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SUCUMBÊNCIA
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Sumário
Se o prejuízo decorrente de uma decisão é igual ou inferior a metade da alçada do tribunal, a decisão é irrecorrível (art.º 629/1 do CPC), seja o afectado parte ou terceiro no processo.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
No âmbito de um procedimento para atribuição da prestação de alimentos pelo FGADM enxertado num apenso de incumprimento de responsabilidades parentais, cujo pagamento se iniciou com referência a Fevereiro de 2020, a Patrona nomeada à requerente do processo, requereu, a 20/03/2024, que fosse ordenada “a junção aos presentes autos do documento comprovativo da identificação junto da Ordem dos Advogados do processo de apoio judiciário referente ao incidente de Renovação do Fundo de Garantia de Alimentos – n.º proc. […].”
No dia 21/03/2024 foi junta aos autos um detalhe do pedido de pagamento de apoio judiciário no qual consta que o pedido foi rejeitado por motivo de serviço errado.
A 26/03/2024, a Patrona nomeada requereu ao tribunal que se ordenasse a confirmação dos honorários solicitados e devidos nestes autos pelo incidente de renovação/Manutenção do pagamento da prestação alimentícia pelo FGADM.
O MP promoveu que se indeferisse o pagamento.
Por despacho de 16/04/2024 foi indeferida a requerida confirmação.
A 24/04/2024, a Patrona nomeada recorreu de tal despacho.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido por despacho de 03/06/2024.
O apenso de recurso em separado foi remetido por correio a 05/06/2024. A 07/06/2024 (6.ª feira), já neste TRL, foi aberta conclusão. O relator, por despacho de 11/06/2024, colocou à recorrente e ao MP a seguinte questão:
Segundo o art.º 629/1 do CPC: O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
A recorrente pede a confirmação dos dados introduzidos num pedido de pagamento de serviço prestado num incidente de um incumprimento.
Esse serviço é dito ter o valor de 8 UR, ou seja, 204,64€.
O despacho recorrido não determinou a confirmação do serviço.
A não confirmação traduz-se na não obtenção daquele valor.
A alçada do tribunal de 1.ª instância é de 5.000€ (artigo 44.º da LOSJ Lei n.º 62/2013 de 26/08).
Metade dessa alçada é de 2.500€.
Pelo que a decisão impugnada não é desfavorável à recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal.
Assim sendo, o recurso não será admissível. Notificados para os efeitos do art.º 655/1 do CPC, a recorrente veio dizer, em síntese, que:
(i) reduzir a discussão da matéria do recurso ao valor dos honorários negados não espelha a questão de fundo: o valor dos honorários a fixar é um objecto secundário do recurso, o objecto directo do recurso tem a ver com o valor imaterial manifestamente subjacente que é o reconhecimento do direito ao pagamento da compensação justa e adequada ao advogado nomeado no âmbito do acesso ao Direito;
(ii) a decisão recorrida (da 1.ª instância) violou uma série de normas legais ao não ordenar a confirmação dos honorários liquidados pela recorrente e o único meio ao alcance da recorrente para reagir a tal decisão é o recurso;
(iii) a jurisprudência dos tribunais da relação tem vindo a pronunciar-se sobre situações análogas independentemente do valor dos honorários reclamados (que em tudo são semelhantes ao ora reclamados pela recorrente) e da sucumbência (invoca nesse sentido uma série de acórdãos, todos já juntos ou referenciados);
(iv) a decisão de não admissão do recurso, com base no valor da sucumbência, criará divergências na jurisprudência e desigualdade de tratamento em situações análogas proferidas no domínio da mesma legislação;
(v) não se vislumbra qualquer justificação razoável para a aplicação de um tratamento desigual perante situações idênticas, o que não é permitido à luz dos princípios jurídicos da igualdade e da proibição da discriminação, legalmente consagrados no artigo 13 da CRP;
(vi) se o critério para a admissão do recurso for, apenas, o valor dos honorários a fixar e o valor da sucumbência, nunca seria possível recorrer da aplicação dos honorários pelo tribunal, ficando o patrono refém da decisão que se proferisse sobre a reclamação do ato de secretaria apresentada, atendendo a que o valor dos honorários aplicados no apoio judiciário, de acordo com o estipulado na Portaria n.º 1386/2004, de 10/11, e respectiva tabela anexa, não ultrapassa o valor da alçada do tribunal de que se recorre ou a sucumbência referida no artigo 629/1 do CPC que é de metade da alçada desse tribunal;
