REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CLÁUSULA RESOLUTIVA
REDUÇÃO DO SINAL DE CONTRATO-PROMESSA
Sumário

Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – Deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto quando a divergência manifestada pela recorrente se situa ao nível do enquadramento jurídico da causa, não visando produzir quaisquer alterações no plano dos factos relevantes para a decisão.
II – Ultrapassado o termo essencial convencionado no contrato-promessa para a celebração do contrato prometido, e expressamente convencionada uma cláusula resolutiva para essa hipótese, nada obsta a que a obrigação se considere definitivamente incumprida, independentemente da existência de interpelação admonitória.
III – A cláusula penal e a convenção de sinal constituem manifestações do princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405º, nº 1, CC e assumem na disciplina contratual escopos similares, relacionados com a vertente compulsória e com a prévia fixação da sanção devida pelo incumprimento.
IV – Tal similitude pode, excecionalmente, justificar a aplicação analógica do regime da redução da cláusula penal previsto no artigo 812º, CC, ao sinal do contrato-promessa, nos casos em que se conclua que o seu montante é manifestamente excessivo e desproporcional aos danos causados pelo devedor.
V – Contudo, tal ponderação deve ser efetuada relativamente ao montante do sinal em singelo, dado que o promitente comprador não faltoso, em caso de incumprimento da promessa, terá sempre direito à restituição do que prestou.

Texto Integral

Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1Os autores A e B, identificados nos autos, instauram a presente ação comum, em 25-03-2022, contra a ré Silviconstrói-Sociedade de Construções, Ldª, também identificada nos autos, tendo deduzido os seguintes pedidos:
a) Declaração de resolução do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes, por incumprimento imputável à ré;
b) Condenação da ré a pagar aos autores o montante de € 52.000,00, correspondente ao dobro do sinal e princípio de pagamento por aqueles adiantado;
c) Condenação da ré no pagamento dos juros legais que se mostrem devidos desde 4 de setembro de 2021 até ao cumprimento da sua obrigação, e que à data da interposição da ação perfaziam o montante de € 1.151,12 (mil cento e cinquenta e um euros e doze cêntimos).
Para tanto, e no essencial, alegaram os autores que a ré incumpriu o contrato-promessa celebrado em 15-06-2020, que teve por objeto fração de prédio urbano a construir, inviabilizando a celebração da escritura de compra e venda no prazo ali convencionado.
1.2 – Regularmente citada, a ré deduziu contestação, em 18-05-2022, excecionando a incompetência em razão do território do tribunal onde a ação foi instaurada, por ter sido convencionado no contrato-promessa celebrado entre as partes o foro de Lisboa Norte.
A ré alegou ainda que a pandemia gerada pela COVID 19 alterou o normal andamento dos trabalhos de construção do edifício, inviabilizando a sua conclusão e licenciamento no prazo contratualmente previsto.
 Concluiu a contestante que o incumprimento do prazo acordado para a celebração do contrato definitivo deveu-se a fatores externos, pelo que a peticionada condenação na devolução do sinal em dobro consubstanciaria um enriquecimento sem causa dos autores.
Pugnando pela improcedência da ação, a ré deduziu ainda reconvenção, pela qual requereu que fosse declarada a resolução do contrato-promessa por iniciativa/culpa dos autores, e o consequente reconhecimento do seu direito de fazer sua a quantia que lhe foi entregue a título de sinal.
1.3 – Replicaram os autores, alegando que não tendo ainda a ré reunido as condições necessárias para a celebração do contrato definitivo, não lhes pode imputar o incumprimento da promessa e exigir que o sinal seja declarado perdido a seu favor.
Concluíram peticionando a condenação da ré como litigante de má fé, por alegar não ter recebido as comunicações que os autores lhe remeteram e lhes imputar incumprimento contratual, o que não corresponde à verdade (articulado com a referência 42479142, de 03-06-2022).
1.4 – Respondendo ao convite que lhes foi dirigido, os autores pronunciaram-se sobre a exceção de incompetência territorial, reiterando, no essencial, que estando a ré domiciliada em Lisboa, por aplicação do disposto no artigo 71º, nº 1, 1ª parte CPC, é territorialmente competente o Tribunal Judicial de Lisboa (requerimento com a referência 44234007- de 23-12-2022).
2 – Realizada audiência prévia na qual se frustrou a tentativa de conciliação das partes, foi ulteriormente proferido despacho que julgou improcedente a exceção de incompetência territorial arguida, admitiu a reconvenção, afirmou a regularidade da instância, e enunciou o objeto do litígio e os temas de prova (ata de 18-05-2023 e despacho saneador com a referência 425824837).
3 – Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, em 29-11-2023, que julgou a ação procedente, constando do seu dispositivo:
Pelos fundamentos expostos, julgo a ação procedente, e em consequência, condeno a R. A pagar aos AA. a quantia de € 52.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 4 de setembro de 2021 e até integral pagamento.”
4 - Não se conformando com a decisão proferida, a ré dela interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
a) Os AA. peticionaram que fosse declarada a resolução do contrato-promessa de compra e venda celebrado com a Ré em 15 de junho de 2020 e a consequente condenação desta última à devolução do sinal em dobro, acrescido dos correspondentes juros de mora.
b) A Ré contestou e deduziu pedido reconvencional no sentido de ser declarado que tem direito a reter para si o montante do sinal, uma vez que foram os AA que perderam o interesse no negócio, não tendo aquela incumprido qualquer das obrigações que sobre si impendiam ao abrigo do supra mencionado contrato-promessa de compra e venda;
c) A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” condenou a Ré a devolver em dobro a quantia que os AA pagaram a título de sinal e bem assim nos juros vencidos e vincendos;
d) A sentença operou a uma incorreta apreciação dos factos e bem assim dos meios de prova, pelo que o presente recurso encontra fundamento legal nas alíneas c) do artigo 615º e no artigo 640º nº1 do CPC.
e) Nos termos constantes do artigo 615º nº1 c) do CPC, a sentença recorrida padece, desde logo, do vício de nulidade, na medida em que, em sede de factos não provados retira uma conclusão - Não se provou que o descrito em 20) impediu a conclusão dos trabalhos e respetivo licenciamento na data indicada de 31 de Julho – que quando cotejada com aquele mesmo ponto 20 resulta ininteligível;
f) A sentença recorrida não logrou apreciar devidamente e imparcialmente a prova documental e testemunhal carreada pelas partes;
g) Não obstante ter resultado claro dos depoimentos das testemunhas e bem assim dos documentos juntos que:
i. As Partes celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda em que definiram que a escritura pública seria outorgada até ao final de Julho de 2021, tendo, no entanto aditado um nº4 a essa cláusula onde se refere que “A Promitente- Vendedora e os promitentes-compradores declaram expressamente ter conhecimento de que a outorga da escritura pública de compra e venda apenas poderá ser outorgada após emissão, pela Câmara Municipal de Odivelas, da correspondente licença de utilização, pelo que se a mesma se encontrar pendente de emissão findo o prazo indicado no número um, acordam desde já prorrogar automaticamente o prazo de celebração da mesma até ao 60º dia após o pedido de emissão da referida licença;
ii. Os termos e condições do negócio e do contrato-promessa de compra e venda foram previamente remetidos para os AA para que os pudessem analisar previamente, sendo que no dia da assinatura mesmo tendo já conhecimento dos seus termos, a agência imobiliária procedeu à leitura presencial do contrato, que foi assinado pelos AA sem quaisquer objeções;
iii. Era do conhecimento de todos os intervenientes no negócio, incluindo os AA., que a escritura de compra e venda apenas podia ocorrer após a emissão da licença de utilização do imóvel por parte da Câmara Municipal, situação que não se verificava no dia 31 de julho de 2021 e que apenas veio a ocorrer em setembro de 2023;
iv. Os AA foram informados pela Ré, antes da data de 31 de julho de 2021, de que não poderia ocorrer a outorga da escritura até àquela data em virtude de as obras se encontrarem atrasadas e não estarem ainda reunidas as condições para requerer a emissão da licença de utilização.
v. Em todos os contratos realizados naquele empreendimento foi aposta a cláusula de salvaguarda constante do nº4 da cláusula 4ª.
vi. A intenção da Ré e de todos os intervenientes no contrato, nomeadamente mediadora, de colocar tal cláusula foi a de acautelar a impossibilidade de o promotor proceder à entrega dos imóveis no prazo definido no nº1 da cláusula, originada por atrasos decorrentes de terceiras entidades envolvidas no processo de licenciamento, nomeadamente serviços municipais, E- Redes, SMAS, entre outros, dos quais a emissão da licença de utilização depende.
