, cópia do despacho que admitiu a sua intervenção principal provocada.
Tal ato foi repetido em 15-01-2024, tendo o distribuidor postal lavrado no respetivo aviso de receção declaração com o seguinte conteúdo:
No dia 2024-1-17 (…) na impossibilidade de entrega depositei no recetáculo postal domiciliário na morada indicada a CITAÇÃO a ela referente”.
2 – Não se conformando com a decisão que admitiu a sua intervenção, a recorrente da mesma interpôs recurso em 30-01-2024, ao qual requereu que fosse atribuído efeito suspensivo, alegando, para o efeito que “(…) a execução da decisão causará prejuízo considerável, pelo menos, no valor do imóvel, e ainda devendo ser considerado o imóvel em causa a título de caução (…)”.
A recorrente concluiu o recurso com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“A) O objeto do presente recurso é o Douto Despacho, proferido a 28.11.2023 (Ref.ª  30659402), que julgou: “nos termos conjugados dos arts.54º n.º2 e 316º do CPC, admito a intervir nos autos, como executada, a sociedade “Cs Unipessoal, Lda.” a favor de quem se mostra registado o imóvel hipotecado” (sic)
B) Antes de mais, deve ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso, dado que a execução da decisão causará prejuízo considerável, pelo menos, no valor do imóvel e ainda devendo ser considerado, o imóvel em causa, a título de caução, dado que o imóvel em causa está onerado com garantia a favor da exequente e permite assegurar o valor exequendo, cfr. a fls…
C) Desde logo, a decisão sub judice violou o disposto nos arts.º 10º, n.º 5, 53º, n.º 1 e 54º, n.º 2 e 260º do C.P.C. e deve ser revogada, porquanto, a apelada, ao instaurar a presente execução apenas contra os devedores que constavam no título executivo e tendo, ab initio, acesso ao teor da certidão do registo predial (que já publicitava o registo de aquisição a favor da apelante, anterior à instauração da ação executiva), assim como sabia previamente da aquisição pela apelada por comunicações escritas desta (que serão oportunamente apresentadas em sede de oposição à execução), prescindiu da garantia que tinha sobre o bem pertencente a terceiro, ou seja, à ora apelante.
D) O disposto no art.º 54º n.º 2 do C.P.C. tem ainda de estar em consonância com o art.º 818º do Código Civil, pelo que, não tendo ainda sido proferida decisão final na pendente ação declarativa impugnação pauliana (instaurada pela apelada, na pendência dos presentes autos e que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Processo: …/23.0T8CSC do Juízo Central Cível de Cascais - Juiz …), não estão preenchidos os requisitos para a intervenção da ora apelante nos presentes autos executivos, porquanto ainda não foi declarado judicialmente procedente a existência de algum ato praticado pela ora apelante em prejuízo da apelada/credora.
E) Ademais, a Douta decisão ora em crise não se pronunciou sobre questão que deveria ter apreciado – a pendência de outra ação judicial relativa aos mesmos factos, intervenientes, causa de pedir e objeto da presente ação e respetivos efeitos (designadamente, a suspensão da presente ação por causa prejudicial, nos termos do art.º 272º, n.º 1 do C.P.C.), por conseguinte, padece de nulidade nos termos do art.º 615º, n.º 1, alínea d) do C.P.C.
F) Acresce ainda que, não estando a ora apelante vinculada à garantia do crédito, a exequente impugnou a transmissão que foi feita àquela (para tentar garantir a possibilidade de executar coercivamente o imóvel, que por via da venda deixou de ser propriedade dos executados e passou a ser dela) pelo que, ao mesmo tempo, pretendeu, sem ainda estar munida de decisão transitada em julgado que anulasse aquela venda, trazê-la à ação executiva sem que a mesma tivesse em relação à ação alguma obrigação ou encargo e sem poder apresentar condigna e cabal defesa pois desconhece e não tem obrigação de saber os factos invocados no requerimento executivo e documentos juntos a este.
G) A certeza e exigibilidade do pretenso crédito da exequente quanto à ora apelante, é condição prévia sine qua non para a sustentabilidade dos autos da presente ação executiva (cfr. art.º 713º do C.P.C.), que não estão, nem ainda podem estar, verificados face ao acima.
