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PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
LEGITIMIDADE
LEGITIMIDADE ACTIVA
RELAÇÃO MATERIAL CONTROVERTIDA
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
Sumário
(art.º 663.º n.º 7 do CPC) 1. Reportando-se a relação jurídica em litígio a um contrato de abertura de crédito celebrado entre a sociedade de que a Requerente é sócia e o Banco Requerido, a quem aquela vem imputar o incumprimento de tal contrato e a sua indevida resolução, a mesma carece de legitimidade ativa, por não ser parte naquele contrato que vem pretender manter vigente, sem que tenha o poder de negociar ou de intervir de alguma forma na sua execução. 2. A titularidade da relação material controvertida que constitui o objeto da presente providência, tal como configurado pela Requerente, não lhe pertence já que a mesma é uma pessoa jurídica distinta da sociedade contratante, a quem uma decisão proferida nos autos não pode vincular, por não participar no mesmo. 3. Não é qualquer interesse em demandar que confere legitimidade ativa a uma parte, exigindo o art.º 30.º n.º 1 do CPC que tal interesse seja direto, expresso na utilidade derivada da procedência da ação o que, desde logo exclui a legitimidade de quem se apresenta a demandar com um interesse apenas indireto ou reflexo, como acontece no caso com a Requerente enquanto avalista.
Texto Integral
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
Vem a Requerente “A”, intentar o presente procedimento cautelar comum contra Banco Comercial Português, S.A., pedindo que:
- seja reconhecido à requerente o direito à prorrogação do período de carência, determinando-se ao Requerido que o cumpra com efeitos a partir de 15 de Novembro de 2023 e que restitua à Requerente qualquer importância cobrada a título de capital;
- seja declarado que o contrato de abertura de crédito não está resolvido e que o mesmo deve produzir os seus efeitos;
- seja determinado que o requerido comunique à LISGARANTE – Sociedade de Garantia Mútua, S. A. o cancelamento do pedido de pagamento por conta da garantia por esta prestada à Requerente.
Alegou, em síntese, que se candidatou a uma linha de crédito com bonificação da taxa de juro da instituição de crédito e garantia mútua – Linha INVEST+. Tendo a proposta sido aprovada, constituiu a sociedade comercial unipessoal por quotas denominada “B”, Unipessoal Lda., da qual é única sócia e gerente, sociedade que celebrou com o requerido um contrato de abertura de crédito até ao limite de €40.000,00, para ser utilizado até 15 de abril de 2022. Em 15 de Novembro de 2023, a Requerente solicitou ao Requerido a prorrogação do período de carência por 12 meses, tal como está previsto no regulamento do apoio. Porém, o mesmo não foi aprovado, tendo o requerido, em 07 de fevereiro de 2024, comunicado a resolução do contrato e a ativação das garantias. Foram os atrasos do requerido na aprovação do crédito e disponibilização dos valores associados que impediu o cumprimento das obrigações pela sociedade, pelo que estava obrigado a prorrogar o período de carência.
Devidamente citado, o Requerido veio deduzir oposição, invocando, além do mais, a ilegitimidade da Requerente, considerando que o contrato foi celebrado com a sociedade “B”, UNIPESSOAL, LDA., e não com a Requerente.
Foi dada à Requerente a oportunidade para se pronunciar sobre as exceções suscitadas pelo Requerido na oposição, o que a mesma veio fazer.
De seguida foi proferido despacho concluiu a final pela ilegitimidade da Requerente, absolvendo o Requerido da instância.
