CONTA BANCÁRIA
CONGELAMENTO DA CONTA
MEDIDA CAUTELAR
SUSPENSÃO
OPERAÇÕES BANCÁRIAS
AUTORIZAÇÃO PARA MOVIMENTAR CONTA
COMPETÊNCIA
INQUÉRITO
PROCESSO CRIME
Sumário

(da responsabilidade do relator):
I. A medida cautelar de suspensão temporária de realização de operações bancárias aplicada no âmbito de inquérito criminal por suspeitas de ilícito de branqueamento de capitais é aplicada pelo Juiz de Instrução;
II. Quaisquer decisões de autorização pontual de movimentação pelo titular da conta, bem como relativas a esclarecimentos, concretização, compleição ou execução das mesmas são também da jurisdição competente para os atos do inquérito criminal, não devendo ser tramitadas na jurisdição cível.

Texto Integral

Acordam os Juízes desta 2.ª Secção, quanto à matéria do presente recurso,
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I. Síntese do recurso:
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I.I. Elementos objetivos:
- Tribunal recorrido: – Juízo Local Cível de Lisboa, Comarca de Lisboa;
- Autos em recurso: – Procedimento cautelar não especificado;
- Decisão recorrida: - Decisão de indeferimento liminar da providência requerida. –
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente: - (…), S.A.;
- Requerida no procedimento: (…) Banco S.A.
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I.III. Elementos dos autos:
a) Deu a requerente entrada a procedimento cautelar no dia 13/12/2023 solicitando o decretamento das seguintes providências:
- Concessão de medida liminar de urgência inaudita para determinar ao Banco que proceda operações pontuais de pagamentos à Fazenda Pública e à Segurança Social de conta com saldo bancário da Requerente em estrito cumprimento de ordem judicial prolatada no inquérito processo 397/20-6TELSB;
- Condenação do requerido, a abster-se da prática de qualquer ato que possa obstar operações de pagamentos à Fazenda Pública e à Segurança Social, de conta com saldo bancário da Requerente e incorrer em incumprimento da ordem judicial prolatada no inquérito - processo n.º (…)/20-6TELSB.
b) Solicitou a requerente que as providências fossem decretadas sem audição prévia da requerida;
c) Distribuídos os autos ao Juízo Central de Lisboa, como solicitado pela requerente, foi suscitada a sua incompetência e ordenada a remessa ao Juízo Local, o que sucedeu;
d) Distribuído ao Juízo Local, foi o procedimento objeto do despacho liminar recorrido;
e) Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação sem audição da requerida. –
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I.IV. Conclusões apresentadas pela recorrente:
1. O juízo a quo é competente para processar e julgar a presente providência cautelar;
2. Em suma, não se trata de pedir a sindicância do despacho judicial penal, de efeitos estritamente civis, mas sim instar a requerida a que, removidos que estão os obstáculos à execução do contrato de conta bancária, por ordem judicial, exercê-lo nos estritos termos em que se obrigou aquando da abertura de conta;
3. A questão insere-se no universo do direito civil em razão de seu conteúdo, e não no âmbito do criminal.
4. Com efeito, definindo-se a competência do tribunal, em razão da matéria, pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, estamos perante um pedido de natureza civil e afigura-se-nos que não pode deixar de concluir-se pela competência do tribunal cível para conhecer do pedido civil deduzido pela demandante, ora recorrente.
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I.V. Síntese da decisão recorrida:
a) Foi disposto na decisão recorrida julgar o Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do presente procedimento cautelar e, consequentemente, indeferir liminarmente o procedimento cautelar;
b) Assenta a decisão nos seguintes fundamentos:
- Alega a requerente que, no âmbito de inquérito criminal n.º (…)/20-6TELSB, foi ordenado bloqueio de saldo de conta bancária por si titulada junto da requerida;
- Tal ordem judicial do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa ressalva expressamente a possibilidade de ser autorizada a requerente a efetuar pagamentos urgentes à Fazenda Nacional e à Segurança Social, dependendo de urgência e de ponderação dos interesses em causa;
- A requerente solicita que seja o Juízo Cível a dar cumprimento ao despacho proferido nos autos de inquérito criminal, deferindo concretamente as autorizações de movimentação de conta genericamente dadas;
- A execução concreta da medida de congelamento de fundos determinada em processo criminal, ao abrigo do disposto na Lei n.º 83/2017, tem que ser determinada e fiscalizada pelo Tribunal com jurisdição sobre os assuntos relativos ao inquérito criminal em causa;
- Por isso, qualquer pedido de movimentação de conta deve ser dado por tal tribunal, sendo o Juízo Cível materialmente incompetente para o efeito.