(vii) a rejeição do recurso violaria, ainda, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no art.º 20 da CRP (direito constitucional de sindicar as decisões);
(viii) e o princípio fundamental do direito à retribuição do trabalho; O MP pronunciou-se no mesmo sentido da recorrente, indicando os artigos 208 e 59 da CRP como as normas referentes ao direito à compensação devida aos profissionais forenses no âmbito do acesso ao direito, aditando que:
(ix) independentemente do valor da causa, e sendo certo que o objecto dos autos não se circunscreve, exclusivamente, a um determinado e concreto montante peticionado pela recorrente (decorrendo, ao invés, imperativamente da lei), não se poderá falar, no rigor dos princípios, de sucumbência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 629 do CPC. Por despacho de 27/06/2024 o relator não admitiu o recurso. Isto pelas razões expostas no despacho de 11/06/2024 e depois de afastados os argumentos contrários da recorrente e do MP, nos seguintes termos:
i\ O objecto do recurso é a decisão recorrida e esta traduz-se em negar a confirmação do serviço invocado neste caso concreto e não o direito abstracto ao reconhecimento do direito ao pagamento da compensação justa e adequada ao advogado nomeado no âmbito do acesso ao Direito; lembre-se que os tribunais não podem julgar com base na equidade, isto é, decidir com base na justiça do caso concreto, excepto em situações excepcionais (art.º 4 do CC), sendo que nenhuma delas se verifica no caso; por outro lado, admitir o recurso, neste caso, seria o mesmo que permitir ao juiz arrogar-se o poder de criar uma norma, contra a lei, que lhe permitisse admitir o recurso com base em critérios do tipo do art.º 672/1 do CPC (para os casos em que a\ esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b\ estejam em causa interesses de particular relevância social) e isso apesar de, mesmo neste tipo de casos, a norma legal existente não dispensar o critério da sucumbência.
ii\ o facto de o recurso ser o único meio de reacção contra a decisão recorrida não impõe a admissão do recurso, pois que a lei entende que nos casos em que o valor da sucumbência não for superior a metade da alçada, não é admissível o recurso, apesar de, por isso, poder não haver meio de reacção contra a decisão.
iii\ em nenhuma dos acórdãos invocados pela recorrente se colocou a questão da sucumbência, ou seja, nenhum dos acórdãos em causa aflorou, sequer, a questão da sucumbência, pelo que nenhum deles adianta qualquer razão para afastar o critério legal da sucumbência.
iv\ como nenhum daqueles acórdãos se pronunciou sobre a questão, com a não admissibilidade do recurso neste caso não se vai criar qualquer divergência jurisprudência para situações idênticas, pelo que, v\, pela via do argumento iv\ não se poderia colocar qualquer questão de inconstitucionalidade.
vi\ é uma variação do argumento ii\; de qualquer modo, acrescente-se: a impossibilidade de recurso, por força da sucumbência, implica a impossibilidade de reacção indicada, aqui como em todos os outros casos idênticos em que uma decisão desfavorável não ultrapassa o valor da sucumbência; admitir o recurso neste caso, apesar de não se verificar a sucumbência, seria ilegal e, agora sim, daria origem a uma discriminação inconstitucional: apesar de a decisão não ser desfavorável ao recorrente, o tribunal teria admitido o recurso neste caso, embora não o admita para casos idênticos. Lembre-se, por exemplo, a situação muito frequente em todas as acções em que se discute o pagamento de serviços essenciais de fornecimento sucessivo (telecomunicações ou electricidade, por exemplo) em que o valor mensal deles é inferior a metade da alçada e, por isso, quando as partes, nessas acções, perdem a acção, não podem interpor recurso. Aliás, a situação verifica-se em inúmeros outro tipo de acções: por exemplo, um trabalhador que perca uma acção em que o valor da retribuição pedida esteja dentro da alçada do tribunal de trabalho, não pode recorrer (ficando sem a retribuição a que acha que tem direito, sendo certo que pode ter razão e nem por isso o juiz poderia admitir o recurso).