H) Nesta conformidade, a ora apelante, pretensa interveniente também não tem (e nunca adquiriu) legitimidade passiva para prosseguir a ação executiva, como terceiro titular, nos termos do nº 2 do art. 54º do C.P.C.
I) Face ao exposto, o Douto Despacho do Tribunal “a quo”, violou os arts.º 10º, n.º 5, 53º, n.º 1, 54º, n.º 2, 260º, 272º, n.º 1, 615º, n.º 1, alínea d) e 713º todos do C.P.C. e ainda o art.º 818º do Código Civil.
J) Por isso, a Douta decisão ora em crise, deverá ser revogada e/ou alterada por outra que declare a extinção da instância quanto à ora apelante, com as demais consequências legais”.
3- A exequente apresentou contra-alegações, nas quais suscitou, como questões prévias as seguintes:
- Falta da legitimidade da recorrente para interpor recurso porquanto interveio nos autos após a citação que lhe foi dirigida, na sequência da realização da penhora, após a prolação do despacho recorrido, cabendo-lhe usar apenas os meios de defesa consagrados na lei, nos quais não se inclui a interposição de recurso;
- Extemporaneidade do recurso, dado que o despacho recorrido foi proferido em 28-11-2023 e notificado em 29-11-2023 e as alegações foram apresentadas em 30-01-2024, ultrapassando o prazo legal que situou em 16-01-2024;
- Ao recurso deve ser atribuído efeito devolutivo, dado que a mera existência de garantia hipotecária não constitui fundamento legal para a atribuição de efeito suspensivo.
Nas suas alegações, a recorrida não formulou conclusões, reafirmando mostrar-se fundamentada a intervenção da recorrente na qualidade de atual titular do imóvel sobre o qual incide a garantia real em causa nos autos e ainda que a pendência de ação de impugnação pauliana contra, além do mais os executados mutuários e a recorrente, não constitui questão prejudicial dos presentes autos.
4.  Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
5.  Remetidos os autos a este tribunal em 10-05-2024, foi determinado ouvir a recorrente sobre os fundamentos de inadmissibilidade do recurso aduzidos pela recorrida que, notificada para o efeito, considerou dispor de legitimidade para recorrer, negando a extemporaneidade do recurso, pugnando ainda pela condenação da recorrida como litigante de má fé por ter deduzido incidente processual infundado.
6. Na apreciação liminar do recurso, concluiu-se que a recorrente dispõe de legitimidade para recorrer, faculdade que exerceu tempestivamente, e que ao mesmo não poderia deixar de ser atribuído efeito devolutivo, aqui se dando por reproduzidos os fundamentos exarados no respetivo despacho.
7. Inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608º, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, as questões a decidir consistem nas seguintes:
- Nulidade da sentença, tendo por base o fundamento previsto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC, dado não ter sido ponderada a pendência da ação de impugnação pauliana instaurada pela exequente, tendo por objeto o ato de transmissão da fração hipotecada dos primitivos executados à interveniente;
-Pressupostos do incidente de intervenção principal da recorrente;
- Litigância de má fé.
III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na decisão do presente recurso, serão ponderados os factos que se extraem da tramitação processual, referidos no relatório que antecede, que se sintetizam nos seguintes termos:
- Os presentes autos executivos foram instaurados pela exequente “Caixa Geral de Depósitos, SA”, em 21-09-2022, contra os executados A e B, invocando a exequente a celebração de um contrato de mútuo com os executados, garantido por hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao sétimo andar …, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua António …, nºs …e Rua …, nºs …, Urbanização Benfica Stadium, freguesia de Benfica e concelho de Lisboa, inscrito na respetiva matriz urbana sob o art. …80, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º …02, registada na referida conservatória sob a AP. …62 de 2019/01/30;
- Em 09-12-2022 a exequente deduziu incidente de habilitação de adquirente contra os primitivos executados PA, B e ainda contra “C Unipessoal, Ldª”,invocando, para o efeito, que a fração hipotecada fora vendida pelos mutuários à recorrente, a favor de quem se mostrava registada tal aquisição mediante a AP. … de 2021/09/08, convertido em definitivo pela AP. … de 2022/02/04;
- Mais alegou a exequente que a sociedade requerida é a atual proprietária do bem sobre o qual incide a garantia real da dívida exequenda, requerendo a sua habilitação, por forma a que a execução também contra ela prossiga, embora, nessa parte, limitada ao bem em causa;
- Em 12-07-2023 foi proferido despacho que, além do mais, convolou o incidente deduzido para “incidente de intervenção principal provocada da adquirente do imóvel hipotecado”;
- Por despacho de 28-22-2023 foi determinada a intervenção nos autos, como executada, da requerida “Porta Dinâmica-Prestação de Serviços, Unipessoal, Ldª”.