vii. O prazo de 60 dias constante do nº4 da cláusula 4ª do CPCV começaria a contar a partir do momento em que o pedido de emissão da licença de utilização fosse efetuado por parte da Ré e não antes por ser impossível avançar com esse pedido;
h) Não obstante, tal ter resultado da prova carreada para os autos a sentença veio referir que “cremos que tal raciocínio não tem fundamento contratual: o prazo fixado no nº4 e que consiste numa prorrogação automática por mais 60 dias, depende de estar pendente a emissão da licença de utilização”, o que desvirtua por completo as declarações de parte do Legal Representante da Ré, da testemunha C (responsável pela agência da Century 21 que vendeu a quase totalidade das frações) e da testemunha D;
i) Ao decidir nos termos anteriormente citados, a sentença desconsiderou as declarações de parte da Ré e os depoimentos das testemunhas em prol das declarações de parte prestadas pelos AA. que, para além de contraditórias entre si em determinados pontos, referiram claramente terem sido informados sobre os termos do negócio e sobre a impossibilidade de se escriturar sem a licença de utilização.
j) A sentença dá como provado sob o ponto 23 que “o pedido de emissão da licença de utilização encontra-se dependente da realização de uma vistoria por parte da E Redes, sem a qual a Câmara Municipal de Odivelas não aceita a formalização pela R do pedido de emissão da licença de utilização”, mas ao mesmo tempo refere que “a defesa apresentada pela Ré não merece acolhimento: os efeitos da pandemia não justificam o incumprimento do prazo fixado no contrato-promessa...”, o que claramente se afigura contraditório.
k) Impunha-se à sentença considerar como provado que “No dia 30 de agosto de 2021 e antes de decorridos os 60 dias indicados no nº4 da cláusula 4ª do CPCV os AA procederam à resolução do contrato-promessa de compra e venda e exigiram da Ré a devolução do sinal em dobro”, o que não se verificou.
l) Ao omitir da factualidade provada os factos anteriormente indicados a sentença assentou o seu raciocínio e a qualificação jurídica dos factos no pressuposto de que a resolução do contrato levada a cabo pelos AA operara legalmente e que, não tendo merecido acolhimento por parte da Ré, esta incorreu em situação de mora, ignorando que a comunicação em que solicitaram a devolução das quantias e a resolução do contrato não aguardou pelo decurso do prazo de 60 dias indicado no nº4 da Cláusula 4ª do CPCV.
m) Admitindo como certa a interpretação conferida pelos AA à cláusula constante do nº4 da cláusula 4º do CPCV, na data em que ocorreu a comunicação de resolução do contrato-promessa de compra e venda – 30 de Agosto de 2021 – não se achava esgotado o prazo adicional de 60 dias para a realização da escritura pelo que a Ré não se achava em situação de incumprimento, muito menos em situação de incumprimento culposo, porquanto não resultou provado que o facto de não ter obtido a licença até 31 de Julho de 2021 ou nos sessenta dias posteriores procedesse de qualquer ato culposo da sua parte.
n) Pelo que se impunha à sentença concluir que a resolução do contrato operada pelos AA., antes de decorrido o prazo de 60 dias que os mesmos anuíram que se aplicava após a data de 31 de Julho de 2021, operou em violação do disposto no CPCV, não podendo produzir os efeitos de interpelação admonitória e muito menos fazer incorrer a Ré em situação de mora.
o) Pelo que se impunha, nesta sede, a absolvição da Ré do pedido.
Acresce que,
p) Da prova carreada para os autos - comunicações trocadas entre as partes e depoimento da testemunha D - resultou claro e evidente que, também à data da entrada dos presentes autos, os AA tinham conhecimento de que a licença de utilização não se achava emitida nem requerida a sua emissão, pelo que o ponto 17) dos factos assentes deveria ter merecido a resposta inversa por parte do tribunal “a quo” - “Até à data da propositura da ação, os AA tinham conhecimento de que a licença de utilização não se encontrava emitida ou sequer requerida a sua emissão junto do Município”.
q) Foram os AA. que injustificadamente e numa clara situação de abuso de direito (figura prevista no artigo 334º do código civil - venire contra facto proprio) decidiram colocar um termo nas negociações, exigindo da parte da Ré o cumprimento de uma condição – a de obtenção da licença de utilização – que bem sabiam ser impossível naquelas condições de tempo e lugar.
r) Ao decidir pela condenação da Ré ao reembolso em dobro da quantia entregue a título de sinal a sentença não lançou mãos de princípios de equidade, aplicando de forma “cega” o regime plasmado no artigo 442º do Código Civil, o que resultou numa decisão materialmente injusta e violadora do princípio da proporcionalidade (impõe um sacrifício excessivo à Ré que comprovadamente agiu sem culpa).
s) A sentença recorrida deverá ser revogada no sentido de considerar que a resolução do contrato-promessa de compra e venda operada pelos AA é ilegal e consequentemente reconhecer que tendo os mesmos perdido o interesse no negócio da compra e venda, como confessadamente consta dos autos, a Ré tem o direito de fazer sua a quantia entregue a título de sinal.
t) Caso assim não se entendesse, o que se admite por dever de patrocínio e sem conceder, face à ausência de uma situação de incumprimento culposo por parte da Ré, sempre deveria a sentença ter ponderado a devolução, em singelo, da quantia entregue a título de sinal pelos AA.
u) O que sequer ponderou, optando por uma decisão altamente gravosa para a Ré.”
5- Contra-alegaram os autores pugnando pela manutenção da sentença recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
a. A Recorrente inicia as suas alegações invocando a falta de clareza da douta sentença recorrida, para mais adiante reconhecer tratar-se de um mero lapso de escrita, pelo que não deve ser atendida tal pretensão, a qual se revela um expediente meramente dilatório.
b. A Recorrente incumpre ainda os requisitos previstos no art. 640º n.º 1 do CPC, razão pela qual o recurso deve ser objeto de rejeição.
c. A Recorrente pretende colocar em crise a douta decisão proferida nos presentes autos, pede a revogação da sua condenação no pagamento aos Recorridos da quantia de € 52.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 4 de setembro de 2021 e até integral pagamento.
d. Para tal invoca que dos factos considerados provados, nomeadamente do clausulado do contrato e dos depoimentos das testemunhas se deveria retirar outra conclusão e, como tal, a decisão deveria ter sido em sentido diverso.
e. Sublinhando e reiterando que de todo o contrato e seu clausulado tiveram conhecimento os Recorridos antes da data da assinatura e aceitaram-no, o que nunca foi posto em causa pelos Recorridos.
f. A Recorrente fazer crer que a interpretação dada ao contrato conhecido por ambas as partes seria no sentido de que:
a) A escritura seria outorgada até ao dia 31 de julho de 2021 se a licença de utilização já se encontrasse emitida nesta data; ou
b) No prazo máximo de 60 dias a contar da apresentação do pedido de emissão da licença de utilização e não do dia 31 de julho ou qualquer outra data;
g. Sucede que não ficou provado tal entendimento, mas antes o de que a cláusula 4ª do contrato impunha um limite temporal para a celebração do contrato definitivo.
h. Os prazos previstos no contrato são claros e as prorrogações aí previstas existem apenas no pressuposto primário de que a emissão da licença de utilização poderia e teria sido pedida pela Recorrente.
i. Pressuposto que não se verificou, por motivos a que os Recorridos são totalmente alheios e que a estes não podem ser imputados.
j. O contrato – previamente lido e aceite – não foi cumprido pela Recorrente, razão que motivou a sua resolução pelos Recorridos.
k. O facto de ambas as partes saberem que o contrato definitivo não poderia ser outorgado sem a emissão da licença de utilização, não pode resultar no eterno vínculo das partes a uma situação indefinida e que estaria na única e exclusiva disponibilidade da Recorrente – o pedido de emissão da licença de utilização.
l. Existe uma tentativa da Recorrente em se aproveitar de uma omissão – a inexistência de uma expressa previsão contratual que permitisse prorrogar o prazo para pedir a licença devida, ad eternum, para agora vir alterar o escopo da cláusula contratual que estipula tais prazos.
m. Respeitando a letra do CPCV, só poderia a Recorrente fazer uso da faculdade de adiamento de outorga da escritura de compra e venda prevista na cláusula quarta n.º 4 do CPCV se a licença já tivesse sido solicitada junto da Câmara Municipal de Odivelas, o que efetivamente não ocorreu.
n. A leitura enviesada da Recorrente permitiria o absurdo de ficarem ad eternum com o sinal dos Recorridos, sem avançar na obra e sem que se considerassem estar em incumprimento, pois a licença não teria ainda sido emitida!
o. Isto seria uma leitura claramente abusiva do contrato e chocante para o cidadão comum. p. A sentença operou uma correta apreciação dos factos e dos meios de prova inexistindo qualquer ambiguidade ou obscuridade.
q. Contrariamente ao defendido pela Recorrente, a sentença desde logo fundamenta – e bem – as suas conclusões e a decisão.
r. A Recorrente confunde o que resultaria dos factos considerados como provados, com o que, por lhe ser mais favorável, deveria resultar dessa prova, não fazendo, no entanto, qualquer raciocínio lógico que nos permita chegar à conclusão por si pretendida.
s. A pretensão da Recorrente resultaria num desequilíbrio incomportável e deixaria os Recorridos numa situação totalmente desprotegida, à mercê de uma vontade da Recorrente, que poderia nunca vir a concretizar-se – o pedido da emissão da licença de utilização
8. Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo.