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I.VI. Elementos relativos à providência requerida:
1. Conforme documento anexo ao requerimento inicial, por despacho do Juiz 4 do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) datado de 28/8/2023, proferido nos autos de inquérito n.º (…)/20.6TELSB, foi decidido autorizar a aqui requerente a que proceda a operações pontuais de pagamentos à Fazenda Nacional e à Segurança Social desde a conta (…) cujo saldo bancário se encontra bloqueado;
2. Tal despacho assenta em aplicação analógica do disposto no art.º 49.º n.º 5, da Lei n.º 83/2017, de 18/8;
3. Por anteriores despachos, de 5/7/2022 e 12/7/2023, proferidos nos mesmos autos de inquérito pelo Juiz (…) do TCIC, também apresentados em anexo ao requerimento inicial, fora autorizada a realização dos pagamentos à Autoridade Tributária dos montantes referentes de fls. (…), a realizar da conta…;
4. Alega a requerente que a requerida quedou-se inerte e não cumpriu a determinação judicial;
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar. –
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II. Objeto do recurso (como delimitado pelas conclusões da recorrente):
A competência do Juízo Cível para a tramitação do presente procedimento cautelar ou, na perspetiva inversa, a aferição da consistência da declaração de incompetência material proferida (com base no entendimento de ser matéria cuja jurisdição está atribuída à esfera do inquérito criminal). –
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III. Apreciação:
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Questão prévia – da insuficiência de alegação:
Decorre diretamente da alegação da requerente de providência que a sua solicitação não constitui um pedido primitivo de autorização de movimentação de conta bancária (por si titulada junto da requerida), antes um desenvolvimento ou uma concretização de autorizações previamente concedidas pelo TCIC, ante uma alegação de inércia da requerida entidade bancária onde a conta se encontra alocada.
É claro que uma alegação assim feita está factualmente insubstanciada, por não apresentar os factos em que se sustenta tal juízo (de inércia), que é de natureza claramente conclusiva.
Quer isto dizer que a requerente não alegou se, quando e por que forma solicitou à requerida a movimentação da conta bancária para realização dos pagamentos autorizados, ou sequer que pagamentos concretos eram esses que pretendeu realizar, não permitindo formular um juízo sobre os mesmos.
Esta questão, que não está compreendida diretamente no objeto recursório definido e, se for o caso, será apreciada apenas a jusante no procedimento (caso este tenha que prosseguir), não deixa de impor esta menção prévia para enquadrar a avaliação da possibilidade de conhecimento do supra referido objeto.
Assim, sendo inquestionado (pela própria recorrente) que será no seio do inquérito criminal que as autorizações genéricas, ou, usando outro termo, as autorizações-base têm que ser concedidas, o objeto deste procedimento cautelar pode ser visto de duas diferentes perspetivas:
- Ou traduzirá um pedido ao tribunal para que emita uma ordem concreta, dirigida à requerida entidade bancária, para que dê execução a movimentações de conta antes autorizadas (pelo TCIC);
- Ou traduzirá um pedido de formulação de um novo juízo que defina mais especificamente uma autorização genérica anterior.
No primeiro dos casos estar-se-á perante uma verdadeira execução (hoc sensu) de uma ordem judicialmente emitida e bem definida. No segundo estar-se-á no âmbito de uma definição concreta de uma permissão genérica.