B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da arguida nulidade da sentença
Na perspetiva da recorrente, a decisão recorrida deveria ter analisado e extraído consequências da pendência de ação pauliana instaurada pela exequente contra os primitivos executados e a própria recorrente, considerando que a mesma constitui causa prejudicial da presente ação, nos termos do disposto do artigo 272º, nº 1, CPC.
Enquadrando a questão suscitada, dir-se-á que a intervenção principal da recorrente no lado passivo da lide executiva teve por fundamento o facto de ser a atual titular da fração sobre a qual incide a garantia hipotecária invocada pela exequente. Porém, considera a recorrente que o tribunal deveria ter considerado que a ação de impugnação pauliana instaurada pela exequente constitui questão prejudicial cuja falta de conhecimento afeta a sentença recorrida com o vício da nulidade, por omissão de pronúncia.
Dispõe o artigo 272º, nº 1, CPC que: “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC, a sentença é nula quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
A propósito do vício ora em análise, tem vindo a referir-se que, com maior propriedade, constituirá um fundamento de anulabilidade da sentença, relacionado com os seus limites, ocorrendo quando o juiz não esgotou todas as questões que lhe incumbia conhecer – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1]. Na realidade, ao juiz incumbe o conhecimento de todas as questões “que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela decisão dada a outras” – cfr. artigo 608º, nº 2, CPC. Por outro lado, ao juiz pode ainda ser imposto o conhecimento oficioso de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes.
Diz-se que uma causa é prejudicial relativamente a outra quando “(…) o desfecho possível de uma das causas seja suscetível de fazer desaparecer o fundamento ou razão de ser da outra (…) não basta que o resultado possível de uma ação seja suscetível de conduzir à impossibilidade ou inutilidade de outra causa, mas torna-se necessário que exista uma precedência lógica entre o fim de uma ação e o da outra, o que deverá ser perseguido no ângulo de conexão  das respetivas relações materiais controvertidas” - Manuel Tomé Soares Gomes[2]. Ou seja, o nexo de prejudicialidade determina que uma decisão já proferida possa afetar o julgamento a proferir noutra.
Na tese da recorrente, a arguição de questão prejudicial funda-se na pendência de ação pauliana, instaurada pela exequente, contra si e contra os demais executados, na qual está em causa a transmissão da fração hipotecada.
A ação de impugnação pauliana, cujo regime substantivo se mostra regulado nos artigos 610º a 618º do Código Civil, visa, no essencial, apurar a existência de um crédito e da correspondente dívida, que recaia sobre aquele ou aqueles que dispuseram, por ato gratuito ou oneroso, de determinados bens, através dos quais se pretendia obter a satisfação do crédito, e cuja cobrança foi afetada ou posta em crise por aquele ato.
Procura-se, assim, a eliminação do prejuízo causado com o ato impugnado, facilitando a impugnação de atos lesivos dos interesses dos credores, e levados a cabo pelos respetivos devedores, consistindo, portanto, num “simples meio conservatório da garantia patrimonial”, segundo Menezes Cordeiro[3]. Como refere este autor, o “escopo da ação pauliana reside na manutenção da garantia patrimonial dos credores. Esta efetiva-se, por regra, sobre bens do devedor; apenas ocorrências particulares levam à possibilidade de agredir bens de terceiro.”[4].