9. Remetidos os autos a este Tribunal em 11-06-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÃO PRÉVIA – Rejeição do recurso por incumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto
Alegaram os recorridos que a recorrente não especificou os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa relativamente à matéria de facto impugnada, limitando-se: “(…) a remeter para depoimentos das testemunhas que confirmam o prévio conhecimento pelos recorridos, do contrato celebrado e do seu clausulado”.
Relativamente ao regime da impugnação da matéria de facto, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, estabelece o nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Já do nº 2 daquela norma resulta que:
“2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, por forma a cumprir os ónus legalmente estabelecidos a seu cargo para a impugnação da matéria de facto, incumbe ao recorrente, no essencial, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (artigo 640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham, na sua perspetiva, decisão diversa (artigo 640º, nº 1, alínea b), CPC) indicando a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (artigo 640º, nº 1, alínea c), CPC).
Expostas que estão as coordenadas relativas à impugnação da matéria de facto, analisadas as alegações da recorrente, é manifesto que pretendeu impugnar a matéria de facto, propósito que, aliás, afirma expressamente.
Da leitura das respetivas alegações resulta que a recorrente reage fundamentalmente à interpretação da cláusula 4ª do contrato-promessa celebrado entre as partes, considerando que o prazo de 60 dias ali previsto para a celebração do contrato definitivo “(…) começaria a contar a partir do momento em que o pedido de emissão da licença de utilização fosse efetuado por parte da Ré e não antes por ser impossível avançar com esse pedido”- cfr. conclusão -G.vii.
Fundamentando tal discordância, a recorrente invoca as declarações de parte do legal representante da ré, e das testemunhas C e D, para além da prova documental junta aos autos (cfr. artigos 19º, 22º, 27º, 29º, 31º das alegações).
Porém, em rigor, a divergência manifestada pela recorrida a tal propósito não configura uma impugnação da matéria de facto, desde logo porquanto não se dirige a qualquer facto provado ou não provado. Efetivamente, nos factos provados mostram-se reproduzidas várias cláusulas do contrato-promessa celebrado, designadamente a cláusula 4ª relativa à convenção das partes quanto ao prazo da celebração da escritura de compra e venda. Mas a recorrente não reage quanto ao conteúdo destes pontos da factualidade provada, mas sim relativamente ao concreto sentido a atribuir a tal cláusula, constituindo questão de interpretação, efetuada no âmbito do enquadramento jurídico da causa. Ou seja, a discordância da recorrente dirige-se à interpretação (jurídica) das cláusulas (facto), incidindo sobre a fundamentação de direito, e não sobre a decisão quanto à matéria de facto.
Consequentemente, afigura-se que tal questão ou discordância não pode ser apreciada no âmbito da impugnação da matéria de facto, devendo, ao invés, ser reservada para a subsunção dos factos ao direito (impugnação da matéria de direito).
Por outro lado, da leitura das alegações extrai-se que, na decorrência da posição da recorrente quanto ao prazo máximo para a celebração do contrato definitivo (questão que, reitera-se, apenas em sede de enquadramento jurídico será analisada), considera, designadamente no artigo 34º das suas alegações, que deveria ter ficado provado a seguinte realidade:
No dia 30 de agosto de 2021 e antes de decorridos os 60 dias indicados no nº4 da cláusula 4ª do CPCV, os AA procederam à resolução do contrato-promessa de compra e venda e exigiram da Ré a devolução do sinal em dobro.”
Ora, o aditamento que a ré pretende operar à matéria de facto encerra também uma vertente predominantemente conclusiva, que inviabiliza a sua inclusão nos factos provados. Efetivamente, os factos de os autores terem procedido à resolução do contrato e tal ter ocorrido antes dos 60 dias indicados no nº 4 da cláusula 4ª do contrato-promessa, reconduzem-se a conclusões a extrair da factualidade apurada. Na realidade, os factos relevantes nesse âmbito consistem em saber quais as declarações negociais que ficaram exaradas no contrato-promessa quanto ao limite temporal estabelecido para a celebração do contrato de compra e venda, e qual o teor da comunicação dirigida pelos autores à ré em 30-08-2021. Já o apuramento sobre se tal comunicação se reconduz a uma resolução e ocorreu antes do limite contratual fixado, constitui questão jurídica, a extrair das comunicações apuradas e do teor do contrato, e apenas em sede do enquadramento do litígio no direito poderá ser efetivada. O certo é que, reproduzindo os factos provados o teor das cláusulas contratuais, designadamente quanto ao prazo máximo ali acordado, bem como o teor e a data da comunicação dirigida pelos autores à ré solicitando-lhe a devolução das quantias pagas a título de sinal, em dobro, apenas em sede de enquadramento do litígio no direito poderá tal matéria ser reapreciada, não dispondo de fundamento legal o pretendido aditamento aos factos provados das conclusões supra-enunciadas.
A este propósito refere Anselmo de Castro[1]são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos (…) só (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (…), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”. Tem sido este o entendimento jurisprudencial seguido, transcrevendo-se o que a tal propósito se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2014[2]: “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes”.
Consequentemente, não poderá deixar de ser rejeitada a impugnação da matéria de facto relativamente aos aspetos supra enunciados, por a divergência da recorrente se inscrever no domínio do direito, e não no domínio factual. Rejeição essa que, nos termos expostos, se fundamenta não na falta de indicação dos meios de prova que impunham decisão diversa, como defendem os recorridos, mas no facto de a divergência manifestada pela recorrente se situar ao nível do enquadramento jurídico da causa, nessa sede devendo ser apreciada.
No âmbito da impugnação da matéria de facto, defende ainda a recorrente que o facto 17 da factualidade provada deveria ter merecido a seguinte redação:
Até à data da propositura da ação, os AA tinham conhecimento de que a licença de utilização não se encontrava emitida ou sequer requerida a sua emissão junto do Município”, fundamentando, nessa parte, a sua divergência com a decisão recorrida, nas comunicações trocadas entre as partes e no depoimento da testemunha D (artigo 39º das alegações).
A impugnação deduzida visa, pois, alterar a redação conferida pelo tribunal ao facto em questão (“Até à data da propositura da ação, a R. não informou os AA. se a licença de utilização já foi emitida ou, pelo menos, requerida junto do Município”) e mostra-se fundamentada nos meios de prova indicados pela recorrente.
Assim, forçosa é a conclusão de que a recorrente, no que se reporta à impugnação da matéria de facto quanto à redação a atribuir ao facto provado 17 cumpre os ónus estabelecidos nos números 1 e 2 do artigo 640º, CPC.
Aliás, a este propósito, tem vindo a salientar-se que os ónus a cargo do recorrente que impugne a matéria de facto se inscrevem num patamar muito exigente relativamente aos que estão previstos no nº 1 do artigo 640º CPC (indicação dos concretos factos impugnados, indicação dos meios de prova que impunham diversa decisão, e qual a decisão a proferir), mas mais atenuado quanto aos previstos no nº 2 daquela norma. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2015[3]: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente de impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº 1 do artigo 640º; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…) e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos enxertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento (…)”.
Ora, os ónus estabelecidos a cargo do recorrente que impugne a matéria de facto constituem “(…) uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” - António Abrantes Geraldes[4].
Certo é que das alegações da recorrente, no que se reporta à impugnação da matéria de facto consignada no facto provado nº 17, é possível extrair qual a redação que considera que lhe deve ser atribuída e quais os meios de prova que, na sua perspetiva, impunham uma decisão diversa. Afigura-se, pois, estar suficientemente cumprido, nos termos expostos, o seu “ónus primário de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação” - conforme terminologia do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019[5].
Por fim, também a contradição apontada pela recorrente entre o facto provado nº 23 e o (único) facto não provado constitui fundamento de impugnação da matéria de facto, mostrando-se validamente deduzida.
Pelo exposto, rejeitando parcialmente a impugnação da matéria de facto (por a divergência manifestada se situar no domínio do direito e não no domínio factual), proceder-se-á à apreciação da impugnação que foi deduzida pela recorrente relativamente ao facto provado nº 17 e à contradição entre o facto provado nº 23 e o facto não provado.
III – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, constituem questões a decidir:
- Nulidade da Sentença (defendendo a recorrente a sua ininteligibilidade, atenta a redação que foi conferida ao – único – facto não provado);
- Impugnação da matéria de facto (que, nos termos supra expostos, será apreciada quanto à pretendida alteração da redação conferida ao facto provado sob o número 17 e à apontada contradição entre o facto não provado e o enunciado sob o nº 23);
- Enquadramento jurídico do litígio (importando aferir da existência de incumprimento contratual de qualquer das partes, bem como das consequências jurídicas do mesmo decorrentes).
III – FUNDAMENTAÇÃO
A – Nulidade da sentença
A recorrente aponta à sentença o fundamento de nulidade previsto no artigo 615º, nº 1, alínea c), CPC, com a seguinte redação:
1. É nula a sentença quando:
(…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[6], o fundamento de invalidade invocado, relacionado com a falta ou vício de fundamentação, reporta-se a vício estrutural da sentença, uma vez que o juiz deve especificar os seus fundamentos de facto e de direito – cfr. artigo 697º, nº 3, CPC. Tal vício ocorre quando os fundamentos se apresentem em oposição com a decisão ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível.
Considera a recorrente que o facto não provado, com a seguinte redação: “Não se provou que o descrito em 20) impediu a conclusão dos trabalhos e respetivo licenciamento na data indicada de 31 de julho”, quando cotejada com o referido ponto 20, resulta ininteligível, afetando a sentença com o vício da nulidade previsto no artigo 615º, nº 1, alínea c), CPC.
Ora, no referido facto provado enunciado sob o nº 20 consignou-se:
Em junho de 2020, data em que foi outorgado o contrato-promessa de compra e venda com os AA., a R. antevia como possível a celebração dos contratos definitivos no final de julho de 2021, motivo pelo qual indicou tal limite temporal no n.º 1 da cláusula 4ª do CPCV.”
Na motivação da sentença, a tal propósito, refere-se:
O facto não provado decorre da ausência de prova sobre o alegado: desconhecemos os efeitos concretos do confinamento/restrição de deslocação, uma vez que as testemunhas limitaram-se a depor sobre o assunto de uma forma genérica, sendo certo que a R. alega que não parou com os trabalhos de construção”.
Ora, o aí exarado relativamente à falta de prova sobre os efeitos do confinamento evidencia que, por lapso material, foi mencionado o artigo 20, quando, manifestamente se pretendia aludir ao facto nº 22, o único que se refere a tal matéria e que possui a seguinte redação:
Em outubro de 2020, o governo português anunciou novo confinamento parcial em determinados concelhos do país (onde se incluiu Odivelas) e logo no dia 5 de novembro do mesmo ano o país voltou ao estado de emergência, o qual se manteve durante 173 dias consecutivos.”
Nesse aspeto, forçosa é a conclusão de que na sentença recorrida se incorreu em lapso material, claramente percecionado pela leitura da motivação da decisão de facto, nada obstando à sua retificação, que resulta dos termos e do contexto da própria decisão – cfr. artigos 614º, CPC e 249º CC. E assim é, reitera-se, porquanto se trata de lapso material, apreensível da própria sentença, cujos termos se revelam inteligíveis, não configurando a nulidade que lhe foi apontada.
Pelo exposto, indefere-se a arguição de nulidade da sentença recorrida e determina-se a retificação do lapso constante do facto (único) não provado, por forma a que passe a ter a seguinte redação:
““Não se provou que o descrito em 22) impediu a conclusão dos trabalhos e respetivo licenciamento na data indicada de 31 de julho”.
B - Impugnação da matéria de facto
Tendo presente o supra exposto relativamente ao regime da impugnação da matéria de facto, procede-se à apreciação da relativa ao facto provado nº 17.
A tal artigo o tribunal recorrido a seguinte redação:
17) Até à data da propositura da ação, a R. não informou os AA. se a licença de utilização já foi emitida ou, pelo menos, requerida junto do Município.”
Na motivação da decisão, a tal propósito, foi referido o seguinte:
Os factos provados 17) a 23) foram relatados pela testemunha D e pelo legal representante da R., merecendo credibilidade devido ao conhecimento direto que revelaram”.
A redação proposta pela recorrente para aquele artigo é a seguinte:
17. Até à data da propositura da ação, os AA tinham conhecimento de que a licença de utilização não se encontrava emitida ou sequer requerida a sua emissão junto do Município”.
Fundamentou a recorrente as alterações propostas ao facto provado sob o número 17 nas comunicações trocadas entre as partes e no depoimento da testemunha D.
Embora a recorrente não tenha especificado quais as comunicações trocadas entre as partes suscetíveis de comprovar a matéria em questão, procedeu-se à consulta integral dos autos, por forma a analisar o conteúdo das cartas remetidas e recebidas pelos autores e pela ré em momento prévio ao da instauração da presente ação.
Assim, a carta junta como doc nº 2 com a petição inicial, datada de 21 de maio de 2021, dirigida pela ré aos autores, refere expressamente:
Na presente data, a Câmara Municipal de Odivelas ainda não procedeu, nem poderia à emissão de Licença de Utilização, sendo que na última reunião a que os responsáveis da SILVICONSTROI compareceram no passado mês de abril, estima-se que para o Lote 1 a emissão ocorra em fevereiro de 2022, o que significará que logo em março de 2022 se encontrarão reunidas condições para a outorga da escritura de compra e venda (…)”.
Tal comunicação mereceu da parte dos autores a resposta datada de 31-05-2021, na qual, além do mais é referido:
 “Só poderiam V. Exªas fazer uso da faculdade de adiamento de outorga da escritura de compra e venda (…) se a licença já tivesse sido solicitada junto da Câmara Municipal de Odivelas, o que efetivamente não ocorreu até à data” – documento nº 3 junto com a petição inicial.
Já da carta enviada pelos autores à ré em 05-08-2021 consta, além do mais:
“(…) acresce que, como referem expressamente na vossa carta, esta licença não poderia ser emitida em tal prazo, pois de facto até à data nem terá sido pedida” – documento nº 4 junto com a petição inicial.
Ponderando que a presente ação foi proposta em 25-03-2022 forçosa é a conclusão que relativamente ao período temporal que decorreu entre 05-08-2021 (data da última comunicação junta aos autos) e a data da propositura da ação, não foram juntas quaisquer comunicações que evidenciem que: “Até à data da propositura da ação, os AA tinham conhecimento de que a licença de utilização não se encontrava emitida ou sequer requerida a sua emissão junto do Município”. Acresce que tal conhecimento não pode ser extraído, de forma objetiva e segura, da carta de 21-05-2021, onde se refere ser previsível a emissão das licenças em fevereiro de 2022, porquanto ali é efetuado, com significativa antecedência temporal, apenas um juízo de probabilidade.
Assim, ponderando apenas a prova documental indicada, não se revela fundamentada a pretendida alteração da redação conferida ao facto provado sob o nº 17.
Porém, procedeu-se ainda à audição integral do depoimento da testemunha D, arquiteto de profissão, autor do projeto de arquitetura relativa à construção do edifício onde se insere a fração em causa, que foi contratado para o efeito pela ré, acompanhando os trabalhos de construção, bem como os licenciamentos. Ao longo do seu depoimento, aludiu a atrasos da Câmara Municipal no fornecimento de alvarás e licenças (minuto 7.45 a 7.80) e confirmou que a licença de utilização relativa ao “Lote 1”, onde se insere a fração prometida vender, já foi pedida (minutos 8.30 a 8.45). Confirmou que o contrato-promessa previa uma data para celebração da escritura (31-07-2021), mas nessa altura não era possível a celebração do contrato de compra e venda, impossibilidade que perdurava ainda na data do seu depoimento (25-10-2023), devido a atrasos e constrangimentos causados “pelos covids (…) pelas câmaras”. No caso, era ainda exigível que a empresa “E Redes” procedesse à alteração de um Posto de Transformação, o que impedia que avançassem com os pedidos de licenciamento, antes que tal intervenção relativa a infraestruturas fosse efetuada (minutos 9.00 a 12.00). Certo é também que quando lhe foi perguntado o momento em que o “trabalho de promotor” ficou concluído, afirmou ao minuto 12.40 não ter essa realidade presente, referindo ainda “para aí há um ano ou mais” (por referência ao momento da realização da audiência do julgamento, em 25-10-2023). Referiu ainda que a celebração dos contratos de compra e venda estava dependente das entidades que emitem as licenças e que esteve presente em reuniões com os promitentes compradores que estavam informados que não poderiam mudar-se para as casas (minutos 15.11 a 16.15). Por fim, afirmou que em julho de 2021 a obra estaria avançada, mas não concluída (15.15 a 17.40)
Ora, também este depoimento não constitui um meio de prova objetivo e seguro quanto ao facto de os autores terem conhecimento de que a licença de utilização, até à data da propositura da ação, não estava emitida ou sequer requerida. Efetivamente, o depoente aludiu, de forma genérica, a reuniões que não situou temporalmente, desconhecendo-se ainda se as mesmas ocorreram com todos os promitentes compradores das frações que integravam o Lote em questão e, mais concretamente, se com os autores foi ou não mantida qualquer reunião com tal objeto. Ou seja, o depoente não esclareceu se aos autores foi transmitido, até à data da instauração da ação, que as licenças não haviam sido emitidas ou sequer solicitadas.