Se a solução implicar soluções diversas quanto ao Tribunal competente dependendo da perspetiva em que se analise o pedido de providência, poderá a insuficiência de alegação revelar-se essencial para conhecimento do próprio objeto do recurso, caso em que não restará alternativa senão impor um aperfeiçoamento do requerimento inicial para uma solução segura da questão.
Caso qualquer das soluções conduza ao mesmo resultado quanto à determinação da competência, a insuficiência de alegação será inócua para o conhecimento do recurso, cumprindo fazê-lo.
É uma questão que, por ora, se deixa meramente assinalada e a que se voltará, se se impuser, após analisar a regulação relevante sobre a matéria. –
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- A disciplina legal – Lei n.º 83/2017 de 18 de agosto:
Este diploma legal, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, dispõe no seu art.º 49.º n.º 6 que o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.
É tautológico afirmar que este juízo de congelamento é feito em sede de inquérito criminal (a expressão legal vem sendo mais adequadamente referida como medida de suspensão temporária da execução de operações a débito em contas bancárias ou suspensão temporária da execução de operações bancárias - cf. acórdãos desta Relação de Lisboa de 7/5/2019, Vieira Lamin e 9/11/2021, Jorge Antunes, em dgsi.pt).
Foi em sede de inquérito criminal que foram autorizados descongelamentos concretos, sustentando-se as decisões no n.º 5 desse artigo 49.º, aplicado analogicamente (por se referir diretamente a situações de suspensão e não de congelamento) - as pessoas e entidades abrangidas podem solicitar autorização para realizarem uma operação pontual compreendida no âmbito da medida aplicada, a qual é decidida pelo juiz de instrução, ouvido o Ministério Público, e ponderados os interesses em causa.
Quer isto dizer que a requerente está impedida de movimentar uma conta bancária junto da requerida, no âmbito de investigação criminal por branqueamento de capitais, tendo-lhe sido autorizada, por três despachos diversos, a realização de operações pontuais de pagamento a entidades credoras da esfera pública.
Competirá ao Juízo Cível emitir ordens determinadas, dirigidas à entidade bancária depositária, para complemento da autorização concedida?
É manifesto que não.
Decorre diretamente da natureza da medida em causa que as exceções à mesma foram concedidas pontualmente.
Assim sendo, qualquer nova conformação das mesmas, feita em sede diversa do processo criminal, estaria necessariamente a fazer uma nova valoração dos interesses em causa, algo que é da competência exclusiva da autoridade judiciária - Ministério Público (que se pronuncia necessariamente) e do juiz de instrução criminal (que a decide), sempre funcionalmente orientada pelos critérios e finalidades do processo criminal.
Isto é, se pela presente a requerente pretendesse uma declaração expressa que os pagamentos “B”, “C” ou “D” estão comportados numa permissão geral “A” (o que, como referido supra, se desconhece, atenta a falta de alegação), sempre implicariam uma atividade de conformação concreta que só cabe ao juiz de instrução criminal.
Nesse putativo contexto, a incompetência da jurisdição cível é manifesta.
O mesmo se dirá se o pedido formulado for entendido como execução efetiva de um comando prévio, ainda que, neste caso, algumas considerações adicionais se imponham.
Voltando a salientar que o requerente não o fez e, portanto, pressupondo (para efeitos de análise) que o que pretende é remover um (ou vários) desrespeitos concretos da entidade bancária face a pedidos de movimentação de conta congelada, expressa e diretamente autorizados, sempre teria que se concluir que é matéria excluída da apreciação do juízo cível.
Desconhece-se se o processo criminal onde foram emitidas as autorizações é público ou está sujeito a segredo de justiça (cf. art.º 86.º do Código do Processo Penal – CPP). Como quer que seja, na medida em que qualquer questão deste emergente, porque pode envolver a análise e a avaliação de outros elementos do próprio processo penal, só no mesmo pode ser tratada.
Permitir-se que fosse um juiz diverso do de instrução criminal a determinar comandos concretos de movimentação de conta congelada seria abrir a porta à utilização do processo civil defraudando a medida processual criminal, criando, além do mais, uma dúvida legítima no comando a respeitar pela entidade bancária.