Os bens alienados não chegam a regressar ao património do devedor, conservando-se no património do terceiro (adquirente ou não), que é, face a todos, o seu proprietário - “o bem não reentra no património do devedor alienante nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou precedentemente o ato”, de acordo com Maria do Patrocínio Paz Ferreira[5].
O que se permite é que o credor impugnante (reunidos os requisitos deste instituto jurídico) afete a esfera jurídica (o património) do terceiro, de forma a satisfazer o seu crédito sobre o devedor alienante, ou praticar os atos conservatórios autorizados por lei aos credores. Nas palavras de Maria Patrocínio Paz Ferreira[6], “embora o ato de alienação impugnável através da pauliana produza o seu efeito típico que é a transmissão da propriedade da coisa com eficácia erga omnes, não desenvolve, em relação aos credores com direito a impugnarem o ato, o efeito indireto que lhe está normalmente associado de subtrair o bem à garantia dos credores do alienante”.
Daí que não esteja em causa a anulação de qualquer ato, pois o ato de disposição é – por si só – válido, sendo certo que existe a preocupação de evitar que o ato de transmissão seja sacrificado para além do limite necessário para a satisfação do credor impugnante, tendo presente um critério de economia jurídica e de máximo aproveitamento do negócio jurídico.
Deste modo, a ação de impugnação pauliana visa indemnizar o credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos por terceiros, não podendo tais bens ou valores ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor, tratando-se, portanto, de uma ação pessoal com escopo indemnizatório (e não de uma ação de declaração de nulidade ou de anulação, ou de uma ação resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor). A este propósito, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2019[7]: “Dado que a procedência da impugnação pauliana não tem como consequência a extinção do efeito translativo da venda, o credor impugnante executa os bens, alvo da impugnação, no património do adquirente”.
Ora, desde já se adianta não ser viável identificar o alegado nexo de prejudicialidade entre a execução que foi instaurada pela exequente tendo por base um mútuo com garantia hipotecária e a ação de impugnação pauliana que visa abalar a eficácia do ato de transmissão do bem hipotecado, na medida necessária à satisfação do crédito da exequente.
Efetivamente, a garantia hipotecária, pré-existente relativamente ao ato de transmissão, permitirá à exequente a satisfação do crédito exequendo (total ou parcialmente) à custa do valor do bem hipotecado. E assim é, porquanto: “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade do registo” – cfr. artigo 686º, nº 1, CC. Esse efeito (visado com a intervenção principal provocada da interveniente/recorrente) não depende da procedência ou improcedência da ação de impugnação pauliana.
Ao invés, poderá suceder que a exequente, caso logre obter a satisfação do seu crédito na presente execução, prescinda do efeito visado com a instauração da ação de impugnação pauliana e, consequentemente, da tutela visada com a sua instauração. Julgamos que tal poderá ocorrer caso inexistam outros créditos para além do hipotecário em discussão nestes autos, e caso o produto da venda do bem hipotecado se revele suficiente para a sua satisfação.
Certo é que, embora visando a presente execução e a ação de impugnação pauliana a satisfação de créditos da aqui exequente, não pode afirmar-se, nos termos expostos, a existência de um nexo de prejudicialidade entre ambas as providências. E assim é porquanto o direito que a exequente pretende fazer valer nestes autos contra a interveniente não depende da verificação dos pressupostos da impugnação pauliana, radicando na constituição de um direito real de garantia (hipoteca), cujo registo, sendo anterior à transmissão do bem, o fará prevalecer sobre o direito de propriedade por esta adquirido – cfr. artigos 686º e 687º, CC. Não colhe, pois, o argumento da recorrente, de que não reconhece o direito que deriva da constituição da hipoteca, constituído previamente à sua aquisição do direito de propriedade sobre aquele bem. Em rigor, a recorrente adquiriu um bem onerado por hipoteca, pelo que não poderá deixar de reconhecer o direito da exequente de ver liquidado o seu crédito pelo respetivo produto, apesar de o mesmo já não se encontrar na esfera jurídica dos mutuários que constituíram a hipoteca, o que constitui uma manifestação do direito de sequela concedida ao titular de tal direito real de garantia.