É com esta decisão que a Requerente não se conforma e dela vem interpor recurso pedindo a sua revogação e substituição por outra que reconheça a sua legitimidade e determine o prosseguimento dos autos, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A. O avalista de uma livrança em branco destinada a garantir parcialmente o cumprimento das obrigações da parte mutuária de um contrato de abertura de crédito detém legitimidade processual activa contra a parte mutuante;
B. Esta legitimidade decorre do interesse do avalista em demandar a parte mutuante sempre que a execução do contrato entra numa fase patológica e a normalidade é apenas susceptível de ser recuperada através de uma conduta da parte mutuante;
C. Para aferir a legitimidade do avalista, é indiferente tomar a relação de abertura de crédito ou a relação de aval como a relação material controvertida quando é esta relação de aval que se pretende salvaguardar, ainda que a conduta da parte mutuante opere na relação de abertura de crédito;
D. Em qualquer caso, o avalista tem um interesse directo em demandar porque pretende evitar o prejuízo que o afectará no caso de incumprimento – que pode ser evitado – da parte mutuária;
E. A utilidade da procedência da providência consiste precisamente em evitar este prejuízo;
F. A legitimidade processual não tem que coincidir inteiramente com a legitimidade material porque a primeira é aferida pelo interesse em demandar com vista à obtenção de um resultado que respeita a ambos os sujeitos processuais e no âmbito da relação entre eles estabelecida: a relação de aval;
G. A legitimidade processual activa da Recorrente resulta também da eficácia externa da obrigação de o Recorrido prorrogar o período de carência de capital, ou seja, do deferimento do reembolso da quantia mutuada pela parte mutuária;
H. O interesse da Recorrente em demandar o Recorrido centra-se na tentativa de evitar a produção de um prejuízo na sua esfera jurídico-patrimonial provocado pelo incumprimento daquela obrigação, fundando a sua legitimidade no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, sem prejuízo do próprio n.º 2 do artigo 406.º que não lhe veda a faculdade de agir;
I. Assim, a Recorrente detém um interesse directo em demandar o Recorrido porque a utilidade da procedência da providência cautelar consiste em evitar a produção de um prejuízo e as consequências que lhe são associadas, v.g., a situação de incumprimento, a diminuição patrimonial e a eventual insolvência;
J. A actuação da Recorrida enquadra-se plenamente nos cânones do artigo 30.º do CPC;
K. A Recorrente detém, pois, legitimidade para requerer a providência cautelar contra o Recorrido.
O Requerido veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão proferida.
II. Questões a decidir
É apenas uma a questão a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da (i)legitimidade processual da Requerente.
III. Fundamentos de Facto
Os factos que resultam provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito - da (i)legitimidade processual da Requerente
Alega a Recorrente que enquanto avalista tem interesse direto em demandar, de modo a evitar futuros prejuízos na sua esfera patrimonial, concluindo pela sua legitimidade ativa no presente procedimento.
É o art.º 30.º do CPC que nos dá o conceito de legitimidade, dispondo:
“1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
Na avaliação deste pressuposto processual diz-se na decisão recorrida, o que desde já se adianta, de forma acertada: “Revertendo ao caso, verifica-se que, a própria requerente alega que o contrato de concessão de crédito foi celebrado com a sociedade “B”, UNIPESSOAL, LDA. e que foi a esta sociedade que o requerido disponibilizou o valor do crédito e consequentemente foi esta que não logrou cumprir as suas obrigações e viu ser rejeitado o pedido de prorrogação do período de carência e o contrato ser resolvido. A requerente, a título pessoal, limitou-se a prestar uma garantia de garantia de 25% da responsabilidade emergente do contrato através do aval que deu a uma livrança em branco subscrita pela “B”. Verifica-se, assim, que a titular da relação material controvertida, tal como configurada pela requerente, e única entidade com legitimidade para peticionar a intervenção do Tribunal sobre o contrato celebrado, é a sociedade “B” (ainda que representada pela requerente enquanto única sócia e gerente), que é parte no contrato. O facto de a requerente ser interveniente no contrato como avalista não lhe confere legitimidade para actuar como se se tratasse da mutuária, uma vez que tal facto não lhe diz directamente respeito. Nestes termos, conclui-se, que a requerente não é parte legítima na acção.”
Para avaliar a legitimidade processual das partes, nos termos previstos no art.º 30.º do CPC importa ter em conta a sua posição na relação material controvertida tal como a apresenta o A., aferindo-se a legitimidade perante o pedido e a causa de pedir invocados no requerimento inicial, sendo que o que se pretende é que na causa estejam os verdadeiros interessados diretos na questão que se discute.
Sobre a questão da legitimidade, ensinam-nos com toda a clareza Antunes Varela, J Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 129: “Ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão existe; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a produzir, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação material controvertida, ausentes da lide.”
A Requerente do procedimento cautelar será parte legítima se for a titular da relação jurídica que integra o objeto do litígio, enquanto titular do interesse relevante para efeitos de legitimidade, pois só se assim for pode dispor da relação jurídica de que pretende fazer valer-se no processo.
Não é qualquer interesse em demandar que confere legitimidade ativa a uma parte, exigindo o art.º 30.º n.º 1 do CPC que tal interesse seja direto, expresso na utilidade derivada da procedência da ação o que, desde logo exclui a legitimidade de quem se apresenta a demandar com um interesse apenas indireto ou reflexo, precisamente por não ser o titular da relação jurídica controvertida.
Revertendo para o caso em presença, verifica-se que a relação jurídica em litígio na qual a Requerente fundamenta os seus pedidos se reporta a um contrato de abertura de crédito celebrado entre a sociedade “B” e o Banco Requerido, imputando a Requerente ao Banco o incumprimento de tal contrato, por não ter prorrogado o período de carência de pagamento do capital mutuado e por ter resolvido o contrato.