vii\ - é uma nova variação do argumento ii\; acrescente-se, de qualquer modo, que o Tribunal Constitucional tem admitido a constitucionalidade da norma que não admite o recurso em função do critério do valor da acção ou da sucumbência (assim, por exemplo, os acórdãos do TC 211/93 e 253/18), sendo que a lei prevê suficientes excepções a tal princípio nos n.ºs 2 e 3 do art.º 629 do CPC (nenhuma delas estando preenchida no caso), justificando materialmente o sistema.
viii\ - o direito à retribuição do trabalho, na hipótese da decisão recorrida estar errada, será realmente posto em causa, no caso concreto, como será posto em causa o direito à retribuição de quaisquer serviços que seja negado em qualquer decisão errada, mas isso está comportado pela lógica do sistema legal de restringir o acesso ao recurso com base no critério da sucumbência.
ix\ - é uma variação do argumento i\ com petição de princípio; afirma-se, sem se tentar demonstrar, que o objecto do processo, não é um concreto valor de honorários, resultante da não confirmação do serviço. A 03/07/2024, a recorrente veio requerer que sobre a matéria do despacho recaísse um acórdão, acrescentando, ao que já dizia antes, de novo, o seguinte:
(x) A reclamante não é parte no processo pelo que não se podem aplicar as regras dos recursos invocadas no despacho em apreço, designadamente o artigo 629 do CPC; assim sendo, o recurso é admissível independentemente do valor das quantias que estão em causa, não fazendo sentido aplicar-se a regra do valor da causa e/ou da sucumbência
(xi) O pedido formulado pela reclamante, não tem em vista a atribuição de nenhum valor por si estipulado, mas sim a confirmação e validação de honorários que, imperativa e preceptivamente, decorrem da lei, maxime da Lei 34/2004 de 29/07, da Portaria 1386/2004 de 10/11 e da Portaria 10/2008 de 03/01 (neste sentido – destes dois pontos -, pronunciou-se o ac. do TRG de 19/01/2017, proc. 4568/16.1T8VNF-B.G1); mais à frente, a recorrente apresenta uma variante deste argumento: “não estando, assim, e por decorrência, dependentes de qualquer pedido que possa ser formulado, e em que possa haver decaimento.” Numa 2.ª variante, a recorrente diz que se discute nos presentes autos, ao contrário do que pretende fazer crer o relator, não é o montante/valor, mas sim o reconhecimento do direito ao pagamento da compensação independentemente desse valor.
(xii) contrariamente ao referido pelo tribunal a quo [está-se a referir a este TRL] quanto a (iii) e (iv), vide a titulo meramente exemplificativo duas decisões proferidas pelo TRL, após apresentação de reclamação pela Ordem dos Advogados (art.º 643 do CPC ), da decisão de não admissão de recurso com fundamento na sucumbência: de 08/01/2024, proc. 476/15.1T8AMD-B.L1 (doc. 4) e de 04/03/2024, proc. 400/19.2T8AMD-C.L1 (doc. 5).
(xiii) O pedido da reclamante constitui-se, por isso mesmo, como muito mais do que uma mera vantagem pecuniária de 8 UR - 207,20€, o valor que efectivamente decorre do enquadramento da sua actuação no ponto 5 (ou pelo ponto 13) da tabela anexa à portaria 1386/2004, de 10/11 -, traduzindo-se, ao contrário do entendimento que ora se contradiz, no valor imaterial que decorre do direito do causídico nomeado ao pagamento de honorários no montante legalmente fixado, pelo que o valor da causa sempre se cifrará, salvo o devido respeito, em 30.000,01€; Apreciação:
Quanto aos argumentos anteriores, de (i) a (ix), todos eles de novo invocados na reclamação, sob variadas formas, eles já foram apreciados e não há razão para acrescentar nada.
Quanto aos novos argumentos:
(x) trata-se de uma simples afirmação sem qualquer demonstração, que também não é dada pelo ac. do TRG invocado; o ónus da demonstração do afastamento da aplicação da regra da sucumbência em relação a terceiros corre por conta de quem defende o afastamento da norma em cujo âmbito de aplicação cabe de forma clara a situação (ao menos quanto à sucumbência), ou seja, à recorrente, e ela não o tenta cumprir, limitando-se a fazer a afirmação de que a norma não se aplica.