Certo é que o direito da exequente mostra-se conformado pelo título executivo que indicou, afigurando-se que apenas por via de oposição à execução o seu valor poderá ser abalado, sendo também apenas por essa via que a recorrente poderá obter a suspensão da execução – cfr. artigos728º, 731º e 733º, CPC.
Por outro lado, embora afastada a relação de prejudicialidade invocada, sempre se dirá que no momento em que foi proferida a decisão que admitiu a intervenção principal da recorrente, inexistia qualquer informação acerca da pendência da referida ação de impugnação pauliana. Consequentemente, ponderando a configuração que havia sido conferida ao litígio (nos seus elementos essenciais quanto ao pedido, causa de pedir ou eventuais exceções), no momento em que foi proferida a decisão que admitiu a intervenção, não se descortina como pode ser apontada a aludida falta de conhecimento relativamente a matéria que não foi suscitada pelas partes, e que nem sequer era do conhecimento oficioso do tribunal.  Ou seja, tal questão não estava incluída no núcleo de questões de que o tribunal estava obrigado a conhecer, pelo que não opera a aludida causa de nulidade da sentença. Em sentido similar, considerando que não opera o invocado fundamento de nulidade quanto a questões que não integram as matérias a conhecer, se pronunciou o Acórdão da Relação de Lisboa de 24-01-2019[8].
Improcede, pois, a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.
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Dos pressupostos do incidente de intervenção principal
Dispõe o artigo 260º, CPC, sob a epígrafe “Princípio da estabilidade da instância”:
Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.”
Entre tais exceções legalmente previstas ao princípio da estabilidade da instância incluem-se os incidentes de intervenção de terceiros cujo conceito se refere “às pessoas dotadas de qualidade jurídica distinta da das partes iniciais, que a estas se juntam originando uma situação de cumulação subjetiva e, por vezes, objetiva” – Salvador da Costa[9].
A intervenção principal que pode ocorrer quer no lado ativo, quer no lado passivo da lide, permite a associação do terceiro a uma das partes primitivas “(…) com vista à apreciação de uma relação jurídica da sua titularidade, conexa com a formulada com as primitivas partes na ação, assumindo por essa via o estatuto de parte principal[10].
Ora, regressando ao caso em análise, verifica-se que, como se extrai da tramitação processual, quando a execução foi instaurada o bem que constitui a garantia hipotecária já havia sido transmitido à interveniente, realidade em que a exequente não atentou. Nesse sentido, se refere no despacho proferido em 12-07-2023:
“A exequente Caixa Geral de Depósitos instaurou a execução a que estes autos estão apensos contra os mutuários no contrato de crédito que invoca na execução, A e B, invocando em garantia do crédito hipoteca constituída pelos ditos mutuários sobre a fração autónoma P, melhor identificada na execução.
À data da instauração da execução a fração hipotecada já havia sido vendida pelos mutuários à sociedade C Unipessoal Lda., como resulta [da] certidão do registo predial junta na execução, com registo da aquisição por esta em 8.9.2021. A exequente não atendeu a este facto, tanto mais que juntou com o requerimento executivo cópia do registo predial desatualizada”
Ou seja, inequivocamente, ao instaurar a execução, a exequente pretendeu prevalecer-se da garantia hipotecária associada ao seu crédito, tanto mais que o refere expressamente no seu requerimento executivo, que não pode deixar de ser interpretado com o sentido que um declaratário normal lhe atribuiria, de acordo com o critério interpretativo consagrado no artigo 236º, CC. Consequentemente, não pode extrair-se do facto de a exequente ter laborado em erro ponderando uma certidão predial desatualizada que não documentava a transmissão de que o bem hipotecário fora objeto, a automática conclusão de que renunciou a tal garantia. O seu comportamento processual, designadamente ao requerer a habilitação da adquirente (incidente que foi convolado para intervenção principal), é bem evidenciador da ausência de tal renúncia. Consequentemente, bem andou o tribunal a quo, ao interpretar a pretensão deduzida e ao convolá-la para incidente de intervenção principal, o que fez ao abrigo dos poderes de gestão processual conferidos pelo disposto no artigo 6º, CPC, tendo em vista a “justa composição do litígio”. Julgamos ser em tal sentido que, na exposição de motivos da Lei 41/2013 de 26/06 que operou a revisão do Código de Processo Civil, se alude à criação de um novo paradigma pautado pelo “(…) princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, toda a atividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiam o mérito ou a substância (…)”. Ora, estando em causa não a substituição de qualquer das primitivas partes mas sim a intervenção do atual titular do bem hipotecado, por forma a que o bem hipotecado pudesse ser afetado à satisfação da dívida exequenda, a decisão proferida reflete tal objetivo.