Como referido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017[7]: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efetuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados (..).
Certo é que, analisados criticamente os meios de prova indicados pela recorrente, conclui-se inexistir fundamento para alterar a decisão do tribunal a quo no que se reporta à redação conferida ao artigo 17 dos factos provados.
Por fim, no que se reporta à apontada contradição entre o facto não provado e o provado sob o nº 23, importa, antes de mais, reproduzir a respetiva redação.
Assim, no referido facto provado nº 23 consignou-se:
23) O pedido de emissão da licença de utilização encontra-se dependente da realização de uma vistoria por parte da E Redes, sem a qual a Câmara Municipal de Odivelas não aceita a formalização pela R. do pedido de emissão da licença de utilização”.
Já o facto não provado, com a retificação supra determinada, possui o seguinte teor:
Não se provou que o descrito em 22) impediu a conclusão dos trabalhos e respetivo licenciamento na data indicada de 31 de julho”.
Ora, como a própria recorrente refere, tal facto não pode deixar de ser cotejado com o nº 22, ali expressamente mencionado, relativo à situação de confinamento parcial vivida no país por força da pandemia decorrente do Covid 19 e com o seguinte teor:
22) Em outubro de 2020, o governo português anunciou novo confinamento parcial em determinados concelhos do país (onde se incluiu Odivelas) e logo no dia 5 de novembro do mesmo ano o país voltou ao estado de emergência, o qual se manteve durante 173 dias consecutivos”.
Porém, da prova produzida não resultou que a circunstância de em outubro de 2020 ter sido determinado novo confinamento parcial, a que se seguiu o regresso do país ao estado de emergência que perdurou durante 173 dias consecutivos, tenha produzido impacto na conclusão dos trabalhos de construção e no pedido de emissão de licença de utilização. Aliás, no período do confinamento ali mencionado, como resultou do depoimento da testemunha D, o edifício não estava construído, não se encontrando, em consequência, pendente qualquer pedido de licenciamento.
Por outro lado, o facto de a formalização da licença de utilização estar dependente de uma vistoria a realizar pela empresa E Redes, em si, não se apresenta contraditório com a circunstância de não se ter apurado que o confinamento e o estado de emergência tivessem impedido a conclusão dos trabalhos e o licenciamento da obra.
Não se pode, pois, conclui pela existência da apontada contradição entre o facto não provado e o enunciado sob o nº 23.
Pelo exposto, improcede a impugnação da matéria de facto.
C– FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos provados a considerar:
“1) Em 15 de Junho de 2020, os AA., na qualidade de promitentes-compradores, e a R., na qualidade de promitente-vendedora, celebraram o denominado “contrato-promessa de compra e venda”, junto a fls. 26 a 33 dos autos.
2) No referido contrato-promessa, os AA. declararam pretender comprar e a R. declarou pretender vender a futura fração autónoma correspondente à letra “O”, Bloco B, Lote …, que corresponderá ao piso dois, lado esquerdo, destinado a habitação, composto por três divisões, duas instalações sanitárias, uma cozinha, uma arrecadação com o número 16 e dois lugares com os números de estacionamento 32 e 32, do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Ramada e Caneças, concelho de Odivelas, sob o artigo …3, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n.º …6 da freguesia e concelho de Odivelas (cfr. cl. 1.ª)
3) Na cláusula 2.ª do acordo referido em 1), as partes acordaram o preço da referida compra e venda da fração autónoma no montante de 260.000,00€.
4) Os AA. pagaram 13.000,00€ na data de assinatura do acordo referido em 1), e um reforço de sinal e princípio de pagamento de idêntico montante de 13.000,00€ até ao dia 15 de julho de 2020 (cfr. cl. 3.ª, al. a) e b)).
5) As partes acordaram que o remanescente do preço seria pago apenas aquando da outorga do contrato definitivo (cfr. cl. 3.ª, al. c)).
6) Consta da cláusula 4.ª do denominado “contrato-promessa de compra e venda” referido em 1) que:
“1. A marcação da escritura ficou a cargo dos promitentes-compradores, devendo ser celebrada até ao final de julho de 2021.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior o promitentes-compradores comprometem-se a comunicar à promitente-vendedora a data, hora e local da celebração da escritura pública de compra e venda, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias.
3. A promitente-vendedora obriga-se a fornecer aos promitentes-compradores os documentos necessários à marcação e outorga da escritura pública de compra e venda.
4. A promitente-vendedora e os promitentes-compradores declaram expressamente ter conhecimento de que a outorga da escritura pública de compra e venda apenas poderá ser outorgada apos emissão, pela Camara Municipal de Odivelas, da correspondente Licença de Utilização, pelo que se a mesma se encontrar pendente de emissão findo o prazo indicado no número um, acordam desde já prorrogar automaticamente o prazo de celebração da mesma até ao 60º (sexagésimo) dia após o pedido de emissão da referida licença
5. A prorrogação do prazo de celebração da escritura de compra e venda pelos motivos consignados no número anterior não poderá ser considerada como incumprimento imputável à promitente-vendedora.
6. (…)
7. Se por qualquer motivo a escritura não for celebrada dentro dos prazos referidos nos números anteriores, o prazo poderá ser prorrogado, a pedido justificado de qualquer uma das partes, por 30 (trinta) dias, por documento escrito e assinado pela promitente-vendedora e pelos promitentes-compradores, que será junto a este contrato como aditamento.
8. Findo este prazo excecional de trinta dias sem que a escritura se encontre tempestivamente agendada pelos promitentes-compradores considerar-se-á o presente contrato-promessa de compra e venda definitivamente incumprido pela parte faltosa com as consequências que infra melhor se estipula, salvo se se verificar uma das situações previstas nos números quatro a seis desta cláusula.”.
7) Na cláusula 8.ª foi consignado que em caso de incumprimento do contrato por causa imputável à promitente-vendedora, os promitentes-compradores [e não vendedores como ali se refere] poderão optar entre:
a) A restituição em dobro da quantia paga a título de sinal e respetivos reforços (…).
b) A execução específica do contrato.
8) Em 21 de Maio de 2021, a R., através dos seus mandatários, comunicou aos AA., nos termos constantes de fls. 42/43, que a escritura não poderia ser outorgada até ao final de julho de 2021, porquanto a licença de utilização não teria sido emitida, nem sequer requerida.
9) Na referida carta, é referido que “De acordo com o n.º 1 da cláusula 4.ª do Contrato-promessa de Compra e Venda, previa-se como data para a celebração do contrato definitivo o dia 31 de julho de 2021, não obstante o n.º 4 dessa mesma cláusula salvaguardar que apenas com a emissão da licença de utilização pela Câmara Municipal de Odivelas se achariam reunidas as condições necessárias para a celebração da escritura.”.
10) É ainda referido que” contrariamente ao expectável, a pandemia provocada pela Covid 19 veio, de forma totalmente inesperada, retardar o normal andamento do processo de construção, na medida em que não só se encontraram suspensos atá ao passado dia 6 de abril de 2021 os prazos para a prática de atos administrativos (oque gerou uma enorme entropia ao funcionamento dos serviços públicos, onde se inclui a CM de Odivelas), como igualmente desde março de 2020 a Silviconstroi teve que enfrentar uma série de adversidades impossíveis de antever à data da outorga do contrato-promessa de compra e venda, nomeadamente enorme atrasos por parte dos fornecedores na entrega de materiais essenciais à prossecução dos trabalhos, ruturas de stock de materiais, encerramento de empresas fornecedoras de materiais devidos a surtos de Covid 19, limitações de circulação, entre outras contingências, associadas às anteriores, que contribuíram para a redução do ritmo de andamento dos trabalhos. (…)”.
11) Na comunicação é referido que “(…) estima-se que para o lote 1 a emissão (da licença de utilização) ocorra em fevereiro de 2022 (…) e a realização da escritura em março de 2022.
12) Com data de 31 de maio de 2021, os AA. remeteram à R. a carta junta a fls. 44 a 46, onde manifestam o seu desacordo na interpretação da Cláusula 4.ª do Contrato-promessa de Compra e Venda.