Os pedidos por ela formulados no âmbito da presente providência reportam-se todos eles a esse mesmo contrato – pedindo o reconhecimento do direito à prorrogação do período de carência, a restituição de qualquer quantia cobrada a título de capital; pedindo que se declare que o contrato de abertura de crédito não está resolvido e que deve produzir os seus efeitos; pedindo que o Requerido seja condenado a cancelar o pedido de pagamento por conta da garantia à LISGARANTE, S.A.
Estamos perante um procedimento cautelar não especificado em que os pedidos formulados se dirigem ou fundamentam todos eles num contrato de financiamento bancário em que a Requerente, pessoa singular, não foi parte.
Ora, é manifesto que pertence à sociedade “B” a titularidade da relação material controvertida que constitui o objeto da presente providência, tal como configurado pela Requerente, sendo imputado ao Requerido o incumprimento do contrato com ela celebrado, que a Requerente vem pretender manter vigente, sem que tenha o poder de negociar tal contrato ou de intervir de alguma forma na sua execução.
A Requerente pessoa singular, perante o direito substantivo, não é a titular da relação material controvertida que serve de fundamento à pretensão que vem deduzir em juízo. O seu titular é a sociedade “B”, a quem uma decisão proferida nos autos não pode vincular num processo em que a mesma não participa.
Fundamenta ainda a Requerente a sua legitimidade no facto de ser avalista, afirmando ter por isso interesse na demanda.
Como expressamente prevê o art.º 30.º da LULL o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval, admitindo-se por isso que esta garantia seja limitada a uma parte do valor do título, sendo o dador do aval responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, de acordo com o estabelecido no art.º 32.º do mesmo diploma. A responsabilidade do avalista pelo pagamento do título é assim solidária com a do aceitante do título e não meramente subsidiária, não obstante trata-se de uma obrigação autónoma e independente.
No caso, não é a relação jurídica da garantia prestada pela Requerente através do aval que está em discussão na presente providência e que é controvertida. Ao tribunal não é pedido que tome qualquer decisão sobre o aval que a Requerente prestou, não tendo o tribunal de proceder a qualquer apreciação ou tomar posição sobre tal relação jurídica contratual, nem tão pouco a Requerente invoca qualquer direito sobre o Requerido ao abrigo de tal contrato de garantia que com ele celebrou.
Antes a Requerente fundamenta os seus pedidos no alegado incumprimento de um contrato firmado entre a sociedade “B” e o Banco Requerido, centrando-se o litígio precisamente no relacionamento destas duas entidades na execução e cumprimento de tal contrato, sendo que os pedidos que formula são dirigidos tão só a essa relação contratual que não foi estabelecida com ela e em que a mesma enquanto pessoa singular não tem legitimidade para intervir.
O facto de se ter constituindo avalista no âmbito de uma livrança em branco entregue pela mutuária, como garantia do pagamento de uma parte do financiamento contratado, não lhe dá a possibilidade de intervir no contrato de que é garante, ainda que seja interessada no seu devido cumprimento, por ser avalista. Mas enquanto avalista, a mesma não tem legitimidade para pugnar pela manutenção de um contrato no qual não foi parte, com fundamento no seu alegado incumprimento pelo Banco R.
É certo que a Requerente apresenta-se como sócia gerente de tal sociedade, no entanto, como é sabido uma sociedade é uma pessoa jurídica com individualidade própria relativamente aos seus sócios e o contrato em questão, que constitui o objeto do litígio foi celebrado com a sociedade “B” e não com a Requerente, não tendo esta, enquanto pessoa singular, poder para dispor de tal relação contratual.
O litígio trazido ao tribunal centra-se no contrato celebrado entre a Sociedade “B” e o Banco Requerido, sendo uma relação contratual na qual a Requerente não pode imiscuir-se por não ter sido parte em tal contrato, pelo que o seu interesse no cumprimento do contrato, enquanto avalista é apenas indireto ou reflexo, o que não é suficiente para lhe conferir legitimidade para demandar o Requerido nos termos em que o faz.
Resta concluir que a Requerente, não dispõe de legitimidade ativa para demandar o Requerido nos termos em que o faz na presente providência, de acordo com o disposto no art.º 30.º n.º 1 a 3 do CPC por ter apenas um interesse indireto em demandar, que não é o interesse relevante para efeitos de legitimidade, por não ser a titular da relação material controvertida.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pela Requerente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente por ter ficado vencida – art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 26 de setembro de 2024
Inês Moura
Paulo Fernandes da Silva
Fernando Besteiro