Em síntese, resultando quer do requerimento executivo, quer do requerimento de habilitação, que foi pretensão da exequente fazer atuar a garantia hipotecária, não poderia extrair-se do seu comportamento processual que à mesma renunciou.
Por outro lado, haverá que ter presente que o incidente de intervenção em análise opera no âmbito da legitimidade, visando que a causa decorra entre as partes que têm interesse em demandar e em contradizer. Ora, a regra geral prevista para a legitimidade do exequente e do executado mostra-se consagrada no artigo 53º, CPC, com a seguinte redação:
1 - A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.
2 - Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título.”
Porém, logo no artigo 54º, CPC, se mostram previstos “Desvios à regra geral da determinação da legitimidade”, ali se referindo:
1 - Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão.
2 - A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.
3 - Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da ação executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo.
4 - Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, pode este ser desde logo demandado juntamente com o devedor”.
Acresce que, embora sejam em regra objeto de execução apenas os bens do devedor, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução também contra ele seja movida – cfr. artigo 735º, nº 1 e 2, CPC.
A propósito da admissibilidade do incidente de intervenção na execução, não obstante alguns entendimentos discordantes (v.g. Salvador da Costa, ob cit. pág. 74), prevalece doutrinária e jurisprudencialmente a tese da sua admissibilidade. Tal posição foi claramente assumida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2015[11], em que se refere que a legitimidade passiva na execução pode não coincidir com a pessoa que no título figura como devedor o que, designadamente, sucede nos casos de dívida provida de garantia real, em que a “(…) legitimidade passiva alarga-se a terceiros, que não figuram no título executivo”. Neste sentido, se pronunciaram também Lebre de Freitas[12] e Miguel Mesquita[13], considerando que em caso de transmissão de bem hipotecado, pode o credor, perante tal vínculo de “natureza real e erga omnes”, propor a ação executiva contra o proprietário do bem, por forma a que lhe seja reconhecido o direito de ser pago pelo produto dos bens hipotecados, com preferência sobre os demais credores – cfr. artigos 686º, 735º, nº 2, e 818º, CC e 54º, nºs 2 e 3, CPC.
No caso presente, sendo manifesto que a exequente não prescinde da garantia real que garante o seu crédito, nos termos já expostos, verifica-se que não recorreu à possibilidade de demandar, no momento da interposição da ação executiva, a atual titular do bem hipotecado. Tal sucedeu por não ter constatado que o bem havia sido transmitido, em momento prévio ao da instauração da execução.
Porém, o adquirente do bem, nos termos já referidos, dispõe de legitimidade passiva para a presente execução, por se tratar de “(…) terceiro perante a relação obrigacional, mas não de terceiro perante a execução, pois esta terá sempre de ser contra ele movida, sob pena de os seus bens não poderem ser penhorados” nas palavras de Lebre de Freitas[14] , ou um “terceiro-parte” para Miguel Mesquita[15].
Abordando situação idêntica à dos presentes autos, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra citado:
Então, se a execução podia ter sido instaurada, ab initio, também contra o terceiro (n.º 2 do art. 54.º), muito embora as normas processuais referentes aos incidentes de intervenção de terceiros estejam estruturadas em função da ação declarativa, não se descortina fundamento para que ele não possa ser chamado no decurso da execução, sabido que a admissibilidade, em geral, da intervenção principal provocada é aceite quanto a pessoas com legitimidade para a ação executiva.