Se esta é a solução da questão, pode configurar-se uma situação-limite em que a posição do titular da conta congelada se encontre numa situação de dificuldade de tutela efetiva do seu direito de movimentação pontual da mesma, devidamente autorizado.
A questão pode ser resumida desta forma: - autorizada uma movimentação concreta de conta congelada pelo TCIC, caso a entidade bancária, por inércia ou recusa expressa, não a concretize, como pode reagir o titular da mesma?
Atente-se que a norma convocada, e as decisões concretas do TCIC, são de autorização e, portanto, não são de ordem ou de comando dirigido à entidade bancária para que realize uma determinada operação.
Enquanto autorização, pressupõem comunicações posteriores do titular da conta à entidade bancária para execução concreta do ato autorizado o que, admite-se em tese, num quadro de impedimento de movimentação de conta determinada em sede de inquérito criminal possa criar uma área de indefinição, levando a que a entidade bancária, justificada ou injustificadamente, não realize alguma operação por receio  de estar a violar a ordem judicial de congelamento, o que poderia levar até a que incorresse em responsabilidade criminal por desobediência (cf. art.º 348.º do Código Penal).
Este obstáculo ao exercício concreto de uma permissão, que poderá existir, não pode todavia, ser removido pelo Tribunal cível.
Para esta conclusão importa fazer um enquadramento da medida aplicada em processo penal.
A medida de suspensão temporária da execução de operações bancárias, aplicada ao abrigo da Lei n.º 83/2017, atém-se à movimentação da conta e, portanto, não constitui uma verdadeira apreensão dos ativos pelo processo criminal, caso em que estes ficariam à ordem do mesmo, que passaria a ter a disponibilidade direta para executar as movimentações pertinentes.
Porque existe uma mera proibição de movimentação, nem o titular nem a entidade bancária podem realizar operações, ainda que os ativos permaneçam nas respetivas esferas, à guarda da entidade bancária e com mera restrição de movimentação pelo seu titular.
Sendo esse o quadro, parece ganhar campo o caminho pretendido seguir pela recorrente: - as contas são civis, a relação depositante-depositário é de direito civil e, na medida em que a exceção pontual faz o titular da conta retomar a disposição dos seus fundos (na estrita medida da permissão concedida), ganha sustentação a ideia de que a imposição da obrigação de realizar uma ordem legítima emitida pelo depositante sobre o depositário, e não cumprida, seria realizada em sede desta jurisdição.
Assim não pode ser, todavia.
A própria natureza do processo criminal torna as suas medidas, pelo seu cariz coercivo, prévias às relações contratuais de direito de privado.
A conta bancária está sob a alçada da ordem criminal, sendo qualquer ordem judicial posterior insuscetível de contrariar tal determinação.
A questão de a conta não estar apreendida ou arrestada no inquérito é, para este quadro, irrelevante – a disponibilidade efetiva sobre a mesma é do inquérito criminal e da competência do juiz de instrução, sendo irrelevante a conformação jurídica que o legislador deu a tal disponibilidade, para este efeito.
Uma interpretação diversa levaria necessariamente a desarmonia do sistema jurídico, promovendo a existência de espaços de concorrência e conflitos de jurisdição em áreas com naturezas e funções diversas (sendo que uma dessas áreas, a criminal, exerce um nível de coercividade superior e que deve prevalecer).
Assim sendo, um juízo judicial proferido neste contexto e que assentasse em puras considerações relativas a posições jurídicas emergentes do contrato de depósito seria suscetível de interferir com a decisão criminal de proibição, não podendo fazer-se enquanto vigorar a medida criminal.
Quer isto dizer que terá que ser em sede do próprio processo criminal que qualquer obstáculo à concretização da movimentação deverá ser suscitado e removido.
A jurisdição civil não pode, assim, completar, concretizar ou simplesmente executar a autorização em causa, qualquer que seja a configuração factual completa com que a requerente pretendesse sustentar a providência requerida.
É o que se decide, em conclusão, improcedendo o recurso interposto. –
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IV. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. –
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 26-09-2024
João Paulo Vasconcelos Raposo
Ana Cristina Clemente
António Moreira