13) Na mesma carta, os AA. informam a R. que “(…) vimos interpelar V.Exas. formalmente para outorga a escritura de compra e venda até ao final de julho de 2021 (ou que nessa data se faça prova do pedido de emissão da licença de utilização).”
14) Em 5 de agosto de 2021, os AA. remeteram à R. a missiva constante de fls. 47/48, onde “(…) vimos interpelar V.Exas. formalmente para outorgar a escritura de compra e venda no prazo de 10 dias após a receção desta carta (ou que, nessa data se faça prova do pedido de emissão da licença de utilização), referindo ainda: Caso isto não se verifique até essa data, informamos desde já que perdemos definitivamente o interesse na celebração da escritura pública de compra e venda e exigiremos então a devolução imediata das quantias entregues a título de sinal em dobro”(facto complementado pela relatora, tendo por base a comunicação de 05-08-2021 junta com a petição inicial, que se considera reproduzida);
15) Esta carta foi recebida pela R. no dia 11 de agosto.
16) Em 30 de agosto de 2021, os AA. remeteram à R. a carta pela qual exigiam a devolução das quantias pagas a título de sinal, em dobro, no prazo de 5 dias.
17) Até à data da propositura da ação, a R. não informou os AA. se a licença de utilização já foi emitida ou, pelo menos, requerida junto do Município.
18) O empreendimento onde se insere a fração id. em 2) foi construído pela R. de raiz e a totalidade das frações que o compõem foram objeto de contratos promessa de compra e venda.
19) Antes da formalização do contrato-promessa de compra e venda id. em 1), foi facultado aos AA . o “draft” do contrato que veio a ser aceite e assinado.
20) Em junho de 2020, data em que foi outorgado o contrato-promessa de compra e venda com os AA., a R. antevia como possível a celebração dos contratos definitivos no final de julho de 2021, motivo pelo qual indicou tal limite temporal no n.º 1 da cláusula 4ª do CPCV.
21) Por serem comuns a existência de atrasos na emissão das licenças de utilização por parte dos órgãos competentes para o efeito, a R. optou por colocar em todos os contratos promessa de compra e venda, o n.º 4 da cláusula 4.ª do CPCV.
22) Em outubro de 2020, o governo português anunciou novo confinamento parcial em determinados concelhos do país (onde se incluiu Odivelas) e logo no dia 5 de novembro do mesmo ano o país voltou ao estado de emergência, o qual se manteve durante 173 dias consecutivos.
23) O pedido de emissão da licença de utilização encontra-se dependente da realização de uma vistoria por parte da E Redes, sem a qual a Câmara Municipal de Odivelas não aceita a formalização pela R. do pedido de emissão da licença de utilização”.
D – Com a retificação que lhe foi operada, o facto não provado possui a seguinte redação:
Não se provou que o descrito em 22) impediu a conclusão dos trabalhos e respetivo licenciamento na data indicada de 31 de julho”.
E - Reapreciação da decisão de mérito
Ambas as partes se imputam reciprocamente o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda que celebraram em 15-06-2020, pretendendo que do mesmo sejam extraídas as devidas consequências legais.
Como se alcança do disposto no artigo 410º, nº 1, CC o contrato-promessa consiste na convenção por via da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato. Reporta-se, pois, a uma promessa de celebração de um contrato, o qual se procura assegurar “(…) num momento em que existe algum obstáculo material ou jurídico à sua imediata conclusão, ou o diferimento desta acarreta vantagens” – Almeida Costa[8].
 Constitui, assim, um acordo funcionalmente instrumentalizado à futura conclusão do contrato, vinculando-se as partes à celebração ulterior de um outro contrato cujo conteúdo essencial fica definido pela promessa, consubstanciando esta “um acordo de vontades sobre a diferida conclusão de um contrato já identificado” – Ana Prata[9]. Constituindo o contrato-promessa ato preparatório do contrato definitivo, poderá afirmar-se com Pessoa Jorge que o primeiro “não se concebe sem complemento direto”[10].
Assim, na tese dos recorridos (autores), que obteve vencimento em primeira instância, a ré não respeitou o prazo de celebração do contrato definitivo de compra e venda, o que legitimou a interpelação admonitória que lhe dirigiram e, ulteriormente, a resolução do contrato-promessa, com a consequente obrigação de restituição do sinal em dobro.
Na perspetiva da ré, não foi ultrapassado o prazo contratualmente previsto para a celebração do contrato de compra e venda, pelo que, sendo ilícita a declaração de resolução da promessa operada pelos autores, mostra-se legitimada a retenção do sinal, pretensão que deduziu por via reconvencional.
Ora, a questão do incumprimento do contrato-promessa exige, desde logo, a análise do prazo convencionado para a celebração da escritura de compra e venda, impondo-se, a tal propósito, a interpretação da cláusula 4ª do contrato-promessa.
Efetivamente, ali ficou consignado, conforme facto provado nº 6:
“1. A marcação da escritura ficou a cargo dos promitentes-compradores, devendo ser celebrada até ao final de julho de 2021.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior o promitentes-compradores comprometem-se a comunicar à promitente-vendedora a data, hora e local da celebração da escritura pública de compra e venda, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias.
3. A promitente-vendedora obriga-se a fornecer aos promitentes-compradores os documentos necessários à marcação e outorga da escritura pública de compra e venda.
4. A promitente-vendedora e os promitentes-compradores declaram expressamente ter conhecimento de que a outorga da escritura pública de compra e venda apenas poderá ser outorgada após emissão, pela Camara Municipal de Odivelas, da correspondente Licença de Utilização, pelo que se a mesma se encontrar pendente de emissão findo o prazo indicado no número um, acordam desde já prorrogar automaticamente o prazo de celebração da mesma até ao 60º (sexagésimo) dia após o pedido de emissão da referida licença
5. A prorrogação do prazo de celebração da escritura de compra e venda pelos motivos consignados no número anterior não poderá ser considerada como incumprimento imputável à promitente-vendedora.
6. (…)
7. Se por qualquer motivo a escritura não for celebrada dentro dos prazos referidos nos números anteriores, o prazo poderá ser prorrogado, a pedido justificado de qualquer uma das partes, por 30 (trinta) dias, por documento escrito e assinado pela promitente-vendedora e pelos promitentes-compradores, que será junto a este contrato como aditamento.
8. Findo este prazo excecional de trinta dias sem que a escritura se encontre tempestivamente agendada pelos promitentes compradores considerar-se-á o presente contrato-promessa de compra e venda definitivamente incumprido pela parte faltosa com as consequências que infra melhor se estipula, salvo se se verificar uma das situações previstas nos números quatro a seis desta cláusula.”.
Analisando o teor da referida cláusula, de acordo com o sentido que um declaratário normal lhe atribuiria, de harmonia com o critério consagrado no artigo 236º, nº 1, do Código Civil, impõe-se concluir que o prazo para a celebração da escritura pública de compra e venda acordado terminava no dia 31 de julho de 2021.
Porém, foi acordada a prorrogação automática de tal prazo por 60 dias para a hipótese de se encontrar pendente a emissão da licença de utilização, o que, recorrendo novamente à teoria da impressão do destinatário consagrada no artigo 236º, CC, não poderá deixar de significar que tal prorrogação ocorreria caso a licença tivesse sido solicitada e ainda não tivesse sido concedida. Efetivamente, afigura-se não poder ser outro o sentido a atribuir à cláusula 4ª nº 4 do contrato-promessa, tanto mais que ali se refere expressamente “(…) acordam desde já prorrogar automaticamente o prazo de celebração da mesma até ao 60º (sexagésimo) dia após o pedido de emissão da referida licença”. Consequentemente, julgamos não poder sustentar-se que tal prorrogação do prazo para a celebração do contrato de compra e venda apenas seria de equacionar depois de as obras estarem finalizadas e a licença requerida, como defende a recorrente. Na realidade, tal interpretação, além de não ter qualquer correspondência na expressão literal da cláusula ora em análise, desvirtuaria o fim subjacente à estipulação de um prazo para a celebração do contrato de compra e venda que, manifestamente, os outorgantes da promessa não quiseram protelar indefinidamente, como se alcança da convenção de um termo final – 31-07-2021 – para a sua celebração, consentindo na prorrogação desse prazo por 60 dias, apenas por forma a obviar a dificuldades burocráticas na obtenção de uma licença já solicitada mas ainda não emitida. Na realidade, entendimento diverso legitimaria a promitente-vendedora a protelar no tempo e até indefinidamente, o cumprimento da sua prestação contratual, consistente na construção da fração prometida vender, na constituição da propriedade horizontal do edifício e no licenciamento. Ora, tal tese mostra-se em flagrante oposição com a inclusão na promessa de um termo final para a celebração do contrato de compra e venda, sendo até suscetível de anular o efeito útil decorrente da sua previsão.