De facto, o fim perseguido pela execução não aparenta constituir obstáculo à requerida intervenção, até porque o art. 551.°, n.° 1 manda aplicar subsidiariamente ao processo de execução, com as necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a ação executiva, e o n.º 2 do artigo 316.º permite, nos casos de litisconsórcio voluntário, que o autor provoque a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do art. 39.º.
Com efeito, algumas situações surgem na ação executiva que impõem o recurso ao referido incidente como forma, designadamente, de salvaguardar a legitimidade das partes, como forma de assegurar a defesa do executado, como forma de conferir eficácia à oposição deduzida contra a execução, ou como forma de assegurar a realização coativa da obrigação. (…)
Como antes se disse, se a execução podia ter sido instaurada, ab initio, também contra os terceiros, não se descortina fundamento para que eles não possam ser chamados no seu decurso para o lado dos devedores/executados, para ocupar precisamente a posição que ocupariam desde o início. A sua intervenção é muito próxima da situação acautelada no art. 745.º, nº 3, vale aqui inteiramente a razão de ser desse preceito, que se coaduna perfeitamente com o fim e os limites da ação executiva (cfr. art. 10.º, nºs 4 e 5), pois com ela melhor garante o exequente o cumprimento da obrigação, já que se mostra indispensável para conferir eficácia à execução”.
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-05-2020[16] se decidiu, conforme consta do respetivo sumário:
I - O credor que pretenda fazer valer a garantia real do seu crédito terá sempre que demandar na execução o terceiro (quanto à dívida que se executa) proprietário do bem sobre a qual foi constituída; e, por isso, terá que apresentar o título executivo de que decorre a constituição ou reconhecimento da dívida, e o título material de constituição da garantia no património do dito terceiro.
II. Tendo o credor instaurado ação executiva apenas contra o devedor, e não simultaneamente contra o terceiro proprietário do bem dado em garantia, pode depois fazer intervir este por meio de incidente de intervenção principal provocada, quando pretenda exercitar nessa mesma execução a garantia real do seu crédito”.
Afigura-se, pois, nada obstar ao deferimento do incidente de intervenção principal passiva, por iniciativa do exequente, com benefícios, desde logo, no valor da economia processual, dado que fica dispensado de propor uma nova ação executiva destinada a fazer valer a garantia real relativamente à qual dispõe de título executivo. E assim é, porquanto, analisadas as coordenadas do caso concreto, se conclui que tal intervenção possui a virtualidade de satisfazer um interesse legítimo e relevante, que se coaduna com os limites e os fins da ação executiva (cfr. artigo 10º, nºs 4 e 5, CPC).
Concluindo pela verificação dos pressupostos da intervenção principal da recorrente, improcedente se revela, pois, o recurso.
Litigância de má fé
Por fim, apreciando a litigância de má fé apontada pela recorrente à exequente, constata-se que a mesma teve por fundamentos a arguição da ilegitimidade da recorrente, e da intempestividade do recurso, que não se revelaram procedentes.
Nos termos do artigo 542º do Código de Processo Civil:
1. Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido o recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.”
De acordo com a lição de Alberto dos Reis[17], “litiga de má fé aquele que exerce atividade processual apesar de saber que não tem razão”, ou seja, a parte “procedeu de má fé ou com culpa, se sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as pretensas razões”, o que torna a sua conduta “ilícita”.
Verifica-se aqui uma tensão entre o direito de ação e o instituto da litigância de má-fé, uma vez que este veda o recurso à via judicial em certas circunstâncias. Daí que vários autores recorram ao abuso do direito de ação para caracterizar a figura da má-fé processual. Porém, Alberto dos Reis[18] discorda, afirmando que não se trata de uma forma de abuso de direito, dado que esse direito, nestes casos, pura e simplesmente não existe.
De qualquer forma, para que se possa imputar à parte má-fé processual necessário é que ela tenha agido com dolo ou com negligência grave, divergindo assim o atual regime do anteriormente consagrado na nossa lei processual (na sua versão não revista, anterior à reforma de 1995), o qual exigia a existência de dolo - artigo 542, n.º 2, CPC, na sua atual redação.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2021[19]: “A litigância processual exige responsabilidade, probidade e prudência, não sendo aceitável ou admissível a utilização desenfreada e sem critério de todos os meios e expedientes de que a parte se lembre para a prossecução e obtenção dos fins que a possam favorecer”.