E conduz a um resultado violador do princípio da igualdade como já referido no despacho reclamado: um perito engenheiro que não concordasse com um despacho que fixasse a sua remuneração em 250€ poderia recorrer; o autor engenheiro que perde a sua pretensão a uma remuneração de 5.000€ não podia recorrer. Não pode ser.
(xi) é evidente, pelo contrário, que a recorrente pretende a atribuição de um valor pecuniário pelo serviço que prestou [daí que o objecto imediato de apreciação da questão é o “detalhe do pedido de pagamento de apoio judiciário” e “a confirmação dos honorários solicitados […]”], o qual tem por sustento mediato a lei que, nas condições invocadas, atribuirá tal direito; e isto é o que se verifica também, por exemplo, quando um credor diz ter prestado um serviço contratado e que lei lhe dá esse direito visto que atribui valor ao contrato celebrado; de resto, não é isto que o invocado acórdão do TRG diz e daí que, mais à frente, a recorrente venha apresentar uma variante já de acordo com aquilo que realmente o ac. do TRG diz; o argumento do acórdão do TRG é o de que não há pedido, pois que os honorários do administrador da insolvência decorrem directamente da lei; mas também isto não tem razão de ser: a verdade é que a recorrente, porque diz ter prestado um serviço para o qual, segundo diz, a lei prevê um pagamento, invoca essa lei como base para fazer o pedido desse pagamento. Em suma: existe um pedido de pagamento e em relação a ele pode-se aplicar a regra da sucumbência. Por fim, quanto à 2.ª variante, qualquer credor poderia dizer, como diz a recorrente, que o que está em causa num recurso “não é o montante/valor, mas sim o reconhecimento do direito ao pagamento da compensação independentemente desse valor.” E então, haveria sempre recurso relativamente a qualquer pedido e as regras do art.º 629/1 do CPC nunca se aplicariam.
(xii) – de facto, as duas decisões singulares invocadas afastam o argumento da sucumbência: a segunda, com base no que foi dito no ac. do TRG já citado e na decisão singular do TRL de 08/01/2024 e esta com o simples argumento de que “se o advogado patrono tem direito ou não ao pagamento da compensação/honorários pela sua intervenção nesta ou naquela fase do processo é questão que nada tem a ver com o valor dos honorários ou com o valor da causa.”; mas, por um lado, o que foi dito pelo TRG já foi apreciado e o que é dito pela decisão singular do TRL de 08/01/2024 não adianta nada de novo; por outro, a recorrente não tinha junto estas decisões nem na certidão com que fez instruir o recurso, nem na pronúncia a propósito do despacho do relator de 11/06/2024, e as mesmas não estão publicadas; por fim, o facto de haver duas decisões singulares em sentido contrário ao seguido na decisão reclamada não permite, só por si, falar numa divergência jurisprudencial que ponha em perigo o princípio constitucional da igualdade, nem isto é fundamento de recurso de apelação.
(xiii) a ser assim, toda e qualquer acção em que se discuta o pagamento de serviços prestados passaria a ter o valor de 30.000,01€, o que não pode ser, já que contraria directamente a regra geral da atendibilidade da utilidade económica do pedido (art.º 297/1 do CPC: Se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário […]).
Em suma: os tribunais, como regra geral, não podem decidir com base na equidade, isto é, naquilo que lhes parece justo para o caso concreto, mas sim com base em critérios gerais e abstractos que tem de aplicar depois em situações idênticas. A argumentação da recorrente levaria necessariamente ao afastamento das regras gerais de limitações da possibilidade do recurso (art.º 629/1 do CPC), criando arbitrariedade na admissão de recursos, com a consequente aplicação desigual da lei para casos em que se imponha a mesma razão de decidir.
*
Pelo exposto, mantém-se a decisão reclamada, de não admissão do recurso devido ao valor da sucumbência.
Custas da reclamação no valor já pago como impulso devido pela mesma.
Lisboa, 26/09/2024
Pedro Martins
Rute Sobral
Carlos Castelo Branco