Por fim, foi ainda previsto um prazo excecional de 30 dias, a pedido justificado de uma das partes e com anuência escrita da contraparte.
Ora, a questão em que radica a principal controvérsia nos autos corresponde precisamente à definição do prazo máximo para a celebração do contrato de compra e venda, dado que ambas as partes invocam a violação do acordado a tal propósito como causa do incumprimento contratual que se imputam reciprocamente.
Julgamos que a resposta a tal questão não pode deixar de considerar que o prazo máximo de celebração do contrato de compra e venda correspondia ao dia 31-07-2021 dado que a factualidade provada evidencia que quando o mesmo foi atingido não se encontrava pendente qualquer pedido de licenciamento, o que, nos termos supra expostos, impede a prorrogação daquele prazo em 60 dias.
Por fim, também não ficou demonstrado qualquer acordo escrito no sentido de a tal prorrogação de 60 dias acrescer uma outra de 30 dias, nos termos consignados no nº 7 da supra referida cláusula quarta do contrato-promessa celebrado entre as partes.
Consequentemente, temos como certa a interpretação efetuada na decisão recorrida, nos termos da qual o prazo máximo para a celebração do contrato de compra e venda da fração prometida vender terminou no dia 31-07-2021.
Importa, no entanto, indagar se, ultrapassado tal prazo, pode ser afirmado o incumprimento contratual da ré, ou se apenas lhe pode ser imputada mora na realização da sua prestação contratual, a demandar ainda uma interpelação admonitória, suscetível de operar a sua transformação em incumprimento.
Na realidade, a mora deve ser equiparada “não a falta definitiva (…) de realização da prestação debitória, mas um simples retardamento, demora ou dilação no cumprimento da obrigação” – Antunes Varela[11]. Certo é que a mora não constitui fundamento de resolução, que deverá fundamentar-se no incumprimento definitivo que ocorre com a não realização da prestação dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, ou da perda do interesse que o credor tinha na prestação, o qual terá que ser apreciado objetivamente.
Efetivamente, dispõe o artigo 808º, CC, sob a epígrafe: “Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento”
1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
2. A perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente.”
Seguindo a sistematização que vem sendo operada sem divergências, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, a interpelação admonitória deverá conter uma intimação para o cumprimento, a fixação de um termo perentório para o efeito e a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro do prazo – veja-se a título meramente exemplificativo Antunes Varela[12], que designa a interpelação admonitória como “uma ponte de passagem obrigatória para o não cumprimento (definitivo) da obrigação”, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-06-2022[13].
E o certo é que a factualidade apurada evidencia ter sido efetivada tal interpelação admonitória. Efetivamente, a carta de 05-08-2021 (facto provado nº 14), que foi recebida pela ré em 11-08-2021 (facto provado nº 15) contém todos os elementos que integram a interpelação admonitória, porquanto a promitente-vendedora ali foi intimada a celebrar o contrato de compra e venda, no prazo de 10 dias desde a sua receção, sob pena de, não o fazendo, operar a resolução do contrato-promessa.
Consequentemente, por essa via, sempre o incumprimento da ré se revela suscetível de fundamentar a resolução do contrato-promessa.
Acresce que no contrato-promessa ficou convencionado que a escritura deveria ser celebrada até ao final de julho de 2021, não operando, nos termos já expostos, quer a prorrogação de 60 dias, prevista para a hipótese de se encontrar pendente o pedido de licença, nem a prorrogação de 30 dias, prevista em caso de acordo escrito de ambos os contraentes – cfr. cláusula 4ª nºs 1, 4 e 7.
Julgamos que tal estipulação deve ser qualificada como um termo (resolutivo ou final) consistindo na “cláusula acessória típica pela qual a existência ou a exercitabilidade dos efeitos de um negócio são postas na dependência de um acontecimento futuro mas certo, de tal modo que os efeitos (…) cessam a partir de certo momento” – Mota Pinto[14]. Tal termo, cuja aposição no contrato constitui uma manifestação do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º, nº 1, CC, encontra a sua previsão legal no artigo 278º, CC, e, in casu, consubstancia-se na estipulação de que os efeitos do negócio cessariam na referida data - 31-07-2021. Tal estipulação mostra-se prevista no nº 8 da cláusula 4ª, no segmento onde se refere que, findo o prazo ali mencionado “considerar-se-á o presente contrato-promessa de compra e venda definitivamente incumprido pela parte faltosa (…)”. Dir-se-á, pois, que as partes fixaram um termo que deve ser havido como “essencial” dado que, ultrapassada a data nele prevista, a prestação que não foi cumprida no momento devido “(…) já não se pode cumprir, importando o atraso da prestação desde logo a impossibilidade definitiva” – Mota Pinto[15].
Por outro lado, tendo presente que a resolução do contrato pode ser fundada na lei ou em convenção, nos termos do disposto no artigo 432º nº 1 CC, afigura-se que a cláusula mencionada configura também estipulação pela qual as partes convencionaram a faculdade de resolverem o contrato ultrapassado o prazo previsto, podendo, por isso, qualificar-se como uma “cláusula resolutiva expressa”. Consequentemente, aos autores, promitentes-compradores, sempre deveria ser reconhecida a faculdade de resolverem o contrato “(…) imediatamente, através de declaração escrita dirigida à outra parte (art. 436º, nº 1, CC) sem ter de recorrer e percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do art. 808º, nº 1 do CC” – neste sentido se pronunciou o Acórdão da Relação de Guimarães  de 13-10-2022[16].
Afigura-se, pois, que também por esta via – a de se encontrar ultrapassado o termo essencial convencionado para a celebração do contrato de compra e venda e da expressa convenção de cláusula resolutiva para essa hipótese - nada obsta à consideração da obrigação como definitivamente incumprida. E assim é, independentemente da existência de interpelação admonitória que, como refere Batista Machado[17], “Trata-se de um remédio concedido por lei ao credor para os casos em que não tenha sido estipulada uma cláusula resolutiva ou um termo essencial, nem ele possa alegar, de modo objetivamente fundado, perda do interesse na prestação por efeito a mora”.
Em face do exposto, a declaração de resolução contratual dirigida pelos autores à ré operou já em momento em que o contrato se mostrava definitivamente incumprido, não configurando qualquer ilícito contratual que legitime a pretensão por esta deduzida por via reconvencional, relativa à retenção do sinal pago pelos autores.
Já a pretensão que foi reconhecida aos autores, relativa à exigência da devolução do sinal em dobro, fundamenta-se no artigo 442º do Código Civil, que sob a epígrafe: “Sinal” dispõe, o seguinte:
1 - Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2 - Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
3 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.º
4 - Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento.”
A doutrina tem analisado a natureza do sinal no direito civil português, considerando Galvão Telles[18] que visa confirmar e consolidar o contrato celebrado, sujeitando o inadimplente a uma indemnização predeterminada. Já Menezes Cordeiro[19] defende que o regime vigente procedeu à junção das diversas funções do sinal, tendo o mesmo natureza confirmatória-penal, na medida em que confere consistência ao contrato, assumindo uma natureza penitencial e funcionando como indemnização para o preço do arrependimento. Para Calvão da Silva[20], o sinal tem natureza confirmatória, podendo ter carácter penitencial se as partes assim o pretenderam.
De todo o modo, sempre haverá que considerar que o sinal, para além do seu caráter compulsório, opera uma determinação antecipada da indemnização devida pelo incumprimento de um contrato-promessa e visa garantir tal indemnização, independentemente da existência de danos, dispensando as partes da sua alegação e prova. Tal conclusão resulta do disposto no número 4 do artigo 442º do Código Civil que, de forma similar ao princípio estabelecido no número 2 do artigo 811º para a cláusula penal, estipula que o sinal penal obsta a que o credor exija a indemnização pelo dano excedente, salvo se for outra a convenção das partes.
Apurado o incumprimento contratual da ré no que se reporta à violação do prazo para a celebração do contrato de compra e venda da fração prometida vender (incumprimento, aliás, que sempre se presumiria, nos termos do disposto no artigo 799º, nº 1, CC), afigura-se nada obstar ao deferimento da pretensão dos autores, relativa à condenação daquela na restituição do sinal “em dobro”.
Acresce que não pode concluir-se, em face das coordenadas factuais apuradas, que tal pretensão se mostre obstaculizada pelo regime do abuso do direito, legalmente consagrado no artigo 334º, do Código Civil. Aí se refere que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Tal instituto, de aplicação oficiosa pelo juiz, assenta na ideia de que cada direito é “uma intenção normativa que apenas subsiste na sua validade jurídica enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que a constitui”, nas palavras de Castanheira Neves[21], devendo “obedecer, no seu exercício, a uma norma implícita ou explícita de correção, de lealdade, de moralidade, a uma lei acima da lei” (Orlando de Carvalho[22]).