Certo é que pretendendo garantir-se um pleno acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, como é corolário de um Estado de Direito, a condenação como litigante de má fé exige a formulação de um juízo prudente e razoável, que em face das coordenadas do caso, permita concluir de forma segura que a parte litigou com dolo ou negligência grave – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2018[20].
Acresce que a má fé não pode extrair-se da ausência de prova de alguns dos factos alegados. Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 13-03-2022[21]: “A litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se, ainda, que a parte tenha atuado com dolo ou negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento”. Efetivamente, na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada" (José Alberto dos Reis[22]).
Porém, compulsados os autos não é possível concluir que a exequente, ao arguir a ilegitimidade da recorrente e a intempestividade do recurso, tenha adotado um comportamento processual negligente e temerário, subsumível à litigância de má fé.
Na realidade, o litígio inscreve-se no domínio da intervenção de terceiros em processo executivo, que não se tem revelado isento de dúvidas e divergências, doutrinárias e jurisprudenciais. Acresce que os autos evidenciam uma tramitação pautada por alguma complexidade, com demanda inicial dos mutuários e dedução subsequente de incidente de habilitação, convolado para intervenção principal no lado passivo, originando citações e notificações dos sujeitos processuais em momentos diversos, o que se revela suscetível de produzir dúvidas ao nível da contagem dos prazos e das prorrogativas processuais a reconhecer ao interveniente.
Assim, apesar de a recorrida (que obteve vencimento no recurso) ter ficado vencida em ambas as questões prévias que suscitou relativamente à sua admissibilidade, não pode concluir-se que tenha adotado uma lide dolosa, negligente ou temerária, subsumível à litigância de má fé.
Improcede, pois, o pedido de condenação da exequente como litigante de má fé.
Tendo ficado vencida no recurso, a executada/recorrente suportará as respetivas custas, nos termos do disposto no artigo 527º, CPC.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
D.N.

Lisboa, 26 de setembro de 2024
Rute Sobral
Arlindo Crua
António Moreira
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2ª, 3ª edição, pág. 735
[2] Da dinâmica geral do processo civil – Início, desenvolvimento, crises e formas de extinção da instância – Cadernos do Cej, Lisboa, 1994, pág. 40.
[3] “Impugnação Pauliana”, Parecer publicado na C.J., 1992, t. 3, p. 60.
[4] “Da Boa Fé no Direito Civil”, I, Almedina, 1985, p. 496.
[5] “Natureza Jurídica da Impugnação Pauliana”, in “Revista da Banca”, n.º 21, janeiro/março de 1992, p. 90 – veja-se ainda o Ac. do S.T.J. de 14-01-1997, C.J.S.T.J., 1997, t. 1, p. 52.
[6] Obra citada, p. 90.
[7] Proferido no processo nº 1542/13.3TBMGR.K.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[8] Proferido no processo nº 1597/&17.1T8PDL.L1-6, disponível em www.dgsi.pt
[9] Os Incidentes da Instância, 2016, 8ª edição, pág. 72.
[10] Autor, ob. cit, pág. 72.
[11] Proferido no processo nº 2482/12.9TBSTR-A.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[12] A ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6º edição, pág, 141 e ss
[13] Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, 2ª edição, pág. 18 a 38.
[14] Ob cit,. pág. 235, nota 13
[15] Ob cit. pág. 39/40
[16] Proferido no processo nº 1778/14.0TBBCL-D.G1, disponível em www.dgsi.pt
[17]  “Código de Processo Civil Anotado”, II, pp. 261 e  282.
[18] Obra citada, p. 261.
[19] Proferido no processo 1255/13.6TBCSC-A.L1.A.S1, disponível em www.dgsi.pt
[20] Proferido no processo nº 487/17.5T8PNF.S, disponível em www.dgsi.pt
[21] Proferido no processo nº 2881/20.2T8AVPR.P1, disponível em www.dgsi.pt
[22] Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 1982, pág. 263.