Relativamente à boa fé, deve referir-se que a doutrina costuma distinguir dois sentidos: Por um lado, a boa fé subjetiva, como “estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude”, nas palavras de Coutinho de Abreu[23], e, por outro lado, a boa fé objetiva, como princípio regulativo/normativo de atuação, como princípio geral de direito que impõe que “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” (Coutinho de Abreu[24]). Foi exatamente este último sentido o consagrado no artigo 334º do C.C., ou seja, como “regra de correção e lealdade”, segundo expressão de Cunha de Sá[25].
A boa fé supõe ainda uma “específica relação inter-pessoal (…), fonte de uma específica relação de confiança - ou, pelo menos, de uma legítima expectação de conduta - cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa (o que implica, por isso, a lesão direta de alguém…)”, sendo, como afirma Orlando de Carvalho[26], “ainda expressão da disciplina da lei”, revestindo contudo o carácter de “norma em branco”, dada a relativa indefinição que inevitavelmente comporta por forma a permitir a consideração dos circunstancialismos concretos de cada caso.
No caso concreto, não se afigura abusivo o direito exercido pelos promitentes-compradores em qualquer uma das vertentes a que se reconduz o abuso de direito. Efetivamente, estando em causa a aquisição de fração habitacional que para o cidadão comum corresponde sempre a um investimento económico e financeiro significativo, nada obsta a que, perante o incumprimento da ré, reivindiquem a pena acordada para o efeito, dado terem visto defraudadas as suas legítimas expetativas quanto ao prazo de aquisição da fração
Acresce que a factualidade apurada não evidencia que o incumprimento da prestação pela ré se tenha devido à inércia de entidades terceiras (designadamente as competentes para a emissão de licenças ou a realização de vistorias), dado que não se apurou que no prazo acordado a fração estivesse sequer construída, nem que o facto de a construção não se encontrar finalizada não fosse imputável à ré (presumindo-se aliás a sua culpa, nos termos do disposto no artigo 799º, nº 2, CC).
O mesmo se dirá relativamente ao impacto da pandemia Covid 19 em vários setores da atividade económica, designadamente na construção civil. É que se a sua existência constitui obviamente facto notório, nos termos do disposto no artigo 5º, nº 2, alínea c), CPC, o mesmo não se verifica quanto às suas consequências na atividade da ré, pelo que se impunha, para além da sua alegação, a respetiva prova, o que não sucedeu. E o certo é que o contrato-promessa foi celebrado em plena época de pandemia que, consequentemente, não constitui um evento absolutamente inesperado para qualquer das partes que, não obstante tal contexto pandémico, acordaram em fixar um termo para a realização do contrato definitivo.
A este propósito sumariou-se no Acórdão da Relação do Porto de 14-12-2022[27]: “O impacto da pandemia de Covid-19 nas relações negociais e as perturbações prestacionais daí decorrentes não se esgotam no instituto da alteração superveniente das circunstâncias, o qual, assume natureza tendencialmente subsidiária, cabendo ao julgador verificar se a concreta situação em que ocorram perturbações na execução das prestações obrigacionais convencionadas não encontra a sua resposta noutros institutos centrais do direito dos contratos, como sejam: a impossibilidade; a frustração do fim da prestação em obrigações finalizadas; a mora do credor; a interpretação do contrato, a redução de cláusulas penais, entre outros.”
Assim, embora a ponderação das dificuldades colocadas ao cumprimento contratual no contexto da pandemia de Covid 19 possa ser enquadrada no instituto do abuso de direito, o certo é que a factualidade apurada não autoriza a conclusão de que o exercício do direito dos promitentes compradores seja, in casu, abusivo.
Por fim, tendo a recorrente, nas conclusões do recurso, aludido à redução equitativa do montante que lhe incumbe restituir, importa, desde logo, encontrar enquadramento legal para tal questão, que manifestamente apresenta grande proximidade com o abuso de direito. E assim é porquanto, na realidade, tal pretensão pode ser fundamentada (embora de forma analógica) no regime da redução equitativa da cláusula penal, consagrado no artigo 812º CC, que, nas palavras de Pinto Monteiro[28] assume uma função de “evitar um exercício abusivo do direito à pena”.
Tal norma, relativa à “Redução equitativa da cláusula penal”, dispõe no seu nº 1: “A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário”.
Relativamente à aplicação analógica de tal regime à redução do sinal, para a qual maioritariamente apontam a doutrina e a jurisprudência, julgamos que a sua justificação radicará na “afinidade funcional entre a cláusula penal e a cláusula ou convenção de sinal” – neste sentido Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2023[29] e de 26-04-2007[30], e Pinto Monteiro[31].
Contra tal aplicação analógica manifestou-se designadamente Antunes Varela[32], considerando não poder afirmar-se a existência de lacuna na lei dada a expressa previsão legal no nº 2 do artigo 442º, CC de sanções para o incumprimento da promessa, sem que tal faculdade – excecional – tivesse sido prevista, o que indicia não ter sido opção do legislador tal possibilidade.
No entanto, ponderando a similitude das funções visadas pelas convenções de cláusula penal e do sinal, funcionando ambas numa vertente compulsória e, simultaneamente como sanção pelo não cumprimento, propendemos a aceitar excecionalmente a possibilidade de redução do sinal com base no regime consagrado no artigo 812º, CC. Porém, haverá que ter presente que a redução equitativa da cláusula penal apenas deverá ser decretada caso o interessado alegue e prove factos evidenciadores de que é manifestamente excessiva e desproporcional relativamente aos danos que o devedor causou com a sua conduta. Contudo, tal juízo de (des)proporcionalidade não poderá deixar de ser efetuado relativamente ao valor do sinal em singelo, porquanto ao promitente comprador que não incumpriu a sua promessa sempre haveria de ser reconhecida a faculdade de obter a restituição do que prestou como princípio de pagamento de negócio que não se concretizou.
Significa o acabado de expor que tal ponderação, neste caso, será efetuada não relativamente ao valor global peticionado pelos promitentes compradores (€ 52.000,00), mas sim ao valor do sinal em singelo (€ 26.000,00).
Ora, o sinal em singelo, in casu, cifra-se em € 26.000,00, precisamente 10% do valor global acordado para a compra e venda, o qual não se afigura desproporcionado e injusto e, além do mais, corresponde ao valor indemnizatório contratualmente fixado para a hipótese de incumprimento, à luz do princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405º, nº 1, CC. Consequentemente, na ausência de apuramento de quaisquer factos que permitam concluir pela sua desproporcionalidade, não procede o pedido de redução equitativa do sinal.
Improcedente se revela, pois, o recurso.
A recorrente, que decai no recurso que interpôs, não poderá deixar de ser condenada no pagamento das custas do mesmo, por decorrência do princípio da causalidade consagrado no artigo 527º CPC.
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pela ré/recorrente – cfr. artigos 527º, CPC.
D.N.

Lisboa, 26 de setembro de 2024
Rute Sobral
Arlindo Crua
João Paulo Raposo
_______________________________________________________
[1] Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269
[2] Proc.º n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[3] Proferido no processo 233/09, disponível em www.dgsi.pt
[4] Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pag, 201 e 202
[5] Proferido no processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2. disponível em www.dgsi.pt
[6] Código de Processo Civil Anotado, 3º edição, Volume 2, pág.735
[7] disponível em www.dgsi.pt
[8] Contrato-Promessa, Uma Síntese do Regime Actual, 2ª edição, pág. 13.
[9] O Contrato-promessa e seu Regime Civil, 1994, pág. 15.
[10] O Mandato sem Representação, Lisboa, 1961, página 159.
[11] Das Obrigações em Geral, Almedina, 1997, pá. 345
[12] RLJ 111º, 215.
[13] Proferido no processo nº 831/19.8T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[14] Teoria Geral do Direito Civil, 3º edição pág. 573.
[15] Ob. Cit. pág. 576
[16] Proferido no processo nº 211/21.5T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt
[17] Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, Volume I, pág. 125.
[18] Direito das Obrigações, página 132.
[19] Tratado de Direito Civil I-1, página 463.
[20] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, página 281.
[21] “Questão de Facto - Questão de Direito”, I, p. 523.
[22] “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1981, p. 46.
[23] “Do Abuso de Direito”, p. 55.
[24] Obra citada, p. 55.
[25] “Abuso do Direito”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, p. 172.
[26] “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1981, p. 54.
[27] Proferido no processo nº 229/21.9T8MAI-A.P2, disponível em www.dgsi.
[28] Cláusula Penal e Indemnização, 1990, pág. 733
[29] Proferido no processo nº 547/20.2T8ALM.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[30] Proferido no processo07B1070, disponível em www.dgsi.pt
[31] Cláusula Penal e Indemnização, 1990, pág.214.
[32] Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-02-1983, pág. 347.